De Emilio A Emilia A Trajetaria Da Alfabetizacao

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Pensamento e Ação no Magistério DE EMÍLIO A EMÍLIA A trajetória da alfabetização Marisa Del Cioppo Elias Formada em Pedagogia e Ciências Sociais pela PUC-SP • Mestre em Educação (PUC-SP) e Doutora em Educação (USP) • Professora titular na PUC-SP, professora de pós-graduação da Faculdade Braz Cubas e pesquisadora do CNPq e da Fapesp editora scipione

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Pensamento e Ação no Magistério

DE EMÍLIO A EMÍLIA

A trajetória da alfabetização

Marisa Del Cioppo Elias

• Formada em Pedagogia e Ciências Sociais pela PUC-SP

• Mestre em Educação (PUC-SP) e Doutora em Educação (USP)

• Professora titular na PUC-SP, professora de pós-graduação da Faculdade Braz Cubas

e pesquisadora do CNPq e da Fapesp

editora scipione

CréditosResponsabilidade editorialHeloísa PimentelAssistência editorialThereza Pozzoli e Mauro AristidesRevisão Andréa Vidal e Claudia VirgílioCoordenação de arteMaria do Céu Pires PassuelloProgramação visual de capaJayme LeãoCapaMaurício NegroPesquisa iconograficaEdson Rosa, Lourdes Guimarães eVanessa Mannaeditora scipionewww scipione com br

MATRIZPraça Carlos Gomes, 4601501 - 040 São Paulo SPDIVULGAÇÃORua Fagundes, 12101508-030 São Paulo SPTel (OXX11)3272 8411Caixa Postal 65131VENDASTel (OXX11)3277 1788

ExpedienteDireção adjunta editorialAureélio Gonçalves FilhoDireção adjunta editorialDorival Polimeno SobrinhoChefe de revisãoMiriam de Carvalho AbõesCoordenação geral de arteSérgio Yutaka SuwakiEdçâo de arteDidier D. C. Das de Moraes

2003ISBN 85--262-3830-21ª EDIÇÃO(2ª impressão)Impressão e acabamentoG´rafica VIDA & CONSCIÊNCIA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Elias Marisa Del Cioppo

De Emílio a Emilia — a trajetória da alfabetizaçao / Marisa Del Cioppo Elias — São Pauto Scipione 2000 — (Pensamento e ação no magistério)

1 Alfabetizaçao — Historia 2 Alfabetizaçao — Métodos 3 Educação — Historia l Titulo II Serie

00-2556 CDD 372 41609

Índice para catalogo sistemático

1 Alfabetizaçao Metodologia Educação Historia 37241609

Aos meus netos,Gabriela e Gustavo, no

momento em que iniciam suas trajetórias de alfabetização

A série Pensamento e Ação no Magistério reúne as contribuições teóricas e práticas necessárias a todos os educadores que desejam modificar seu fazer pedagógico no dia-a-dia em sala de aula.

A série é dirigida àqueles que buscam interagir com a criança e o adolescente, participando vivamente de seu desenvolvimento global.

DE EMÍLIO A EMILIAA tragetória da alfabetização

Emílio e Emilia - ele, personagem de Rousseau, do século XVIII; ela, Emitia Ferreiro, pesquisadora contemporânea - são as referências que marcam no tempo este estudo original sobre a alfabetização.

O ponto central da obra são as questões de hoje, que não encontram respaldo nas recentes teorias educacionais. Em busca de respostas, a autora revê aqui as contribuições de alguns educadores e nos oferece um painel das principais teorias relacionadas à alfabetização, com seus pontos em comum, divergências e aplicação à nossa realidade.

Começa por um mestre clássico - Rousseau -, cujas idéias de homem, infância e conhecimento possibilitaram construir os conceitos de jardim-de-infância, trabalho na escola, metodologia e, sobretudo, a idéia de que toda educação deve levar em conta a vivência e as experiênciassignificativas da criança. A seguir, expõe as idéias de dois educadores do início do século XX - Decroly e Freinet -, que criticaram a educação de sua época, propondo programas e métodos novos. Termina com a apresentação das conclusões a que chegou Emilia Ferreiro, no que se refere à psicogênese ou aos processos pelos quais a criança aprende a ler e a escrever.

Editora scipione

SUMARIO

Introdução...51. Recuperando Rousseau... 15Rousseau: crítico do passado e precursor da educação moderna... 17A proposta educacional de Rousseau... 30A educação como processo de vida... 50Textos selecionados de Rousseau... 53

2. Recuperando Decroly... 63Decroly e os educadores de sua época ...66A proposta pedagógica de Decroly... 68As tendências elementares... 69 Programas de ensino: busca da unidade do saber... 72Método global... 80Recapitulando... 92Decroly e Freinet... 95Textos selecionados de Decroly... 97

3. Recuperando Freinet... 105

Proposta pedagógica de Freinet... 109 Em busca do equilíbrio: a escola do trabalho e do pensamento... 113A livre expressão... 116Motivação: a vida da criança...117A sensibilidade do educador... 120As fases da escrita... 124Escrita pessoal e livre ...144A aula viva: um sonho a ser realizado... 149Textos selecionados de Freinet... 154

4. Recuperando Emilia Ferreiro... 161A proposta pedagógica de Emilia Ferreiro... 166Revendo a psicogênese da língua escrita... 176Textos selecionados de Emilia Ferreiro... 187

Considerações finais... 195

Bibliografia... 203

Cada século reinterpreta o passado de modo que este sirva aos seus próprios fins [...] Qualquer que seja o esforço feito para preservar o seu recuo, os historiadores nãopodem libertar-se inteiramente das idéias preconcebidas mais gerais da época em que vivem.

Quando os tempos são calmos [...] estão normalmente satisfeitos com o passado [...] Mas nos períodos tempestuosos, quando a vida parece sair dos seus esquemas habituais, aqueles que o presente descontenta ficam igualmente descontentes com o passado. [...] O passado é uma espécie de tela sobre a qual cada geração projeta sua visão do futuro e, por tanto tempo quanto a esperança viva no coração dos homens, as histórias novas suceder-se-ão.

CARL BECKER, 1935, p. 168-70.

INTRODUÇÃO

Desde fins do século XIX, temos assistido à ampliaçãodos movimentos em favor da criança e do adolescente em busca da melhoria de metodologias e/ou didáticas.

De Platão a Montaigne, de Rousseau a Emilia Ferreiro,m não há doutrina pedagogica totalmente original. Todos proclamam que a missão do homem consiste em realizar sua essência.As grandes doutrinas ou tendências pedagógicas surgiram na história nos momentos em que se preparavam transformações profundas na concepção de homem. Toda doutrina é uma antecipação do futuro, que precede de uma revisão e renovação do conceito de homem.

“Tendência pedagógica’’ tomou-se uma expressão da moda que identifica as idéias e os autores de maior influência sobre o ducador no processo de ensinar ou de buscar uma metodologia própria. ”Doutrina” é a moda de pensar de procedesTodas as doutrinas reproduzem um pensamento anterior, uma vez que uma das principais atribuições do processo educativo é promover a apropriação do conhecimento acumulado historicamente

Por “tendência” entende-se a inclinação do pensameto e comportamentos. Filósofos, pisicólogos, biológos lingüistas, sociólogos contribuem para enriquecer os conhecimentos relativos à ciência pedagógica O compromisso político-pedagógico dos educadores com a democratização do saber exige que se apropriem dos conheamentos específicos dessas ciências para tomardecisões quanto ao conteudoe, principalmente, quanto as finalidades e metodologia de ensinar ou aprender Não se podem aceitar todas as novidades em matéria de educação. E preciso analisar as informações e teorias construir um corpo de conhecimentos sólido (filosofia e psicologia), para fundamentar a prática pedagógica

Aristóteles e os gregos, há 2.400 anos, formularam os conceitos de dialética e aprendizagem. O desenvolvimento científico e a organização social dos séculos XIX e XX tem propiciado condições para o debate so-

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bre o conhecimento humano. A epistemologia vem desafiando os filósofos durante toda a evolução histórica da humanidade. Concepções diversas surgem buscando explicá-la,chegando-se a conclusão de que só se conhece o que se compreende; não há conhecimento neutro independente do objeto. O sujeito interage com o objeto, o analisa, entende e reconstrói. Para verificar esses pressupostos, revisitamos os teóricos com os quais aprendemos os conceitos de homem, mundo, conhecimento, educação e ensino-aprendizagem.

Se o sujeito é histórico, o conhecimento cientifico não pode ser algo pronto e acabado, mas algo que se forma no decorrer do processo do saber. Aprender significa conhecer, isto é, assimilar, acomodar e adaptar os objetos pela ação sobre eles, e com as estruturas disponíveis no estágio de maturação psíquica em que se encontra o sujeito.

Para Piaget, o conhecimento acontece pela interação que o sujeito desenvolve no processo de sua ação sobre o mundo. Considera três tipos de conhecimento: o físico, o lógico-matemático e o social.

O conhecimento físico é obtido pela ação direta do indivíduo sobre o objeto da aprendizagem, mediado pelos esquemas motores e perceptivos (tocar, chutar, morder. puxar, olhar, escutar, etc.). Não é considerado um verdadeiro conhecimento uma vez que precisa ser explicado. ou seja, trabalhado em nível lógico ou operatório.

Isso vai acontecer no conhecimento lógico-matemático. Logo. esse tipo de conhecimento é construído por meio das operações mentais do sujeito sobre os dados obtidos da experiência em relação ao objeto da aprendizagem.

Como o sujeito é social, ele interage com objetos cultunis e. nessa interação, constrói seu conhecimento (linguagem. valores, regras...) e o transmite para outras pessoas ou grupos (interação social). No entanto, esse conhecimento é específico para cada cultura ou grupo social.

Pela explicação que Paget dá de conhecimento, sua corrente de pensamento é denominada genético-estruturalista ou construtivista.

A educação, como prática social, envolve a relação eni (dimensão sócio-histórica e política), não se limitando aos processos de aprendizagem, que a psicológia genética pareceu ignorar. Portanto, Piaget, em-

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bora seja mais conhecido entre os construtivistas e por muitos tidos como o fundador dessa tendênci, não é o mais avançado, uma vez que vincula o processo de aprendizagem ao desenvolvimento biopsicogenético do sujeito. Wallon, Vygotsky e outros soviéticos, como Leontiev e Luria, fizeram avançar o construtivismo mostrando que no processo de aprendizagem participam também, além dos aspectos biológico e psicológico, descritos por Piáget, o contexto histórico, político e social de. cada indivíduo. Para eles, o conhecimento deve ser compreendido como processo em movimento e mudança. As mudanças sociais e materiais geram mudanças na consciência do homem. É um novo enfoque dado ao construtivismo, pois, enquanto Piáget descreve os estágios universais, os soviéticos os estudam como produto do processo de desenvolvimento humano, ligado à história individual e social. A criança desenvolve sua lógica pela interação social, auxiliada pelos sujeitos com os quais convive.

O conhecimento mostra-se intimamente ligado às coajdjgões sociais em transformação e aos substratos biológicos do comportamento, responsáveis pela unidade, dialética de cada estágio do desenvolvimento. Embora, a intuição concorra para o conhecimento, este é antes resultado da elaboração pessoal, derivada de nossas experiências: do que lemos, vemos, ouvimos, tocamos.

Conhecer faz parte ”da reação instintiva do homem em busca da modificação da própria prática [...] o esforço do homem para compreender a realidade onde está inserido, transformando-a a partir do próprio trabalho, dando-lhe sentido e significado”. GRAMSCI, in GRISONI & MAGGGIORI

O conhecimento não é estáüco, mas vivo e dinâmico, um fazer e e faer que só se transforma em saber quando, antes, passa pela compreensão. A compreensão permite ao sentir tornar-se saber e ao saber tornarse sentir. ”Nossa pedagogia atual é um complexo de tradições, de inovações e de

reações contra a tradição que não pode ser alcançado pelo espírito senão à luz do conhecimento histórico”. HUMBERT,1946 p.310.

Voltamos no tempo para rever a lição de coisas e de ciências do mundo de ontem. Era importante conhecer como essas informações ligavam-se à nossa formação e prática docente e à perspectiva psicogenética de aprendizagem da leitura e da escrita.

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Nas décadas de 50 e 60, em que se deu a nossa formação no que hoje é o ensino fundamental e médio (na época, primário, ginásio e colegial), a concepção predominante era transmitir à criança uma cultura legítima, pré-sistematizada e homogeneizada, em que somente os mais aptos tinham sucesso. Tal prática não nos impediu de ousar, de fugir à regra e não aceitar as receitas da antiga Escola Normal, pois não víamos nelas sentido. Sabíamos que os conhecimentos teóricos eram importantes mas também que era preciso questioná-los.

Procuramos a coerência entre a teoria e a prática para criar estratégias próprias de intervenção pedagógica. As leituras apontavam a necessidade de observar melhor nossos alunos. Disso veio a compreensão de que, vivendo no campo e desde muito cedo ajudando os pais na lavoura, nossos alunos da Escola Mista do Bairro Novo Oriente, zona rural de Mirante do Paranapanema, São Paulo, 1964, tinham muito contato com a natureza. Viam as coisas, os animais, e formulavam hipóteses sobre sua realidade muito antes de irem para a escola. Não esperavam esta para se alfabetizar, embora nela fossem buscar informações sobre o código escrito, do qual os estímulos eram bastante escassos em seu contexto.

Como pretender ser a única a ensinar? Qual a melhor estratégia para ensinar a leitura e a escrita a quem já tinha uma riquíssima leitura de mundo? Como impor uma cartilha se nenhuma das que conhecíamos fazia parte daquele contexto social e econômico?

“A leitura do mundo precede a leitura da palavra [... ] daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.” FREIRE,1985,p.11-2.

O material e as estratégias para trabalhar com aqueles alunos na aprendizagem da leitura e da escrita teriam de ser significativos e próximos. Retomar com eles a leituta do seu mundo, para levá-los à leitura da palavra, que faria reencontrar a leitura do mundo (contexto).

E isso nós não havíamos aprendido durante nossa formação. que apenas nos havia proporcionado estratégias voltadas para crianças da zona urbana, mais expostas a experiências de leitura e escrita. Precisávamos pesquisar uma maneira de interessar aqueles alunos diferentes, Fomos aos mestres clássicos. O que encontramos? Um Rousseau que já havia advertido os educadores do seu

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tempo sobre a necessidade de ajudar a criança a observar melhor, não somente para compreender a natureza, mas para desenvolver a lógica e a razão, armas eficazes contra o obscurantismo e o enciclopedismo da época.

O contexto mudou. A criança não vê hoje flores, plantas, rebanhos, mas automóveis, computadores, Internet e televisão. Diante desses novos e constantes estímulos, é necessário que o educador, principalmente o alfabetizador, entenda que a criança (e o adulto), quando inicia o seu processo de escolarização, já possui conhecimentos da língua falada e escrita, e imagina os princípios científicos em que se baseia o seu funcionamento, a sua construção. Como afirma Emilia Ferreiro, a criança não está simplesmente esperando que alguém lhe venha fornecer esse conhecimento.

Como nós, muitos educadores buscaram novos métodos para o ensino da leitura e da escrita, visando a ajudar a criança a avançar cognitivamente. Todo método novo procura avançar em relação ao anterior, mas é o tempo que demonstra o seu valor e aceitação. Não se pode presumir que tudo o que há de novo é o melhor. Em educação isso vem ocorrendo com muita freqüência.

Nossa cultura não tem memória. As técnicas usadas no passado são revivificadas e voltam a ser utilizadas como se fossem novas. Todos os métodos de ensino sofreram modificações em resposta às mudanças de valores da cultura. O método socrático, por exemplo, baseia-se na teoria de que o indivíduo já possui todos os conhecimentos, e a tarefa do professor é guiá-lo para que possa redescobri-los.

As filosofias da educação podem produzir um sistema de valores, não um método. Daí a importância de, ao se escolher um método, saber se é compatível com os valores assumidos. A influência de Rousseau em nosso trabalho decorre de seu pensamento coincidir com valores em que acreditamos: a criança deve desenvolver-se naturalmente, e assim o fará se oferecermos a ela ambiente apropriado para a observação, o tateio experimental, o trabalho, o interesse e a interação com os outros. Foi o que procuramos colocar em prática. O importante, para nós, é que os métodos de ensino resultem sempre de pesquisa sistemática sobre as possibilidades de ensinar/aprender um mesmo conteúdo. Não foi a mera intuição que nos levou a aproximar o aluno do objeto a ser co-

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nhecido. de forma contextualizada, criando condições para ele. sozinho, chegar ao conhecimento. Foi um período de muitas buscas pedagógicas! Sentíamos que precisávamos nos aproximar das teorias, que cada educador trazia, de forma mais ou menos explicita, sua proposta metodológica, que precisava ser analisada. Hoje, muitos professores esperam obter essa teoria nos cursos de formação e/ou atualização, em textos de fácil leitura. Essa atitude não ocorre por comodismo; muitas vezes, é gerada pela ansiedade de buscar segurança ou pela necessidade de sistematizar o próprio trabalho. Desconhecem que o interesse e necessidade dos alunos é que devem determinar o que é mais favorável à aprendizagem no momento. O professor deve utilizar fatores subjetivos em muitas decisões de ensino, pois não existem fórmuIas ou receitas que possam ajudar os inexperientes.

Procuramos conhecer os conceitos e teorias em sua fonte opriginaí, não deturpada por intermediários.. À medida que aprofundávamos a leitura, nossa percepção captava a totalidade do pensamento, mais a possibilidade de extrapolar e questionar seus conceitos. Eles (os conceitos e teorias) foram a gênese de nossa prática, uma ação inovadora em termos metodológicos,

baseada em princípios que ajudam o educando a associar cada novo conhecimento ao anterior, passar do conhecido ao desconhecido, superar o erro, avançar cognitivamente. Em todosos momentos, procurávamos estimular e acompanhar seu processo de aprendizagem, nunca bloqueá-lo.

Foi um trabalho isolado, como o de muitos educadores que. felizmente, não desanimam diante da indiferença ou hostilidade dos outros. Assistimos à formação de pequenos grupos de estudo e de trabalho que procuramn aprofundar seus conhecimentos e dar maior embasamento ao próprio fazer. Recentes programas de apoio de Secretarias da Educação no Brasil (Citação: Em 1997, a Secretaria da Educação instituiu o Programa de Capacitação (PEC) em serviço para professores e especialistas, desenvolvido em parceria com universidades e instituições credenciadas de formação de educadores.) vêm incitando os adores a investir em sua formação, individualmente ou em grupo. Os progressos têm sido grandes para a Educação Básica, que é por onde se deve começar.

Na natureza é possível descobrir as leis ou princípios em que se baseia a educação. Já no início do século XVIII Herbart e Frobel sustentavam que a criança deve adquirir a idéia da forma e compreender a palavra por meio do objeto. Tal afirmação representa uma revolução da teoria e da prática. ”O grande méri-

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to dos filósofos educadores é haver demonstrado plenamente, seja qual for sua escola, que a pedagogia não pode limitar-se a uma idéia técnica da educação, senão que essa técica requer imediatamente bases ciêncitficas, psicológicas e inclusive uma concepção ultracientífica da natureza, do homem e da sociedade, de suas relações e de seu destino comum " HUMBERT, 1946,P.310.

Para quem ousa inovar, o processo de conhecimento não é linear. Exige períodos dedicados a organizar os conflitos e contradições entre a prática e a teoria, o que justifica ir às propostas dos grandes mestres da pedagogia, descobrir as intenções com que foram formuladas, localizá-las no contexto em que surgiram, para então revivificá-las e inovar em educação.

