DE USUÁRIO A ATIVISTA, A MARCHA DA MACONHA NO … Seminarios PPGSOC... · Para tal é analisado o...
Transcript of DE USUÁRIO A ATIVISTA, A MARCHA DA MACONHA NO … Seminarios PPGSOC... · Para tal é analisado o...
202
DE USUÁRIO A ATIVISTA, A MARCHA DA MACONHA NO BRASIL
Vinicius R. Lanças (UFSC)
Resumo: Essa pesquisa pretende tratar da capacidade de mobilização dos movimentos sociais
contemporâneos, de sua influência política, bem como da construção simbólica/identitária e das
articulações internas que o produzem e o antecedem. Para tal é analisado o movimento anti-
proibicionista no Brasil contemporâneo através dos fenômenos conhecidos por Marcha da
Maconha. Dado a natureza desse movimento, uma série de perguntas emerge: como se dá o
consumo da substância em meio a ilegalidade, uma vez que seu uso antece o movimento social em
questão? Como o uso até então predominantemente recreativo passa a ser visto pelos sujeitos
envolvidos como político, isto é, quando e como passam a questionar publicamente sua proibição?
Como a ilegalidade pode influenciar no surgimento e reprodução dessas formas de ação coletiva,
isto é, dos movimentos sociais? Como uma identidade ligada a um hábito de consumo legalmente
proibido é discursivamente mobilizada para tornar-se politicamente organizada? Como essa
incipiente identidade interage com os elementos já existentes no meio político, isto é com os
partidos e demais movimentos sociais, tendo em vista o tabu que tema carrega? Palavras Chave: Movimenos Sociais, Identidade, Anti-proibicionismo, Marcha da Maconha.
203
De Usuário a Ativista, A Marcha da Maconha no Brasil.
Essa pesquisa pretende tratar da capacidade de mobilização dos movimentos sociais
contemporâneos, de sua influência política, bem como da construção simbólica/identitária e das
articulações internas que o produzem e o antecedem. Tal esforço consiste na continuidade da
pesquisa realizada durante a realização da dissertação de mestrado “Marcha da Maconha:
Transgressão e Identidade em um Movimento Social Contemporâneo”1, da qual podem ser trazidas
algumas conclusões. Inicialmente é preciso trazer a ideia de proibicionismo2 para tratar do atual
marco no trato do uso de determinadas substâncias, pois isso marca as relações nas quais a luta se
insere e a define enquanto tal. Cabe ressaltar também que a luta anti-proibicionista projeta-se
enquanto demanda global, embora as ações que ela envolve estejam localmente articuladas e que o
aspecto da clandestinidade que os circuitos de consumo de uma substância influenciam na
constituição das redes de ação política.
O surgimento dos movimentos anti-proibicionistas ao redor do mundo indica a incipiência
de uma identidade em torno desse produto e de seu uso – que foi também bastante ressignificado
nesse último século de experiências proibicionistas passando de sinal de pobreza e marginalidade
para sinal de rebeldia e liberdade. Tal fenômeno é decorrente da proibição, pois esta, ao tornar todo
aquele que tem contato com esse produto um tipo específico de criminoso gera a categoria de
usuário, assim essa categoria é o algo em comum que possuem todos ‘maconheiros’ independente
de classe, gênero e time de futebol3; e é essa identidade (bem como os valores que ela encarna –
como o direito à livre disposição do próprio corpo de modo a questionar a legitimidade da
intervenção estatal no que tange ao uso de substâncias socialmente repugnadas – e a simpatia a essa
identidade) quando politicamente mobilizada por atores racionais insiders e marginais no campo
político que permite a articulação das bases (circuitos canábicos) e
1 Tal pesquisa foi concluída sob orientação da Prof.ª Dr.ª Lígia Helena Hahn Lüchmann, junto ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina e encontra-se disponível em https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/107320/319248.pdf?sequence=1. 2 “Proibicionismo é uma forma simplificada de classificar o paradigma que rege a atuação dos Estados em relação a
determinado conjunto de substâncias. Seus desdobramentos, entretanto, vão muito além das convenções e legislações nacionais. O proibicionismo modulou o entendimento contemporâneo de substâncias psicoativas quando estabeleceu os limites arbitrários para usos de drogas legais/positivas e ilegais/negativas. Entre outras consequências, a própria produção científica terminou entrincheirada, na maior parte das vezes do lado “certo” da batalha, ou seja, na luta contra as drogas. O proibicionismo não esgota o fenômeno contemporâneo das drogas, mas o marca decisivamente.” (FIORE, 2012: 9) 3 Apesar de parecer engraçado, o fator 'time de futebol' é seriamente um elemento a ser considerado ao pensar
questões como ação política e identidade no contexto brasileiro e latino americano.
204
a visibilidade das pautas de modo a criar o movimento social.
No Brasil as manifestações realizadas por tal movimento se iniciaram em 2002, com forte
influência estrangeira4, tendo aumentado desde então, tanto no número de participantes quanto no
impacto na esfera pública. O Movimento Anti-proibicionista, marcado no Brasil contemporâneo
pelas Marchas da Maconha anuais, caracteriza-se como um movimento social difuso, cuja ideia
principal encontra alcance global5, mas as ações políticas são localmente elaboradas e realizadas.
Ainda é vaga a construção de uma unidade quando se trata dos organizadores e participantes da
Marcha da Maconha no Brasil, pois se trata de uma realidade extremamente diversa, heterogênea,
fragmentada, mas que já conta com lideranças nacionalmente reconhecidas.
Até onde foi constatado através do trabalho de pesquisa (realizado de 2011 até o presente
momento) tal movimento é composto por uma série de organizações locais, com poucos vínculos
formais, unidos principalmente pela ideia do movimento, cabendo aqui uma diferenciação que visa
evitar a anterior reificação a partir do evento que se constitui em mais vísivel repertório. Isso
significa que é preciso traçar uma diferença entre os diversos grupos que encampam a luta anti
proibicionista no Brasil contemporâneo, que devem ser chamados de Movimento Anti
proibicionista no singular devido a convergência de suas ações e lutas, e seu principal repertório,
elemento que em boa medida os une e que torna-se critério central para identificá-lo nessa pesquisa,
a Marcha da Maconha, evento anti proibicionista realizado anualmente em muitas cidades do Brasil
(e do mundo6).
