Debate Sobre Escolarização - Marta Araújo

6
O DEBATE SOBRE A ESCOLARIZAÇÃO PRIMÁRIA ORGANIZADA PELA LEI IMPERIAL DE 1827 E REORGANIZADA PELO ATO ADICIONAL DE 1834 Marta Maria de Araújo Profa. Dra. do Departamento. de Educação – UFRN Há momentos especialmente propícios para o exame do debate sobre a organização da escolarização primária pública através da Lei Imperial de 15 de outubro 1827 - celebrada como a norma que funda o ensino primário no Brasil – e a sua primeira reorganização pelo Ato Adicional de 12 de agosto de 1834. O X Colóquio Internacional da Associação Francofone Internacional de Pesquisa Científica em Educação – AFIRSE, e o seu I Colóquio Nacional da Secção Brasileira, com o tema Heterogeneidade, Cultura e Educação, podem ser um desses momentos para iluminar os ângulos que presidem esse debate educacional. É bem do conhecimento dos educadores que a organização escolar, assim como cada reforma educacional, não se esgota na letra da lei que a prescreveu, nem nos resultados que venha a produzir no âmbito educacional. Por ser a educação uma estratégia para efetivar mudanças almejadas no indivíduo e na cultura de uma sociedade, a organização escolar e as reformas educacionais passadas e atuais são sínteses de planos governamentais, que englobam aspectos políticos, sociais e econômicos, além do ideário que as informa. Por sua vez, constituições, planos e programas governamentais procuram acentuar, e por vezes amenizar, tendências de reformas em marcha. A propósito do debate sobre organização da escolarização primária pública através de uma Lei Imperial de 15 de outubro 1827 1 e a sua reorganização pelo Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, pode-se dizer que a primeira Constituição do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado 2 e outorgada a 25 de março de 1824, pelo Imperador D. Pedro I, de substrato liberal e fortemente centralizadora, declarava salvaguardar ampla garantias das liberdades individuais e o requisito da representação política. Ademais, proclamava o preceito da instrução primária gratuita a todos cidadãos livres, e declarava, outrossim, naquele alvorada da formação do Estado nacional brasileiro, a universidade e os colégios secundários como o lugares de ensino das ciências, das letras e das artes. De certa maneira, a Constituição de 1824, ao assegurar direitos civis e políticos pautava-se na “Declaração dos Direitos dos Homem e do Cidadão”, lavrada pelos revolucionários franceses em agosto de 1789. Evocando fragmentos do movimento iluminista francês, os proponentes liberais ilustrados da sobredita Constituição agenciavam, como esclarece Fernandes (1987), a formação de um Estado-nação brasileiro dotado de esferas públicas semelhantes às das nações ocidentais modernas, condicionando e alicerçando o desenvolvimento, no tempo longo, do “Brasil moderno”. Seja como for, no interior da Constituição de 1824 transitam acepções de direito à liberdade, à propriedade, à igualdade e à educação, em conformidade com as leis em vigor. A Assembléia Nacional Constituinte de 1823, em sua ampla maioria era composta por bacharéis em direito e liberais, que além de formados na Europa eram portadores de cargos públicos, e que, apesar de sua postura elitista, pelo que revelaram nos textos, pretextos e idéias sobre tendências culturais em marcha, não deixaram, de alguma forma, de circunscrever a educação na esfera das políticas públicas de Estado. Posição essa confirmada no ordenamento jurídico da Constituição de 1824. 1 Sobre o texto da Lei Imperial de 15 de outubro de 1827 consultar Lima (1927). Essa Lei também ficou conhecida como Lei Geral de 1827. 2 O Conselho de Estado era composto de 10 membros ilustres da corte, com o papel meramente homologatório ao texto redigido na sua forma definitiva por José Joaquim Carneiro de Campos (Marquês de Caravela). Cf. Chizzotti, 1996.

description

...