Há 200 anos Rousseau já lembrava aos educadores"Sempre acreditei que antes de instruir aos outros era preciso começar por saber o suficiente para si mesmo". ROUSSEAU, 1986, p 42

É preciso resgatar a identidade da educação, como teoria, para possibilitar a mudança da prática pedagógica do professor e da escola. com base em nossa história imediata e passado recente, à luz do presente, recuperamos as propostas de três grandes mestres, nossos inspiradores Eles acompanharam as etapas da aquisição da escrita pela criança, embora em outros contextos. Confrontamos seus estudos e conceitos com a psicogênese da língua escrita, proposta por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky em obra de mesmo título (1985).Vygotsky, no início do século XX, já estudara a psicogênese e suas idéias estão sendo hoje analisadas. Os escolanovistas, (Escola Nova- Corrente pedagógica que surgiu no início do século XX, na Europa Exerceu influência na reorganização escolar e nas metodologias de ensino Esta fundamentada na capacidade criadora do aluno, colocado como centro do universo educacional.) por ignorar as teorias de Vygotsky ou em razão de um conhecimento superficial

delas, fizeram sua transposição para a prática sem atentar à nova realidade Daí surgem o psicologismo, o sociologismo ou o filosofismo, que distorcem a identidade das teorias de educação.É preciso que o educador recupere, antes, sua própria identidade para entender os teóricos e a prática de qualquer escola pedagógica. A construção de uma teoria da educação implica que o educador teorize sobre os seus próprios atos, "uma contextualização teórica que lhe possibilite articular o lógico com o real" de modo a "trabalhar com a teoria teorizante e não a teoria teorizada". SEVERINO, in FAZENDA,1999, p 32 (grifo do autor).

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Para Gramsci, o saber não é estático e unilateral mas deve ser visto como um fazer e um fazer-se, com vida e movimento, por meio do compreender. GRISONI & MAGGIORI, 1973, p 327

O significado de recuperar nosso passado foi o de não mais teorizar de fora, mas começar a investigar nossa própria história de educadora. Foi um recomeçar, uma revisão do passado com as teorizações adquiridas nesse passado, porém revisitadas com os olhos do presente. Conseguimos recuperar a história dos teóricos da educação, nossos primeiros parceiros na aquisição de novos conhecimentos.(O termo PARCEIRO (do latim partianu) significa ”o igual, aquele que compartilha falas, espaços, cúmplice”. Para mais esclarecimentos, consulte FAZENDA, 1991.)

Rousseau é o grande precursor da reforma pedagógica contemporânea. Emílio, mais que uma reação ao passado ou uma perspectiva para encarar o futuro, é um ponto de convergência. Suas idéias e metodologia, século e meio mais tarde, aparecem nas obras de psicólogos e pedagogos de renome e, na atualidade, são aplicadas pelos professores na sala de aula. Rousseau critica a educação de sua época, que não considerava a importância do conhecimento da natureza da criança — o que ainda hoje permeia a prática de muitos educadores.

Decroly propõe um método global para o ensino da leitura calcado na observação e associação de idéias. Partindo do conceito de ”centros de interesse”, seu método busca despertar o interesse da criança para que esta. compreendendo os fenômenos estudados, se esforce no trabalho proposto. Montessori (as letras móveis). Freinet (o método natural), Emilia Ferreiro e outros (construtivismo), todos enfatizam a necessidade de conhecimentos para aqueles que pretendem organizar e sistematizar um trabalho pedagógico que leve em consideração o desenvolvimento cognitivo do aluno e a língua escrita. Ajudar o aluno a compreender, articular seus interesses com o dominado foi o que levou Célestin Freinet a criar, na França, uma escola popular.

Freinet articula a teoria com a prática e encontra uma forma original de trabalhar as possibilidades infantis e o mão educativo: o diálogo entre docentes e a troca de materiais didáticos.

Surgiram muitas propostas inovadoras no início do séculoXX. É preciso analisá-las e aperfeiçoá-las na prática, não na leitura, de modo a identificar o que têm de aceitável e vantajoso. O conjunto de idéias, compreendidas e

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aprofundadas, torna o professor um profissional competente, impelindo-o a modificar sua prática. A ciência é um produto social que convive com a dominação, a exploração, as incertezas, as mentiras, os interesses.

/Para levar os alunos a aprender o mundo concreto, a realidade, )A REALIDADE, entendida como mundo concreto, para Kosik (1976, p. 13-4), significa a compreensão da essência do fenômeno e precisa ser descoberta, pois "não se manifesta diretamente". Para perceber a totalidade é necessário "isolar" a realidade, "decompô-la", fazer "a cisão do único"e captar "a coisa em si"pelo pensamento.)

é preciso mergulhar cientificamente no passado, aproximar dele nossos educandos (futuros mestres), para que realizem uma opção crítica a partir das dúvidas e incertezas do que conhecerem: os dados levantados, as /teorias estudadas e todo conhecimento que cada um já possui. As idéias dos educadores considerados clássicos apontam caminhos para uma prática interdisciplinar. "O que caracteriza a atitude interdisciplinar é a ousadia da busca, da pesquisa: é ajransfQrmação da insegurança num exercicio de pensar num construir." FAZE.\DA, 1991, p. 18.

Acreditamos ser esse o caminho para conseguir a coerência entre a teoria e a prática, construir com integridade profissional e autonomia intelectual o próprio fazer e tomar decisões pedagógicas lúcidas em sala de aula.

Nessa construção (reconstrução) buscamos novas respostas e novas indagações às investigações mais recentes da psicologia, psicolingüística, lingüística, sociolingüística, etc., pois, como afirmam Lüdke e André, "o conhecimento não é algo acabado, mas uma construção que se refaz constantemente". LÜCKE & AXDRÉ, 1986, p. 18.

A ciência em educação é uma forma de poder porque cria as coisas, atua por meio do conhecido, do já produzido, visando ao progresso. Inova-se com base no velho, no rotineiro, nas idéias já expressas, para recriar, reconstruir ou recuperar o saber acumulado através dos séculos. Segundo Schaff, "cada presente tem o seu passado, cada presente reescreve a história". SCHAFF, 1986, p. 119.

Os estudos de Emilia Ferreiro e colaboradores sobre a psicogênese da língua escrita nos ajudaram a entender os processos pelos quais o educando chega às linguagens, principalmente à língua escrita.

É preciso aprofundar o estudo dos clássicos e verificar como suas idéias principais permanecem em nossa prática, enquanto outras vão sendo abandonadas. Ao estudar os antigos, percebemos que muitas teorias e idéias que considerávamos novas já haviam sido enunciadas e praticadas — além de, infelizmente, por razões diversas, abandonadas.

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Os textos de Rousseau, Decroly e Freinet visam a dar ao leitor a oportunidade de sentir, refletir e fazer a propria interpretação do pensamento dos autores, banindo qualquer dogmatismo. Como o pintor vê a natureza a seu modo e a fixa na tela, buscamos recuperar o discurso de educadores que nos antecederam na história da pedagogia. Não simplesmente expor suas idéias, mas chamar a atenção para algumas aproximações e questionamentos que apresentam ao trabalho pedagógico atual, para que cada leitor tire suas conclusões.

Segundo Bochniak, ”é importante a percepção de não se desprender do antigo [...] E, na medida em que se faça essa ponte entre o antigo e o novo, o que se pretende não é a eliminação do velho e muito menos da insegurança, mas a simples consciência da perplexidade do homem, enquanto (sempre) fazedor da História — enquanto (sempre) pesquisador (ainda que muitas vezes não consciente ou não investido, não preparado, não autorizado a isto) — e do caráter ético subjacente a seus (perenes) papéis”. Apud FAZENDA, 1992, p 20

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1 Recuperando Rousseau...

Para conhecer os homens, é preciso vê-los agir. No mundo, ouvimo-los falar; mostram os seus discursos e escondem as suas ações; mas, na História, elas são desvendadas e julgamo-los pelo que fizeram. Mesmo os seus propósitos ajudam a apreciá-los; pois, comparando o que fazem com o que dizem, vê-se o que são e o que querem parecer: quanto mais se disfarçam, mais bem os ficamos a conhecer.JEAN-JAC QUÊS ROUSSEAU, 1990b, p 39

Recuperar Rousseau representa a tentativa de esclarecer equívocos pedagógicos que a leitura de um clássico como Emílio suscita, quando se pensa na influência que exerceu (exerce?) na educação. Por várias décadas suas idéias foram vistas como coisas do passado e não como elementos do presente.(citação: Emílio foi publicado pela primeira vez em 1762. É considerado um tratado sobre a educação. Nele, Rousseau procura, demonstrar como educar cietificamente uma criança. Causou grande revolução nas idéias da época, gerando inimigos e perseguições a Rousseau propósito de Emílio é forma um homem livre. O verdadeiro amor pelas crianças e pela liberdade nele revelado o tornam um romance pedagógico para todas as gerações de educadores)

As formas de relacionamento do homem com a natureza e com a cultura sempre estiveram ligadas às modificações socioeconômicas e políticas. Muitas teorias da educação não priorizam essa relação, o que leva a um ensino descontextualizado. Emílio, ao preconizar o retomo às origens do homem como ser que naturalmente conhece, não apenas descreve a necessidade do relacionamento homem/natureza, como tenta ser veículo que mostra tanto as desigualdades sociais da época, como a necessidade de uma nova proposta educacional que priorize a aprendizagem como processo de vida.

Nosso fazer didático sofreu influência dos pressupostos rousseaunianos que mostram a possibilidade de uma educação transformadora, cujo objetivo é atingir, na relação educador/educando, o conhecimento conforme as necessidades do educando. Revendo Rousseau hoje, sentimo-nos À reconstruindo a educação, na procura de caminhos para minimizar as injustiças econômicas e sociais — geradas fora da escola mas que nela se refletem e expressam.

Suas idéias de homem, infância e conhecimento possibilitaram construir os conceitos de jardimde-infáncia. trabalho na escola, metodologia e, sobretudo, a idéia de que toda educação deve partir da criança, do que ela é, fornecendo-lhe os meios para que construa seu próprio conhecimento.

Emílio é um romance pedagógico que combate as teorias tradicionais de ensino.

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Embora o próprio Rousseau afirme que não é um tratado de educação, foi apresentado como um novo sistema educacional, bastante minucioso. Sua proposta está alicerçada não nas formas da sociedade, nas tradições sem sentido da escola e na ignorância da infância, mas no conhecimento da verdadeira natureza do homem.

Com sugestões simples, Emílio denuncia o ensino elitizante, ao qual apenas um pequeno grupo tinha acesso. Ao romper com a proposta de ensino

vigente, Rousseau resgata o ”bom selvagem”, mostrando a possibilidade de formar um novo indivíduo e uma nova sociedade.

Como todo transgressor, Rousseau é utópico. Ao escrever para um aluno imaginário, preocupa-se mais com o processo do que com os resultados, exigindo do educador que ele mesmo construa o processo pedagógico. O homem tem de sair de si para a si mesmo chegar, tem de obter o seu eu para atingir o outro.

ROUSSEAU: CRÍTICO DO PASSADOE PRECURSOR DA EDUCAÇÃO MODERNA

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) viveu num período de grandes realizações intelectuais, principalmente na França, Inglaterra e Alemanha. Nessa época, o absolutismo dominava a Europa, marcada pelo aumento da produtividade no campo, pela urbanização e desenvolvimento da atividade artesanal, possibilitados pelo acúmulo de capital no século anterior.

O aperfeiçoamento das máquinas de fiação e tecelagem mais á invenção da máquina a vapor e da locomotiva alteraram profundamente a economia, desencadeando a Revolução Industrial. Melhoram as condições de vida em muitas regiões e a população cresce em proporções nunca antes atingidas. Desenvolvem-se grandes cidades, milhares de pessoas deixam a agricultura e entregam-se ao trabalho nos ateliês.

Os avanços técnicos propiciaram o desenvolvimento de uma mentalidade que, animada pelos êxitos das ciências, rejeitava as velhas idéias e os antigos valores — e começava a confiar no progresso e em um novo mundo

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que estava para ser construído, por obra do homem. A autoridade dos antigos clássicos do pensamento e da arte, abalada desde o Renascimento, cede lugar definitivamente ao novo, ao moderno. Havia a expectativa de que todos os problemas, em quaisquer setores, viessem a ser esclarecidos, ou melhor, iluminados. Para a filosofia, seria o fim da superstição e da ignorância.

Para análise e transformação do mundo, tornava-se necessária uma nova avaliação do conhecimento acumulado, que desse ao homem consciência de si mesmo e de suas potencialidades. Foi o que fizeram os enciclopedistas: o reexame de todos os conhecimentos e problemas do presente e do passado, para ”iluminá-los”. Embora Rousseau critique a ordem estabelecida, é difícil enquadrá-lo aos iluministas, pois, em vez de celebrar o ”progresso das luzes”, afirma que as necessidades criadas eram fontes de escravidão e inimigas da moral: ”Tudo o que distingue o homem civilizado do selvagem é um mal”. Sentindo-se estrangeiro em sua própria época, Rousseau opõe-se à sociedade, adotando uma posição que vai influenciar a Europa e todo o Ocidente: acabar com a falsidade social.

Em A nova Heloísa destaca as delícias da virtude, o prazer da renúncia, a poesia das montanhas, florestas e lagos. O contrato social é um plano para a reconstrução das relações sociais da humanidade. Em Emílio, propõe a mesma reconstrução por meio da educação.

Mais de trinta anos nos separam da primeira leitura de Emílio e, nesse período, muitas outras pedagogias foram objeto de nossos estudos, principalmente as chamadas Escolas Novas. Em todas encontramos enunciados da proposta rousseauniana. Embora tais escolas pareçam libecâs. fundamentadas em valores como o respeito à personalidade, à espontaneidade da criança e a inteira confiança na natureza, propõem uma educação que dirige, influencia e determina aonde a criança deve chegar.

Rousseau propõe a simplificação do processo educativo, insurgindo-se contra o artificialismo e as convenções da sociedade. Ele próprio recebeu influências das tronas dos humanistas Rabelais, Montaigne, Comenius, Locke e propostas renovadoras para a educação do seu tempo. sendo o primeiro a escrever sobre elas. E o fez com tanta clareza e originalidade que ainda hoje sua comcepção de educação é bastante atual.

(citação O século XVIII também é conhecido como o ”século das luzes” ou ”do iluminismo”, que iluminaria com a razão o obscurantismo da tradição.)

(citação) ROUSSEAU, 1983, p. 337-436. Rousseau condena o progresso dizendo que as artes infundem a hipocrisia entre os homens, criando uma espécie de conformismo histórico, além de criar depravação moral, e cita exemplos de povos aos quais o progresso das artes (ou civilização) corrompeu, etc.)

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Idéias e propostas pedagógicas de autores dos séculos XV, XVI, XVII

François Rebelais / (1495-1553)HistóricoCrítico da escola do seu tempo, ridiculariza a educação escolástica e

formalista da época, baseada na aprendizagem das palavras e submissão às regras.

Suas idéias pedagógicas estão em Pantagruel e Gargântua, obra monumental, pitoresca no vocabulário e no estilo, que satiriza a educação formalista.

Foi o precursor do realismo e do naturalismo na pedagogia, demonstrando grande amor pela humanidade, paixão pela justiça e culto à verdadeira ciência.

Idéias/propostas pedagógicas— Método de ensino atraente, voltado para a formação do homem

integral.— Educação alegre, risonha, em ambiente de liberdade: primazia ao

desenvolvimento do corpo, vida ao ar livre e prática de exercícios físicos.— Conhecimento tirado da natureza e não dos livros. Gargântua escreve

a seu filho:”Quero que te dediques a teu estudo cuidadosamente; que não fique

mar, rio ou fontes cujos peixes não conheças; todos os pássaros do ar, todas as árvores, arbustos e árvores dos bosques; todas as ervas da terra, todos os metais ocultos em seu seio, as pedrarias do Oriente do Meio-Dia, tudo te seja conhecido... Com freqüentes anatomias adquirir o conhecimento perfeito do outro mundo que é o homem.”

Michel Eyquem de Montaigne 1553-1592)

HistóricoEscritor e moralista, é o maior representante do humanismo francês.

Seus Ensaios trazem algumas das páginas mais brilhantes sobre a educação da época. Embora não tivesse experiência direta de ensino, as lembranças pessoais lhe serviram de orientação para suas críticas e propostas.

Critica o abuso dos livros, polemizando contra as escolas da verbosidade, as quais exigem que o livro do meu aluno seja o vasto mundo. Daí a frase: ”Mais vale um espírito bem formado do que uma cabeça bem cheia”. Segundo ele, os educadores nunca deveriam esquecerse de que ”não há nada melhor que despertar o prazer e o amor pelo estudo; caso contrário, só se formam bons carregadores de livros”.

Afirmava: ”A ciência começa nos sentidos e neles se resolve”; e, sobre os limites de tal ciência: ”A natureza humana [...] não conhece de si senão uma aparência obscura e sombria, uma visão incerta e insegura”.

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Elogiou a grandeza da condição humana. Suas opiniões e princípios nascem de idéias bem definidas só bre o homem; interessou-se principalmente em saber como ele é: ”Outros formam o homem, eu o descrevo”

É considerado o precursor das modernas tendências pedagógicas. Suas teorias foram ampliadas por Locke.

Idéias/propostas pedagógicas— Aprender não consiste em amontoar conhecimentos, mas em

assimilá-los.— O ensino das coisas é bem mais vantajoso que o das palavras.— Na instrução, deve-se atentar para a formação do juízo, as ações

mais que as palavras. ”Que nosso discípulo esteja bem apercebido de coisas; virão depois as palavras, por acréscimo.”

— A instrução deve ser adquirida pela experiência, o mestre deve mostrar aos discípulos ”o exterior das coisas; fazendo-os experimentar, escolher e discernir por si mesmos, preparando-lhes o caminho, deixando-lhes liberdade de buscá-lo”.

A educação pode ser ocasional, ”tudo o que se nos mostra à vista é suficientemente livre: a malícia de um pajem, a tolice de um criado, uma discussão de sobremesa são outros métodos de ensino”.

— O conhecimento é apenas um instrumento na formação do juízo, fim último a que se deve dedicar a educação.

Jan Amos Comenius 1592-1670)Histórico

Um dos mais notáveis pedagogos do século XVII e um dos maiores da história. Influenciado pelas idéias de Bacon e de Ratke, contribuiu para a reforma da educação em vários países.

Trabalhou nas escolas de Lissa (Polônia), em 1654, e Patak (Hungria), em 1651. Nessa época, escreveu algumas de suas obras principais, como Janua linguarum (”Pórtico das línguas”), a famosa Didática magna e Orbis pictus.

Seus trabalhos chamaram a atenção do mundo contemporâneo. Foi o fundador da Didática e, em parte, da pedagogia moderna. Suas teorias são profundamente atuais, sendo o pioneiro em aplicar um método que desperta

crescente interesse no aluno. É conhecido como Mentor das Nações, por ter contribuído para a reforma da educação em vários países.

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Sua obra sintetiza o velho e o novo da pedagogia: ”A reelaboração de toda a enciclopédia do saber, orbis scihttium, e a sua sistemática adequação às capacidades infantis são o grande tema da pedagogia de Comenius [...]; propõe uma escola para a vida toda (desde o seio materno até a morte), que, dividida em oito graus, ensine tudo a todos totalmente” (Manacorda, 1989, p. 220-1). Isso pressupunha uma nova sistematização de todo o saber, que tentou de vários modos. No plano da prática didática, salienta Manacorda. Comenius propunha a pesquisa e a valorização de todas asmetodologias que hoje chamaríamos de ativas, experimentadas desde o humanismo: areforma escolar dacultura, da política e da moral.

