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Estudos de sociolinguistica

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    DE PANINI A LABOV: UM BREVE PASSEIO PELA HISTRIA DOS ESTUDOS

    LINGUSTICOS

    Jos Geraldo Pereira Baio* ([email protected])

    No existe saber sem memria nem cincia sem passado.

    (Mario Alexandre Cruz, tradutor) A origem da linguagem humana remonta ao alvorecer de

    nossa espcie no planeta Terra. A prpria noo de humanidade s possvel porque a lngua a constitui e fundamenta, fazendo com que nos concebamos simbolicamente como pertencentes a uma mesma espcie dotada da capacidade de interagir socialmente por meio de signos. Portanto, impossvel dissociar as concepes de humanidade e linguagem, j que uma implica a outra: o ser humano se concebe simbolicamente a partir da linguagem, e esta constitui uma caracterstica fundante da espcie humana, ou, nas palavras de MIOTO (p. 15), as lnguas naturais tm uma ligao estreita com o que definidor da natureza humana. Segundo CASTILHO (p. 33) "as lnguas naturais so o ponto mais alto de nossa identidade como indivduos e como participantes de uma sociedade", e essa perspectiva da caracterstica fundante da linguagem em relao condio humana no passou despercebida aos cientistas sociais, como se observa nas palavras do antroplogo Claude LVI-STRAUSS (p. 371): "Quem diz ser humano diz linguagem, quem diz linguagem diz sociedade".

    Constituindo uma caracterstica to essencial e mesmo fundante de nossa espcie animal, a linguagem sempre despertou o interesse dos seres humanos desde tempos imemoriais. Desde os primrdios de nossa existncia, a linguagem exerce-nos um enorme fascnio, pois por meio dela que nos identificamos como seres humanos em contraposio aos outros animais, que no dispem de * Mestre em Lingustica pela Universidade de Braslia (UnB).

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    um sistema simblico com o grau de sofisticao e complexidade apresentado pela linguagem humana1.

    a lngua tambm que possibilita que convivamos em sociedade, constituindo-nos como sujeitos, que interagem uns com os outros a partir de um espao simblico comum. A linguagem nos possibilita constituir identidades e, assim, interagir socialmente. Enfim, por meio do sistema lingustico que nos inserimos na realidade histrica e concreta do mundo. A lngua constitui, pois, o cimento que possibilita a estruturao tanto social quanto cognitiva dos seres humanos.

    Nossa insero simblica no mundo se d, portanto, a partir da linguagem. Alis, nossa prpria percepo da realidade se constitui tendo por base o sistema lingustico, que possibilita a apropriao simblica do mundo em que vivemos. Nesse sentido, primorosas se revelam as palavras do escritor e Prmio Nobel de Literatura, o peruano Mario Vargas LLOSA:

    As ideias, os conceitos, mediante os

    quais nos apropriamos da realidade e dos segredos da nossa condio humana, no existem dissociados das palavras.

    1 Ao ressaltarmos as diferenas entre a linguagem humana e a dos outros animais, no pretendemos compactuar com a concepo antropocntrica que o ego humano estabeleceu para si prprio como o suprassumo da evoluo. Segundo OTSU (p. 69): Temos uma viso antropocntrica da realidade. Achamos que o ser humano o centro de tudo. No sculo V a. C., o filsofo grego Protgoras disse: O homem a medida de todas as coisas. Essa forma de pensar foi reforada por milnios, e hoje a Cincia cumpre o papel de guardi dessa perspectiva narcisista. Nossa linguagem no se revela "melhor" do que a dos demais seres revela-se diferente apenas. A linguagem humana como simplesmente em virtude de contingncias sociocognitivas que a vida em sociedade imps ao longo do processo evolutivo de nossa espcie, e sua alta complexidade no significa que a linguagem dos outros viventes seja "precria", "insuficiente" ou que apresente "desvantagens" evolutivas, uma vez que qualquer espcie existente representa uma forma de vida plenamente adaptada em relao evoluo e nesse ponto lembremo-nos do poeta Fernando PESSOA (p. 234): "Basta existir para ser completo", o que se aplica a todos os seres e suas respectivas linguagens, indistintamente. Nosso grande Machado de Assis tambm flertou com essa perspectiva ao afirmar que: Os que amam a natureza como ela quer ser amada, sem repdio parcial nem excluses injustas, no acham nela nada inferior.

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    No entanto, deve-se ter em mente que os seres, objetos ou fenmenos do mundo concreto ou imaginrio somente adentram nosso universo cultural quando so conceitualizados, ou seja, quando inseridos no universo simblico constitudo pelo sistema lingustico. A lngua no expressa o mundo como um decalque ou mero retrato naturalista, mas sim o submetendo a complexos processos culturais e cognitivos de simbolizao.