Transcript of Debate Sobre Escolarização - Marta Araújo

Page 1: Debate Sobre Escolarização - Marta Araújo

O DEBATE SOBRE A ESCOLARIZAÇÃO PRIMÁRIA ORGANIZADA PELALEI IMPERIAL DE 1827 E REORGANIZADA PELO

ATO ADICIONAL DE 1834

Marta Maria de AraújoProfa. Dra. do Departamento. de Educação – UFRN

Há momentos especialmente propícios para o exame do debate sobre a organização daescolarização primária pública através da Lei Imperial de 15 de outubro 1827 - celebrada como anorma que funda o ensino primário no Brasil – e a sua primeira reorganização pelo Ato Adicionalde 12 de agosto de 1834. O X Colóquio Internacional da Associação Francofone Internacional dePesquisa Científica em Educação – AFIRSE, e o seu I Colóquio Nacional da Secção Brasileira, como tema Heterogeneidade, Cultura e Educação, podem ser um desses momentos para iluminar osângulos que presidem esse debate educacional.

É bem do conhecimento dos educadores que a organização escolar, assim como cadareforma educacional, não se esgota na letra da lei que a prescreveu, nem nos resultados que venha aproduzir no âmbito educacional. Por ser a educação uma estratégia para efetivar mudançasalmejadas no indivíduo e na cultura de uma sociedade, a organização escolar e as reformaseducacionais passadas e atuais são sínteses de planos governamentais, que englobam aspectospolíticos, sociais e econômicos, além do ideário que as informa. Por sua vez, constituições, planos eprogramas governamentais procuram acentuar, e por vezes amenizar, tendências de reformas emmarcha.

A propósito do debate sobre organização da escolarização primária pública através de umaLei Imperial de 15 de outubro 18271 e a sua reorganização pelo Ato Adicional de 12 de agosto de1834, pode-se dizer que a primeira Constituição do Império do Brasil, elaborada por um Conselhode Estado2 e outorgada a 25 de março de 1824, pelo Imperador D. Pedro I, de substrato liberal efortemente centralizadora, declarava salvaguardar ampla garantias das liberdades individuais e orequisito da representação política. Ademais, proclamava o preceito da instrução primária gratuita atodos cidadãos livres, e declarava, outrossim, naquele alvorada da formação do Estado nacionalbrasileiro, a universidade e os colégios secundários como o lugares de ensino das ciências, dasletras e das artes.

De certa maneira, a Constituição de 1824, ao assegurar direitos civis e políticos pautava-sena “Declaração dos Direitos dos Homem e do Cidadão”, lavrada pelos revolucionários franceses emagosto de 1789. Evocando fragmentos do movimento iluminista francês, os proponentes liberaisilustrados da sobredita Constituição agenciavam, como esclarece Fernandes (1987), a formação deum Estado-nação brasileiro dotado de esferas públicas semelhantes às das nações ocidentaismodernas, condicionando e alicerçando o desenvolvimento, no tempo longo, do “Brasil moderno”.Seja como for, no interior da Constituição de 1824 transitam acepções de direito à liberdade, àpropriedade, à igualdade e à educação, em conformidade com as leis em vigor.

A Assembléia Nacional Constituinte de 1823, em sua ampla maioria era composta porbacharéis em direito e liberais, que além de formados na Europa eram portadores de cargospúblicos, e que, apesar de sua postura elitista, pelo que revelaram nos textos, pretextos e idéiassobre tendências culturais em marcha, não deixaram, de alguma forma, de circunscrever a educaçãona esfera das políticas públicas de Estado. Posição essa confirmada no ordenamento jurídico daConstituição de 1824.

1 Sobre o texto da Lei Imperial de 15 de outubro de 1827 consultar Lima (1927). Essa Lei também ficou conhecidacomo Lei Geral de 1827.2 O Conselho de Estado era composto de 10 membros ilustres da corte, com o papel meramente homologatório ao textoredigido na sua forma definitiva por José Joaquim Carneiro de Campos (Marquês de Caravela). Cf. Chizzotti, 1996.

Page 2: Debate Sobre Escolarização - Marta Araújo

Um ano depois da outorga da Constituição, o médico monarquista Pires de Almeida3

(1989) nos dá conta de uma ordem ministerial de 22 de agosto de 1825, que insiste na necessidadeda propagação do método mútuo em todas as recém-criadas Províncias, após treinamento desoldados na capital da Corte, Rio de Janeiro, em escola apropriada, para, em seguida, ensiná-lo naprovíncia de origem.