4 “Em 2002 algumas pessoas receberam nas ruas e praias do Rio de Janeiro folhas de seda carimbadas com uma
convocação. Surgia a primeira Marcha da Maconha, organizada de modo espontâneo, sem ligação com partidos ou
movimentos estudantis, foi puxada por Suzana, uma portuguesa que em sua passagem pelo Brasil trouxe o ato global pela legalização da erva em terras tupiniquins, ou melhor, Guarajaras, tribo brasileira que aprecia muito a erva. De lá
pra cá muita fumaça subiu. Em meio a proibições, prisões de ativistas e batalhas judiciais , a manifestação espontânea
de cunho carnavalesco foi endurecendo, ganhando um ar mais sério, mas sem perder a ternura e o bom humor. Atualmente organizada por diversos grupos, desde aqueles que lançam candidatos a deputado, aos que apontam para
atos de desobediência civil e ação direta, como o auto cultivo, o evento que celebra a cultura da canábis atrai cada vez mais adeptos e a atenção da mídia, acendendo um debate que vai além de seu proposito inicial, revelando como a
democracia em nosso país ainda é falha”. Bruno Raj, Resistência Verde 10 anos de Marcha da Maconha in Sem
Semente Edição 1 Maio/Junho 2012, pag. 14. 5 “A mobilização em favor da liberação da maconha para consumo e fins medicinais, teve início em 1998, encabeçada
pelo ativista Dana Beal, no mês de maio. Desde então, o dia 7 foi estabelecido como a data mundial para as manifestações favoráveis so uso da droga. (…) Desde a primeira mobilização em 1998, diversas cidades do mundo passaram a realizar manifestações no mês de maio, que hoje já ocorrem em 250 cidades, em 63 países. No Brasil, as
manifestações ocorrem de forma mais sistemática desde 2006, mas por causa do calendário, com o Dia das Mães e finais de campeonatos estaduais de futebol, a data é mudada. Dezoito marchas estão programadas para este mês em diversas cidades brasileiras” Daniel Favero, em http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5139287-EI8139,00-Conheca+um+pouco+da+historia+da+Marcha+da+Maconha+no+mundo.html, publicado em 21 de maio de 2011, acessado pela última vez em 17 de outubro de 2012. 6 Nas realidades internacionais o evento chama-se Million Marijuana March, sendo Marcha da Maconha, nome e
logotipo uma invenção especificamente brasileira, mais precisamente carioca.
205
Até o presente momento com base nos dados coletados e nas teorias conhecidas, é possível
afirmar que o discurso em torno do hábito do consumo recreativo de canábis antecede
temporalmente ao movimento político e em boa medida lhe fornece as bases simbólicas (elementos
coletivamente reconhecíveis que permitiram vislumbrar uma solidariedade entre estranhos
remontando ao hábito de consumo – isto é, a possibilidade histórica de clamar por e encontrar eco
na figura coletiva de uma espécie de “maconheiros do Brasil” capaz de agir politicamente) e
materiais (sujeitos com tempo, dinheiro e suficientemente conhecimento político para dar início ao
ciclo de protestos que em boa medida marca o início das lutas anti-proibicionistas [ao menos no
nível de 'massas nas ruas'] no Brasil contemporâneo).
Por tratar-se de uma substância historicamente criminalizada, boa parte da produção
discursiva a ela relacionada poderia só por isso mesmo ser chamada de política em um sentido
amplo do termo, mas ao atentar para o uso um pouco mais restrito do termo, que remonta à política
institucional e às formas democráticas (mais ou menos) representativas comuns no imaginário
ocidental é possível captar de forma mais acurada os níveis e nuances de mudança e
amadurecimento (em termos políticos e organizacionais da luta anti-proibicionista ao interpretá-la
como um movimento social em sua totalidade). Isto é, inicialmente o contexto proibicionista achata
todos os consumidores na categoria 'usuário' (e/ou traficante); surge, nesse contexto, uma série de
produções culturais remontando a esse hábito de consumo (nacionalmente difundidas por meio dos
mecanismos da indústria cultural em estágio bastante avançado7) com as quais uma série de
indivíduos até então pulverizados passam a se reconhecer constituindo um público (e uma
incipiente noção de identidade); esse público torna-se politicamente mobilizado, inicialmente em
manifestações públicas (e conflitos) e atualmente em uma série de outras atividades, entre elas a
entrada no jogo institucional, com candidatos abertamente vinculados à causa e às formas locais
pelas quais se manifesta a latência do movimento.
Tais fenômenos podem ser explicados através da ideia de 'circuitos canábicos', que em boa
medida abarcam muitas noções de identidade, constituindo uma espécie de 'local comum' –
tomando o local num sentido conceitual e não físico ou geográfico8. É através
7 Para uma análise atenta de um fenômeno desse tipo confere Silvestrin, Mauro Leno. A Fumaça e o Feitiço, Maconha e
Umbanda na Obra de Bezerra da Silva. Curitiba, 2008. http://www.humanas.ufpr.br/portal/antropologia/files/2012/11/SILVESTRIN-Mauro-Leno1.pdf . 8 “(...) no és simplesmente que en la mente de los cristianos, musulmanos o hindus fuesen las ciudades sagradas de Roma,
Meca o Benarés los centros de geografia sagradas, sino que su centralidad se experimentava y ‘realizaba’ (en sentido
teatral) por el paso constante de los peregrinos que iban a ellas desde localidades remotas y sin ninguna outra
206
desses 'lugares-comuns' que se constrói o imaginário compartilhado do qual prescindem os
elementos simbólicos mobilizados pelos atores sociais politicamente. Rastrear tais circuitos é
rastrear os caminhos pelos quais circulam as ideias e os discursos sobre os quais se sustenta a atual
luta anti-proibicionista. Se, diante do atual marco teórico, se é levado a crer que as respostas para os
fenômenos políticos encontram-se em boa medida no âmbito discursivo, esse é um excelente caso
para análise. Inicialmente por tratar-se de um fenômeno de rápida expansão (a partir de certos
centros difusores – de acordo com o que leva a crer o rol de informações coletadas em campo) que
(se as hipóteses estiverem corretas) pode ser explicada através da forma como os incipientes atores
sociais souberam mobilizar discursivamente difundido pelos circuitos canábicos na construção de
seus repertórios.