    Em relao a essa interface entre linguagem e mundo, esclarece AZEREDO (p. 46) que:

    A linguagem no retrata o mundo,

    simplesmente porque o mundo expresso pela linguagem no um mundo de seres e objetos, mas um mundo de significados. Se a linguagem fosse um retrato do mundo, a fico e a mentira seriam impossveis. (Destaque nosso)

    A culturalizao (ou antropologizao) simblica do

    mundo natural por meio do sistema lingustico ressaltada nestas expressivas palavras (AZEREDO, p. 58):

    O ser humano vive dentro do mundo

    como corpo, mas o mundo vive dentro do ser humano como linguagem.

    A linguagem constitui, portanto, condio sine qua non para que nos concebamos como seres humanos, fadados a conviver num espao simblico linguisticamente constitudo a partir das relaes ideolgicas de poder estabelecidas no meio social. Estamos, pois, irremediavelmente imersos num oceano de linguagem, que nos contingente e inescapvel, j que constituidora da nossa prpria essncia como espcie animal. A onipresena da lngua em relao condio humana fez com que os seres humanos nos debrussemos, desde priscas eras, sobre o estudo do fenmeno lingustico.

    Os primeiros estudos formais que nos chegaram acerca da linguagem humana remontam ndia antiga. do sbio Panini (520 a.C. 460 a.C.) uma das primeiras sistematizaes lingusticas de

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    que se tem notcia. Panini descreveu o snscrito clssico, criando, assim, uma espcie de primeira gramtica da histria da humanidade.

    A respeito dos pioneiros estudos de Panini, escreve-nos BENVENISTE (p. 30):

    Temos a algo de extraordinrio, uma

    descrio lingustica puramente formal que data, segundo a estimativa mais prudente, do sculo IV antes de nossa era. Panini, este gramtico indiano, tomou a lngua snscrita como objeto. No tem nenhuma palavra de especulao filosfica, mas somente uma anlise formal dos elementos constituintes da lngua (palavras, frases, relaes entre palavras, etc.). Este texto extremamente pesado, de uma densidade inacreditvel (...) j se mostra a o ancestral das pesquisas cientficas de hoje.

    No Ocidente, um dos primeiros estudos de que temos

    registro acerca da natureza da linguagem encontra-se no dilogo Crtilo, escrito por Plato (428 a.C. 348 a.C.). Nesse clssico dialogam trs personagens: Crtilo, Hermgenes e Scrates. No texto platnico, os dois primeiros debatedores assumem posies antagnicas acerca da natureza do fenmeno lingustico em sua relao com o mundo fsico ou natural, enquanto Scrates prope uma posio intermediria no debate.

    Para Crtilo, a linguagem partilharia uma relao de semelhana com a realidade concreta em que nos situamos. Assim, imbudo de uma concepo esteada na analogia, argumenta que as palavras, por exemplo, guardariam semelhana com os objetos e/ou fenmenos representados por elas. Exemplificando essa argumentao, teramos o caso de palavras da nossa lngua como xixi, psiu e miau, em que o som que produzimos ao pronunci-las remete-nos sonoridade natural que observamos no mundo fsico ao nosso redor. Assim, linguagem humana traduziria a realidade por meio da analogia ou semelhana entre as formas lingusticas e a concretude ou materialidade do mundo.

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    A argumentao de Hermgenes vai em sentido oposto defendida por Crtilo. Para o primeiro, a lngua no manteria uma relao de semelhana com o mundo fsico, constituindo-se, ao contrrio, a partir de uma mera conveno social do esprito humano e, portanto, caracterizada pela arbitrariedade ou imotivao dos signos que a compem. No haveria uma relao natural e necessria de semelhana entre as palavras e os seres, coisas ou fenmenos por elas representados.

    Exemplifiquemos a argumentao proposta por Hermgenes: a pessoa que navega os mares pode ser chamada de marinheiro em portugus, sailor em ingls e nauta em latim. Mesmo em relao lngua portuguesa, ao lado de marinheiro poderamos tambm dizer navegante, navegador, mareante e marujo para aludirmos a um mesmo referente. Se houvesse uma relao de semelhana necessria entre linguagem e mundo natural, a designao lingustica para "aquele que navega os mares" (ou qualquer referente do mundo biopsicossocial) deveria ser uma s, independentemente da lngua empregada. Mas no isso que se verifica ao compararmos os diversos idiomas, pois cada um, em funo do meio social que o engendra, apresenta suas estruturas lingusticas prprias para designar e constituir a realidade. A prpria existncia das diversas lnguas humanas por si s constitui uma slida constatao dos argumentos propostos por Hermgenes.