A princípio, em face do processo de ordenamento jurídico-político indispensável àtransição de uma sociedade colonial para uma sociedade nacional, malgrado a persistência doescravismo, entre outras manifestações de terror4, como mostra Fernandes (1978:46), por mais queo passado persistisse, ele não se manteria intacto, pois a sociedade colonial brasileira teria deconverter-se, em vários níveis de sua organização, numa sociedade nacional. Entre os vários níveisda organização da sociedade nacional brasileira, a organização da educação primária nacionalsobressaía-se como medida imprescindível, em virtude do caráter estratégico da educação e de seresta uma variável social e de ordem pedagógica.

Dessa perspectiva é que no âmbito da complexa transição da sociedade colonial para asociedade nacional brasileira, com suas implicações seculares para os destinos de uma ordem socialcapitalista, era aprovada a Lei Imperial de 15 de outubro de 1827 - celebrada como a norma quecriou o ensino primário no Brasil. De acordo com o texto da Lei de outubro 1827, a escolarizaçãoprimária deveria fazer-se reger pelo método lancasteriano de ensino mútuo5, por ele consagrarprincípios inovadores e por dever a difusão da instrução primária atingir simultaneamente umgrande número de escolares, sob a responsabilidade de um mestre ou uma mestra, auxiliados pormonitores ou “decuriões”, com deveres de ensinar e tomar lições ou mesmo acompanhar as aulasdas turmas menos adiantadas, como informa Lima (1927)6.

A prescrição do método lancasteriano de ensino mútuo no texto da Lei de 1827 vinhaacompanhada da indicação de um “plano de ensino” constando de leitura, escrita, quatro operaçõesda aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, noções gerais de geometria prática,gramática da língua nacional, princípios da doutrina da religião católica apostólica romana, sendopreferido, nos exercícios de leitura, o texto da Constituição do Império e a História do Brasil, e nasescolas femininas a aprendizagem de prendas que servem à economia doméstica (Lei de 15 deoutubro de 1827 Apud Lima, 1927).

Por esse plano de estudo, já contendo uma certa diversidade curricular, repartição edistribuição seqüencial dos conteúdos, arquitetava-se uma organização da educação escolarprimária, onde o método, a disciplina, o tempo de ensino, bem como o desenvolvimento de hábitosde ordem, submissão, respeito, deveres, patriotismo, cumprimento de horários, deveriam compor erecompor o universo escolar, e com tal perspectiva – tal plano de ensino - inseria-se e resultava do 3 José Ricardo Pires de Almeida autor da História da Instrução Pública no Brasil (1500 – 1889) publicada originalmenteem francês, em 1889, é apresentado por Chizzotti (1989: 8), tradutor da referida obra, como um intelectual típico de suageração, possuído de um sentimento nacionalista, como tantos do seu tempo (...). Este sentimento, a aderênciamonarquista do autor muito viva, ainda, nos albores da República, seu conservadorismo persistente em quase todos osproblemas que aborda, impregnam a obra de um ufanismo laudatório de pessoas, fatos e progressos da instruçãopública no Brasil.4Da outorga da Constituição de 1824 à abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, têm-se vários espetáculos deterror comandado pelo governo regencial, com prisões de deputados constituintes e liberais radicais, deportações eexecuções de lideranças de movimentos republicanos, a exemplo do Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, daConfederação do Equador. Não obstante, a fonte de inspiração desses movimentos republicanos fora o própriopensamento ilustrado de verniz liberal, muitíssimo apreciado pela intelectualidade imperial. Os abomináveis princípiosfranceses como se dizia então, segundo Viotti da Costa (1988:84) inspiravam cada levante republicano.5 O método de ensino mútuo ou monitorial foi sistematizado separadamente, primeiro pelo médico e Pastor anglicanoAndrew Bell (1778-1832), depois pelo integrante da seita dos Quackers, Joseph Lancaster (1778-1838). Mostram Lopeze Narodowski (1999) que muitos dos países da América Latina recém independentes, como é o caso brasileiro,adotaram o método lancasteriano, entre outras causas, por sua concepção remeter a uma maior neutralidade com relaçãoao ensino religioso o que não acontecia com o de Bell.6 Mostra Lima (1927: 25) que no livro de Lancaster “O Sistema Inglês de Educação” (1810) este expõeminuciosamente a disciplina e a organização da sua escola, com a “preocupação constante de economizar tempo eesforços nas aulas e de limitar a intervenção direta do professor, para que esse possa fiscalizar a ordem geral daescola”.