Idéias/propostas pedagógicas— São fins da vida e da educação: o saber, que compreende o

conhecimento de todas as coisas, artes e línguas; a virtude, ou bons costumes, que inclui não só as boas maneiras como o domínio das paixões; e a piedade, ou religião, isto é, a veneração pela qual a alma do homem se une ao Ser supremo.

— A educação deve atingir a todos, ricos e pobres, meninos e meninas, todos educados conjuntamente nos mesmos estabelecimentos (antecipa a idéia de escola democrática). É necessário buscar a unidade do conhecimento por meio de:

• método natural, conforme o desenvolvimento do homem;• escola única, uma escola para todos; • gradação e continuidade da educação, da escola maternal à

universidade.— A escola maternal é fundamental e deve cuidar principalmente do

exercício dos sentidos externos, com base na observação e na experiência.A escola comum deve cultivar os sentidos internos, a imaginação, a

intuição e a memória — com seus órgãos executivos —, a mão e a língua, escrevendo, lendo, pintando, cantando, medindo, pesando, etc. ”Nada há no intelecto que não tenha antes passado pelos sentidos.”

No ginásio deve-se trabalhar o entendimento e o juízo, por meio de dialética, gramática e demais ciências e artes de utilidade prática. As universidades destinam-se ao cultivo da alma pela teologia, da inteligência pela filosofia, do corpo pela medicina e dos bens externos pela jurisprudência.

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John Locke (1632-1704)HistóricoGrande filósofo e não menor psicólogo, humanista, médico e professor,

dotou-o a natureza de um fino espírito de observação que de muito lhe serviu para adquirir a experiência pedagógica revelada nos seus escritos e para formar idéias que tiveram larga repercussão, sobretudo no pensamento inglês

Escreveu Ensaio sobre a mente humana, teoria empírica do conhecimento, cujo conteúdo muito contribuiu no campo educacional, e Alguns

pensamentos sobre educação, título modesto de uma das mais célebres e originais obras educativas, cuja influência é notória nos escritores que o sucederam, incluindo o próprio Rousseau.

Idéias/propostas pedagógicas— Na educação, três são os aspectos a ser considerados: o físico, o

moral e o intelectual, aos quais devem corresponder três objetivos: vigor do corpo, virtude e saber. Formulou a teoria empírica do conhecimento, ou filosofia baconiana: todo conhecimento vem dos sentidos e do intelecto, isto é, da experiência.

— Princípio epistemológico: a educação tem grande poder. ”É ela que produz as diferenças entre os homens [...] E isso, de acordo com a natureza racional do homem.” O educador deve estar consciente de que ”sua tarefa não é tanto ensinar aos jovens tudo o que os homens podem saber, mas despertar neles amor e respeito pela ciência e colocá-los no caminho certo, onde podem conseguir conhecimentos e aperfeiçoar-se, se quiserem”.

— Inverteu todas as idéias e princípios educacionais da época: saúde e disciplina corporal têm primazia sobre o saber e a eloqüência; não se consegue educar os jovens com castigos duros, mas por meio de jogos adequados pode-se ajudá-los a aprender a viver, etc.

Muitos filósofos e educadores antes de Rousseau criticaram o enciclopedismo, a educação como exercício da memória e acúmulo de conhecimento. Foi, porém, Locke quem a recuperou, mostrando que as raízes do conhecimento devem ser buscadas no próprio homem, como ser total e uma totalidade. Ao apoiar-se nos paradoxos de Rabefcrê. nas delicadas análises de Montaigne, na intuição de Gomenius e na proposta utilitária de Locke, Rousseau ama delineando uma nova concepção de ensino.

Ressoueau foi o profeta que denunciou os males do passado, e antecipou, ainda que vagamente e em esboço .a vino do moderno. Foi o precursor e inspirador

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dos reformadores da educação, muitos dos quais transformaram em procedimentos os seus devaneios: Basedow, Pestalozzi, Frõbel, Dewey, Montessori, Decroly, Freinet e outros, conforme mostra o quadro a seguir.

As idéias de Rousseau na prática de pedagogos dos séculos XVIII e XIX

Jobann Bernhard Basedow 1723-1790)HistóricoNotável educador alemão, tentou reformar a educação, ampliando as

idéias de Rousseau. Fundou em Dessávia o Instituto Philantropium, bem diferente das escolas do século XIX, para formar professores. Em

1775, montou um curso de pedagogia tão completo que permitiu dispensar até os estudos na universidade.

Lutou pela reforma completa nos métodos de ensino e no preparo de professores, na Alemanha. Seus Princípios elementares (1774) constituíram-se num sistema completo de educação primária, destinado ao desenvolvimento da

inteligência dos alunos, e influenciaram largamente os métodos de educação da época.

Considerava a instrução menos valiosa que a educação. A filosofia de seu Instituto era a dedicação ao próximo, com total desprendimento pessoal, tornando-se a mais importante experiência pedagógica na Europa (1774-1785).

Entre suas principais obras estão: Manual elementar ott Coletânea metódica dos conhecimentos e Discurso sobre escolas.

Seu filantropismo influenciou e sugeriu a pedagogia de Pestalozzi.Idéias/propostas pedagógicas— A pedagogia de Basedow propõe oferecer:• educação nacional e independente das religiões;• cultura utilitária;• método intuitivo e recreativo.— Dos 8 aos 12 anos apenas lições de coisas, conhecimento da vida

prática: fatos e não palavras. Era seu aforismo predileto: ”Aprender pouco — e esse pouco, sempre brincando”.

— Preocupação central: noções de vida real, com visitas freqüentes às oficinas e fábricas.

— Valoriza a educação física, trabalhos manuais e artes (desenho, pintura, música, dança e até acrobatismo); ciências e línguas sem teorias, só em aplicações e na natureza; aboliu a gramática e a retórica; a história é despojada de datas e de tudo que se refere à erudição; a geografia vai do quarto à casa, à cidade, ao país todo e depois às várias partes do globo. Na moral: dar bons exemplos e resguardar o educando da prática de maus hábitos.

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Johann Heínrích Pestalozzi (1746-1827)HistóricoPedagogo por índole, o paciente educador suíço alcançou reputação

universal pelos esforços dedicados a melhorar a educação e a instrução das crianças pobres, com conseqüente melhoria de sua situação econômica. Foi, em princípio, um revolucionário cheio de entusiasmo não só pelas obras de Rousseau como pelas de todos os demolidores sociais e políticos. Em plena Revolução Francesa, vivenciou as discrepâncias entre as idéias e a realidade dos problemas sociais. Preferia um caminho mais lento, porém mais promissor, para uma sociedade mais justa e humana, pela educação. Soube perceber a situação política do seu tempo, julgá-la corretamente e apontar caminhos educacionais que, dois séculos após a sua morte, ainda são válidos.

Ainda jovem, impressionou-se com a leitura de Emílio, educando o próprio filho segundo os preceitos rou&seaunianos, com pouco êxito Como Rousseau, vê o homem originariamente bom. Se este se orientar ”pelas necessidades de sua natureza”, seguir ”a verdade do mais íntimo de sua natureza”, estará no caminho certo e verdadeiro. Toda sabedoria humana ”baseia-se na força de um bom coração, obediente à verdade, e toda bênção humana está fundada neste sentido da siinpiicidade e da inocência”.

Tornou-se conhecido com a publicação do romance Leonardo e Gertrudes (1781), no qual já delineava suas idéias sobre a reforma política, social e moral. Seu livro Investigações sobre a marcha da natureza no

desenvolvimento do espírito humano conferiulhe o renome de pensador e pedagogo erudito. Sua mais importante obra pedagógica é Como Gertrudes ensina a seus filhos. Fundou, em 1805, o Internato de Yverdon, colégio conhecido internacionalmente.

Jamais formulou suas idéias pedagógicas; seus colaboradores, Fróbel e Herbart, e seus discípulos as extraíram de seus escritos e processos de ensino. Influenciou a pedagogia da Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos.

Estabelecendo a relação entre as práticas tradicionais da sua época e o desenvolvimento natural definido por Rousseau, reduziu os exageros para reconhecer os fins humanos e o fim social da educação, fornecendo os germes das idéias educacionais modernas.

Idéias/propostas pedagógicas— Seu método dá ênfase à atividade do aluno, iniciando-o pelo

conhecimento de objetos simples até chegar aos mais complexos, partindo do conhecido para o desconhecido, do concreto para o abstrato, do particular para o geral.

— Entre os princípios do método pestalozziano destacam-se:

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1. A intuição, base de todo conhecimento. Seu princípio é a observação; habituemos, portanto, a criança a observar, porque a ”intuição” é tanto mais clara quanto maior número de sentidos a perceberem.

2. O saber e o saber-fazer. Destaca a importância da formação e não da mera instrução. Considera que qualquer conhecimento deve ser aplicado a outras situações. De nada vale, dizia, juntar o poder com o saber; é necessário que nossas idéias venham acompanhadas da ação que as exteriorize. ”Saber e não saber fazer é talvez o presente mais temível que um gênio malfazejo tenha feito à nossa geração.”

3. O poder. É preciso aliar ao saber o poder, às noções teóricas a habilidade prática,

4. O amor. As relações entre professores e discípulos devem ser amorosas. A missão do educador é ajudar o indivíduo a desenvolver de maneira mais completa sua natureza.

— Todos devem ter direito à educação, que deve desenvolver a sensibilidade, a mentalidade e a capacidade física. com os estudos, alternar os trabalhos manuais e as excursões às montanhas. Os exercícios de ginástica devem ser freqüentes e variados. ”O pobre deve ser educado” e levado a ”auto-educar-se”.

— ”A arte da educação deve ser, essencialmente e em todas as partes, elevada a uma ciência constituída pelo mais profundo conhecimento da natureza humana e constituída sobre ele. Obviamente, estou longe do conhecimento dessa ciência. Ela se encontra apenas como idéia na minha alma.”

— Propõe ligação rigorosa entre os ensinos sucessivos. Nada de ensino mecânico e verbalista. Tudo ativo, estimulante da atenção, aprofundador. Vale mais o desenvolvimento intensivo das faculdades do que a extensão dos conhecimentos.

— O ensino da leitura e da escrita era feito por meio do método sintético, começando pelo estudo das vogais. Mas, antes de saber ler e escrever, achava indispensável saber falar. Para a leitura, empregava letras móveis, colocadas num cartão de modo que, aproximadas umas das outras, formavam as sílabas. Em geral, os métodos de nossas cartilhas eram, até bem pouco tempo, resultado direto, embora não imediato, dos esforços de Pestalozzi em analisar a matéria em seus elementos mais simples e, depois, por aumento gradual de complexidade do material, levar a criança à compreensão simétrica e ordenada de toda a matéria.

— O estudo da aritmética era experimental e feito por meios concretos. O aluno, antes de conceber abstratamente os números, fazia adições de objetos reais — nozes, avelãs, botões, etc. Os primeiros cálculos eram mentais, sem papel. A geometria era ensinada experimentalmente. O aluno começava cedo a aprender a ensinar.

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Fríedrich Frôbel (1782-1852)HistóricoEducador alemão, desenvolveu sua pedagogia inspirado nas idéias de

atividade e liberdade. Embora influenciou pelas teorias de Rousseau e Pestalozzi. Foi totalmente independente e crítico. Ao individualismo do primeiro propôs a doutrina da unidade, ou ”parte-to elaborada por Pestalozzi, que reformulou e ampliou.

Foi um dos primeiros educadores a buscar um nétodo para a educação da criança pequena, e nunca deixou de pregar a necessidade de respeitá-la. Na observação da infância”, o adulto vê como num espelho sua própria infância distante, não visível a si próprio como o próprio rosto que só pode ser contemplado no espelho.

Em 1817, fundou, em Griesheim, o Instituto Uruve sal Alemão de Educação, que administrou com dificuldade, apoiado por fanáticos pelo seu saber pedagógico.

Em 1840, abriu em Blankemburgo uma escola educação infantil, que intitulou Kindergarten (jardir de-infância). É considerado o fundador da pedagogia do brinquedo e do jardim-de-infância.

Suas principais obras são: A educação do homem (na qual desenvolveu os princípios filosófico-antropológicos da sua pedagogia), As palestras ou contos da mãe e dois periódicos, As famílias educadoras e Vivamos para os nossos filhos

Apesar da fragilidade e obscuridade de suas idéias, algumas merecem atenção. O educador que considera a humanidade no homem como sujeita a um contínuo desenvolvimento está sempre aberto a novas perspectivas. Ao considerar que ”toda vida é unidade e o homem um criador”, delineou os rumos da pedagogia contemporânea,

Idéias/propostas pedagógicas— O fim da educação não é a vida prática nem a abundância de valores

intelectuais, mas o cultivo da verdadeira humanidade e o desenvolvimento espiritual de cada indivíduo. Cada ser é um núcleo necessário e essencial da humanidade: possui o infinito em forma limitada e o eterno em aspecto temporal.

— A escola deve levar o educando a reconhecer e adquirir consciência da essência e vida interior das coisas e de sua própria personalidade; a reconhecer as relações dos objetos entre si, como também o respeito aos homens e a Deus.

— Idéia fundamental em seus jardins-de-infância: os brinquedos e os jogos simbólicos ajudam a exteriorização do pensamento e a construção do conhecimento. Seus materiais de jogo e ocupação, apesar de bastante ricos, não devem, porém, ser entendidos como algo concluído, mas como uma semente que deve brotar e crescer na alma dos homens, tanto de crianças como de adultos.

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Princípios gerais:1. Cada criança tem a sua individualidade e índole, dignas de respeito.2. A criança gosta de observação e de movimento, quer apalpar tudo o

que vê. É preciso que exerça seus sentidos com liberdade.3. Só as atividades manuais satisfazem as crianças, porque são um

jogo. As atividades manuais e a aplicação adequada de objetos concretos, do cotidiano infantil, são o melhor caminho para a criança desenvolver-se de modo sadio e natural.

4. A educação deve começar antes dos seis anos, principalmente para as crianças das classes menos privilegiadas.

Meios educativos:1. jogos e ginástica, acompanhados por cantos que representem cenas

da vida cotidiana;2. palestras, poesias e contos;3. cultura de jardinzínhos;4. prendas, brinquedos e instrumentos de trabalho (tudo muito colorido

para educar a atenção e orientar os sentidos);5. ocupações. Partindo do concreto para o abstrato, Frõbel decompõe o

sólido em superfícies, linhas e pontos, propondo as atividades: caixa quadrangular; dobradura, recorte e colagem; tecedura; emprego de sucatas (ervilhas, pauzinhos, cartões, argolas, etc.); modelagem com argila; caixas de areia, etc.

John Drwey 1859-1952)HistóricoEducador, filósofo e psicólogo norte-americano, criou uma escola

experimental famosa na Universidade de Chicago (1894-1904). Suas obras Democracia e educação, Interesse e esforço na educação, A criança e o programa escolar, A escola e a sociedade e outras serviram de base ao movimento chamado Escola Nova, que se propagou por todo o mundo a partir da primeira metade do século XX.

É o criador do chamado Método dos Projetos, que propõe substituir a ação dos professores pela ação dos alunos.

Sua obra acentua as relações e a interação entre a vida social e a vida escolar. ”Toda a educação seja socializada: a tríplice unidade moral da escola pode enunciar-se: fim social, força social [...] A escola é antes de tudo uma instituição social [...] vida social simplificada [... ] O professor é empenhado não somente na formação dos indivíduos, mas na formação da justa vida social.”

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Sintetiza a história passada e futura da escola, definindo o sistema de insturução tradicional como a escola dos três erres: reading, (u)riting (a)rithmetic (ler, escrever e contar), no qual predominava aseparação das matérias e dominava a discriminação e a seletividade.

Suas teorias e práticas pedagógicas, muito coerentes, exerceram infulência universal.

É comsiderado um dos mais gentis observadores das relações entre educação, produção e sociedade.

Idéias/propostas pedagógicasPrincípios gerais:1. Não deve haver nenhuma separação entre vida e educação. As

crianças devem ser preparadas para a vida. “Vida, em condições integrais, e educação são o mesmo.

2. A educação deve ser “uma contínua reconstrução de experiência”. Deve compreender, projetar, experimentar e conferir os resultados das aprendizagens.

3. A escola deve assumir a feição de uma comunidade em miniatura, estimando em situações de comunicação e cooperação entre as pessoas, visando a propósitos comuns.

4. Como sistema social, a escola deve estar conectada com a vida social e com o trabalho de todas as outras instituições.

Sistema didático:Estabelecer oposição entre dois conceitos: o do que educar é

promover o desenvolvimento “de dentro” e não a formação por elementos “de fora”, ou, entre a idéia de que educar é fazer expandir as inclinações naturais e não levar o aluno a vencer essas inclinações, substituindo-as por hábitos, transmitidos por pressões externas. A fórmula de sua pedagogia – aprender fazendo – resume a adeqüação dinâmica que propôs a fim de que a escola estivesse voltada para a mudança.

Maria Montessori (1870-1952)HistóricoMédica e pedagoga, é uma das maiores representantes da pedagogia

científica moderna.Dedicou-se à pedagogia terapêutica e à educação das crianças

anormais. Observando os defeitos das escolas comum, propôe às crianças de inteligência normal os mesmos processos empregados na educação das anormais.

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Estudou profundamente a psicologia experimental, realizando numerosas observações antropológicas em escolas primárias. Em 1907, iniciou a prática, abrindo a primeira Casa dei Bambini.

Publicou, entre outros, Antropologia pedagógica e O método da pedagogia científica.

O trabalho faz parte de sua pedagogia, o que confirma a unidade indispensável entre conhecimento teórico e prático.

Idéias/propostas pedagógicasPrincípios educativos:1. Observação científica do comportamento infantil e realização dos

direitos da criança: direito a vida própria, à liberdade e à autonomia. A concretização desses direitos conduz aos dois princípios básicos do seu método: despertar a criatividade infantil por meio do estímulo e promover a auto-educação da criança, fornecendo-lhe meios adequados de trabalho. ”Um homem é aquilo que é, não pelos professores que teve, mas por aquilo que ele mesmo realizou [...] só a criança é a educadora de sua personalidade [...] A disciplina deve nascer da liberdade.”

2. A concepção de sua didática é analítica. As matérias e as lições comportam uma extrema discriminação. O ensino é individual e os estímulos para o desenvolvimento psíquico são externos, ou seja, predomina um ambiente favorável à educação, em que o educador mantém-se em segundo plano, não atuando diretamente por meio do diálogo pedagógico, mas da oferta de meios adequados para a autoformação da criança, À semelhança do bom jardineiro de Rousseau, o educador montessoriano promove o desenvolvimento da criança, seu contato com a realidade de forma indireta, levando-a a aprender a ser dona de si mesma.

A influência de Rousseau ocorre na teoria e na prática de pré-escolas, escolas de ensino fundamental, médio e superior, propondo a educação do interesse natural em oposição ao esforço artificial, o conhecimento como desenvolvimento interno e não como acréscimo externo; a educação por trabalho e ação, em vez de por passividade e imobilismo. Ela está presente na obra dos seus seguidores, na nova maneira de fazer e entender educação — nas quais é tão importante desenvolver o corpo quanto a inteligência da criança, para a formação do todo.