    Vejamos como PLATO (pp. 43-44) reproduz a fala de Hermgenes em contraposio aos argumentos de Crtilo, segundo o qual "cada um dos seres tem um nome correto que lhe pertence por natureza":

    "Crtilo dizia que cada um dos seres tem

    um nome correto que lhe pertence por natureza (...) no sou capaz de me deixar persuadir de que a correo dos nomes seja outra coisa alm da conveno e do acordo. Parece-me que aquele nome que algum puser a uma coisa, esse ser o nome correto; e se de novo o mudar, e j no lhe chamar aquele, o segundo em nada ser menos correto do que o primeiro (...) nenhum nome pertence por

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    natureza a nenhuma coisa, mas estabelecido pela lei e pelo costume daqueles que o usam." (Destaque nosso)

    A terceira personagem do dilogo Scrates, que procura

    mostrar que tanto alguns aspectos das concepes analogistas de Crtilo quanto outros pressupostos anomalistas de Hermgenes possuem o seu fundo de verdade. Scrates tanto argumenta que " de certa maneira necessrio que a conveno e o costume contribuam para mostrar aquilo que temos em mente quando falamos" (PLATO, p. 117) como afirma tambm que "quando algum souber como o nome e ele como a coisa , saber tambm o que a coisa, uma vez que lhe acontece ter semelhana ao nome" (idem, p. 118).

    da cultura grega tambm que herdamos o conceito tradicional de gramtica como um repositrio ou receiturio para o bom uso da lngua a partir de um paradigma preestabelecido. No sculo III a.C., os fillogos alexandrinos, em face da edificao da biblioteca de Alexandria, depararam-se com vrios manuscritos clssicos corrompidos em funo das inmeras verses ento existentes. Procurou-se, ento, restaurar os textos originais e, paralelamente, foram-se registrando anotaes e comentrios que visavam a elucidar, para os leitores da poca, a lngua clssica do passado, a fim de facilitar a leitura dos textos antigos. A partir desses comentrios e anotaes intentou-se catalogar um modelo de lngua que servisse aos fins burocrticos do imprio bem como figurasse como paradigma de perfeio para quem se aventurasse pela exegese ou pela prtica da escrita literria em grego clssico. Tomou-se como ideal de excelncia a lngua literria grega baseada nas obras dos grandes escritores da Grcia clssica, sobretudo Homero (autor que viveu por volta do ano 1.000 antes de Cristo), criador de obras monumentais da cultura humana, como a Ilada e a Odisseia, obras fundantes da literatura ocidental.

    Dessa descrio da lngua literria grega baseada nos autores clssicos do passado nasceu o nome gramtica2, que em

    2 Segundo HOUAISS (pp. 1474 e 1561), o vocbulo gramtica proveniente do grego gramma ('carter de escrita', 'letra') e ica, sufixo formador de substantivos designativos de "artes, cincias, tcnicas", como se observa tambm em informtica, semitica, matemtica, fsica, lingustica, semntica, etc. V-se, assim, que a

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    grego significa a arte da escrita. V-se, assim, que as origens das prescries gramaticais remontam a estudos de carter filolgico, ou seja, tratados que versam acerca de textos escritos de pocas passadas. Provm desse fato o recorrente desprestgio, ao longo dos sculos, com que a tradio gramatical no Ocidente sempre tratou as modalidades faladas ou orais da lngua, bem como qualquer uso lingustico que destoe do modelo idealizado nos compndios gramaticais tradicionais.

    Para os gramticos alexandrinos, s empregaria o idioma com correo e, portanto, com perfeio, quem seguisse risca a lngua escrita literria catalogada na gramtica por eles elaborada. Tudo o que desviasse desse padro lingustico clssico era considerado vulgar, decadente e brbaro (este ltimo, um vocbulo cujo vis significativo era dos mais execrveis para a elite letrada grega).

    A respeito dessa sobrevalorizao da escrita literria por parte da tradio gramatical que impera no Ocidente desde os antigos gregos, argumenta CASTILHO (p. 32):

    "No acho que os escritores trabalham

    para nos abastecer de regras gramaticais. Eles exploram ao mximo as potencialidades da lngua, segundo um projeto esttico prprio. Ora, as regularidades que as gramticas identificam devem fundamentar-se no uso comum da lngua, quando conversamos, quando lemos jornais, como cidados de uma democracia. Isso no exclui a fruio das obras literrias, mas uma completa inverso de propsitos fundamentar-nos nelas para descrever uma lngua." (Destaque nosso)

    Da concepo de desvio do padro escrito literrio

    catalogado na gramtica tradicional como corrupo ou deteriorizao de uma lngua pretensamente pura, bela e, portanto, perfeita, nasceu a noo de erro lingustico, que vigora at os dias de hoje em nossa sociedade. Segundo essa ideologia gramtica ("arte da escrita"), na concepo dos fillogos alexandrinos, vincula-se modalidade escrita literria da lngua.

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    hegemnica, qualquer uso lingustico que no se enquadre nos preceitos da gramtica normativa no se revela sequer digno de estudo, j que visto, preconceituosamente, como algo ilgico, irracional, que "no segue regra de estruturao alguma" "linguajar de brbaros", enfim.

    A respeito do legado dos fillogos alexandrinos para a concepo de lngua e seu estudo e respectivo ensino em grande parte do Ocidente, comenta BAGNO (pp. 43-44):

    "Para os fillogos alexandrinos, a

    oposio crucial se dava entre fala e escrita. Para eles, grandes admiradores da produo literria do passado glorioso da Grcia clssica, somente a lngua escrita literria merecia ateno, anlise, descrio e teorizao, e somente ela poderia servir de base para a prescrio de normas do 'bem falar' e do 'bem escrever'. Nessa viso, a fala era catica e desregrada, o lugar do erro e do equvoco, enquanto a escrita (concebida como algo homogneo) era lmpida e regulada.