A ‘aura mística’ gerada pela perseguição proibicionista, ao ser discursivamente direcionada,
aciona redes de solidariedade nas quais se constitui um discurso no qual o usuário (e até mesmo o
traficante em alguma variações mais 'radicais'), ou melhor, os milhões de usuários sendo
anonimamente 'oprimidos', tornam-se mais que simples criminosos tornam-se contestadores legais
de um tipo bem específico, desobedientes civis, e passam a gozar (ao menos dentro desses níveis
discursivos, desses circuitos canábicos) de uma espécie de 'moralidade superior', de saber-se ‘certo,
mas incompreendido’, de saber-se ‘inocente, mas injustiçado’, de tornar-se um lutador anônimo de
uma luta homérica contra uma força opressora impessoal e fundamentalmente injusta9.
relación.” Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas, Reflexiones sobre el origen y difusión del nacionalismo. Trad. Eduardo L. Suárez. Fondo de Cultura Económica, México: 1993. P. 86. 9 “Em São Paulo, pela primeira vez [em 2011] a marcha saiu do lugar, apesar da insistente repressão do Estado que
mais uma vez, a exemplo de anos anteriores, queria vetar a manifestação, limitando a uma concentração de
manifestantes parados em rodas de discussão no vão do MASP. Foi então que se deu o mais importante fato político
relacionado a manifestação nos últimos tempos. Dessa vez, fazendo cumprir o artigo quinto da constituição, a
Marcha SP saiu independentemente de autorização, contrariando a ordem judicial e criando um ato de desobediência
civil. Em contra partida o Estado intensificou as medidas ‘de segurança’ e acionou os policiais do batalhão de
choque da PM, que eram aplaudidos e apoiados por grupos de skinheads neo nazi e nacionalistas de extrema direita
(que estavam lá pra protestar contra a Marcha). (...) A atitude autoritária do governo paulistano evidenciou ainda
mais o fato de que no Brasil os movimentos sociais vem sendo sistematicamente criminalizados. Isso acontece com
sem terras e sem tetos, recentemente aconteceu até mesmo com bombeiros e policiais em greve, não é uma novidade
por aqui. Ativistas que levantam determinadas bandeiras são injustamente presos e até assassinados por
defenderem uma causa e de uma forma ou de outra o Estado sempre está por trás desses crimes ” Bruno Raj,
Resistência Verde 10 anos de Marcha da Maconha in Sem Semente Edição 1 Maio/Junho 2012, pag. 14, grifos
meus. Essa fala, além de ilustrar porque a marcha pode ser caracterizada como desobediência civil, indica também
antagonismos dentro da própria sociedade civil, através dos grupos que foram críticar (e em alguma medida oprimir – no sentido de por em questão a própria existência física, isto é agredir) a Marcha da Maconha. Esse antagonismo
deve ser explicitado, ressaltando a própria sociedade civil como lócus do conflito, com destaque para o fato de que
'o Estado', isto é, nesse caso o aparato repressor que age em nome desse constructo da imaginação política humana
não é nunca, absolutamente nunca, neutro e toma sempre partido, nesse e em outros casos. Tal questão é de vital, do
posicionamento das forças repressivas de forma a desiquilibrar decisivamente as disputas no 'espaço público, é de
vítal importância para entender os atuais conflitos da sociedade brasileira.
207
As marchas anuais seriam então apenas a ponta de um gigantesco iceberg que constitui toda
a complexa rede de significados que esses consumidores de canábis, usuários ou, se o leitor preferir,
‘maconheiros’, atribuem a si mesmos e às suas práticas. Para compreender como se articula o
movimento anti-proibicionista no Brasil contemporâneo é preciso compreender essa rede de
significados, pois é através dela que circulam as ideias e valores que podem orientar a ação política.
Visando captar como o discurso anti-proibicionista desse movimento social se espalha e ganha
adeptos foi preciso trabalhar com duas formas de circulação de ideias: mídias canábicas e circuitos
canábicos. O adjetivo que remonta a controversa planta em questão visa esclarecer tratar-se de
relações onde os sujeitos envolvidos atribuem ao hábito de consumo elemento central.
As mídias são revistas (internacionais e nacionais), sites, fóruns e vídeos que atribuem a si
mesmos o termo ‘canábico’ e que se especializam em produzir material sobre esse tema10
,
contribuindo dessa forma para a causa do movimento de ao menos três formas, naturalizando e
desmitificando as práticas envolvendo o consumo da famigerada erva, divulgando e promovendo as
críticas ao atual modelo proibicionista e traçando alternativas (ainda que muitas vezes utópicas, mas
que cumprem o papel de projetar um horizonte para a luta atual) e divulgando, promovendo e
convidando para as marchas anuais. Além dessas mídias é preciso atentar para os circuitos
canábicos: tratam-se de lugares, relações e eventos que acontecem tendo a canábis como força
centrípeta. Nesses circuitos circulam diversas pessoas (conhecidas e até então desconhecidas) em
que o elemento em comum que sustenta o circuito entre elas é o hábito de ‘fumar maconha’, assim
uma das principais características dos circuitos é eles serem potencialmente impessoais (ainda que
as pessoas circulando regularmente pelos
10 Os exemplos abundam, então cabe citar apenas aqueles que puderam ser contemplados durantes as análises que
conduziram a esse breve trabalho ensaístico: na mídia impressa temos a revista Sem Semente (“primeira revista de
cultura canábica” diz na capa) que está na quarta edição e que nos últimos anos tem realizado uma boa cobertura dos eventos envolvendo a canábis no Brasil e no mundo, com destaque para os adeptos do cultivo caseiro, conhecidos
como growers (cultivadores); esses cultivadores e os editores da revista que também contam com canais na mídia
digital, que antecederam a publicação impressa, especialmente o fórum http://www.growroom.net/, mas os demais
públicos também são contemplados no meio digital em sites como o http://hempadao.com/, que entre outras produções costuma cobrir as marchas em diversas cidades e o blog http://maryjuana.com.br/ de ‘notícias canábicas’.