Page 3: Debate Sobre Escolarização - Marta Araújo

debate sobre uma cultura escolar moderna impregnada do afã de uma uniformidade e racionalidadedo ritual escolar. Sabe-se que desde a Didáctica Magna de Comenius (1985:186), a arte de ensinarjá exigia, portanto, uma habilidosa repartição do tempo, das matérias e do método.

Eis que a Lei de outubro de 1827, em sintonia com essa atmosfera de uma cultura escolarmoderna em marcha no século XIX, demarcava a possibilidade de seu alcance pedagógicodeterminando, outrossim, que para as escolas de ensino mútuo se aplicarão os edifícios (...),arranjando-se com utensílios necessários à custa da Fazenda Pública, e os professores que nãotiverem necessária instrução deste ensino, irão instruir-se em curto prazo à custa dos seusordenados, nas escolas das capitais (Art. 5º da Lei de 15 de outubro de 1827 Apud Lima, 1927:8).É visível que a adoção do método lancasteriano ensino mútuo nesse momento respondia tanto àingerência política inglesa no Brasil7, quanto correspondia ao modelo educacional de feiçãorelativamente laica e hegemônico nos países europeus crescentemente industrializados, a exemploda própria Inglaterra.

Para Petitat (1994:146) a possante renovação do pensamento pedagógico [desde] asegunda metade do século XVIII está impregnada pela idéia de Estado. Nesse sentido, a execuçãoda Lei de outubro de 1827, pretendendo a estruturação de um sistema nacional de “ensino único” nopaís, circunscrevia-se, pois, no âmbito das iniciativas de Estado. De acordo com o texto dessa Leide 1827, competia ao Presidente de cada Província criar escolas de Primeiras Letras, tambémcognominadas de “Escolas Nacionais”, que deveriam ser aprovadas em sessão do Conselho daProvíncia, depois de ouvidas as Câmaras Municipais, e posteriormente, submetidas à aprovação daAssembléia Geral na Corte, para uma final resolução.

Colocada essa resolução no bojo da organização da sociedade nacional brasileira, e, umavez que se assemelhava àquelas que impulsionaram a formação e consolidação dos sistemasnacionais de ensino na maioria das regiões da América Latina (Lopez e Norodowski,1999), acriação das escolas de primeiras letras, alicerçada no método lancasteriano de ensino mútuo, traz apúblico o fato de envolver meios mais sintéticos e econômicos para dar a instrução elementaroportuna às classes inferiores (...), tanto que esse método pode ser considerado justamente comouma das mais úteis invenções modernas ( Hamel Apud Manacorda, 1996: 258-9).

Ocorre que, essa invenção “moderna” cujo o intento era dar um ordenamento racional àescolarização primária, inaugurava a transição do velho modelo de ensino individual para o modelode caráter coletivo e misto, que, justamente por estar atado à etapa de uma economia capitalistaconcorrencial, revestiu-se de procedimentos didáticos precários e econômicos, para tornar plausível,de forma estrita, a expansão da escola pública para um número razoável de meninos.

Para Alves (2001:83) a força desse método coincidia com o primeiro esforço concentradopara o oferecimento de escolas para todos e, exatamente por isso, sua existência repousava sobrecondições precárias e transitórias. Portanto, superada as condições econômicas que determinaram asua emergência, progressivamente o ensino mútuo deixava de ser útil na sua pretensão de ampliaçãodo número de meninos nos bancos escolares. Assim, é evidente que o processo de formação deprofessores em maior escala e a expansão da rede pública de ensino desencadeariam oenfraquecimento paulatino do uso do método de ensino mútuo dos ingleses Joseph Lancaster eAndrew Bell.