    (...) Com isso os alexandrinos definiram os

    rumos dos estudos gramaticais e da pedagogia das lnguas por mais de dois mil anos. Acreditando na perfeio irrefutvel da lngua escrita literria, eles vo criar, com base nela, um modelo ideal de 'lngua correta', que deveria servir de meta a ser alcanada por todo cidado (...) Nem preciso dizer que a est a origem das noes de certo e errado que tanto estrago tm feito ao longo da histria da humanidade."

    Com a conquista dos gregos pelos romanos, no sculo II

    a.C., a concepo helncia de gramtica como repositrio exclusivo da correo e perfeio lingusticas foi incorporada gramtica latina e, consequentemente, expandida por grande parte do imprio romano. Deve-se notar, no entanto, que tal concepo gramatical circunscrevia-se exclusivamente s elites sociais letradas, j que a

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    quase totalidade da populao poca era composta de trabalhadores braais e escravos, grupos sociais que se encontravam margem das instncias sociais de poder e, portanto, alienados tambm da cultura letrada.

    O acesso s modalidades lingusticas de prestgio sempre representou, nas sociedades humanas, um privilgio de uma pequenssima minoria social. Como detentoras dos aparelhos ideolgicos de Estado, as elites sociais, encasteladas desde sempre no poder, nunca demonstraram, ao longo da histria da humanidade, muita dificuldade em naturalizar socialmente sua concepo idealizada de lngua como a suma verdade do saber lingustico, em flagrante desconsiderao e menosprezo para com as variedades utilizadas pelos demais estratos sociais. A histria est a a demonstrar como a apropriao e respectiva imposio por determinada classe social de uma concepo hegemnica e elitizada de lngua constitui mais uma estratgia ideolgica, entre outras tantas, de manuteno do poder3.

    O cultivo do beletrismo inspirado pela gramtica tradicional sempre se constituiu numa atitude caracterstica de pequenssimos grupos da elite dominante e serviu, ao longo da histria, como uma das muitas fronteiras ideolgicas erigidas para separar os donos do poder pretensos detentores exclusivos do saber lingustico das classes social e economicamente desprestigiadas, que, na perspectiva da ideologia hegemnica, falariam uma lngua errada, ilgica, desestruturada e, portanto, brbara.

    Em relao incorporao da concepo gramatical grega pelos romanos, comenta CAMARA JR. (pp. 27-28):

    "A cultura romana aceitou e aplicou ao

    latim, em suas linhas gerais, o estudo da lngua que os gregos haviam criado e desenvolvido. Mas a abordagem filosfica deu margem a uma

    3 O incensamento de uma determinada modalidade de lngua literria e elitista constitui uma estratgia ideolgica de diferenciao classista, uma vez que nem mesmo os pretensos ilustrados da elite social seguem risca, em seus atos discursivos cotidianos, o artificialismo lingustico estampado nos manuais normativos da lngua, voltados para as produes literrias escritas.

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    gramtica normativa mais estrita. O objetivo principal da gramtica latina foi o que vimos chamando de 'o estudo do certo e errado'."

    Se hoje, caro leitor, vamos a uma livraria e compramos

    uma gramtica tradicional, levamos para casa uma concepo ideolgica gramatical grega, forjada no terceiro sculo antes de Cristo, de vis marcadamente elitista e excludente, que se espalhou pelo Ocidente por influncia do Imprio Romano, o qual acentuou ainda mais o prestgio de um pretenso modelo ideal de lngua, baseado na escrita literria, em detrimento das demais modalidades de uso do idioma.

    A influncia do latim (e, portanto, de sua concepo gramatical clssica herdada dos gregos) como lngua de cultura hegemnica europeia durou at o final da Idade Mdia. Com a formao dos primeiros Estados nacionais na Europa, no alvorecer da Idade Moderna, o latim vai perdendo sua influncia como lngua de cultura, uma vez que vo ganhando prestgio os diversos vernculos4 ou lnguas nacionais. Tal fenmeno se deve ao fato de um dos esteios simblicos do sentimento de nacionalidade constituir, justamente, a concepo de uma pretensa lngua comum entre os cidados de um pas.

    A prpria noo de ptria representa uma construo lingustica, que permite, por meio de um discurso fundador da nacionalidade, a constituio simblica de um pretenso passado social comum, muitas vezes mitolgico e imaginrio, que nem sempre se verifica nos fatos histricos concretos ou empricos.

    O poder simblico da incorporao ao discurso fundador de uma pretensa lngua nacional comum ressaltado por BERENBLUM (p. 17):

    "A nao necessita de unidade e essa

    unidade cultural e lingustica possibilita a identificao dos indivduos como cidados. durante esse processo que se difunde de maneira

    4 Por vernculo, entenda-se a fala corrente, do dia a dia, numa determinada comunidade (TRASK, p. 304).

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    oficial a ideia de lngua materna e ela funciona como fator de unidade e smbolo de identidade."