Essas mídias circulam não só informações sobre as marchas e eventos propriamente ‘políticos’ como também
permitem imaginar a construção de todo um complexo imaginário sobre a vida do ‘usuário’ através da diversidade
de temas que abordam. A revista Sem Semente, por exemplo, já tratou de informar sobre os direitos e a forma de lidar com a abordagem policial, o site Hempadão já divulgou vídeos com as propostas dos candidatos relacionados
ao tema e até um manual de etiqueta na roda já foi publicado no blog da Mari Juana. Essas mídias, ao
proporcionarem material de interesse para um vasto público permitem criar ‘lugares comum’ frequentados por
‘maconheiros’ de todo o território nacional (e de todo o mundo lusófono potencialmente) criando um mundo mental comum, condição essencial para a formulação de propostas políticas alternativas e pra articulação de um movimento
social em prol do hábito de consumir uma erva até então proibida.
208
mesmos circuitos torne cada vez mais pessoal certos circuitos). É uma ideia ampla, mas que pode
ser posteriormente recortada e atravessada por outras categorias, como classe e nacionalidade, mas
sempre com a ideia de que os circuitos são sobrepostos e que entre eles a ideia de que há algo em
comum entre os usuários resta. Os exemplos podem ir desde a mais simples roda de maconheiros
até as próprias marchas passando pelos mais variados grupos constatados pela imaginação
associativa humana, como o Instituto da Canábis, as Copas Canábicas e os clubes de cultivo.
Tendo em mente que o movimento social se perpetua através dessas mídias e dos circuitos
canábicos, e tendo em mente que esses circuitos são mais antigos que o próprio marco
proibicionista e que possivelmente qualquer identidade a ser imaginada entre ‘maconheiros’ até
então desconhecidos passa por esses circuitos, é preciso se debruçar sobre como eles foram
abalados pelo impacto proibicionista. Acredito que o caminho para tal investigação seja possível de
ser traçado imaginando como a ilegalidade e a discriminação engendram a própria categoria na qual
o hábito aqui estudado é inserido: a categoria de usuário, que não é usada para alcoólatras nem
fumantes, podendo ser até mesmo pejorativa, mas que confina o consumo de maconha e outras
substâncias na atual era da proibição como política pública11
.
Isso leva, no entanto, a mais uma série de perguntas, muitas das quais ainda não é 11
Gostaria de esclarecer ao leitor, sem me deter demasiadamente no assunto, que o consumo da Maconha não se dá da
mesma maneira que as demais drogas no que tange a sua sociabilidade básica: fuma-se predominantemente em roda, ou
seja, compartilhando o mesmo cigarro entre pessoas, por vezes, desconhecidas, de forma similar ao consumo de Mate
(Chimarrão e Terere) em todo o Cone Sul. Infelizmente o reduzido número de trabalhos sobre essa prática pelo viés das
ciências sociais nos impede de aprofundar sua compreensão, mas já permite intuir que ela gera uma solidariedade
especifica entre aqueles que compartilham tal hábito, ainda que sejam inicialmente estranhos entre si. Conforme explica
o sociólogo H. Becker, “an individual will be able to use marihuana for pleasure only when he goes through a process
of learning to conceive of it as an object which can be used in this way ” (Becker, 1991: 58). Ou seja, adquirir esse
hábito é fruto de sociabilidade, é um processo de aprendizado. Segue um trecho de um poema que ilustra o que quero
destacar: “fumar maconha é/ compartilhar seu último camarãozinho/ pra salvar uma roda de cinco pessoas/ sabendo que
também será salvo um dia/ a lealdade de pessoas que acabou de conhecer” (
http://www.growroom.net/board/topic/43152-fumar-maconha-poema-q-escrevi-sobre estudo o pesquisador -a-santa-
erva/ - acessado em 3 de agosto de 2012). Esses aspectos que tangem a solidariedade existente entre eles não podem ser
ignorados. Gostaria de explicar minhas hipóteses quanto a isso: a solidariedade é fruto de um contexto proibicionista
onde a ação policial e a ilegalidade do produto influenciam no trato do mesmo por seus usuários; essa solidariedade
entre pessoas desconhecidas se desenvolve na criação de circuitos de difusão do hábito e da substância, delimitados
constantemente pela ilegalidade (o que tende a gerar comunicação em códigos razoavelmente específicos), e torna
viável a convivência necessária para a perpetuação do consumo; a dinamicidade desses circuitos e o interesse daqueles
que os frequentam permite uma vasta criação discursiva na qual solidariedades são forjadas. A categoria, inicialmente
pejorativa, de “usuário” não é fruto da imaginação das pessoas as quais ela ousadamente se refere, mas sim fruto de um
complexo aparato simbólico e material ao qual se convencionou chamar de proibicionismo. Compreender esse
fenômeno histórico é de fundamental importância para entender o que significa a categoria de usuário e sua
ressignificação contemporânea que permitir falar de identidade em torno de algo que poderia ser tão somente um hábito
de consumo. Parte-se da definição de proibicionismo cunhada por Fiore para interpretá-la a partir da ideia de
empreendimento moral (moral enterpeneuship) de Howard Becker. Tal conceito remonta a uma proposta de “sociologia
dos desviantes”, onde se procurou compreender como afinal os sujeitos se tornaram “desviantes” das normas sociais
existentes e sob quais critérios eram assim avaliados.
209
possível responder se não de forma especulativa, pois as respostas carecem do tempo e das escolhas
políticas a serem realizadas num futuro próximo, tais como os impactos de legalizações em cenários
de forte luta anti-proibicionista e a capacidade da repressão e da proibição (quando percebida como
ilegítima) forjarem uma identidade antagônica na própria resistência (luta) cotidiana e a partir das
próprias categorias do sistema repressor (como ocorre com grupos rebeldes de presídios e outras
instituições totais quando se organizam)12
. Rebeldia pra uns, autonomia pra outros, peço que o
leitor fuja dos julgamentos morais e procure vislumbrar grupos coordenados de pessoas interagindo
com valores e objetivos distintos ao invés de procurar mocinhos e bandidos nessas relações no
limiar de legalidade (entre a objeção e a desobediência civil) que os atores da sociedade civil por
vezes se veem obrigados a caminhar.