Rousseau destaca o poder da educação como construção e necessidade de despertar a curiosidade e o in-

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teresse da criança para chegar ao conhecimento. Guiado em parte por sentimentos pessoais e em parte por simpatia pelo povo, fundamenta sua proposta na natureza, no homem selvagem e na capacidade deste para realizar o seu próprio bem na vida. Pela ênfase que dá ao sujeito e a sua formação natural, Rousseau nos remete ao que o homem deveria ser, baseando-se em suas experiências e observações. Considera que tudo na natureza é ordem e harmonia, sendo a realidade um fenômeno objetivo, e o homem, produto dessa realidade. Tendo encontrado o mundo já construído, o homem busca compreendê-lo para transformá-lo com base nas limitações de seu estado social. Ao trabalhar tais conceitos, deixa clara a oposição entre indivíduo e sociedade, uma ”junção impossível” mas que procura recuperar na prática, ao preparar o homem desde criança para a vida na sociedade — a qual deve considerar as necessidades e condições que este tem como ser livre, importante e único. O constante ir e vir do homem, para Rousseau, se faz passo a passo. É preciso muita arte, diz, para agir eficientemente sobre o que

ainda resta de natural, sobre as oportunidades que a natureza oferece ao homem de experienciar, sem cair no artificial que a sociedade impõe. O verdadeiro indivíduo precisa valorizar-se e equilibrar-se internamente, sem o que não conseguirá o equilíbrio externo para enfrentar a vida, reconstruí-la de forma calma, compreensiva, construtiva e crítica.

A PROPOSTA EDUCACIONAL DE ROUSSEAU

A criança não é um adulto em miniatura, tem sua própria história, é um ser concreto e real, que desde cedo constrói suas próprias experiências. A verdadeira educação deve encaminhá-la para essa liberdade natural e. uma vez que a criança não entende os valores que se lhe impõem, toda educação dogmática tende a fnossar Partindo da premissa filosófica de que o ”homem é naturalmente bom”, privilegia, em Emílio, a criança e sua formação como indivíduo livre para querer, , pensar e proceder.

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O trabalho educativo supõe um propósito, uma intenção. Deve ter início desde que a criança nasce e passa a ter contato com o mundo, as pessoas e as coisas, e ser acompanhado durante todo o processo. É uma arte que requer observação constante, personalidade preparada, ambiente adequado, etc., não podendo restringirse ao ato mecânico do ensinar, da mera transmissão de conhecimentos; ao contrário, deve demonstrar o quanto o significado dessa história contribui para o desenvolvimento do indivíduo.

Rousseau considera três tipos de educação, provenientes de três instâncias: a natureza, os homens e as coisas. Se a primeira não depende de nós e a das coisas é em parte dependente, a educação exige ação planejada que propicie ao homem a experiência do real, o trabalho livre e disciplinado, a liberdade de expressão, a iniciativa, a apropriação e a construção — individual e coletiva — do saber. O ponto de partida será sempre o sujeito, com suas características e necessidades, e o de chegada, um ser livre, que compreende o que conhece. Deve haver equilíbrio entre o desenvolvimento físico e o cognitivo. Como exemplo toma o modo de vida do homem primitivo, que, ao desenvolver seu corpo, volta sua preocupação para a própria conservação, limitando sua interferência apenas à manipulação do meio; o homem, vivendo na simplicidade, é sujeito a poucos males; cultivando o que tem em comum com os animais e plantas, tem condições de viver uma completa felicidade. Se não há perversidade original no coração humano, a educação pode assegurar o livre desenvolvimento das faculdades naturais do educando. A formação deve levar em conta todos os aspectos, físicos e morais, intelectuais e afetivos — o que torna mais complexo o trabalho educativo. Rousseau reconstitui a história da evolução humana, retornando às origens do homem, ser situado no tempo e lugar, ser que naturalmente conhece, para mostrar que o conhecimento é um processo interno, que acontece de dentro para fora.

Durante séculos, filósofos e pedagogos buscaram métodos e técnicas para ensinar, sinal de que a escola ainda não contribuía para os verdadeiros saber e saber-fazer. com o progresso das ciências e, muito especialmente, da psicologia da criança, tais métodos têm ajudado a escola a deixar de ser o que era: um campo

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vastíssimo de ensino pelas palavras, desligada do seu conteúdo objetivo, onde o livro imperava e a memória era sobrecarregada. As novas propostas pedagógicas mostram que a escola ainda não corresponde (como não correspondia naquela época) aos padrões de qualidade. Rousseau foi o primeiro a perceber isso, ao mostrar que ensinar não é só questão de métodos. Para que o ensino concorra para a verdadeira educação, segundo ele, é preciso haver outra relação com o conhecimento e com a sociedade. O ideal consiste em que ”a criança aprenda por si só, que a razão dirija a própria experiência [...] Se o vosso educando não aprende nada convosco, aprenderá com os outros [...] A falta da prática de pensar, durante a infância, retira dela essa faculdade para o resto da vida”.ROUSEAU, 1990ª. p. 114-5.

Qualquer método que se baseie apenas na memorização não conduz à aprendizagem e está condenado ao fracasso. Rousseau reafirmava constantemente a importância do método natural, de não confundir aprendizagem com aquisição de conhecimentos, e dizia que o conhecimento precisa ser construído, pois todos, mesmo os mais simples, possuímos conhecimentos. Afirmava que, se o seu método fosse seguido, isto é, se se aproximasse a criança da natureza, mantendo-a atenta a si mesma e àquilo que diretamente lhe diz respeito, por si só ela desenvolveria seus conhecimentos.

Rousseau, dois séculos antes, forneceu os determinantes do conhecimento, que seria descrito por Piaget, ao propor uma metodologia calcada na observação, comparação e exploração de objetos e na interação com o meio ambiente, estratégias utilizadas na educação do personagem-título de Emílio. Ao fazer suas experiências, Emílio ia descobrindo a ciência, criando seus próprios conceitos e construindo o próprio conhecimento, sendo sujeito de sua educação. É preciso estudar bem a criança, considerando-a sujeito da própria aprendizagem, e só depois definir o tipo de trabalho a ser feito. As atividades infantis podem e devem ser disciplinadas e orientadas pela educação, mas não se pode esquecer da natureza humana. Contrariá-la, dizia ele, ou impor-lhe o impossível foi o grande erro da pedagogia tradicional, pois para haver aprendizagem significativa é necessário estimular na criança o desejo de aprender e conhecer, valor o que conduz à verdadeira aprendizagem, dar es-

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paço para a criança ir conquistando a própria autonomia, e não apenas formar o homem pela inteligência.

Em vários pontos de Emílio, Rousseau afirma a importância de conhecer a criança, a sua faixa etária e observar atividades que experimenta e vivencia. Ao educador cabe colocar à escolha da criança os objetos que poderão vir a influenciar, positivamente, o seu desenvolvimento, deixando-a experimentar em vez de fazer por ela. Observando a atividade da criança, o educador saberá o que precisa fazer e quando.

Ilustração de Gustave de Staalpara uma das edições de Emílio

A relação entre professor e aluno é horizontal, na qual ambos aprendem. Quando essa relação não se efetiva, há imposição em vez de educação. O aspecto afetivo entre educador e educando deve ser suficientemente forte para um trabalho conjunto, de amigos. Só convivendo com os alunos, observando seus comportamentos, conversando com eles, amando-os, favorecendo os seus jogos e prazeres, o mestre poderá auxiliar na sua aprendizagem e no seu desenvolvimento.

A infância, segundo ele, não é apenas um período de insuficiências intelectuais. É algo mais importante daí procurar estudá-la em profundidade Divide Emílio em cinco partes, correspondentes a cinco etapas evolutivas, para cada uma das quais propõe um trabalho pedagógico específico, como sintetizamos no quadro a seguir.

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Proposta pedagógica definida por Rousseau em Emílio, segundo o período de vida e as características do ser humano:

Emílio: Livro I período de vida:1º ano período: lactância Característica do ser humano: Ser ativoPropostas pedagógicas - Exercícios do corpo e dos sentidos: muita liberdade, jogos bem escolidos. Cuidados físicos, higiene Importância do papel da mãe e do pai.Emílio: Livro II período de vida: 2-12 anos período: Infância Característica do ser humano:Ser predominantemente sensível Propostas pedagógicas Educação sobretudo no campo pela ginástica, natação e cultura dos sentidos, Período sem lições formais: observação da natureza e lições das coisas.Característica do ser humano: Crescimento das forças Propostas pedagógicas Aprender brincando: sem livros, adquire os primeiros conhecimentos: leitura, escrita, história, geografia, etc.Emílio: Livro IIIperíodo de vida: 12-15 anosperíodo: AdolescênciaCaracterística do ser humano: Ser que pensa e julgaPropostas pedagógicas - Aquisição de conhecimentos, prática do pensar e julgar; prática de um ofício. Curiosidade: único motivo e guia.Característica do ser humano: Força corpórea supérflua Propostas pedagógicas - Papel do preceptor: manter a criança sempre interessada; ensinar o menos possível.

Recursos: supressão de qualquer manual (substituído pelas lições das coisas); leitura de Robinson Crusoé (história do homem segundo a natureza)

Programa de estudos: ciências físicas, (em particular a astronomia); a geografia (se possível, nas viagens, pelo próprio objeto); o aprendizado de um ofício (marceneiro)

Nada de gramática, nada de história (esta só aos 18 anos)

Emílio: lIvro IVperíodo de vida: 15-20 anosperíodo: MocidadeCaracterística do ser humano: Ser amoroso e sensivel

Propostas pedagógicas - - Desenvolvimento do sentimento, estudo do homem pela história, educação pela compaixão, amizade e amor

Característica do ser humano: Despertar das paixões Propostas pedagógicas - Cultivo das letras e dos idiomas

estrangeirosIntrodução à religiãoEmílio: Livro V período de vida: 21-25 anosperíodo: Início da idade adultaCaracterística do ser humano:Ser vigoroso e viril Propostas pedagógicas - Entrada no mundo adulto: noivado, viagem, casamento

*Para Rousseau, o trabalho é uma forma de a criança obter conhecimento, daí usar a expressão” prática de um ofício”.

**Esta parte do livro é consagrada à educação de Sofia, futura esposa de Emílio.

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Vemos a importância da observação da criança e do método natural, a valorização do cultivo do corpo e dos sentidos e a consideração da criança como indivíduo, com sua própria história de vida.

Rousseau foi o primeiro a encarar a infância de uma nova maneira: período por excelência da plasticidade, durante o qual experimenta, joga, imita e enriquece o reduzido capital que lhe foi transmitido por herança.

Auto-educação e método natural

Dedicando as duas primeiras partes de Emílio ao estudo da criança de 0-12 anos de idade, Rousseau mostra a importância dessa fase da vida do homem. Propõe uma educação puramente negativa, isto é, uma educação a ser dada apenas no lar ou pela natureza, uma educação que permita que a criança descubra por si mesma e construa os próprios conhecimentos.

Rousseau considera que, antes dos 12 anos, a criança não pode ter ainda qualquer idéia sobre os seres morais e as relações sociais. A verdadeira educação, segundo ele, consiste não em ensinar a virtude e a verdade, mas em ”preservar o coração do vício e o espírito do erro”.

A filosofia de educação subjacente à postura rousseauniana é a auto-educação, ou dar ao homem a oportunidade de educar-se naturalmente. O educador é o mediador cuja influência deve ser muito mais voltada para facilitar e aproximar a criança da informação/conhecimento. Rousseau não via, na época, a possibilidade de conciliar sua proposta com a educação dada nas escolas públicas (colégios). Porém não deixou de reconhecer a necessidade de uma ação pedagógica planejada, alicerçada na confiança mútua entre educador e educando, sem a qual, dizia, não há verdadeira aprendizagem. A educação deve dar espaço ao educando para conduzir apropria aprendizagem,

sem imposições, mas baseada apenas em um acordo com o adulto. Sugere que se observe a natureza e a própria criança antes de lhe dirigir a palavra. Essa é a verdadeira educação, no senti-

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do de construção e integração de conhecimentos, de desabrochar do caráter com plena liberdade de ação. Segundo ele, temos muitos hábitos, mas o pior é querer fazer da criança não uma criança, mas um doutor. Se lhe déssemos a oportunidade de experienciar, não haveria necessidade de lição alguma. Cita como exemplo sua própria educação. Por ter sido um solitário e vivido pouco com os homens, pouco também foi influenciado por seus preceitos, gozando de liberdade para refletir sobre o que observava e raciocinar sobre os fatos. A falta da prática de pensar durante a infância, segundo ele, retira do homem essa faculdade para o resto da vida.

A natureza não é apenas o meio ambiente, mas o próprio ser em desenvolvimento. Ela exerce influência positiva na criança, que, por meio de sua própria ação, da experiência, vai adquirindo os conhecimentos necessários. Em vez de ser o resultado da educação, a criança educa-se a si mesma e, com liberdade, busca enfrentar a vida de forma segura.

O verdadeiro conhecimento, para Rousseau, alicerçase no tripé: liberdade, interesse e ação. É necessário que a criança seja livre para selecionar o que quiser aprender, desejar conhecer e ser estimulada a construir o próprio conhecimento. Para tanto, o ato educativo não pode ser um pacto de simples submissão, mas um pacto de liberdade, fundamentado num projeto pedagógico de amor e respeito mútuo.

É a defesa da liberdade, confiança plena na natureza infantil, numa época em que se visava apenas à reprodução exata do conteúdo comunicado pelo ”adulto que sabia” para a ”criança que desconhecia tudo”. Recuperar suas idéias na prática do professor continua tão importante como foi no passado. Hoje, mais do que nunca, o professor precisa aproximar-se da criança, confiar na sua natureza e procurar entender o que ela pensa.

Acreditando que a criança é realmente o sujeito da própria aprendizagem, o professor saberá favorecer o mais possível a sua ação sobre o objeto do conhecimento, facilitar as descobertas e sua reconstrução. Mas só poderá fazê-lo, repetimos, se realmente acreditar ma criança e souber esperar que se aproprie do co•hcdmento. sem nada impor. Hoje percebemos o quan-

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to é importante que a criança se descubra, desde os primeiros anos de vida, como ser, com suas capacidades e potencialidades para crescer de forma consciente e ajudar seus semelhantes.

Toda atividade que for do próprio interesse ocupa a criança, que a executará com satisfação, compreendendo o que está fazendo e para que serve. Cabe ao professor propor atividades que partam do real, do mundinho da criança e que dirijam sua curiosidade, mantendo o interesse e levando ao avanço cognitivo. Isso implica não mais esperar que os alunos aceitem passivamente os conteúdos dados (ou esforçar-se para isso), mas aceitar que escolham o aue devem conhecer.

Caracterizada pela busca de modelosnão no homem mas na natureza e nos objetos, a metodologia rousseauniana exige treino e observações freqüentes, que levam a criança a representar o original e não o papel que ele representa. Rousseau propõe que a criança ignore tudo o que não puder descobrir por si mesma, e que não busque apenas nos livros ou aprenda apenas por meio das palavras do educador, porque qualquer ensino, para proporcionar avanços, deve partir do conhecimento da criança. O educador deve proporcionar condições adequadas ao crescimento corporal da criança, dar-lhe oportunidades de expressar-se emocionalmente para apreender o mundo a sua volta.

Ao ensinar a razão ou o porquê das coisas que observa, ao dar à criança oportunidade de descobrir o que é realmente útil conhecer, o educador fará com que ela saiba tirar proveito das informações recebidas. Quando isso não acontece, a criança fica reduzida ao silêncio e o professor deixa de transmitir-lhe seus conhecimentos e experiências.

Para ensinar algo, dizia Rousseau, é preciso responder à curiosidade e às necessidades das crianças, o conhecimento deve ser desejado e aceito com gosto, deve ser uma resposta aos problemas que a ela se colocam. É a curiosidade natural que todo homem sente por tudo quanto, de perto ou de longe, possa lhe interessar que leva a criança a querer conhecer e examinar tudo o que está ao seu alcance, enquanto faz sua leitura de mundo.

Uma vez que a criança é ao mesmo tempo a natureza e uma natureza, o método natural é o mais eficiente.

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O tipo de exercício tem importância secundária. Qualquer interferência do educador deve limitar-se a aproximar o educando da natureza. É preciso deixar de lado a mania de querer ensinar às crianças e impedir que aprendam por si próprias. Em contato com a natureza, a criança saberá extrair os elementos para sua plena realização e autoconhecimento.

Rousseau distingue razão, imaginação e memória, embora as reconheça dependentes entre si. Na infância a criança retém rostos, sensações, etc., mas raramente retém as idéias e as relações entre elas, apesar de raciocinar a respeito de tudo quanto conhece e se relaciona com o seu interesse; desde os primeiros dias de vida, é receptiva à comunicação. (citação: Por razão entenda-se o estabelelecimento lógico do raciocínio, considerado como conhecimento inteligente) O conhecimento da criança, para ele, começa com as primeiras sensações, puramente afetivas, de prazer e dor. Aos poucos, vai percebendo as coisas, as sensações representativas dos objetos independentes de si mesma, adquirindo as formas necessárias para avançar no conhecimento até tomar consciência de si mesma. É esse o motivo pelo qual, até chegar à idade da razão, a criança destrói e quebra tudo o que consegue atingir e quer modificar tudo o que vê.

Quando a criança já percebe os objetos que estão a sua volta, mas não as relações que os ligam, precisa ser levada a experimentar novos sentimentos, adquirir experiência para sentir a impressão complexa que resulta, simultaneamente, de todas essas sensações. Pouco a pouco, as sensações representativas que lhe mostram os objetos vão-se formando, independentemente de si mesmas, e o conhecimento se constitui. As

sensações irão se converter em idéias e, portanto, as primeiras devem ser ricas e abundantes. O importante é o educador fornecer meios para a criança educar-se de maneira natural, expressar tudo o que sente.

Com a recomendação de deixar a criança formar os conhecimentos, primeiro no plano das sensações e do instinto, Rousseau mostra que a vida intelectual é sensitiva: o que ajuda na construção do conhecimento é o contato imediato com as coisas e não explicações que nem sempre são entendidas. No início da infância, as sensações experimentadas são os primeiros elementos do conhecimento, enquanto os primeiros gritos e movi•iraim são puramente mecânicos. A criança possui ten-

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são momentânea somente para aquilo que, em deteminada situação, afeta seus sentidos embora não deixe de estar atenta a tudo quanto a rodeia, o que a faz aprender.

O bom hábito do corpo

Assim que a criança começa a distinguir os objetos e a interessar-se por eles, deve-se colocar a sua disposição os mais variados possíveis, com o objetivo de estimular suas operações. Nos primeiros anos de vida, a criança tem necessidade de muito movimento para exercitar os membros. Pelo exercício, pouco a pouco adquire força e aprende a fazer uso dela. Mas o exercício só é bom se leva a adquirir a agudeza do sentido e o bom hábito do corpo.

Rousseau mostra que, apesar de inerente à atividade humana, o conhecimento não se forma independentemente do corpo. Para pensar utilizamos nossos sentidos e órgãos, os quais precisam estar em perfeitas condições. O conhecimento do próprio corpo e de seus movimentos é necessário para a criança vir a saber distinguir o eu do mundo que a rodeia. Os aspectos físico e motor têm influência sobre o comportamento geral da criança e estão intimamente ligados à atividade mental e às aquisições nos primeiros anos de vida. A maturação orgânica acontece mais depressa quando enriquecida com as experiências resultantes da interação da criança com o meio ambiente ou a natureza.

É pelo movimento que a criança adquire a idéia de espaço: quando estende, indiferentemente, a mão para apanhar o objeto que a toca ou que está distante dela, quando forma a imagem do objeto no cérebro e, depois, nos olhos, começa a imaginar o espaço para atingi-lo. Da mesma forma, as noções de lugar e distância desenvolvem-se graças ao movimento, quando se põe a criança em contato com a natureza, levando-a de um lugar para outro para que aprenda a calcular distâncias.