Esse movimento educativo que culminou com adoção do método lancasteriano de ensinomútuo, tende a ser tomado fundamentalmente pelo seu efeito de innovación educativa (Lopez eNorodowski,1999:66), ou como representando um avanço notável nas teorias do seu tempo ( Lima,1927:20). Seja como for, o ideal iluminista de expansão da escolarização primária pública tonava-seuma possibilidade através da nascente organização dos sistemas nacionais de educação, pautada nasaplicações pedagógicas de um ensino de modelo coletivo, misto e uniforme. E patenteada segundoos princípios do método lancasteriano de ensino mútuo.

7 Mostra Ribeiro Júnior (1988) que entre os fins do século XVIII até a primeira década do XIX a Inglaterra conquistou econsolidou seu domínio econômico na América Latina, o que levou Pierre Chaunu a dizer que, até 1914, a AméricaIbérica tornou-se a mais bela das colônias britânica. Sobre o domínio britânico especialmente no Brasil, consultar:Novais e Mota (1996) e Mattos (1999).

Page 4: Debate Sobre Escolarização - Marta Araújo

Não obstante, se tomarmos as estatísticas mesmo deficitárias e incompletas colhidas peloeducador e Diretor do Departamento de Educação (1923-1927) Nestor Lima, vê-se que, com avigência da Lei de 1827, o Rio Grande do Norte, que dantes possuía somente uma escola oficial deprimeiras letras em Natal, capital da Província, passava a contar, de 1829 a 18358, com 20 escolasde Primeiras Letras, sendo 16 para meninos, 03 para meninas e 01 mista, distribuídas pelos lugaresmais habitados da nascente Província.

Cem anos depois, em 1927, Nestor Lima (1927:48), fazendo um balanço dos resultados daLei Imperial de 1827, na província potiguar, avaliava que através dela nos veio o surto inicial deprogresso educativo; das suas criações, aproveitaram todos os recantos da ex-Província; oalfabeto espalhou-se do litoral ao sertão (...), por toda parte chegaram os professores oficias,providos em virtude dessa lei, para transmitir os primeiros rudimentos do saber contemporâneo atodos os habitantes da nossa terra, há um século mergulhados na mais completa ignorância. Acompleta ignorância de que trata Lima diz respeito à ausência de uma escolarização nos marcos daspolíticas públicas de Estado, fundamentada num método único, formadora das gerações novas paraa vida civil que se anunciava. Todavia, pelo menos no território potiguar, a recomendação trazida naLei de 1827, de aplicação do método lancasteriano de ensino mútuo de Primeiras Letras, não logrouvingar na sua completude, pois, como diz Lima, poucos professores tiveram tempo de aprendê-lo esequer de praticá-lo.

Por sua vez, Pires de Almeida (1989:61) nos informa que as estatísticas oficiais de 1832elencavam, em todo o império, 162 escolas de meninos e 18 de meninas; estas escolas estavamestabelecidas no Rio de Janeiro e na província do mesmo nome e também nas províncias da Bahia,Pernambuco, Rio Grande do Norte, Piauí, Pará, Mato Grosso, Goiás e S. Pedro do Rio Grande doSul; sobre estas 180 escolas, havia ao menos 40 nas quais o lugar do professor estava vacante, edeste número, 8 eram escolas de meninas. Havia, pois, em todo o Brasil, 10 escolas para o sexofeminino.

Já nos relatórios de 1832, do Ministro Lino Coutinho (Apud Moacir 1936:194), era maisou menos comum o seguinte juízo sobre as escolas de primeiras letras das províncias regidas pelométodo lancasteliano: as escolas lancastelianas, tais como têm sido montadas, e na falta absolutade um razoável e uniforme ensino para todas as escolas do império, sem cartas apropriadas e nemcompêndios escolhidos, bem pouco fruto nos tem dado até hoje; porque ainda com três anos deaturado ensino, os meninos não se acham capazes, e prontos para progredirem em outros maioresestudos ou se aplicarem aos diversos misteres e ocupação da vida. Com tudo isso e por tudo isso,todavia, inverter tal realidade era atitude política de competência das províncias, desde jádelimitadas pelos cálculos matemáticos do que e do quanto produziam para o mercado mundial.