Inicialmente, minha primeira hipótese afirma que circuitos semi clandestinos envolvendo o
consumo de canábis – e toda a circulação de discursos, ideias e sensações que isso implica –
haviam desde muito antes do próprio movimento social (motivados, ao menos inicialmente, pelo
contexto proibicionista) e a forma como se dá esse consumo pode ser explicada através da ideia de
circuitos canábicos. Minha segunda hipótese afirma que a solidariedade necessária para colocar
uma luta em movimento é fruto do contexto proibicionista, na medida em que esse gera a categoria
a partir da qual usuários que até então poderiam não possuir nada em comum são classificados, isto
é, na medida em que surge discursivamente um exterior constitutivo. Partindo dessas duas
hipóteses, afirmo que em um dado momento foi decidido tornar tais circuitos políticos (portanto
públicos) através de redes que articulam eventos e formas inovadoras de desobediência civil, e que
esses fatores, ilegalidade e identidade ligada ao consumo, podem alterar a forma como
compreendemos movimentos sociais na contemporâneidade, isto é, que há elementos novos nesse
fenômeno, tanto do ponto de vista do conteúdo de suas pautas e da forma constroem solidariedade
através de um consumo ilícito quanto dos formatos de organização e ação política, com destaque
para o manejo das mídias, tradicionais e novas.
Há ainda mais uma hipótese, que afirma que tais movimentos procuram agir por novos
caminhos, evitando quando não repudiando aquilo que tomamos por política convencional – isto é,
atividades partidárias – com forte impacto no entendimento da política por esses novos atores13
e que
outros movimentos passam a seguir esses passos 12 “ei usuário, saia do armário” gritam as multidões nas marchas anuais, sem se importar que a categoria ‘usuário’
lhes foi legada de forma heterônoma pelo sistema repressor.
13 Habermas afirma que os movimentos sociais não devem se tornar um ator macro social que vise rearticular a
210
(como a Marcha das Vadias e outros 'movimentos em marcha'). Isso não impede a existência de
candidatos, mas afeta tal existência, gerando ambivalências que complexificam os casos e só podem
ser mensuradas através da devida apreciação do discurso dos próprios atores sociais (ativistas,
candidatos e públicos mobilizados).
Tendo em vista a natureza da pesquisa que envolve um movimento social contemporâneo,
articulado de forma dispersa e as possibilidades abertas pelas mídias digitais é preciso elaborar uma
metodologia em boa medida inovadora, descontentando, mas não de propósito, os estudiosos mais
ortodoxos. O trabalho de campo realizado anteriormente (Lanças, 2013) junto a algumas realidades
locais da Marcha da Maconha (em São Paulo, em Jundiaí e Florianópolis) permitiu captar algumas
características do movimento anti proibicionista, entre elas suas formas de difusão e contato, com
destaque para as mídias digitais (de forma que boa parte das atividades dos atores sociais
envolvidos pode ser acompanhada através desse meio, principalmente as redes sociais). Mas além
de novas técnicas de pesquisa (como seguir ativistas em redes sociais digitais), o objeto requer uma
abordagem de aproximação específica, na medida em que envolve grupos até então marginalizados
pela opinião pública. É preciso inicialmente tratar dessa abordagem, para depois transpô-la na
pesquisa nos meios virtuais.
Em boa medida a metodologia dessa pesquisa pode ser resumida da seguinte forma:
acompanhar e interagir com circuitos canábicos que antecedem a existência do movimento social
em questão visando compreender quais e como elementos discursivos existentes nesses circuitos
foram discursivamente mobilizados de forma a tornar um hábito considerado ilegal em uma
reivindicação politicamente viável. Apesar de boa parte dos coletivos envolvidos ter ampliado sua
pauta para a legalização das demais drogas, o movimento é mantido em suas principais articulações
por usuários e cultivadores da famigerada erva, a cannabis sativa, comumente conhecida por
maconha. A aproximação do pesquisador com esses ativistas (ou canábistas como preferem alguns)
precisa sociedade como um todo, devem se limitar a exercer influencia na esfera pública, “Isso faz com que os movimentos
democráticos oriundos da sociedade civil renunciem às aspirações de uma sociedade auto-organizada em sua totalidade,
aspirações que estavam na base das idéias marxistas da revolução social. Diretamente, a sociedade só pode transformar-
se a si mesma; porém ela pode influir indiretamente na autotransformação do sistema político constituído como um
Estado de Direito”. (Habermas 1997: 106). Apesar de ter escrito a mais de vinte anos e sem poder imaginar a
constituição do movimento social aqui estudado, existem consonâncias entre essa visão de sociedade civil e o discurso
dos atores sociais envolvidos na Marcha da Maconha. Há no discurso dos atores sociais que pude acompanhar m certo
anti partidarismo e uma visão pejorativa da política partidária, conforme pode ser percebido pela descrição no site
marchadamaconha.org e nas entrevistas, conforme ilustrado, por exemplo, na nota 25, relegando o principal papel do
movimento ao exercício de influência e pressão. Entre essas práticas se encontram suas manifestações periódicas, mas
também sua forma de organização interna, que se propõe não hierárquica e descentralizada. Em que medida essa
configuração afirmada é realmente verdadeira e em que medida ele pode se manter dessa forma diante da inserção do
movimento no cenário político e de uma possível profissionalização de seus membros diante de sua projeção, são coisas
a serem reveladas através dessa pesquisa.
211
respeitar e interagir com hábitos envolvendo o uso da planta que preexistem ao movimento social e
à pesquisa. Esses hábitos envolvem compartilhar experiências, entre elas, o consumo de substâncias
cujas leis acerca delas são questionadas pelo movimento social abordado. A experiência em campo
que pretendo descrever levou a crer que qualquer outra postura que não essa (tendo em mente as
implicações disso tanto entre colegas quanto entre os atores sociais com os quais estou em contato)
não geraria a confiança necessária para o acesso a informações e circuitos bastante vigiados e
perseguidos por aparatos proibicionistas (que variam desde as polícias federal e estaduais aos
principais veículos da mídia hegemônica).