Tal contexto valoriza trabalho e ação, fontes de conhecimento presentes na natureza da criança. A ação consiste em aprender as coisas, em contato com elas. Embora criticasse a educação precoce das crianças, Rousseau nunca o fez em relação aos exercícios físicos, tão importantes para a coordenação dos movimentos posteriores e o desenvolvimento de habilidades que ajudarão a criança a desenhar e a escrever.

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Crianças devem ser crianças

A criança por desconhecer o mundo intelectual, dende a pensar apenas naquilo que está diante dos olhos e compreender o que pode medir no seu espaço. O educador precisa considerar o que já foi conquistado, apoiar-se na obeservação da realidade de cada criança para levá-la a refletir e julgar o que vê.

Esses dois aspectos, fruto do questionamento das das práticas de ensino tradicionais, levaram Rousseau a elaborar quatro mácimas:ROUSEAU, 1990ª p 53

1. “Longe de terem forças, supérfluas, as crianças nem sempre têm forças suficiente para tudo quanto lhes pede a natureza. Por conseguinte, devemos deixar-lhes a utilização de todas aquelas que elas lhes dá e de que não seriam capazes de abusar;

2. É preciso auxiliá-las e suprir o que lhes falta, em inteligência, em força, em tudo quanto for da necessidade física;

3. É preciso nos auxilios que lhes prestamos, limitar-nos unicamente ao realmente útil, sem nada conceder à fantasia nem ao desejo sem razão, porque a fantasia não as atormentarás se não lhes dermos origem, dado que não é da natureza;

4. É preciso estudar-lhes atentamente a linguagem e os sinais, a fim de que – numa idade em que não sabem dissimular – se possa distinguir, nos seus desejos, aqueles que vêm diretamente da natureza e os que vêm da opinião.”.

Tais máximas mostram a importância teórica e prática e a atualidade de um autor tão criticado e, ao mesmo tempo, pouco lido pelos educadores. Recuperá-las significa reforçar a necessidade de o educador conhecer a a criança (educando) para saber como e quando intervir na sua educação. Rousseau propôe a liverdade bem-regrada; atender às necessidades das crianças, porque naturais; priorizar o conteúdo a ser ensinado; trabalhar todas as linguagens, valorizando a leitura e a escrita como práticas sociais e, principalmente, repensar a questão do erro e da avaliação em geral; inserir no fazer pedagógico a vida da criança, uma vez que todo projeto de educação se define na prática entre professor e alunos, embora situado na prática social mais ampla.

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Tratar a criança de acordo com sua idade requer estratégias diversificadas de ensino, saber como agir em cada situação, evitar estragar a criança pela educação, prometendo coisas que não se podem cumprir, requer um conhecimento profundo da criança, bem como acreditar na sua capacidade.

O mérito da psicologia rousseauniana é considerar a criança um ser pensante, distinto do adulto; o de sua pedagogia, considerar os interesses e a capacidade de aprendizagem da criança. Rousseau quer que as crianças

sejam crianças antes de serem homens. Para atingir uma personalidade integrada — aspectos emocionais e intelectuais —, é necessário considerar a infância como realmente ela é. A natureza, segundo Rousseau, fez as crianças para serem amadas e ajudadas.

Ficamos muitas vezes revoltados quando vemos uma criança imperiosa, rebelde, que quer comandar tudo quanto a rodeia, ou chocados diante de uma criança receosa, medrosa e totalmente obediente. Esquecemos que o ajustamento emocional manifesta-se por alegria, tristeza, satisfação, coragem, segurança, raiva e carinho, atitudes e comportamentos que expressam a alegria de viver e conviver, de agredir ou chorar, de sentir-se segura. O trabalho em pequenos grupos é um dos melhores procedimentos que o professor pode utilizar para o desenvolvimento socioemocional do educando. Todas as experiências vivenciadas na escola concorrem para reforçar, positiva ou negativamente, o equilíbrio, o ajustamento social e emocional da criança.

Rousseau recomenda dar ensinamento bastante, não demasiado; e no momento propício, isto é, no momento em que ela necessita. Assim, a quantidade de conhecimentos está relacionada com a qualidade, pois o que se ganha em aparência se perde em profundidade.

O educador que considera importante o quantitativo é um avarento que perde tempo, por não querer perder nada. É preciso sacrificar um tempo para, conhecendo melhor a criança, recuperá-lo com juros em idade mais avançada. É importante que o educando determine o que quer aprender e que o educador desperte sua vontade e forneça os meios para satisfazê-lo, pois a inteligência humana tem os seus limites, o homem não pode saber tudo nem saber completamente o pouco que os outros homens sabem.

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Sem a pretensão de que a criança saiba muita coisa, o educador deve antes levar-lhe conteúdos que tenham utilidade prática, para que ela entenda o que o conhecimento representa e possa utilizá-lo, quando dele necessitar. Para Rousseau, é mais importante dar à criança apenas o necessário, prestar atenção ao verdadeiro sentido daquilo que ela quer dizer, limitando-se, tanto quanto possível, ao seu vocabulário. Segundo ele, a linguagem é manipuladora, ao conferir valor muito especial às palavras e pressupor que, para instruir uma criança, seja necessário encher-lhe a cabeça de palavras, instaurando um primado da linguagem do adulto (oral e escrita) sobre a infantil.

Falar, ler, escrever, desenhar

A criança fala conforme as regras do seu próprio ”dialeto”. É importante permitir que, de início, ela use esse ”dialeto”, porque só falando ela aprenderá a falar. Rousseau não desvincula os processos de falar, escrever e ler. Propõe um trabalho intenso de linguagem oral e a exposição da criança a modelos corretos de fala, numa prática sem medo ou opressão, que lhe permita estruturar seu mundo interior. O educador não deve corrigir todos os erros gramaticais que a criança comete ao falar. É importante deixá-la falar bastante e falar sempre corretamente diante dela.(citação: Por dialeto entende – se a variedade linguistica falada pelas pessoas com as quais a criança interage).

É importante relacionar as palavras dirigidas à criança a objetos sensíveis aos quais possa ter acesso e não alimentá-la com palavras inúteis que ela não compreende. Quando alguém se acostuma a utilizar palavras que não compreende, facilmente será levado a dizer o que interessa ao outro.

Rousseau condena o ensino represser da época, que impedia a criança de falar ou a levava a encolher-se, achando que não sabia falar. Aconselha a distinguir entre a ”boa” e a ”má” linguagem sem impedir a criança de falar, uma vez que a linguagem se desenvolve, cresce, quando é praticada em situações diversificadas.

Não tenha pressa de ensinar a ler e a escrever. É preciso ensinar a criança a falar uniformemente, claro, articulando bem as palavras, sem alterações ou afetação. Dota-

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da de capacidade inata para falar e em contato com modelos corretos de fala, a criança usará com propriedade todas as expressões da língua. O contato com o modelo correto, segundo Rousseau, é a oportunidade para a criança atuar sobre esse objeto (língua oral), formular hipóteses sobre suas formas, tentar, buscar novos caminhos. Como parte da aprendizagem natural, propõe a liberação das capacidades do aprendiz, expondo-o a modelos de linguagens de vários níveis e dialetos, condenando o conteúdo veiculado pelos livros da época distante do interesse imediato das crianças. Às vezes, Rousseau chega a afirmar que os livros são instrumentos de tortura, açoites da infância, além de aborrecidos.

Hoje, as crianças das classes populares chegam à escola com uma bagagem de conhecimentos bem diferente da de crianças das classes média e alta, porém no tocante à leitura e à escrita os potenciais cognitivos se eqüivalem. A diferença está principalmente na ausência quase completa, por parte do primeiro grupo, de experiências com materiais e atos de leitura e escrita, o que dificulta avançar da mesma forma e ritmo que com as crianças das classes favorecidas, que aprendem independentemente do método. O desejo e o interesse levam o aprendiz a relacionar-se convenientemente com o objeto do conhecimento. Por isso é necessário criar condições favoráveis, nas quais a criança perceba, por si, a importância do ato de ler. Qualquer método será eficaz, desde que tenha hipóteses claras sobre a natureza do objeto a ser aprendido e sobre sua aprendizagem.

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Emílio recebe do pai, da mãe, dos familiares e amigos bilhetes com convites para almoços, passeios ou festas. Embora os escritos contenham poucas palavras, é preciso que alguém os leia e nem sempre isso é possível; por vezes, quando ocorre é tarde, a oportunidade já passou. Embora Emílio faça esforços e até consiga decifrar parte de alguns deles, sua leitura não é significativa e ele não entende o conteúdo.

Rousseau coloca Emílio participando de eventos de leitura e escrita como espectador atento. Segundo ele, obtemos com certeza e muito rapidamente o que não temos pressa de obter mas que nos é de utilidade social.

Propõe que a criança é capaz de descobrir caminhos para o uso da comunicação, em diferentes contextos socioculturais, o que, sem dúvida, irá favorecer o domínio pleno do código alfabético. A leitura já era vista por ele como verdadeira arte de comunicar. Porém, acreditava que o conteúdo dos livros didáticos e a forma como eram trabalhados representavam o flagelo da infância. Rousseau 1990a, p. 113

Em vez de ensinar mecanicamente a criança a ler e a escrever, sugere um trabalho de equilíbrio entre as várias linguagens, como a música. A leitura de uma partitura musical, com melodia simples, que a criança possa sentir e acompanhar sem dificuldade, contribui, para os exercícios de composição de frases, com cadência e regularidade.

Rousseau hesita na escolha de um método para o ensino da leitura e da escrita, ou entre a análise e a síntese, mostrando a importância que dá à questão da unidade lingüística, como a palavra (todo) ou a sílaba (parte). Qualquer método que se baseie na memorização não conduz à aprendizagem e está condenado ao fracasso.

Numa época em que a leitura era considerada algo externo ao indivíduo, Rousseau propõe o trabalho como o meio de levar a criança a obter um conhecimento prático e sugere procedimentos metodológicos, como o uso de materiais pedagógicos, trabalhos manuais, a experiência lúdica, como os jogos e brincadeiras, etc. Insiste na importância destes, antes mesmo de Piaget, pois não aceitava que a criança fosse obrigada a adaptar-se ao social dos mais velhos, mundo que não compreA imobilidade proposta pela educação tradicional fatigava as crianças, que não praticavam atividades

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lúdicas. Propõe a utilização de jogos de destreza restritos, na época, aos adultos: o arco, o bilhar, o balão, o jogo de pela, os instrumentos musicais. Tais jogos orientam e disciplinam, satisfazendo às necessidades afetivas, intelectuais e sociais, motivam e ajudam a criança a assimilar e transformar a realidade segundo suas necessidades.

O trabalho manual também é visto, por ele, como atividade de preparação para a vida, pois o homem só aprende bem aquilo que pratica e experimenta. O educador deve utilizar-se das artes, começando pelo trabalho manual, uma atividade espontânea, que fornece satisfação à necessidade de movimento e de ação, contribuindo para a aquisição de idéias nítidas e precisas sobre medidas e proporções práticas.

Para Rousseau, a linguagem do desenho é uma forma de a criança começar a diferenciar significantes de significados. O professor deve caminhar devagar, levando o aluno a observar os fenômenos repetidas vezes, preparando cada observação com um objetivo claro, nunca substituindo o objeto pelo sinal, a não ser quando for impossível mostrá-lo. O sinal absorve a atenção da criança e a leva a esquecer o objeto representado.

Ao desenhar, qualquer pessoa irá borrar muitos papéis antes de obter alguma coisa compreensível, e o mesmo fará com as outras linguagens. O erro, nesse caso, é visto de forma construtiva, pois leva a criança a adquirir golpe de vista, mão mais segura e o conhecimento das relações entre os objetos.

O desenho, a leitura e a escrita, como processos de comunicação, também são vistos como abertura para a integração social do homem e sua transformação, uma vez que é sujeito do próprio desenvolvimento. Vivendo em uma época em que a leitura era distinta da aprendizagem da escrita e o falar não era permitido, Rousseau avança, ao propor uma metodologia que concebe a linguagem como ação intersubjetiva e prática. Emílio diariamente depara com textos significativos e variados, em marcante contraste com a escola que quer impor uma linguagem escolar, com uso prioritário de termos sofisticados, expressões artificiais e clichês!

Rousseau propõe a preservação e a valorização do discurso pessoal da criança, o que não significa impedir que se esforce para assimilar as normas convencionais, historicamente construídas, do sistema escrito. O importante

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é não apresentá-las antes que a criança tenha construídas as noções básicas que facilitarã essa aquisição formal; é preciso, como diz Rousseau saber esperar.

A avaliação

O processo de avaliação deve ser o mais natural possível, considerando aquilo que a criança já conquistou, avaliando o seu progresso individualmente. É importante que a criança não tenha rivais ou concorrentes e que o professor anote os progressos que ela fez, comparando-os om os que fez e fará; ou seja, levá-la a querer ultrapassar-se, “ser” rival de si mesma.

A auto-avalição deve ser prática permanente entre educador e educando. Em vários pontos de Emílio, destaca-se a importância da observação constante do educador em todas as atividades, com seu educando. A avaliação deve ser honesta e sem conotação de punição; deve constituir auxílio e estímulo ao sucesso, não humilhação para o aluno. O professor acompanhará o progresso do aluno para melhor direcionar seu trabalho. A auto-avalição porposta não se restringe à descrição do desempenho do aluno, mas às medidas tomadas em conjunto com o professor para melhorar o desempenho. Ela não visa a comparar alunos, identificar o melhor ou pior, mas acompanhar o nível de crescimento de cada um em relação aos critérios a atingir. Rousseau é o primeiro a intuir que não adianta o professor introduzir auterações em sua prática de avaliação – auto-avaliação, avaliação participativa, avaliação cooperativa – se não refletir sobre a realidade de seus alunos, se não tornar decisões com base em um aluno concreto, se não se esforçar por avaliar com mais qualidade.

O educador

Para Rousseau educar não é tarefa fácil – como mostra seus escritos, principalmente sua constante preocupação com a formação do mestre. O magistério é uma tarefa difício, e quem se propôe a educar crianças deve saber disso.

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A precária formação do educador, ainda hoje, coloca-o como vítima do processo, ou seja, a base comum sem especialização (direção, supervisão, orientação escolar, professor de pré-escola, de ensino fundamental, médio e/ou superior, etc.) não possibilita identificação profissional. A relação entre teoria e prática (por meio dos estágios supervisionados) parece não favorecer esse desenvolvimento. Ao contrário de outros profissionais, o professor recém-formado começa o magistério isolado e assim continua, sem contato direto com seus colegas ou com superiores responsáveis por sua iniciação, sem feedback do próprio trabalho (embora já existam proposições de algumas Secretarias de Estado da Educação, como a de São Paulo, de horário comum de trabalho para professores da mesma escola, a hora de trabalho pedagógico coletivo, ou HTPC).

Para Rousseau, o novo educador assume o compromisso com o povo, explora as contradições que se manifestam no ato educativo, embora seja utópico ao imaginar que cabe à educação realizar a transformação estrutural da sociedade (tarefa pedagógica e politicamente impossível). No entanto, uma.prática transformadora não só é possível como necessária; uma prática que busque criar no educando e em suas relações com o mundo as possibilidades de superação de dificuldades concretas na vida; que o torne consciente da realidade, ao mesmo tempo que o convida à tomada de uma posição crítica frente ao mundo.

O professor deve alimentar os questionamentos que a criança faz, em vez de fugir à resposta, julgando-a incapaz de compreender. Se ela pergunta é porque quer saber o que ignora. Aebli defende não só a aprendizagem, mas também o ensino por perguntas, afirmando que este ajuda a direcionar melhor o olhar sobre o objeto: ”o que caracteriza as grandes descobertas e invenções é o fato de seus autores olharem uma parte da realidade sob um ponto de vista bem diferente e assim chegarem a novos conhecimentos”.AEBLI, 1970, p. 197.

Na linha de Rousseau, Aebli propõe conduzir o aluno a uma melhor percepção do objeto para levá-lo ao verdadeiro ato cognitivo. O professor, segundo Rousseau, deve perguntar pouco e escolher muito bem as perguntas, para que o aluno faça as suas, uma vez que terá muito o que perguntar. Ao professor compete pro-

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por a criança o que deve aprender, colocar as curiosidades a seu alcance, fazendo nascer o desejo de conhecê-las e dando-lhe os meios para isso; à criança cabe desejar, procurar e encontrar.

Segundo Aebli, ”professores muito impulsivos deverão dominar-se e saber esperar depois que fizeram uma pergunta. É uma tendência muito natural repetir, variar, complementar e explicar perguntas que não são respondidas imediatamente. Numa pergunta bem feita, tal pfocedimento é não só inútil, mas até confunde os alunos ao invés [sic] de ajudá-los. Por isso, partícularmente no caso de uma pergunta difícil, deve-se dar-lhes tempo para refletirem. Não faz mal que reine um minuto de silêncio na sala de aula”. AEBLI, 1970, p. 204.

A paciência e a espera precisam acontecer; o professor deverá evitar tomar posição logo na primeira resposta; deve tirar de cada resposta o que ela

tiver de bom e repeti-la em parte (mas não estereotipadamente).Aebli concorda novamente com Rousseau: ”A missão do professor é realmente a de tornar-se supérfluo, fazer com que o jovem alcance a independência e darlhe condições de dominar o mundo e sua vida com suas próprias forças [...] No campo intelectual, independência significa saber resolver problemas com as próprias forças e ser capaz de compreender e dominar os fenômenos do mundo com os próprios conceitos e operações mentais [...] A função da escola é transmitir ao aluno pontos de vista, atividades de percepção e métodos de trabalho com o auxílio dos quais ele possa agir sozinho. Para tanto precisa não só saber mas também saber fazer, precisa não só de idéias e conceitos reduzíveis, mas também de instrumentos mentais”. AEBLI, 1970, p. 294-306.

A disciplina

Rousseau recupera duas questões presentes no trabalho em sala de aula e, portanto, na relação professor/aluno, o valor do exemplo e a necessidade de uma disciplina bem-regrada que forneça parâmetros para solucionar as questões da obediência, recompensas e castigos. Para a primeira, aconselha aos mestres que sejam bons e virtuosos, pois tudo o que fizerem na pré-

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sença dos alunos ficará gravado nas suas memórias mesmo antes de penetrarem em seus corações.

Quanto à obediência, sempre que se busca obtê-la pela força, por ameaça ou, pior, pela bajulação e promessa, as crianças fingem estar convencidas pela razão, uma vez que a obediência lhes traz vantagens e a rebelião lhes é nociva. No entanto, ”escondidos procuram sempre fazer as próprias vontades, certos de que procedem bem, pois ignoram a própria obediência. O receio do castigo leva a obedecer, embora de forma dissimulada”.ROUSEAU,1990ª, p. 78.

A disciplina é necessária para a educação, pois educar é disciplinar. No entanto, Rousseau encarava a disciplina como adaptação a normas e regras. Para a formação equilibrada do indivíduo, há necessidade de disciplina, não só intelectual como também moral. Pessoas moralmente educadas desenvolvem o gosto pelo ensino e aprendem. Entretanto, não se deve confundir disciplina com a imobilidade proposta na época. Rousseau era adepto do bom exemplo e de considerar a criança pelo que ela é e não pelos defeitos que apresenta. O educador não deve falar em moral apenas quando repreende, mas também quando o educando pratica atos louváveis.

As recompensas têm grande inconveniente: podem desenvolver a vaidade, o orgulho e o egoísmo naqueles que recebem prêmios; podem despertar o rancor, o despeito e a malevolência naqueles que não os recebem. Muitas vezes, os prêmios podem alimentar, nas crianças ambiciosas, sonhos desproporcionais de grandeza, que as afastam de uma vida simples. Um castigo injusto ou excessivo é mais prejudicial que benéfico. O medo tem na vida humana importante ação inibidora. Não é o elogio ou prêmio que Rousseau condenava, mas a forma como era aplicado na maioria dos casos.