    ORLANDI (pp. 12-13) aponta para a fora do simbolismo

    expresso pelo discurso fundador, que, segundo a autora:

    "vai nos inventando um passado inequvoco (...) que d a sensao de estarmos dentro de uma histria (...) So enunciados que ecoam e reverberam efeitos de nossa histria em nosso dia a dia, em nossa reconstruo cotidiana de nossos laos sociais, em nossa identidade histrica (...) so espaos de identidade histrica: memria temporalizada, que se apresenta como institucional, legtima. [Esses discursos] nos constroem um imaginrio social que nos permite fazer parte de um pas, de um Estado, de uma histria e de uma formao social determinada."

    A autora (idem, p. 13), porm, adverte para o vis

    essencialmente ideolgico e simblico desse discurso:

    "No estamos pensando a histria dos fatos, e sim o processo simblico (...) a memria histrica que se faz pela filiao. Aquela na qual, ao significar, nos significamos."

    A partir do discurso fundador hegemonicamente

    institudo, naturaliza-se a concepo de uma pretensa lngua nacional como o idioma da "unio" e do "congraamento" entre os cidados, uma espcie de patrimnio lingustico comum que pairaria acima de distines tnicas, sociais, culturais e at mesmo de outros falares que coexistam no seio da nao.

    Com o surgimento e a consolidao dos Estados nacionais europeus, vo consolidando-se tambm as lnguas portuguesa, espanhola, inglesa, francesa, entre outras. Fica o latim nesse contexto histrico, portanto, relegado a um esquecimento paulatino e inexorvel. Contudo, a influncia ideolgica (de origem grega) da

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    gramtica latina vai pautar a confeco dos primeiros compndios normativos das lnguas nacionais europeias, encontrando-se essa concepo terica presente at os dias de hoje em nossas gramticas tradicionais, que, ao privilegiarem a lngua escrita literria de autores clssicos do passado, simplesmente ignoram as modalidades lingusticas empregadas pela maioria da populao, as quais, ao contrrio do que pressupe a tradio gramatical, constituem estruturas que seguem regras perfeitamente sistemticas e recorrentes, no representando, portanto, nada de "errado" trata-se apenas de outras gramaticalizaes do sistema lingustico presentes efetivamente na sociedade.

    Variedades lingusticas no contempladas pela gramtica tradicional no constituem erros; simplesmente no tiveram o beneplcito ou o galardo do incensamento dos donos do poder, que estabelecem hegemonicamente a sua concepo lingustica como a norma de prestgio social.

    Predominou no sculo XVII, na Europa, a concepo iluminista de culto racionalidade humana. Tentava-se, poca, por meio do culto razo, renegar o iderio medieval, que se pautava ideologicamente pelo misticismo religioso de cunho catlico, com suas fogueiras inquisitoriais e toda a sorte de mecanismos nefastos e opressivos de sustentao e manuteno do prestigioso e influente poder eclesistico.

    O ser humano, segundo os preceitos iluministas, deveria orientar-se exclusivamente por sua razo, e no por pretensas entidades metafsicas que habitariam um inefvel mundo do alm. Ao modelo teocntrico medieval (o Deus catlico, apostlico e romano como medida de todas as coisas) contrapunha-se, no chamado Sculo das Luzes, o iderio antropocntrico da era moderna (o ser humano, guiado pela razo, como senhor de seu destino).

    A noo de racionalidade como uma caracterstica inata dos seres humanos estendeu-se, por sua vez, aos estudos gramaticais de ento. Sendo a linguagem concebida poca como a manifestao da razo, procurou-se elaborar uma gramtica que a traduzisse linguisticamente. Pressupunham os iluministas que as categorias gramaticais da lngua constituiriam derivaes da racionalidade humana.

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    Surgiram dessa concepo racionalista setecentista as chamadas gramticas gerais ou racionais, que no se detinham em estudar exclusivamente determinada lngua, mas sim procuravam expor os mecanismos universais com os quais a razo se manifestaria por meio das vrias lnguas naturais. Para os gramticos do sculo XVII, haveria um substrato lgico e racional comum a todas as lnguas existentes, que as estruturaria. O mais famoso desses tratados a Gramtica de Port-Royal ou gramtica geral e razoada, publicada em 1660 pelos franceses Antoine Arnauld e Claude Lancelot.

    A concepo de que as diferentes lnguas so estruturadas por princpios gerais e comuns racionalidade humana ser resgatada pelo linguista estadunidense Noam Chomsky, em meados do sculo XX, com sua teoria da gramtica gerativa, que prope a existncia de uma gramtica universal (conjunto de princpios estruturantes gerais a partir dos quais todas as lnguas humanas derivariam) como uma dotao hereditria de nossa espcie. Chomsky, portanto, muda o foco da anlise lingustica: da racionalidade para a gentica.