Tendo em vista a interconexão inerente entre as experiências ‘no campo’ e as formulações
teóricas é preciso explicar que o acompanhamento dos ativistas/usuários levou a formulação da
ideia de circuitos canábicos. Tal conceito refere-se a grupos e eventos cuja força centrípeta que atrai
e mantém agregados os mais diversos indivíduos é o uso compartilhado de cannabis sativa. Esses
circuitos variam desde as rodas de maconha até as copas canábicas, os carnavais canábicos e as
marchas da maconha. É através desses circuitos canábicos que circulam informações dos mais
variados tipos, como termos e linguagens próprios, indo até a formulação de discursos acerca da
proibição, da repressão e dos usuários. A existência desses circuitos, assim como suas
interconexões (a nível nacional e internacional) e a produção midiática deles decorrente ajuda a
explicar não somente o surgimento do movimento e sua rápida difusão e ampliação pelo território
nacional como também ajuda a perceber a construção de um discurso a
criação/apropriação/significação (e ressignificação) de uma identidade peculiarmente pautada em
hábito de consumo proibido e marcado pela repressão do atual marco proibicionista. Imagem I – mapa conceitual dos circuitos canábicos.
212
É possível explicar as experiências de campo dividindo-as em alguns grupos. No primeiro
encontram-se o acompanhamento dos eventos principais, quais sejam, as Marchas da Maconha
anuais. Essa foi a primeira abordagem e trouxe significativas contribuições para a construção das
primeiras concepções e hipóteses acerca do tema e do objeto. No segundo grupo encontra-se a
inserção nos circuitos canábicos que antecedem tais eventos e nos quais emerge o discurso que
procura legitimar o movimento como um todo. No terceiro grupo encontram-se as entrevistas
realizadas com os membros dos coletivos que organizam as marchas anuais (e porventura outras
atividades ligadas à luta anti-proibicionista) e alguns participantes que se manifestaram em tais
eventos. Finalmente, no último grupo encontra-se o acompanhamento das chamadas mídias
canábicas e da chamada cultura canábica, com destaque para duas diferentes formas de difusão (via
circuitos canábicos, mas não somente) e os vários níveis entre elas, a difusão vertical (comunidade,
fórum) e a difusão horizontal (jornal, blog).
As experiências junto às marchas e a inserção nos circuitos canábicos são descritas usando
de recursos etnográficos. As entrevistas são bastante abertas e apesar de contarem com perguntas
específicas foi sempre permitido que o entrevistado falasse a vontade, cabendo apenas algumas
breves intervenções conforme os assuntos tocados despertam interesse por maiores explicações. As
quatro questões básicas do plano de entrevista14
visam esclarecer as redes nas quais os atores estão
inseridos, apesar de 14
Primeiro é perguntado ao entrevistado seu nome (não necessariamente o de batismo, mas apenas uma forma de se referir a ele/a) e uma breve história de sua inserção e militância na marcha da maconha, visando mapear as origens dos quadros do movimento e as formas de multi-militância. Nesse momento geralmente o entrevistado revela o
213
bastante amplas trouxeram informações bastante específicas.
Tais entrevistas, mesmo sendo breves15
, trazem a tona uma série de informações relevantes, tais
como a filiação partidária, as formas de financiamento, a participação em outros e quais movimentos
sociais contemporâneos, além de uma série de outras que não são perguntadas, mas são respondidas nas
falas de cada um dos entrevistados. Foram realizadas até o presente momento 36 entrevistas, com
integrantes da organização das marchas das cidades de Porto Alegre, Florianópolis, Balneário
Camboriú, Blumenau, Foz do Iguaçu16
, Curitiba, São Paulo, Santos, Guarujá, Rio de Janeiro, Brasília,
Goiânia, Aracaju, Natal, Salvador, Teresina e Fortaleza, lembrando que a circulação é bastante intensa e
que não foi preciso (nem possível, infelizmente) acompanhar pessoalmente todas essas realidades, pois
seus membros podem ser encontrados nas marchas de outras cidades. Cabe explicar o acompanhamento
das mídias e demais circuitos canábicos (entendo as marchas como um circuito político, ou politizado,
que é mais ou menos distinto e requer certos recursos básicos para o acesso17
).
Inicialmente o acompanhamento das principais atividades do movimento social, como as
marchas anuais, se dá seguindo suas lideranças e participando de seus grupos nas redes digitais. É
uma forma rápida e eficiente de informações em tempo real, que se não substitui o
acompanhamento etnográfico o direciona ao informar o pesquisador dos principais eventos, que
pode a passar a acompanha-los ainda em faze de planejamento. Já as mídias tradicionais como
revistas e demais periódicos são analisadas de forma exegética visando captar quais os principais
elementos discursivos mobilizados por cada um dos atores sociais envolvidos, bem como sua
capacidade de difusão, de forma a imaginar que nesse sentido o movimento anti-proibicionista
brasileiro conta com ao menos três grandes centros difusores, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa
Catarina. Até o presente momento foram analisadas as revistas Maconha e Sem Semente, todos os
pertencimento a algum coletivo ou grupo anti-proibicionista – permitindo identifica-los e classifica-los de acordo com a
cidade de origem e a zona de difusão alcançada. Em seguida a pergunta é a respeito das formas de financiamento do
movimento – pois mesmo as marchas mais modestas apresentam certos custos. A pergunta seguinte, que em alguns
casos soa como uma continuação da pergunta anterior é acerca das relações dos coletivos com os outros movimentos
(como o movimento negro e o movimento estudantil) e com os partidos políticos que são cada vez mais forçados a se
posicionar em relação ao tema. Finalmente, é perguntada posição do entrevistado (individual e do coletivo ao qual faz
parte) em relação aos diferentes modelos de legalização (pois as hipóteses iniciais indicavam que esse ponto permitiria
captar as divergências entre os diversos grupos anti-proibicionistas). 15 A ideia inicial era realizar as entrevistas durante as marchas, de forma que não tomassem muito tempo
dos entrevistados.
16 Nesse caso tratava-se de um movimento que se pretendia internacional, reunindo militantes do Brasil, Argentina e Paraguai sob o nome de Marcha das Três Fronteiras.
17 A priori todo usuário ou simpatizante teria acesso às organizações das marchas da maconha e outros eventos anti-proibicionistas, no entanto, a pesquisa de campo revela que a permanência requer certos recursos como dispor de tempo livre e relativo acúmulo de capital cultural.