Ora, com a abdicação de D. Pedro I em abril de 1831 e instituído o período regencial(1831-1840), apressaram-se os parlamentares do “bloco” liberal em encaminhar ainda em maiodaquele ano, a reforma da Constituição outorgada pelo nosso primeiro Imperador. Por fim, em 12de agosto de 1834, foi aprovado um Decreto Legislativo, incorporado à Constituição de 1824 comoAto Adicional. Expressava, na categorização de Mattos (1994), uma articulação entre osmoderados, os exaltados e os conservadores, figurando a autonomia relativa das províncias e acompetência conferida às Assembléias Legislativas Provinciais agora criadas, e substitutas dosConselhos Gerais das Províncias, com poderes de decidir sobre questões de ordem administrativa,judiciária, eclesiástica, da saúde e da instrução pública, entre outras providências institucionais.Enfim, a reforma constitucional de 1834 era de gênero nitidamente federativo e a garantia dainstrução primária gratuita era dever constitucional das províncias e municípios.

Por se ter optado pelo gênero federativo, atribuiu-se aos estados a responsabilidade pelaeducação, em geral, e à comunidade local poderes para organizar e gerir suas escolas primárias esecundárias, levantando taxas específicas destinadas à manutenção dos estabelecimentos escolares

8 Na “Falla” do Presidente da Província (1836-37), Bacharel João José Ferreira de Aguiar, abrindo a segunda Sessão daAssembléia Legislativa, em 07 de setembro de 1836, ele dizia, para começar, que as aulas primárias desta Província,em número de – 30 – acham-se, quase todas, providas, e segundo os Mapas remetidos à Secretária do Governo, eudeveria dizer-vos, que é prodigioso o número de alunos ( Coleção Mossorense, 1999: 5)

Page 5: Debate Sobre Escolarização - Marta Araújo

(Sucupira, 1996). E com esse novo corolário político-institucional, a descentralização educacionalconferida pelo Ato Adicional de 1834, não atenuava – antes acentuava – as deficiências e asdificuldades estruturais e, mais ainda, as desigualdades da instrução em cada província, e rompia apossibilidade da formação um sistema nacional de ensino homogêneo, em cuja direção vinha agindoa comunidade latina, na justa apreciação de Azevedo (1996).

É tanto que, passados quatro anos da decretação do Ato Adicional, o relatório do Ministrodo Império Bernardo Pereira de Vasconcelos ( Apud Almeida, 1989:58), anunciava que, na aurorado ano de 1838, os resultados do sistema Lancaster não corresponderam ao esforço público (...). Enão é somente entre nós que se observa isto; na Europa, onde há numerosos professores muitohábeis e onde é fácil reunir todas as condições para se por em prática metódica este sistema,produziu-se o mesmo resultado, como se vê pelas recentes publicações de M. Cousin, que examinouos estabelecimentos de instrução na Prússia e na Holanda.

Segundo o visto, a Lei de 1827 investiu-se do cumprimento de uma organização daeducação primária nacional e da ampliação das oportunidades educacionais, sob o auspício dométodo lancasteriano de ensino mútuo, motivando, como diz Nestor Lima (1927:44), umapreparação mental nos hábitos educativos da nacionalidade. Por sua vez, o Ato Adicional de 1834rompe com o agenciamento, pelo Estado brasileiro, da organização da educação primária públicanacional, negligencia o método de ensino mútuo, e desqualifica os poderes nacionais como centrosdiretores dessa empresa educativa.

Com isso, o Ato Adicional de 1834 foi objeto de interpretações e intervenções distintaspor parte das Províncias, também em fase de organização político-institucional. Assim, asperspectivas de descentralização, diversidade e heterogeneidade, marcos do período regencial,aparecem e estão subsumidas ao traçado dessa reforma constitucional.