Quanto à mentira, vista como defeito, para Rousseau era uma atividade normal, que aparece ao despontar do psiquismo e aumenta até certo momento, para se reduzir a proporções mínimas na puberdade.

Antecipando-se aos psicólogos do século XIX, afirmava que a criança deforma a verdade por força da sua própria natureza, do jogo espontâneo de suas energias psíquicas exuberantes, ao desconfiar do adulto que a contraria. A criança só mente, dizia, quando se lhe impõe a lei da obediência, quando se a obriga a obedecer sem saber o porquê ou a importância da obediência.

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A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO DE VIDA

Pelo estilo sedutor de Rousseau, suas idéias agora parecem utopia: intranqüilizam, exigem que se conheçam suas concepções político-filosóficas. Sem nunca ter sido professor, avesso a qualquer disciplina científica, sem nunca ter analisado diretamente a psicologia infantil, ele poetizou magnificamente sobre a infância, oferecendo-nos reflexões que ainda hoje nos levam a repensar os métodos e processos de ensino-aprendizagem.

Para muitos, é contraditório e apenas repete verdades já apontadas por pedagogos. Para nós, seu mérito está em ter sabido reuní-las, mostrar sua aplicação prática, o que só foi possível graças a sua inteligência superior e talento estilístico. De Rabelais e Montaigne utiliza as idéias de educação segundo a natureza, da liberdade, da importância dos exercícios físicos e da formação do homem integral; de Comenius, a educação popular e educação pelo trabalho; e de Locke, a importância da experiência e da observação para o conhecimento da criança. Os conhecimentos da psicologia infantil, que tão bem soube delinearr, permitem-lhe notar as diferenças nas divisões das idades das crianças — que, embora bastante divulgadas na teoria, ainda estão bem distantes da prática. Hoje usamos na escola a palavra, o livro didático, o abstrato, a regra e a explicação, isto é, consideramos a criança um recipiente vazio que o professor deve encher com matérias e pontos. A educação proposta por Rousseau é um processo de vida, isto é, deve durar toda a vida e encontrar sua significação, em qualquer etapa, não num estado futuro mas no próprio processo.

”O que devemos pensar dessa educação bárbara que sacrifica o presente a um futuro incerto, que sobrecarrega a criança com cadeias de todas as espécies e começa por fazê-la infeliz visando a prepará-la muito tempo antes para uma pretensa felicidade que provavelmente nunca chegará a gozar?”. ROUSEAU, 1990ª, P. 65.

Para Rousseau, todo estudo deve ter começos experimentais e o raciocínio não deve chegar antes que tenhamos um amplo fundo de observações acumuladas, antes que se observe bem a criança, sua maneira de ser. Não se pode orientar para um caminho seguro sem

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que o equilíbrio entre as várias linguagens, o lúdico e o jogo sejam utilizados como recursos para levar ao conhecimento que melhor corresponde às necessidades da criança. Rousseau recomenda o método socrático, que

considera o melhor auxiliar da intuição. Nada de mapas e globos. Na geografia local, a observação direta. Nenhum livro, excetuando o romance de Daniel Defoe, Robinson Crusoé, porque o protagonista dispensou a sociedade, vivendo à custa de si mesmo. Nada de ensino dogmático, apenas a lição das coisas.

Quanto ao programa de ensino, deve basear-se na utilidade, esquecendo os conteúdos inúteis e decorativos. Enaltece os trabalhos manuais para ajudar o desenvolvimento físico e psíquico, enfatizando o desenvolvimento dos músculos e a necessidade de a criança se movimentar e adaptar ao meio. As mãos devem ser exercitadas, como também o cérebro; o corpo deve trabalhar em proveito do intelecto.

Emílio representa mais um processo que uma ruptura com o que até então se falava sobre educação; o mesmo processo pelo qual passara a História. Em vez de rompimentos construções diferentes e todas consideradas válidas. Muitos princípios ou máximas de Rousseau — não os desvios ou excessos, mas aquilo que na longa história do pensamento, da pesquisa e da ação revelouse praticável, útil e válido — ainda estão presentes no trabalho diário dos professores em sala de aula.

Segundo Emílio, a educação deve estar centrada mais na criança e menos no adulto, deve confiar na natureza humana e defender a sua liberdade; não há perversidade original no coração humano.

A Educação Nova tem suas origens nas intuições geniais desse mestre que, ao exaltar a infância, resgata a natureza e aponta a perversidade da sociedade. Rousseau pode ter sido contraditório, o que talvez aumente seu fascínio. A contradição leva ao avanço, e suas idéias propiciaram caminhos e possibilidades que originaram novas teorias para a modificação da prática de ensino.

Rousseau enraizou em nossa consciência o significado funcional da infância, as etapas do desenvolvimento intelectual e moral, do interesse e da verdadeira atividade, vendo o conhecimento como processo interior do indivíduo. Foi quem primeiro chamou a atenção

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para o fato de que a cabecinha da criança não é um recipiente vazio que o educador deve encher com os conhecimentos que domina, mas sim um mundo novo, um mundo de representações que o educador deve conhecer se pretende realizar algo.

A criança tem maneiras de ver, pensar e sentir próprias; portanto, toda aprendizagem precisa ser conquista ativa; o aluno deve reinventar a ciência em lugar de repetir fórmulas verbais. Emílio é divisor de duas épocas na história da pedagogia: o homem na ciência sem pensar no que ele é antes de ser homem, e o conhecimento psicológico, embora limitado, do pensamento infantil, auxiliado por inúmeras descobertas.

Ao opor-se à educação que queria formar o espírito antes da idade, dar ao menino os conhecimentos dos deveres do homem, Rousseau recoloca o processo de ensino, destacando a importância da interação entre professor/adulto e aluno. Não concordamos com sua concepção de uma educação puramente negativa, mas reconhecem quer avancar e aprimorar o seu trabalho.

Rousseau não se preocupa apenas com o indivíduo, mas com os vários aspectos da relação professor/aluno, questionando a dominação a que a criança está sujeita por parte do adulto, sem liberdade para auto-educar-se naturalmente.

Muitos, como nós, partiram de seus ensinamentos e avançaram, tentando colocá-los em prática. Decroly e Freinet, entre eles, serão alvo de nossa reflexão.

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Textos selecionados de Rousseau

Em Emílio (1990a para o volume l e 1990b para o volume 2), Rousseau nos alerta para a massificação a que o homem está sujeito na sociedade, onde cada vez mais se torna uma fração do social. A criança deve crescer segundo as leis da natureza, aprendendo a prever, julgar, raciocinar, ser suficiente para si mesma. A educação deve ter início desde o nascimento e primeiro contato com o mundo, com os homens e com as coisas, por meio da experiência organizada. Condena os métodos que se baseiam apenas na memorização, mostrando a importância de trabalhar conteúdos relacionados com a vivência da criança e propondo o trabalho como meio de levá-la a um conhecimento útil à vida.

SOCIEDADE

”Tudo está bem, ao sair das mãos do Autor das coisas; tudo degenera entre as mãos do homem: força uma terra a nutrir os produtos de outra, uma árvore a dar frutos de outra; mistura e confunde os climas, os elementos, as estações; mutila o cão, o cavalo, o seu próprio escravo; transtorna tudo, tudo desfigura, gosta da deformidade, dos monstros; não quer nada que seja como o fez a natureza, nem sequer o homem; precisa adestrá-lo para si, como um cavalo de manejo; precisa modelá-lo a sua maneira, como se fosse uma árvore do seu jardim” Rousseau 1990a, p. 15-9

”O verdadeiro conhecimento das coisas pode ser bom, mas o dos homens e dos seus juízos ainda vale mais; porque, na sociedade humana, o mais importante instrumento do homem é o homem, e o mais sábio é aquele que melhor se sabe servir desse instrumento” Rousseau 1990a. p.203

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CRIANÇA

“Cultiva rega a jovem plantinha, antes que ela morra; um dia, os seus frutos farão suas deliícias [...] formam-se as plantas pela cultura, e o homens pela educação. Se o homem nascesse grande e forte, a sua estatura e a sua força ser-lhe-iam inúteis enquanto não tivesse a servir-se delas; ser-lhe-iam prejudiciais,impedindo os outros de pensar de assistir-lhe; e, abandonando a si mesmo, morreria de miséria antes de ter conhecido as suas necessidades. Há quem lamente o estado da infância; não vêem que a raça humana teria

desaparecido, se o homem não começasse por ser criança. Nascemos fracos, precisamos de forças; nascemos desprovidos de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de razão. Tudo que não temos quando nascemos e de que precisamos quando somos adultos nos é dado pela educação”. Rousseau, 1990a, p. 16

“A natureza quer que as crianças sejam antes de serem homens. Se queremos perturbar essa ordem, produzimos frutos precoces, sem maturidade nem sabor o que não tardarão a apodrecer; teremos jovens doutores e velhas crianças. A infância tem maneiras de ver, de pensar, de sentir que lhes são próprias; nada há de mais insensato que querer substituí-las pelas nossas [...]”. Rousseau, 1990a, p. 80

“O intervalo mais perigoso da vida humana é o que decorre desde o nascimento até a idade dos 12 anos. É durante essa época que germinam os erros e os vícios, sem que ainda se disponha de nenhum sistema chega, as raízes já são tão profundas que é tarde demais para arrancá-las. [...] Se pudéssei nada fazer e nada deixar fazer; se pudésseis conduzir o vosso pupilo, são e robusto, até a idade dos doze anos, sem que ele soubesse distinguir a sua mão direita da sua mão esquerda, os olhos do seu entendimento abrir-si-am para a razão, desde as vossas primeiras lições; sem preconceitos, sem hábitos, nada teria, em si, que pudesse contrariar o efeito dos vossos cuidados. Nas vossas mãos, em breve se tornaria o mais sábios dos homens; e, começando por não fazer nada, teríeis conseguido um prodígio de educação”. Rousseau 1990a,p. 84.

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”Será preciso e será possível que uma criança aprenda tudo o quanto é útil para a sua idade, e vereis que todo o seu tempo ficará mais que ocupado.” Rousseau 1990a, p. 192.

EDUCAÇÃO

”A obra-prima de uma boa educação é fazer um homem razoável; e há quem pretenda educar uma criança pela razão! É começar pelo fim, é querer utilizar a obra como instrumento. Se as crianças tivessem razão, não precisariam ser educadas; mas, falando-se-lhes, desde a sua mais tenra idade, numa linguagem que elas não compreendem, habituamo-las a contentarem-se com palavras vãs, a controlar tudo quanto se lhes diz [...] A cada instrução precoce que se pretende meter-lhes na cabeça, planta-se-lhes um vício no fundo do coração.” Rousseau 1990a, p. 78-82

”A instrução das crianças é um ofício em que é necessário saber perder tempo, a fim de ganhá-lo.” Rousseau, 1990a, p. 144-5.

”Adaptai a educação do homem para o homem, e não para aquilo que não é ele.” Rousseau, 1990a, p. 212

MÉTODOS E ESTRATÉGIAS DE ENSINO

”O adulto se engana quando pretende que a criança preste atenção a conteúdos distantes de sua realidade, através de discursos que não compreende e problemas que não lhe interessam. As lições que os estudantes

aprendem entre si, nos pátios dos colégios, lhes são cem vezes mais úteis do que todas as que se ensinam na classe.” Rousseau, 1990a, p, 149.

”Em vez de lhes ensinarmos o nosso método, faríamos bem se aprendêssemos o delas [das crianças].” Rousseau, 1990a, p. 149-50

”Fazei que o vosso pupilo esteja atento aos fenômenos da natureza e, em breve, o tomareis curioso; mas, para alimentar a sua curiosidade, nunca vos apresseis a satisfazê-la. Ponde as perguntas ao seu alcance e deixai que ele encontre respostas para elas. Que ele não saiba as coisas porque vós lhas dissestes mas porque ele próprio as compreendeu; que ele não aprenda a ciência: que a invente.” Rousseau, 1990a, p. 178.

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Sugere, em uma bela tarde, um passeio por ”[...] um lugar agradável, onde o horizonte bem desanuviado permite assistir ao pôr-do-sol [...] No dia seguinte, para se tomar um pouco de ar fresco, volta-se ao mesmo lugar, antes de o sol nascer. [...] É no coração do homem que se encontra a vida do espetáculo da natureza; para vê-la é preciso senti-la. A criança apercebe-se dos objetos mas não se pode aperceber das relações que os ligam entre si, não pode compreender a doce harmonia do seu concerto. É necessária uma experiência que ela ainda não adquiriu, é preciso sentimentos que ela ainda não experimentou, para poder sentir a impressão complexa que resulta simultaneamente de todas essas sensações. [...] Se se enganar, não lhe digais nada, não corrijais os seus enganos, esperai, sem dizer nada, até que ela se encontre em estado de se aperceber deles e de corrigi-los; ou, quando muito, num momento favorável, fazei alguma operação que a leve a dar por eles. Se ela nunca se enganasse, não aprenderia tão bem [...]” Rousseau, 1990a, p. 179, 182 e 193.

LEITURA E ESCRITA

A leitura é o flagelo da infância e quase a única ocupação que se lhe sabe dar. Na época, o ensino era fundamentalmente individualizado, ministrado pelo preceptor, na casa das próprias crianças.

”[...] é preciso que ele [Emílio] saiba ler quando a leitura lhe for de alguma utilidade; até lá, só pode servir para aborrecê-lo [...] lera sem saber o que lê e, neste caso, se converte num meio a mais de aprender palavras, num obstáculo para a verdadeira educação [...] Uma criança só encontrará motivos para ler, só se interessará e gostará de ler se lhe pusermos nas mãos leituras que incitam o prazer de ler e a sua utilidade. [...] se assim não fosse, por que motivo haveriam de querer aprender a ler? A arte de falar aos ausentes e de compreendê-los, a arte de lhes comunicar, a distância, sem intermediário, os nossos sentimentos, as nossas vontades, os nossos desejos, é uma arte cuja utilidade se pode tornar sensível em todas as idades. Por que prodígio essa arte tão útil e agradável se teria tomado um tormento para a infância? [...] Uma crian-

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ça não se sente intensamente interessada em aperfeiçoar o instrumento de que se serve para atormentar; mas [deveis] fazer que esse instrumento sirva os seus prazeres, e ela rapidamente se dedicará a ele, mesmo sem o vosso esforço.” Rousseau, 1990a, p. 113-5.

Todos se dão a muito trabalho para procurar os melhores métodos de ensinar a ler [...] transforma-se o quarto de uma criança numa oficina gráfica. Locke quer que ela aprenda a ler com dados [...] Um meio mais seguro que tudo isso, e que sempre é esquecido, consiste no desejo de aprender. Dai esse desejo à criança e deixai [...] os vossos dados, porque, se ela quiser aprender, todos os métodos serão bons. [...] Emílio recebe de seu pai, de sua mãe, dos seus familiares, dos seus amigos bilhetes de convites para um almoço, para um passeio, para uma festa aquática, para assistir a alguma festividade pública. Esses bilhetes contêm poucas palavras, são claros, nítidos, bem escritos. É preciso encontrar alguém que esteja disposto a lê-los; esse alguém, ou nem sempre se encontra quando é necessário, ou retribui à criança o pouco de complacência que esta teve para com ele, na véspera. Desse modo, a oportunidade, o momento passa. Finalmente, alguém lhe lê o bilhete, mas já é demasiado tarde. Ai! Se ele soubesse ler! Recebe outros: são tão breves! E tratam de um assunto que interessa tanto! Querer-se-ia experimentar decifrá-los; ora se encontra auxílio, ora se recebem recusas.”

Às vezes, Rousseau exagera quando afirma que os livros são ”instrumentos de tortura, açoites da infância”, além de aborrecidos: ”Odeio os livros; apenas ensinam a falar daquilo que se não conhece”. Rousseau, 1990a, p. 200.

E cita, como exemplo, as fábulas, cujo conteúdo moral apresentava-se encoberto, distante da idade infantil. Recomenda, no entanto, a leitura de Robinson Crusoe: ”Já que temos uma absoluta necessidade de livros, existe um que, na minha opinião, é o mais precioso tratado de educação natural. Será este o primeiro que lera o meu Emílio; durante muito tempo será o único livro a compor a sua biblioteca, onde nunca deixará de ocupar um lugar de honra. Como se chama esse maravilhoso livro? Será Ariosto! Será. Plínio? Será Buffon? Não; é Robinson Crusoé”. Rousseau, 1990a, p. 190-200.

Rousseau considera duas máximas inseparáveis: sempre o suficiente e nunca em excesso. Muitas vezes, o

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aluno ouve o que o professor fala, sem entender — e se cala. Ao corrigir todos os erros que a criança comete ao se expressar, estamos concorrendo para que ela se cale. Sobre as duas máximas, explica:

”Desde que a primeira seja bem estabelecida, a outra segue-se-lhe necessariamente. [...] Todos os pequeninos defeitos de linguagem que tanto se receia que as crianças contraíam não têm importância nenhuma; previnem-se ou corrigem-se com a maior das facilidades; mas àquele que se lhes faz contrair ao tornar o seu modo de falar abafado, confuso, tímido, criticando incessantemente a sua inflexão, analisando todas as suas palavras, nunca se corrige. [...] A criança que quer falar só deve ouvir palavras que pode compreender, dizer as que consegue articular. [...] Desde que nascem, as crianças ouvem falar; falase-lhes, não só antes de elas poderem compreender o que se lhes diz, mas antes que elas possam imitar as vozes que ouvem [...] A

infeliz facilidade que temos para empregar palavras que não compreendemos começa mais cedo do que se pensa. O aluno escuta, na aula, o palavreado do professor, da mesma maneira que, no berço, escutava a tagarelice da ama. [...] É uma pretensão insuportável e um cuidado dos mais supérfluos dedicar-se a corrigir, nas crianças, todos esses pequeninos erros contra o uso [gramatical], que, com o tempo elas acabam sempre por corrigir por si próprias. Falai sempre corretamente diante delas [...] e ficai com a certeza de que, insensivelmente, a linguagem delas se moldará pela vossa, sem que preciseis de lhes fazer observações.” Rousseau 1990a, p. 56-60.

”É preciso prestar menos atenção às palavras que ela [criança] pronuncia que aos motivos que a levam a falar. Este aviso, até agora menos necessário, tornase da maior importância logo que a criança começa a raciocinar.” Rousseau 1990a, p. 183.

DESENHO

Rousseau extrapola o universo da comunicação oral e adentra o universo semântico da linguagem gráfica, e corporal. Dentro dessa perspectiva, o desenho é visto como uma imitação da grafia, reprodução

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material de um modelo, e implica uma função semiótica. Seu exercício, desde que natural, é para Rousseau uma das possibilidades para a criança vir a diferenciar significantes de significados:

”Grandes imitadoras, todas as crianças tentam desenhar: desejaria que o meu pupilo cultivasse essa arte, não precisamente pela arte em si, mas para que a sua vista se torne justa e a sua mão flexível [...] que adquira a agudeza do sentido e o bom hábito do corpo que se consegue através deste exercício. [...] Quero que tenha, sob os olhos, o próprio original e não o papel que o representa; que esboce uma casa vendo uma casa, que esboce uma árvore vendo uma árvore, que esboce um homem vendo um homem, a fim de que se acostume a bem observar os corpos e as suas aparências, e não a considerar como verdadeiras imitações aquelas que são falsas e convencionais.” Rousseau 1990a, p. 147.