    No sculo XIX, os estudos acerca da linguagem do uma guinada em direo evoluo histrica das lnguas. Sculo caracterizado pelo cientificismo, pela volta ao passado to propugnada pelos escritores do Romantismo europeu e, sobretudo, pela revolucionria teoria evolucionista do ingls Charles Darwin, tambm nas pesquisas a respeito da natureza da linguagem humana enveredou-se pelos estudos evolutivos e comparativos das principais lnguas de cultura com o objetivo de identificar-lhes as semelhanas estruturais e assim, por meio do mtodo histrico-comparativo, retroceder at se encontrar a lngua primeira ou a lngua-me, que, supunha-se poca, seria o proto-indo-europeu. Procurou-se descortinar no sculo XIX, portanto, uma espcie de genealogia lingustica.

    A concepo de uma origem comum a todas as lnguas humanas no constitui pensamento original e exclusivo do sculo XIX, uma vez que proposies nesse sentido j tinham sido aventadas em pocas anteriores, como, por exemplo, relata-nos VIARO (p. 26):

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    Por causa das grandes navegaes, muitos europeus do sculo 16 se viam em terras longnquas, nunca antes exploradas e o impacto da diferena lingustica e cultural de povos recm-conquistados nunca foi to grande na histria da humanidade (...) desse perodo o surgimento dos primeiros estudos comparativos de lnguas e tambm das primeiras propostas de lngua-me.

    Em relao aos estudos lingusticos do sculo XIX,

    destacamos as palavras de MUSSALIM (p. 27):

    "O sculo XIX em Lingustica caracterizou-se pelos estudos comparativistas e histricos da lngua. Esses estudos desenvolveram um mtodo de manipulao de dados lingusticos enquanto dados lingusticos e trataram, pela primeira vez, a linguagem em si mesma e por si mesma, sem abord-la em funo de outros projetos, ou seja, sem subordin-la ao estudo da retrica, da lgica, da potica ou da filosofia."

    O sculo XIX caracterizou-se, portanto, pelo estudo

    histrico, comparativo e evolutivo das lnguas, e foi justamente a partir dessa investigao metdica da estrutura interna dos sistemas lingusticos, com o objetivo de descrever seus mecanismos de mudana ao longo do tempo e desvendar-lhes a evoluo, que nasceu, no incio do sculo XX, a moderna cincia lingustica, a partir dos estudos atribudos ao suo Ferdinand de Saussure, organizados na obra pstuma seminal Curso de Lingustica Geral, marco da Lingustica contempornea5.

    5 Saussure faleceu em 1913, mas seus ensinamentos foram reunidos por Charles Bally e Albert Schehaye, a partir das anotaes dos famosos cursos do mestre genebrino na Universidade de Genebra (1907-1911), no livro a que se deu o nome de Curso de Lingustica Geral, publicado em 1916. Em relao a esse opsculo seminal, deve-se atentar, no entanto, para a observao de ARRIV (p. 20) de que Saussure no publicou o que escreveu e no escreveu o que foi publicado sob seu nome. Faz-se

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    A preocupao de Saussure consiste em privilegiar, por meio de um mtodo cientfico e com referencial terico especfico, a estrutura interna dos sistemas lingusticos. Para ele, os estudos acerca da lngua deveriam essencialmente seguir o seguinte preceito (pp. 24-25):

    Necessrio se faz estudar a lngua em si.

    At agora a lngua sempre foi abordada em funo de outra coisa, sob outros pontos de vista. (Destaque nosso)

    Segundo CASTILHO (p. 45), tais postulaes saussurianas

    "libertaram a Lingustica da relao de dependncia que ela vinha mantendo com a Lgica, a Histria e a Literatura", ou seja, Saussure contribui para estabelecer as bases da cincia lingustica, cujo objeto de estudo a lngua enquanto cdigo efetivo de comunicao entre os falantes.

    Saussure props que o estudo da lngua se pautasse por uma perspectiva internalista, de vis abstrato e sistmico, com foco exclusivamente no modo como ela se apresenta estabelecida ou organizada para possibilitar a comunicao efetiva entre os falantes de determinada sociedade. Saussure impulsiona, assim, as bases para a fundao da Lingustica sincrnica ou estrutural, em contraposio perspectiva histrica hegemnica no sculo XIX.

    A preocupao saussuriana consiste em desvendar os mecanismos gerais e abstratos de estruturao e funcionamento que subjazem s vrias lnguas humanas, uma vez que, em meio sua diversidade, h princpios universais de estruturao que so comuns a todas elas e o desvendamento desses princpios gerais das lnguas constitui o objetivo da cincia lingustica.

    A partir das proposies atribudas a Saussure consolida-se o estudo do sistema lingustico como uma investigao pautada por princpios cientficos. Saussure procurou estabelecer um referencial terico, amparado por uma metodologia cientfica, que visasse a descrever o funcionamento das lnguas humanas em geral. Tal perspectiva representou, sobretudo, uma revoluo nos estudos da necessrio, portanto, comparar o Curso com o que nos chegou dos manuscritos do autor para que possamos traar um panorama de sua teoria lingustica.