214
fanzines coletados durante as marchas acompanhadas, com destaque para ‘O Camarão’ da cidade
de Porto Alegre. Outro importante elemento que ajuda a perceber a difusão do movimento em
território nacional e internacional é a circulação de camisetas da Marcha da Maconha (ver anexo 1)
que são estampadas localmente e distribuídas nacionalmente.
A camiseta da feminista anti-proibicionista (confere anexo 5) exemplifica bastante bem tal
fenômeno, pois foi lançada em Brasília 2013 e pouco menos de dois anos depois já foi constatada
em TODAS as marchas da maconha que esse pesquisador pode acompanhar desde então. Apesar
das óbvias diferenças entre a luta anti-proibicionista e a luta feminista, no cenário brasileiro essas
duas lutas muitas vezes realizam eventos em conjunto, chegando até mesmo a lançar uma camiseta
com símbolos de ambas as marchas para a realização das manifestações de maio de 2013 na cidade
de São Paulo. Apesar de ainda bastante incipiente, a comparação entre esses dois movimentos pode
ser bastante profícua para as análises sociológicas na medida em que permite verificar elementos
amplamente discutidos pelas teorias contemporâneas como o fenômeno da multi-militância e as
redes e coalizações entre diferentes movimentos sociais18
. Tal comparação se dará através do já
pesquisado material acerca da Marcha da Maconha e do material a ser levantado acerca da Marcha
das Vadias. Esse material será levantado através das declarações do próprio movimento na internet,
sobretudo em redes sociais como o facebook, e a partir da entrevista da militante Gabriela
Moncau19
(jornalista relativamente famosa pelas matérias acerca de políticas de drogas e abusos de
direitos humanos na revista Caros Amigos para a qual trabalhava até o início desse ano). Na ocasião
a jornalista vestia-se com a camisa das vadias e da maconha, demonstrando filiação a ambas as
causas, além de fazer parte do coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR), um dos mais importantes
pilares da luta anti-proibicionista na capital paulista. Creio que através dessa análise muito sobre
ambos os movimentos e suas redes e conexões poderá ser esclarecido.
Todos esses elementos analisados podem contribuir na compreensão dos circuitos que
preexistem ao movimento social analisado, permitindo visualizar como e por meio de que
construções discursivas foi construído um movimento político a partir de usuários de produtos
considerados drogas ilegais, parafraseando o título de Hirschman, permite o faz
18 “ Foi muito bonito, foi muito espontâneo, assim, chegou muita gente que a gente não sabia que ia aparecer, como
um clã enorme de feministas, a Marcha das Vadias também colaborou a gente esse ano, o coletivo triângulo rosa, GLS, também na causa aí do uso do corpo, liberdade, tá todo mundo junto contra o fundamentalismo no governo” ativista de Brasília em entrevista realizada na marcha de 2013.
19 Tal entrevista foi realizada no Congresso Internacional sobre Drogas que ocorreu em Brasília do dia 3 a 5 de maio de 2013.
215
dos consumidores cidadãos afinal. No início dos anos 2000, quando foram encontradas as primeiras
marchas em território brasileiro, vivíamos um regime mais ou menos estável e democrático, que
apesar do ranço autoritário, dava sinais de abertura e de respeito à autonomia de seus cidadãos.
Mas, além disso, quero ressaltar outra transformação fundamental para a relevância que a causa
toma, de viés menos institucional e mais comportamental, que é a vasta produção cultural e adesão
pública de atores sociais influentes em relação ao tema anti-proibicionista e principalmente à
maconha ao longo dos anos noventa e início dos anos dois mil.
É importante destacar aqui o papel bastante influente na juventude que hoje protesta a
produção musical de artistas como Marcelo D2 e Bezerra da Silva20
e a postura de intelectuais de
peso como Fernando Henrique Cardoso, sobretudo no que tange a criação de um novo discurso em
torno das categorias de ‘drogado’, ‘usuário’ e ‘maconheiro’. Se por um lado os discursos do ex-
presidente (e de tantos outros intelectuais de porte junto a ele) desconstroem a validade empírica do
proibicionismo enquanto ideologia dominante, por outro lado a produção cultural que abertamente
expõe o uso da substancia para a juventude e o associa a um novo estilo de vida auxilia na quebra
da marginalidade do usuário, invertendo os valores e tornando a categoria ‘maconheiro’
positivamente valorada nos contextos onde essa produção discursiva obteve êxito e se impregnou,
como nos mostram a realidade recente de algumas universidades por exemplo21
.
20 Marcelo D2 é um conhecido Rapper brasileiro, que desde os anos noventa quando compunha a banda Planet Hemp
já possuía uma imagem pública relacionada ao consumo de maconha, "Sou o maconheiro mais famoso do Brasil" afirmou recentemente antes de um show, http://ultimosegundo.ig.com.br/swu/maconheiro-mais-famoso-do-brasil-marcelo-d2-faz-show-irregular-no-swu/n1597366748033.html. Bezzera da Silva também é um artista reconhecido que trata dos temas das comunidades periféricas cariocas onde viveu a maior parte de sua vida, entre eles e maconha, muito embora tenha afirmado não fumar, para uma boa compreensão da relação desse complexo artista, recomendo a obra A Fumaça e o Feitiço, Maconha e Umbanda na obra de Bezerra da Silva do antropólogo Mauro Leno, http://www.humanas.ufpr.br/portal/antropologia/files/2012/11/SILVESTRIN-Mauro-Leno1.pdf.