E exemplificava como isso poderia ser feito:”Pegarei no lápis, como ele; começarei por utilizá-lo tão

desajeitadamente como ele [...] manterme-ei sempre a par dele, ou ultrapassá-lo-ei tão pouco que sempre lhe será fácil alcançar-me [...] Disporemos de cores, de pincéis; trataremos de imitar os coloridos dos objetos e todo o seu aspecto [...] não deixaremos de espiar a natureza [...]” Rousseau 1990a, p. 148.

Recomenda, pois, a valorização das produções infantis e como exemplo cita o que faria com o desenho de Emílio:

”Mando emoldurar os nossos desenhos; mando-os cobrir com belos vidros [...] Disponho-os por ordem, em volta do quarto, cada desenho repetido vinte, trinta vezes, e, em cada exemplar, mostrando o progresso do autor, desde o momento em que a casa não é mais que um quadrado quase informe até o momento em que a sua fachada, o seu perfil, as suas proporções, as suas sombras se encontram na mais exata verdade [...] Nos primeiros, nos mais grosseiros desses desenhos, ponho molduras muito brilhantes, muito

douradas, que os realçam; mas, quando a imitação se torna mais exata e o desenho começa a ser verdadeiramente bom, dou-lhe apenas uma moldura preta, muito simples; não precisa de outro ornamento a não ser ele próprio.” Rousseau 1990a, p. 149.

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liberdade, prêmios e castigos

A educação proposta para Emílio tem por objetivo a formação do homem livre, que passa pelo respeito e pela liberdade da criança.

“É essencial que o educador não confunda a liverdade de criança com a satisfação de todos os seus caprichos, [...] pois isso tranformará o jovem num escravo e não num homem livre: “não há que confundir com a licença com a liverdade, nem a criança a quem se faz ditoso cm aquela que amima”. Rousseau 199a, p. 7.

“Preparai antecipadamente o reino da sua liberdade e a utilização das suas forças, deixando ao seu corpo o hábito natural, pondo-a em estado de ser sempre dona de si mesma e de, em tudo, fazer a sua vontade, logo que tenha alguma”. Rousseau 1990a, p. 47.

“Toda a maldade nasce da fraqueza; a criança só é má porque é fraca; tornai-a forte, ela será boa; aquele que tudo pudesse, nunca faria mal nenhum”. Rousseau 1990a,p. 52.

“[...] o maior de todos os bons não é a autoridade, mas a liverdade. O homem verdadeiramente livre só quer o que pode e faz o que lhe apraz. É essa a minha máxima fundamental. [...] Mesmo no estado de natureza, as crianças só gozam de uma liberdade imperfeita, semelhante àquela de que desfrutam os homens no estado civil. [...] Há duas espécies de dependências: a das coisas, que é a da natureza: e a dos homens, que é a da sociedade. [...] Consedei-lhes, na medida do possível, tudo quanto lhes possa proporcionar um verdadeiro prazer; recusai-lhes sempre o que só podem por fantasia ou para fazerem ato de autoridade [...] É indispensável que, muito cedo, ela se habitue a não dar ordens, nem aos homens – pois que não é dona deles – nem às coisas, porque não as compreendem”. Rousseau 1990a, p. 71-7.

“Não há submissão mais perfeita que aquela que conserva o aspecto da liverdade [...] Geralmente a criança lê muito melhor no espírito do mestre que o mestre no coração da criança. [...] O capricho das crianças nunca é obra da natureza, mas de uma má disciplina: é porque obedeceram ou comandaram [...]” Rousseau 1990a, p. 117-9.

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RELAÇÃO PROFESSOR/ALUNOAo ensinar às crianças pequenas palavras ou coisas que ainda não

podem compreender ou não servem para nada, tirando inclusive sua própria naturalidade, o educador:

”[...] lhe ensina tudo, exceto a conhecer a si mesma, a tirar partido de si própria, a saber viver e a tornar-se feliz. [...] o preceptor de uma criança deve ser jovem, e mesmo tão jovem quanto o pode ser um homem sábio. Gostaria que ele próprio fosse uma criança, e que, se possível, se pudesse tornar no

companheiro do seu pupilo e conquistar a confiança deste, compartilhando as suas distrações. [...] Não deve dar preceitos: deve levar o seu pupilo a encontrá-los. [...] interessa-lhes fazerem-se amar um pelo outro; e, por isso mesmo, tornam-se amigos [...] e todo o mérito que atribui ao seu pupilo é um capital que investe em proveito de seus velhos dias.” Rousseau 1990a, p. 29-35.

”Sempre acreditei que antes de instruir aos outros era preciso começar por saber o suficiente para si mesmo [...] Ensinará impedir que alguma coisa seja feita.” Rousseau 1990a, p. 42-4.

”Lembrai-vos de que aquele que se atreve a empreender a formação de um homem precisa começar por se ter feito homem a si mesmo; é preciso que encontre, em si mesmo, o exemplo que tenciona propor. Enquanto a criança ainda está sem conhecimento, tem-se tempo para preparar tudo quanto se aproxima dela, para que os seus primeiros olhares só sejam feridos por objetos que importa que ela veja. Tornai-vos respeitáveis para toda a gente, começai por fazer-vos amar, a fim de que todos procurem agradarvos. Não podereis dominar a criança se não puderdes dominar tudo quanto a rodeia; e essa autoridade nunca será suficiente, se não for baseada na estima da virtude [...] Nada de belos discursos, absolutamente nada, nenhuma única palavra! Deixai vir a vós a criança: surpreendida com o espetáculo, não deixará de vos interrogar.” Rousseau 1990a, p. 85-7.

”Nunca sabemos nos colocar no lugar das crianças; não penetramos nas idéias delas e emprestamo-Ihes as nossas [...]” Rousseau 1990a, p. 181-2.

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”Em vez de me apressar a exigir que o meu pupilo pratique atos de caridade, prefiro praticá-los na sua presença, e, mesmo, retirar-lhe os meios de, nisso, me imitar, como se fosse uma honra imprópria para a sua idade; porque importa que ele não se acostume a considerar os deveres dos homens unicamente como deveres de crianças. [...] numa idade em que o coração ainda não sente nada, devemos aceitar que as crianças imitem os adultos cujo hábito lhes queremos incutir, esperando que possam vir a praticá-los por discernimento e por amor ao bem. [...] Entre nós, o fundamento da imitação deriva do desejo de continuamente nos transportarmos para além de nós mesmos.” Rousseau 1990a, p. 97-8.

”[...] onde está o mestre que esteja disposto a mos- trar que não sabe o que responder e a confessar os seus erros ao seu pupilo? [...] pensai bem que raramente compete a vós propor-lhe o que ele deve aprender; é a ele que compete desejá-lo, procurá-lo, encontrálo; a vós compete colocar a curiosidade ao seu alcance, fazer nascer habilmente esse desejo e fornecer-lhe os meios para o satisfazer.” Rousseau 1990a, p. 193.

”É preciso falar, tanto quanto possível, através de ações, e apenas dizer o que é impossível fazer [...] A cada explicação que se quer dar à criança, uma pequena demonstração que a preceda é muito útil para conseguir que ela preste atenção. [...] nunca será demais exortar o governante a dar as suas explicações consoante às capacidades de compreensão do pupilo; porque, repíto-o, o mal não está no que ele não compreende mas no que ele crê compreender.” Rousseau 1990a, p. 197.

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2 Recuperando Decroly...

Acreditamos poder respeitar a lógica até o fim e fazer da leitura e da escrita instrumentos, como é o seu papel na vida real. OVIDE DECROLY, 1935,p. 16.

No século XIX, surgem as primeiras instituições escolares de cunho democrático apoiadas na ciência moderna, fruto do progresso científico em desenvolvimento, e nas idéias de filósofos e pensadores, entre os quais Jean-Jacques Rousseau.

Nasce, com Rousseau, um movimento que atinge todo o mundo, passando para a história com o nome de Escola Nova. Estavam delineados os novos rumos que tomaria a pedagogia! Entre os seus representantes, escolhemos os dois nomes mais ligados ao nosso passado de educadora: Decroly, doutor em Medicina, e Freinet, professor primário. Embora por meios diferentes, esses dois educadores aprofundaram estudos sobre a psicologia infantil, na linha do autor de Emílio, principalmente sobre a criança com necessidades especiais.

Ovide Decroly (1871-1932) devotou-se ao estudo da educação, combatendo o adestramento paciente e contínuo ao qual era submetida a criança na escola. Propõe coordenar as diferentes atividades escolares, readaptar os estudos às crianças, fazer da escola um meio onde elas pudessem exercer uma atividade pessoal: a escola para a vida pela vida.

Conhecer todos os matizes da obra de quem sempre se negou a colocar em livro o próprio trabalho foi para nós um verdadeiro desafio. Sua bibliografia, extensa e constituída quase exclusivamente por trabalhos específicos sobre temas complexos, em grande parte foi escrita por seus discípulos ou em colaboração. Uma obra rara, de leitura difícil, mais ainda nos originais.

Percorrendo bibliotecas e sebos, solicitando a colaboração de amigos, principalmente os que trabalham no ramo editorial, conseguimos reunir vários textos, entre publicações e simples traduções da época. A maior parte do material era tão antiga e frágil que foi necessário xerocá-la. Entre esses textos, estão:•Os trabalhos de 1902 a 1906, sobre psicologia e pedagogia dos anormais: Assistance de I’ enfance anormale. Rapport au Congrés d’Anvers pour I’ assistance familiale dês alienes, 1902.

La psychologie des enfants anormaux. Année psychologique, 1903-1904. Classification des enfants anormaux. Bulletin de Ia Société de medicine mentale, 1905.

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•Os trabalhos de psicologia e pedagogia com crianças normais, a partir de 1906:

Quelques considerations sur la psychologie et la pedagogie de la lecture. Revue Scientifique, março, 1906.

Lse tests de Binet et Simon pour la mesure de I’intelligence. Archives de Psychologie, julho/agosto, 1906.

Contribution à la pedagogie de la lecture et de I’écriture. Archives de Psychologie, abril, 1907.

La mesure de I’intelligence cbez les enfants. Archives Internationales d’higiene scolaire, 1907.

La méthode de la lecture et ses bases. L’Éducateur moderne, janeiro; L’École nationale, abril, 1907.

La psycbologie du dessin, le developpement de l’aptitude graphique. Comunication à Ia Société belge de neurologie, 1912.

Examen mental dês enfants anormaux. Congrés de neurologie, 1913.Les classes homogènes et I’examen mental. Revue de Pédotechnie,

junho, 1914.La iniciacion a Ia actividad intelectual y motriz por los juegos educativos.

Tradução espanhola. Madri: F. Beltrán, 1919.Hacia Ia escuela renovada. Tradução espanhola. Madri: Espasa Calpe,

1922.•Os trabalhos escritos em parceria com seus discípulos e publicados em livro:

BOON, G. Aplicación del método Decroly a Ia ensenãnza primaria y Ia instrucción obligatoria. Tradução, prólogo e notas de R. Tomás e Samper: 8. ed. Madri: F. Beltrán, 1926.

DALHEM, L. El método Decroly. Tradução espanhola. Madri: Espasa Calpe, 1924.

DtSCHAMPS, M. La autoeducación en Ia escuela aplicada al programa del Dr. Decroly. Madri: Estúdio, 1932.

DESCOEUDRES, A. El desarrollo del nino de dos a siete anos. Tradução e notas Jacobo Orellana Garrido. 4. ed. Madri: F. Beltrán, s. d. (Estúdios de Psicologia Experimental).

GUILLÉN DE REZZANO, C. Los centros de interés en Ia escuela Madri: Publicaciones de Ia Revista de Pedagogia, 1929.

HAMAÍDE, A. El método Decroly. Prefácio do Dr. Claparède. Madri: F. Beltrán, 1923.

LLOPIS, R. La pedagogia Decroly. Madri: Espasa Calpe, s.d.MONTCHAMP, M. La iníciacíón a Ia actividad intelectual y motriz por los

juegos educativos: contribución a Ia pedagogia de los niños y de los irregulares. Tradução e notas Jacobo Orellana Garrido. 8. ed. Madri: F. Beltrán, 1919.

RUBIÉS. A. Aplicación del método Decroly a Ia enseñanza primaria. Madri: Publicaciones de la Revista de Pedagogia, 1929.

O esforço, porém, foi compensador. É inestimável poder ler, por exemplo, ”Quelques considerations sur Ia psychologie et la pedagogie de la lecture” ou ”La méthode de la lecture et ses bases”, publicados em 1906 e 1907, e acompanhar a prática e os estudos que o Dr. Decroly fazia, diariamente, da vida infantil; verificar como ele, humildemente, corrigia as próprias opiniões e as minúcias de seu método. Sua expectativa era de que, uma vez sua proposta pedagógica fosse compreendida e vivificada pelo professor, este não a deixaria cair na rotina.

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O interesse por suas idéias, especialmente as de ordem metodológica, ainda continua muito ”vivo”. Muito há para ser pesquisado sobre os centros de interesse e a Escola Nova, ainda não revisitados por aqueles que querem construir uma verdadeira teoria da educação. Seus discípulos Hamaide,

Dalhem, Deschamps, Degand, Boon... e, no Brasil, entre outros, Abner de Moura, desenvolveram o estudo dos centros de interesse. Embora tenha aprofundado seus conhecimentos teóricos, Decroly sempre evitou colocá-los em prática. Para ele,”todo trabalho do tipo manual corre o perigo de tornar-se ultrpassado, pois não se pode deter a investigação científica, uma vez que todos os dias nascem idéias que ampliam as anteriores ou retificam algum erro”. Apud HAMAIDE, 1923, p 22

DECROLY E OS EDUCADORES DE SUA ÉPOCA

A carreira pedagógica de Decroly começou em 1901, quando fundou o Instituto de Ensino Especial, para retardados e anormais, na capital belga, transferido depois para Uccles. Momento decisivo em sua carreira foi a criação, em 1907, de sua escola para crianças normais, a Escola da rua Ermitage, em Ixelles, Bruxelas, onde, levado por seu grande coração, dedicou-se principalmente à educação das crianças de baixa posição social (tal qual idealizara Rousseau), com o intuito de integrálas à sociedade. Tão rica vivência, como afirmam os que a observaram e registraram, não poderia ter sido mais bem representada, se tivesse sido gravada em livro. Isso, porém, dificulta o conhecimento de sua pedagogia.

Decroly, mais que um teórico, foi um técnico em educação Seus escritos foram influenciados por educadores de seu tempo, sobretudo Dewey, o pai da educação nova, Rousseau, e Pestalozzi e suas idéias de liberdade e espontaneidade, de remeter a educação à própria vida da criança, de integrar sociedade e natureza, de planejar situações que possibilitem a utilização das vivências, de cuidar do meio educativo, enfim, de aprender por si mesmas, naturalmente. Ao entrelaçar conteúdos, Decroly coloca o aluno no meio dos

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fenômenos que está estudando (o que Rousseau faz o tempo todo em Emílio); procura levar a criança a esforçar-se para compreender os fenômenos estudados, não sem antes fazer infinitas comparações, especulações e experiências que a levarão ao verdadeiro conhecimento. Desde que o interesse tenha sido despertado, a criança se esforçará no trabalho proposto.

Decroly trabalha com base na teoria herdada e assimilada. O novo, para ele, é a manutenção da rotina sobre a qual tão bem soube teorizar. Como a doutora Maria Montessori, possuía idéias comuns sobre o desenvolvimento da criança, de ordem essencialmente biológica, cujo ponto de partida era a Medicina. Ambos dedicaram-se aos estudos da psicologia e pedagogia de crianças anormais; ambos sofreram a mesma influência espiritual - o positivismo e o pragmatismo - e ambos propunham a atividade espontânea da criança como ponto de partida para a construção contínua da inteligência. Enquanto, porém, Montessori se dedicava aos materiais didáticos, Decroly criava um método específico, o método global, para o aprendizado da leitura, do cálculo, etc., sua doutrina sobre a importância do trabalho ativo e dos centros de interesse. Rompendo com as técnicas tradicionais, que substituiu por uma educação e um ensino baseados na liberdade, no interesse, nas necessidades da criança e no conhecimento do meio que a rodeava, soube integrar sociedade e natureza.

Seus centros de interesse(Centro de interesse: também conhecido como método Decroly, método de complexos ou, ainda, programa de idéias associadas, consiste numa organização diferente dos programas escolares, que cria um vínculo entre as disciplinas, levando-as a convergir para um mesmo centro). tinham o objetivo de ”conciliar a aquisição dos conhecimentos previstos pelos programas oficiais com a atividade espontânea dos alunos, através do desenvolvimento da disciplina com liberdade, que, obviamente implicarão no efetivo exercício da responsabilidade”. FAZENDA,1980,p.63.

O grande valor do método de Decroly é propor a globalidade e a integração entre as disciplinas, principalmente com crianças pequenas ou no início da escolarização (6-7 anos), que ainda não conseguem perceber os fatos isolados e seus detalhes, mas apenas a totalidade. E é justamente esse conceito que diferencia a sua pedagogia das do século anterior, de tendência atomística e analista. Ela se baseia no estudo da constituição psíquica de cada criança. A escola que propôs visava à educação geral, ao preparo da criança para a vida social, partindo do:

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• conhecimento da própria personalidade: consciência de si mesma, de suas necessidades, aspirações e ideal;

• conhecimento da natureza do ambiente, o qual deve defender e no qual vai agir, para alcançar seu ideal e expectativas e preparar-se para compreender as aspirações e os ideais da humanidade

Decroly acreditava ”ter criado um sistema de transicão entre a escola verbalista e [a] da atividade”. MOURA, 1931, p 14. Sua pedagogia considera que toda educação deve basear-se na atividade da criança e suas necessidades, voltada para objetivos práticos, úteis à vida. Ainda segundo Abner de Moura, Decroly ”imaginou um sistema de princípios, não de fórmulas”, deixando a cada professor a tarefa de inferir desses princípios as suas fórmulas pessoais, depois de conhecer bem a psicologia infantil.

Para Luzuriaga, ”o sistema Decroly exige atividade criadora e reflexiva por parte do mestre, para renovar os centros de interesse e manter constantemente a comunicação espiritual com os discípulos”. Apud MOURA, 193, P 6

A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE DECROLY

O método Decroly acentua a idéia de caráter global da vida anímica, à qual acomoda também seus centros de interesse e de idéias associadas. Rompendo com a rigidez do programa escolar, ele antecipa as noções de interdisciplinaridade ao mostrar que um conhecimento evoca outro, ao sugerir a necessidade de buscar a unidade do saber, canalizar a imaginação e a criatividade infantis para um aprendizado no qual venham a ocorrer o imprevisto, a ocasião, a atualidade, cada um dando uma parcela para a formação do conhecimento único, indivisível. Aponta uma nova atitude em educação, em que a ação e o trabalho ativo estão impregnados pela observação e análises que a criança faz do que observa e documenta. Não basta o professor mudar o método ou a técnica de ensino se mantiver a

mentalidade em relação à educação, afirma Claparède, no prefácio a El método Decroly. ”Não há necessidade de dizer que esta ex-

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posição deve constituir principalmente um magnífico exemplo de um método de vida, não de um modelo para copiar ponto por ponto, servilmente, ne vartetur. No espírito mais que na letra, temos que aprender”. CLAPARÈDE, in HAMAIDE,1923, prefácio

Decroly nunca se conformou com o adestramento paciente e contínuo da criança, numa escola onde imperava a obediência passiva e não havia preocupação com o desenvolvimento do espírito crítico. A reforma que propôs abrange a organização física da escola e da sala de aula, os programas escolares mas, principalmente, os procedimentos metodológicos, uma nova maneira de ensinar e de aprender dependente de um novo entendimento, uma nova postura do professor sobre o seu papel no processo.