Para a história da educação, o século XIX, em quase todo o mundo, pelos ditames darepercussão do iluminismo, dialogou com a expectativa de democratização das oportunidadesescolares para as camadas majoritárias da população, ou seja, de oferecer uma escolarizaçãouniversal, gratuita, laica, obrigatória e pública para instruir a infância e a mocidade livres.

Sendo o século XIX o século do progresso e da escolarização em grande parte dacomunidade das nações avançadas, o método lancasteriano de ensino mútuo, sublinhado comomodelo escolar moderno, resultado da interseção de dispositivos técnicos, políticos e pedagógicos,recordará, em terras brasileiras, mais um procedimento com o propósito político de promover oacesso de segmentos populares aos bancos escolares do que mesmo um mecanismo teórico-práticoregulador da escola de primeiras letras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALVES, Gilberto Luís. A produção da escola pública contemporânea. Campo Grande: 2001(digitado).ALMEIDA, José Ricardo de. História da Instrução Pública no Brasil. São Paulo: PUC; Brasília:INEP/MEC, 1989.AZEVEDO, Fernando de. Cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil. 6.ed.Brasília: UNB; Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Manda criar escolas de primeiras letras em todas ascidades, vilas e lugares mais populosos de Império. In: LIMA, Nestor. Um século de ensinoprimário. Natal: Typ. d’A República, 1927.CHIZZOTTI, Antônio. A Constituição de 1823 e a educação. In: Fávero, Osmar (Org.). Educaçãonas constituintes brasileiras (1823-1988). Campinas (SP): Autores Associados, 1996.COMÉNIO, João Amós. Didáctica universal: tratado da arte de ensinar tudo a todos. Trad.Joaquim Ferreira Gomes. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.COSTA, Emília Viotti da. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. MOTA, CarlosGuilherme (Org.). Brasil em perspectiva. 17.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

Page 6: Debate Sobre Escolarização - Marta Araújo

FALLA de Dr. João José Ferreira de D’Aguiar dirigida à Assembléia Legislativa do Rio Grande doNorte (1836). In: Falas e Relatórios dos Presidentes de Província do RN no período de 1835-1888. Mossoró (RN): Fundação Vingt-Un Rosado, 1999 (Coleção Mossoroense).FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica.3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.LIMA, Nestor. Um século de ensino primário. Natal: Typ. d’A República, 1927.LÓPEZ, Claudina; NARODOWSKI, Mariano. El mejor los métodos posibles. La introducción delmétodo lancasteriano em iberoamérica en el temprano siglo XIX. In: BASTOS, Maria HelenaCâmara., FARIA FILHO, Luciano Mendes (Orgs.). A escola elementar no século XIX: o métodomonitorial/mútuo. Passo Fundo (RS): Ediupf, 1999.MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. Trad.Gaetano Lo Monaco. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1996.MATTOS, Ilmar R. de. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. 4.ed. Rio de Janeiro:ACCESS, 1994.MOACYR, Primitivo. A instrução e as Províncias subsídios para a história da educação no Brasil(1834 – 1889) – Das Amazonas as Alagoas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. v.1.______________. A instrução e o Império: subsídios para a história da educação no Brasil (1823– 1853). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936. v.1.NOVAIS, Fernando A., MOTA, Carlos Guilherme. A Independência política do Brasil. 2. ed. SãoPaulo: HUCITEC, 1996.PETITAT, André. Produção da escola, produção da sociedade. Análise sócio-histórica de algunsmomentos decisivos da evolução escolar no ocidente. Trad. Eunice Gruman. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1994.RIBEIRO JÚNIOR, José. O Brasil Monárquico em face das repúblicas americanas. MOTA, CarlosGuilherme (Org.). Brasil em perspectiva. 17.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.SUCUPIRA, Newton. O Ato Adicional de 1834 e a descentralização da educação. In: Fávero,Osmar (Org.). Educação nas constituintes brasileiras (1823-1988). Campinas (SP): AutoresAssociados, 1996.