21 Existem inumeráveis exemplos que poderiam ser trazidos ilustrando contextos onde o uso da maconha longe der ser
marginalizado é positivamente tomado e pode estar relacionado a valores como liberdade e transgressão, mas
apenas um já torna evidentemente claro o que procuro aqui destacar: a invasão da USP no final de 2011. Uma série
de ocupações e protestos foi iniciada na USP (que já se encontrava sitiada por policiais militares desde alguns meses
antes por ordem do governo paulista) quando alguns policiais efetuaram uma tentativa de prisão sobre três jovens
que fumavam a erva, tão controversa, nos arredores dos prédios da história. Diante da tentativa dos policiais uma
multidão de pessoas se formou ao redor deles e por meio de ameaças e protestos verbais dissuadiram a policia de
cumprir a lei. Há três pontos que podem ser destacados diante desse fato (e que se fossem exaustivamente abordados
poderiam constituir uma nova pesquisa): o primeiro ponto é a legitimidade da lei que proíbe o uso da erva nesses
contextos, que até onde pude observar é nula, o segundo é a defesa das pessoas que estavam sendo presas, realizada
por outras pessoas que até então não estavam envolvidas no episodio, o que demonstra que longe da usual
marginalidade aqueles maconheiros contavam com ampla aprovação social em seu meio, e o terceiro é a
legitimidade da ordem do governador em consonância com um reitor dos tempos do antigo regime (refiro-me à
famigerada ditadura civil-militar cuja sombria influencia assola até hoje nossa fraca república) de ocupar a
universidade com a polícia militar. Para maiores informações e uma opinião juridicamente fundamentada sobre o
acontecimento conferir http://www.viomundo.com.br/politica/souto-maior-intransigencia-da-reitoria-da-usp-em-
216
Mais do que combater o discurso e a prática proibicionista, o argumento é que essa produção
cultural envolvendo a assim chamada “droga” possibilitou a articulação uma nova identidade. Essa nova
identidade é que cabe ser investigada. É preciso ressaltar tratar-se de uma identidade criada a partir de
um hábito de consumo, o que a insere como um fenômeno estritamente moderno. Ainda que o uso de
canábis seja milenar é no marco capitalista que ela se converte em uma mercadoria, e uma mercadoria
bastante procurada que movimenta milhões anualmente. Poderiam os movimentos sociais do século
XXI se constituir a partir da identificação por meio de hábitos de consumo em comum? Ou seria
somente a proibição que tornaria possível essa identificação? Somente o decorrer da pesquisa, que se
encontra em fase de realização, poderá responder tais questões.
Por hora cabe concluir que essa identificação dos famigerados maconheiros entre si já existe
e é atestada por uma série de relatos e vasta diversidade de materiais coletados até então. A
metodologia da pesquisa ampla em que esse tópico se insere passa por entrevistas e coleta de dados,
cabendo para esse assunto ressaltar alguns tipos de materiais analisados, com revistas, sites,
camisetas, artigos e vídeos, dirigidos para um público de consumidores de canábis que se identifica
com esse material. Nesse material podemos encontrar alguns símbolos que podem ser politicamente
reivindicáveis em nome da causa e a pesquisa segue na investigação desses símbolos, como o
número 4:2022
, que já serve de código internacional relacionado ao consumo da famigerada erva.
Esses símbolos podem ser a chave para uma compreensão mais ampla dos circuitos e dos
fenômenos de rua ligados à canábis ou fornecer elementos preciosos para decodificar o mundo
mental dos usuários-ativistas.
Bibliografia.
ALONSO, Angela. As teorias dos movimentos sociais, um balanço do debate. Lua Nova, São
Paulo, 76: 49-86, 2009. ARATO, A.; COHEN, J. Civil Society and Political Theory. Massachusetts, MIT Press: 1999.
dialogar-pode-produzir-um-verdadeiro-massacre.html. 22
“O termo é datado de 1971 e tem origem em um dos estados mais liberais dos EUA, a Califórnia. Trata-se, antes de
uma referência à data, de uma indicação relativa ao horário, em que jovens da subcultura da cannabis se encontravam para fazer o famoso ritual. Aos poucos o termo se tornou gíria e, mesmo a qualquer hora, alguém olhava o relógio e, em forma de código, dizia: 4e20. E assim os envolvidos já se ligavam. Fora isso, o horário ficou sacramentado, logo todo usuário sabe que nessa hora ele não está sozinho e sim numa verdadeira sintonia da massa.” Publicado no site //hempadao.com.br/ em 20 de abril de 2010 – acessado pelo última vez em 27 de julho de 2012.
217
ARENDT, H. Crises da República. Trad. J. Volkmann. Perspectiva: 1972.
BECKER, H. Outsiders Studies in the Sociology of Deviance. New York, The Free Press: 1991. BEDAU, A. H. On Civil Disobedience in Journal of philosophy. Stanford, Stanford University,
Vol. 58, No. 21, 653-61, 1961. BORBA, Julian. REVISTA DEBATES, Porto Alegre, v.6, n.1, p.123-147, jan.-abr. 2012
(disponível em http://seer.ufrgs.br/debates/article/viewFile/26167/17098). BURGIERMAN, Denis Russo. O fim da Guerra: a maconha e a criação de um novo sistema para
lidar com as drogas. São Paulo, Leya: 2011. BRADY, Henry E.; VERBA, Sidney; SCHLOZMAN, Kay Lehman, A Resource Model of Political
Participation in The American Political Science Review, Vol. 89, No. 2 (Jun., 1995), pp. 271-294. COHEN, Jean L. Sociedade Civil e Globalização: Repensando Categorias. DADOS – Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 46, no 3, 2003, pp. 419 a 459. FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: O paradigma proibicionista e as
alternativas in NOVOS ESTUDOS 92, p. 9-21, MARÇO 2012. FIORE, Maurício; LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Lúcia. Drogas e Cultura, Novas
perspectivas. Salvador, EDUFBA: 2008. HABERMAS, J. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro: 2003. HABERMAS, J. Civil disobedience: litmus test for the democratic constitutional state. Journal of
Sociology, Berkeley, v. 30, p. 96-116, 1985. MELUCCI, A. A Invenção do Presente Movimentos Sociais nas Sociedades Complexas. Petrópolis,
Editora Vozes: 2001. MOUFFE, C. The Return of the Political. London, Verso: 2005.
SCHERER-WARREN, Ilse. Redes Emancipatórias: nas lutas contra a exclusão e por direitos
humanos. Curitiba: Appris: 2012. SILVESTRIN, Mauro Leno. A Fumaça e o Feitiço, Maconha e Umbanda na Obra de
Bezerra da Silva. Curitiba: 2008. Disponível em
http://www.humanas.ufpr.br/portal/antropologia/files/2012/11/SILVESTRIN-Mauro-
Leno1.pdf . TARROW, Sidney. Power in Movement Social Movements and Contentious Politics. Cambridge,
Cambridge University Press: 1998.