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    linguagem, pois, lembremos, antes da poca de Saussure, a lngua escrita (sobretudo a literria), encastelada em grossos compndios livrescos e inacessvel ao comum dos mortais, era basicamente a nica considerada digna de prestgio e, portanto, de estudo.

    Na trilha aberta pelos estudos histrico-comparativos do sculo XIX, que focavam a estrutura interna dos sistemas lingusticos, Saussure props que a pesquisa lingustica se pautasse por um carter descritivo ou sincrnico, e no mais normativo ou histrico, como a tradio ocidental, desde os antigos fillogos alexandrinos, concebe e valora at os dias de hoje os estudos acerca da linguagem.

    No se pretende aqui, no entanto, atribuir a Saussure o pioneirismo exclusivo de tais pontos de vista metodolgicos e epistemolgicos, uma vez que antes dele vrios estudiosos da linguagem j aplicavam procedimentos tpicos da lingustica moderna. Alguns autores inclusive relativizam o exagerado incensamento que se faz ao linguista suo, alcunhado por muitos como o Pai da Lingustica Moderna. Vejamos o que nos diz a respeito BAGNO (pp. 53-54):

    "Alguns fatores histricos explicam o sucesso da lingustica estruturalista na primeira metade do sculo XX. Podemos comear mencionando um forte sentimento antigermnico que imperava na Europa no final do sculo XIX e incio do XX, decorrente das pretenses expansionistas da Alemanha e que culminaram na ecloso da I Guerra Mundial (1914-1918). Por isso que, ao trmino da II Guerra Mundial (1945), Saussure comeou a ser considerado como o 'pai da lingustica moderna', um ttulo que at hoje os linguistas alemes se recusam a atribuir ao pensador suo, uma vez que perfeitamente possvel vincular as origens da lingustica moderna ao trabalho dos comparatistas e dos neogramticos, fundadores da lingustica histrica, cujos nomes mais importantes so todos alemes (...) Saussure estudou em Leipzig e em

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    Berlim, antes de retornar a sua Genebra natal para dar seus famosos cursos. Sua formao, portanto, se fez toda na Alemanha, nas escolas de pensamento lingustico que predominavam naquele pas (...)

    Muitos desses fillogos e linguistas so, reconhecidamente ou no, devedores dos trabalhos pioneiros do dinamarqus Rasmus Rask (1787-1832), talvez o verdadeiro merecedor do ttulo de fundador da cincia lingustica moderna, com suas intuies brilhantes e suas pesquisas de campo, absolutamente inovadoras para a poca, em que os fillogos se limitavam a pesquisas de gabinete, debruados sobre os manuscritos antigos."

    Gostaramos de ressaltar que, ao tomarmos Saussure como

    paradigma da instaurao da moderna cincia lingustica como faz a tradio dos estudos lingusticos , destacamos a importncia das influncias histrica e simblica de sua insistente argumentao em defesa da consolidao de uma cincia autnoma da linguagem. O prprio Saussure, avesso que era aos holofotes e a qualquer tipo de badalao, certamente se sentiria incomodado com um ttulo que lhe puseram revelia de sua vontade.

    O filsofo e pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) empreendeu uma crtica ao enfoque estruturalista em voga na Lingustica do comeo do sculo XX, tendncia a que chamou de "objetivismo abstrato". Para Bakhtin, a lngua, na perspectiva estruturalista, constituiria um sistema abstrato e autnomo de regras a pairar inclume e infensa s contingncias do arranjo social e histrico que a engendra e a constitui. Na contramo da perspectiva internalista e autnoma da lngua, a anlise bakhtiniana envereda pelo enfoque dialgico, e portanto dialtico, ou seja, encara o fenmeno lingustico como produto da interao entre sujeitos inseridos em determinada ambincia social e histrica e, ao mesmo tempo, como uma entidade constituidora dos diversos eventos sociais concretos e situados no curso da histria humana.

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    Concebe-se, assim, a lngua como um fenmeno perpassado pelo ideolgico, uma vez que se entende a linguagem como produto de uma sociedade concretamente estabelecida num determinado momento histrico, decorrendo a eficcia comunicativa do sistema lingustico, fundamentalmente, da interao entre sujeitos concretos e situados na histria. Nesse sentido, para BAKHTIN (p. 35):

    "Os signos s podem aparecer em um

    terreno interindividual. No basta colocar face a face duas pessoas para que os signos se constituam. fundamental que esses dois indivduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo: s assim um sistema de signos pode constituir-se (...) Todo signo resulta de um consenso entre indivduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interao. As formas do signo so condicionadas tanto pela organizao social dos indivduos como pelas condies em que a interao acontece (...) O signo lingustico v-se marcado pelo horizonte social de uma poca e de um grupo social determinados. O signo se cria entre indivduos, no meio social."

    Pressupe a crtica bakhtiniana ao estruturalismo

    lingustico ser insuficiente, a uma concepo abrangente e realista da lngua, a anlise de sua estrutura como um sistema abstrato de regras, fechado em si mesmo, dotado de uma suposta autonomia em relao ao meio social em que empregado em contextos enunciativos concretos e ideologicamente condicionados. Para o pensador russo (p. 32), "o domnio do ideolgico coincide com o domnio dos signos; ali onde o signo se encontra, encontra-se tambm o ideolgico". Tal perspectiva, no entanto, no seria levada em considerao pela corrente estruturalista e objetivista da Lingustica, que desconsideraria a trama social viva, complexa e dinmica em que todo sistema lingustico encontra seu nascedouro.

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    Em sua crtica viso estruturalista da Lingustica, BAKHTIN (p. 69) argumenta que:

    "O estudo da face sonora do signo

    ocupa, na Lingustica, um lugar proporcionalmente exagerado. Tal estudo muitas vezes feito sem nenhum vnculo com a natureza real da linguagem enquanto cdigo ideolgico (...) A ideia de uma lngua convencional, arbitrria, caracterstica de toda corrente racionalista da Lingustica. Segundo essas correntes, o que interessa no a relao do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivduo que o engendra, mas a relao de signo para signo no interior de um sistema fechado. A essas correntes racionalistas s interessa a lgica interna do prprio sistema de signos; este considerado independentemente das significaes ideolgicas que a eles se ligam (...) A 'Escola de Genebra', com Ferdinand de Saussure, mostra-se como a mais brilhante expresso desse objetivismo abstrato." (Destaque nosso)

    Esse "objetivismo abstrato" desconsideraria, por exemplo, a

    faceta histrico-social da linguagem, que, em ltima instncia, representaria o fator determinante da constituio de qualquer sistema lingustico. O estruturalismo procuraria dar conta do como funciona, mas desconsideraria o "porqu" da constituio dos sistemas lingusticos, como se o estudo da estrutura da lngua constitusse um fim em si mesmo e nada tivesse a ver com a trama das relaes sociais, em que a lngua se materializa e viceja segundo propsitos interacionistas eivados de determinaes ideolgicas.

    Em sua crtica ao formalismo lingustico, MARCUSCHI (p. 20) observa que:

    "Todas as nossas manifestaes verbais

    mediante a lngua se do como textos e no como elementos lingusticos isolados. Toda

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    manifestao lingustica se d como discurso, isto , uma totalidade viva e concreta da lngua e no como uma abstrao formal que se tornou o objeto preferido e legtimo da Lingustica (...) O funcionamento da lngua no se esgota nem se d essencialmente no sistema formal."

    O estruturalismo lingustico passaria ao largo tambm de

    um processo fundamental e constitutivo da linguagem humana: a variao a que esto inevitavelmente sujeitas todas as lnguas naturais. Ao conceber o sistema lingustico como um objeto autnomo, homogneo e abstrato, a lingustica estruturalista desconsideraria essa caracterstica inerente s lnguas em geral. Assim sendo, uma anlise meramente formalista no daria conta de explicar diversos fenmenos que se processam nas lnguas humanas, entre eles a enorme variao a que elas esto sujeitas em funo das inmeras variveis sociais.

    Um dos pioneiros no estudo da variao lingustica o estadunidense William Labov, cujos estudos mostram as regularidades das variaes e mudanas lingusticas a partir da anlise de determinadas variveis sociais como classe, gnero e etnia, por exemplo. Para LABOV (pp. 20-21):

    Uma abordagem que considera apenas

    as presses estruturais [sistmicas] dificilmente pode contar a histria toda (...) nenhuma mudana acontece num vcuo social (...) no se pode entender o desenvolvimento de uma mudana lingustica sem levar em conta a vida social da comunidade em que ela ocorre. As presses sociais esto operando continuamente sobre a lngua.

    Afirmar que a lngua sofre variao no significa dizer, no

    entanto, que no haja um sistema estruturado a regular nossa linguagem cotidiana. Os estudos empreendidos por Labov e por toda a corrente sociolingustica que a ele se seguiu apontam para o fato de que h sistema dentro da variao e que as mudanas que

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    ocorrem na lngua seguem determinados princpios estabelecidos pelas variveis sociais. Labov critica o estruturalismo pelo fato de essa tendncia identificar estrutura lingustica com homogeneidade da lngua e, consequentemente, desconsiderar as variaes e as mudanas a que esto sujeitos os sistemas lingusticos. Com Labov aprendemos que as variaes e as mudanas constituem fenmenos constantes, naturais e intrnsecos a todas as lnguas humanas. Como a lngua constitui uma forma de comportamento social, sua estrutura vai refletir, obviamente, toda a plasticidade e dinamicidade da vida em sociedade.

    Como se pode constatar desta breve exposio acerca da histria dos principais estudos lingusticos at meados do sculo XX, nossa cincia tem um longo e revolucionrio caminho ainda a trilhar, tanto no sentido de seu estabelecimento como saber autnomo como na tarefa da desconstruo de uma concepo epistemolgica que desvincula a lngua do contexto demasiadamente humano que a constitui e que por ela constitudo. No nos esqueamos jamais de que humanidade e linguagem constituem realidades siamesas, indissociveis e, sobretudo, necessrias.

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