Embora reconheçamos sua proposta como um tanto utópica, acreditar nela e procurar aproximar-se dela o mais possível é condição importante para o êxito do trabalho escolar. O próprio Decroly dizia que, mesmo sendo impossível mudar todas as escolas, buscar seu marco natural, como seria desejável, não se deve ficar inerte. O pouco que se fizer em prol da mudança da escola já constituirá um avanço. Seus vinte anos de trabalho e observação lhe permitiram afirmar que é necessário encontrar meios para tornar prazerosa a permanência das crianças nas escoías.

Decroly dá grande importância ao ambiente, dentro e fora da sala de aula. Propõe a quebra da rigidez do mobiliário escolar e a atividade livre da criança, que deverá manter permanente contato com a vida. A sala de aula, dizia, está em toda parte: na cozinha, no jardim, na loja, na oficina, no campo, nos passeios...

Propõe diversas medidas, visando a desenvolver as capacidades criadoras da criança ou, como diz Ferrière, ”colocar o espírito da criança em contato com a moral humana”.FERRIÉRE,,1929.P.94-5.

AS TENDÊNCIAS ELEMENTARES

Por sua formação em medicina, Decroly pesquisa a evolução ontogenética e as etapas da filogênese, na linha da escola de Stanley Hall e de Dewey. (citação: Ortogênese – processo de diferênciação e crescimento que se produz durante o desenvolvimento do individuo, desde a fecundação do ovo até a maturidade para reprodução. Filogênese – história da evolução das espécies animais e vegetais).Ele quer entender os fatores que agem sobre a criança, desde a

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sua origem, e que podem influir positiva ou negativamente no seu desenvolvimento. Dedica muitos anos à observação da vida instintiva da criança, a fim de descobrir as leis do inconsciente, que considerava de grande interesse para a prática educativa - acreditava que a vida espiritual superior é regulada, na sua maior parte, por tendências e impulsos instintivos.

Seus estudos trouxeram muitas informações novas para a época, principalmente sobre as tendências elementares da criança: a curiosidade, o medo, a agressão, etc. ”Em todos os seres, mesmo os mais sensíveis, há manifestações que permitem a conservação da vida e sua adaptação.”DECROLY & BOON, 1939. P. 13.

Aponta três fatores que modificam ou moderam as manifestações instintivas: o surgimento das habilidades motoras, as etapas do desenvolvimento intelectual e a interferência da família e da sociedade.

Analisando a sociedade humana, desde os bárbaros até a civilização mais refinada, do caçador selvagem ao nômade, do pastor ao lavrador primitivo, do industrial ao comerciante, Decroly busca nas reações e interesses das crianças vestígios dessas etapas de desenvolvimento intelectual, reprimidas pela vida familiar e social. Estabelece a distinção entre as reações espontâneas, inconscientes, e necessidades conscientes, isto é, a relação do eu com o não-eu, mostrando o raciocínio como ponto de partida para a reflexão.

Para Decroly, o interesse depende da evolução biopsicológica do indivíduo, ou seja, de como ele encontra em determinado objeto satisfação para as suas necessidades biológicas e psicológicas. Os atos instintivos (tendências primárias) e os atos adquiridos (hábitos que, muitas vezes, surgem por simples imitação) não provêm, necessariamente, da consciência, nem tomam o caráter de reflexão. Logo, as tendências que não estão voltadas apenas para as necessidades fisiológicas ocorrem mais tarde, aos 3 ou 4 anos, e são dependentes das funções mentais superiores, das experiências desenvolvidas, da educação, do meio ambiente e do nível de consciência que a criança tem de si mesma.

É em função das tendências que se organizam as informações e representações. Decroly situa na base do comportamento da criança instintos que se organizam

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em sistemas de atração (individuais, específicos ou sociais), de defesa (medo e cólera), de amor-próprio, de antecipação (imitação e jogo). Observando a realidade, a criança organiza os próprios conhecimentos, exprimindo-os em função de suas necessidades vitais: comer, proteger-se, defender-se e produzir.

Até a idade adulta o homem está em contínua evolução, movido pelo interesse. As tendências não se manifestam ao mesmo tempo; umas após as outras, vão determinando as atividades das crianças, sendo possível associá-las. Daqui a origem dos centros de interesse. O meio e outros fatores, como a capacidade de atenção, atitudes sensoriais e motrizes, exercem influência sobre a imitação.

Decroly insiste na importância de o educador conhecer bem as tendências, tirar partido delas e favorecer suas manifestações. Compara o jogo ao trabalho escolar, ( citação: Jogo: atividade instintiva, e agradável, que provoca reações espontâneas. Distingue-se do trabalho, cujo objeto é consciente, distante e que provoca reações não-agradáveis) na forma como era organizado na época. Afirmava que o trabalho escolar não correspondia à condição de jogo, aproximando-se mais de uma ocupação forçada, uma

atividade sem nenhum interesse para a criança, nem por si nem pelo objeto que perseguia.

As tendências podem combinar-se ou opor-se, provocando antagonismos, ou neutralizar-se, eliminandose umas às outras. Decroly dá como exemplo o antagonismo entre o amor-próprio e o instinto nutritivo: uma criança, ”mesmo tendo fome, não ousa às vezes comer diante dos outros um pedaço de pão porque se sente humilhada por não ter outra coisa que comer; ou, então, não quer comer sentada a uma mesa na qual se acham outras crianças porque estas estão mal vestidas ou porque as considera de uma classe inferior à sua”. DECROLY, 1929, p 57 .

É um conflito de sentimentos, isto é, de tendências evoluídas, complexas e submetidas ao controle da inteligência. A educação deveria oferecer à criança oportunidade para expandir os impulsos característicos de cada fase de seu desenvolvimento, com o seu ciclo de instintos e interesses.

É uma nova visão. O interesse do educando é valorizado. O processo de formação passa a associar-se àquilo que tem maior relação com o aluno, isto é, ao que lhe pertence, ao que existe no seu ambiente. A natureza primitiva do homem, baseada no instinto, segundo ele, sofre influências do meio, do qual o homem retira os

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critérios do seu conhecimento. São os instintos, diz Decroly, que se transformam em memória e conhecimento. O educador precisa conhecê-los para adaptar o programa e a organização escolar.

Os centros de interesse não visam à simples manifestação dos instintos. Decroly dá grande destaque ao papel da motivação, não só do instinto, mas da gerada a partir da vivência de grupo bastante intensa, nos moldes de uma cooperativa. Esta é uma das razões pela qual seu sistema necessita ser reinterpretado, vivificado pela atividade do professor: não basta a reforma da estrutura física ou da organização da escola, afirmava Decroly, é preciso analisar os erros do ensino, estudar a sua natureza para propor soluções.

PROGRAMAS DE ENSINO: BUSCA DA UNIDADE DO SABER

Analisando os programas de ensino vigentes na época, Decroly propõe algumas medidas para modificá-los.

Propostas de Decroly para reforma dos programas de ensino

Defeitos 1 Nenhuma ou muito pouca coesão entre as diversas atividades da criança;

Medidas preconizadas - Aplicação de um programa de idéias associadas, estudo da criança e do seu meio,

Defeitos 2 Materiais desvinculados dos interesses fundamentais da criança e sua evolução,

Medidas preconizadas - Emprego do método dos centros de interesse,Defeitos 3 Muitas lições com assuntos e objetos diferentes,

Defeitos 4 Divisão em disciplinas, sem levar em conta o processo de pensamento da criança;

Medidas preconizadas - Divisão das disciplinas de ensino, levando em conta as grandes funções psicológicas: observação, associação e expressão;

Defeitos 5 Disciplinas que subestimam a capacidade de assimilação e de memória da maioria das crianças,

Medidas preconizadas - Disciplinas apropriadas aos diferentes grupos;Defeitos 6 Predomínio de disciplinas ensinadas por métodos verbais;Medidas preconizadas - Preferência aos métodos intuitivos ativos e

construtivos;Defeitos 7 Exercícios que não dão oportunidade à atividade espontânea

da criançaMedidas preconizadas - Atividade pessoal favorecida pela prática de

trabalhos manuais e jogos educativosDECROLY & BOON, 1939. p 33

Decroly discutia com os professores as propostas de reformulação dos programas de ensino, destacando o que era necessário alterar e por quê. ”O principai defeito do programa primário é ter sido elabora-

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do por homens muito sábios em suas especialidades mas pouco preocupados com a psicologia infantil. Para eles a criança é o acessório [... ] é necessário dar a todas as crianças cultura geral e comum, desde a escola primária, sem se preocupar se ela convém à criança [...] Tudo o que proponho oferecer com os conhecimentos se encontra nos programas atuais, só que há uma diferença: meu objetivo é criar um vínculo comum entre as disciplinas, fazê-las convergir ou divergir de um mesmo centro; é da criança que tudo se irradia, e este é o fio de Ariadne que permite ao espírito do programa orientar-se no dédalo infinito das noções que os séculos acumularam. E, desse modo, tenho em conta que o elemento afetivo primordial é o interesse da criança [...] alavanca por excelência que conduz ao conhecimento.” DECROLY, 1939, p. 65-8.

Na linha de Rousseau e outros filósofos da época, Decroly sugere a reforma da prática educativa, sobretudo dos programas e métodos bastante fragmentados. Diferentemente de Rousseau, que propõe isolar o educando, ele considera a convivência com o grupo a forma natural de o educando interagir e cooperar. Sua proposta de trabalho individual e coletivo prevê atividades pessoais e de grupo, equilibradas de modo harmônico, como nos centros de interesse. A escola deve refletir a organização, as ocupações da sociedade, ser uma opção à mudança social, concentrando todo o empenho possível para levar o aluno a beneficiar-se das atividades de ensino, a fim de desenvolver-se afetiva, social e cognitivamente.

A criança é imediatista, só compreende o que é objetivo e concreto, e se interessa pelas coisas e pessoas que lhe estão próximas. Por isso, o ensino deve ser baseado nesse egocentrismo, nas necessidades e interesses das crianças e no conhecimento do meio que as rodeia.

O programa deve buscar na vida real o conteúdo a ser trabalhado, visando a quatro objetivos:DECROLY, 1939, p. 13-4.

1. Buscar a unidade do saber, a interdisciplinaridade, ou seja, a atitude de quem vê a ciência, o cálculo, a história na sua totalidade, sem divisões.

2. Atingir o maior número possível de educandos.3. Permitir a aquisição de um mínimo de conhecimentos, os

indispensáveis.4. Favorecer o desenvolvimento integral de todas as faculdades e a

adaptação ao meio natural e social no qual a criança passa sua existência.

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Decroly não explicita as faculdades, isto é, deixa a discussão em aberto, mostrando o quanto era sábio. São outras coisas além de ortografia, leitura ou regra de três que dão valor ao homem. Muitos que a escola considera os melhores nem sempre o são na vida.

Para Decroly, na vida há duas categorias de atividades: as pessoais, para o crescimento do sujeito, e as sociais, para o crescimento da cultura.

Decroly acreditava que, à medida que os professores fossem mudando sua prática, a escola também se transformaria. Isso exige dedicação, um professor preparado para estimular e acompanhar o trabalho pessoal do aluno, avaliar suas conquistas, ou seja, o processo. Toda educação autêntica reclama a participação efetiva do sujeito em seu próprio aperfeiçoamento; caso contrário, é domesticação e conformismo. O trabalho não será verdadeiramente pessoal e funcional se suas técnicas, ritmo e conteúdo não forem apropriados às características pessoais de quem trabalha.

Sua proposta metodológica considera a criança centro do processo e sujeito da própria aprendizagem. O educador precisa conhecer bem o educando, observar seus processos, para perceber os fatos que o rodeiam e que podem servir-lhe de intuição.

O conhecimento, para ele, acontece de dentro para fora, dependendo da evolução biopsicológica do indivíduo. Para atingi-lo, isto é, para satisfazer as necessidades do homem, propõe o estudo do meio, dividindo o programa em dois grandes tópicos:

• a criança e os outros homens;• a criança e a natureza.No primeiro, analisam-se todos os fatores relacionados ao meio

humano: familiar, escolar e social; no segundo, o meio vivo (animal e vegetal) e não-vivo, que inclui a terra (água, ar, solo) e o cosmos (sol, lua, estrelas).

A prática consiste em trabalhar cada unidade, tendo em vista a ação do meio sobre o indivíduo e a reação do indivíduo ao meio. Não há limite de idade nem divisões de ensino. Afirmava que o seu programa poderia ser aplicado com crianças pequenas, de 3 ou 4 anos de idade, e com crianças maiores, bastando repetir e ampliar cada centro com outros procedimentos, de forma a levar a criança a aumentar seus conhecimentos.

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O importante era manter a integração dos conteúdos, uma vez que nos programas da época eles se apresentavam ”de forma arbitrária, sem enlace, sem coesão. As oito ou dez lições diárias que compreende o horário tratam de oito ou dez noções diferentes que não têm entre si nenhuma relação. Além do

mais, o horário é tão pouco flexível, que é difícil fazer outra coisa”. DECROLY apud DALHEM, 1924, p. 24.

Decroly propõe a aplicação dos conceitos em todos os seus aspectos ou divisões, de maneira que sejam associados, para que o aluno chegue à sua construção. É o chamado método de associação de idéias.

Adverte que, embora possa existir integração e até previsão da distribuição das unidades programáticas ao longo do ano letivo, nada acontecerá na prática se não houver mudança de postura do professor. É necessário nova atitude, mais criativa e mais reflexiva, para propor o trabalho em sala de aula. É o que Decroly chama de educação pela inteligência.

Cada grupo de idéias associadas (que contemplavam todos os conteúdos dos programas da época) compreendia uma série de lições de observação, com exercícios voltados para a aquisição pessoal — comparação, classificação e associação — e para aquisições ou recordações das aquisições anteriores, isto é, exercícios de expressão do pensamento.

Os conhecimentos trabalhados deveriam convergir para um ponto comum, não fragmentados mas incorporados à vida. A distribuição da matéria mostra a presença da interdisciplinaridade na sua proposta.

As idéias não devem limitar-se a acontecimentos passados, mas ”podem ser tomadas de acontecimentos atuais importantes, se estes forem capazes de interessar as crianças e servirem como ponto de partida para uma observação direta”. DECROLY & BOON,1926, p. 71.

Seu método compreende três fases: observação, associação e expressão.

Observação

Decroly dá grande valor à atividade de observação. Parte do princípio de que cada um constrói o próprio

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conhecimento na interação com o ambiente, observando, compreendendo e interpretando seu contexto.

Destaca a manipulação dos objetos como meio natural por excelência para conduzir as atividades mentais e os exercícios. É fundamental, afirmava, que a criança seja estimulada a explorar e conhecer materiais diversos.DECROLY & BOON, 1926, p.74

É importante manter em classe plantas comuns (couve, cenoura, cebola, etc.) e animais (caracóis, moscas, mosquitos, cagados, caramujos, etc.) para que as crianqas acompanhem o seu desenvolvimento. Os exercícios de observação dão oportunidade à criança de trabalhar sobre fatos concretos, adquirir experiência de vida, contribuindo para que venha a construir os próprios conceitos.

Para Decroly, as atividades devem ser planejadas para que os principiantes agrupem os objetos, classifiquemnos, respondam a perguntas sobre a relação dos objetos apresentados e novos com os objetos familiares ou conhecidos e percebam as analogias para chegar à formação do conceito.

Algumas perguntas podem direcionar a descoberta de detalhes e estimular a curiosidade: O que pesa mais, o chapéu ou a bota? O material de

que é feito o chapéu deixa passar o calor? E a luz? É melhor ou pior que o couro da bota? Por que se engraxam as botas e não o chapéu? E assim por diante.

As perguntas podem provocar respostas contraditórias, absurdas, o que permite detectar lacunas ou conhecimentos já adquiridos. As lacunas, reforça Decroly, podem ser apenas verbais; a criança, por ignorar o sentido de alguma palavra da pergunta, pode ser incapaz de respondê-la com termos apropriados. O professor deverá suprir o que falta em vocabulário e detectar dificuldades para relacionar significados aos signifícantes que podem prejudicar a formação de idéias claras e coordenadas. Isso exige do professor observação e criação de espaço para a expressão das idéias, com utilização de recursos apropriados.

As adivinhações, graças à repetição constante de palavras, dizia Decroly, enriquecem o vocabulário da criança e acostumam-na a expressar o pensamento com precisão; são o ponto de partida para os exercícios de leitura e cálculo.

Ao fazer comparações sobre fenômenos meteorológicos, sobre peso e valor dos objetos ou outros temas,

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a criança se serve dos meios de medida que existem na natureza.O papel da escola e do professor, para Decroly, não é dar noções

prontas, mas permitir que a criança chegue a elas; coordenar seus conhecimentos e promover a passagem gradativa do nível concreto para o abstrato.

Associação

Nem sempre a observação é possível e necessária, por existir um conhecimento prévio do objeto. Os exercícios de associação ajudam a criança a buscar, com o auxílio de recordações de experiências passadas, as noções transmitidas por via oral ou iconográfica, os motivos para reelaborar seus conhecimentos. Decroly divide esses exercícios em quatro grupos principais:

1. Objetos e fatos da atualidade, o espaço, planos e mapas — geografia.2. Tempo presente e tempo passado — exercícios de associação por

meio de documentos, visitas a museus, teatros e bastante intuição.3. Exercícios tecnológicos — exame dos materiais brutos e seus

derivados e sua aplicação industrial.4. Relações de causa e efeito, desenvolvidas pelas crianças graças às

noções adquiridas nos exercícios anteriores — representam o porquê e o como de os fenômenos se tornarem conscientes.

Expressão

A expressão compreende todo ato que visa a exprimir, por meio de formas variadas, as idéias sobre o que foi observado. Compreende: a linguagem oral, ou elocução; a linguagem gráfica, com escrita e desenho; a leitura, a ortografia e os trabalhos manuais (modelagem, recorte, colagem e dobradura), o teatro, a dramatização, etc.

Segundo Alice Descoeudres, DESCOEUDRES, s. d. o sistema Decroly era, a princípio, destinado a crianças anormais, aos excluídos das escolas ou àqueles que transgridem as regras: os não-normatizados. Ele buscava procedimentos que ajudas-

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sem a trazer essas crianças à sociedade, um método que as fizesse aprender. Achava que a capacidade da criança para estabelecer relações sociais está intimamente associada à forma como expressa suas idéias. Decroly chegou à conclusão da necessidade de individualizar o mais possível o ensino: ”A psicogênese (Citação: O termo psicogênese, Emilia Ferreiro e colaboradores, descreve o percurso de cada. indivíduo para adquirir a base alfabética da língua escrita) nos mostra de um modo claro que nem todas as crianças podem ser parecidas. Surpreende a variedade, tão complexa, entre as crianças, de tal modo que é necessário considerá-las como outras tantas individualidades. [...] O trabalho livre e pessoal nela é uma aplicação, porém não devemos contentar-nos com essa individualização na prática; devemos respeitar essa individualização na compreensão e na aquisição dos conceitos”. DALHEM, 1924, p. 22-3.

Para Decroly, as crianças de inteligência normal, de cérebro bem constituído, ”aprendem independentemente do método e da escola, porém as crianças de inteligência mediana, mais lentas, no mínimo reterão alguns conceitos. Para essas é necessário favorecer a aparição destes, utilizando meios apropriados”. Apud DALHEM,1924,p. 24-9.

Uma intuição genial! Nossa experiência de educadora nos tem mostrado que todos os alunos, inclusive os provenientes de classes cultural e economicamente menos privilegiadas, aprendem a ler e a escrever, desde que se lhes dê tempo e condições para tal. Não é, pois, apenas o método e a escola que produzem conhecimentos; o trabalho do professor deve ser muito mais conhecer em que tipo de atividade seu aluno é mais lento para ajudá-lo a avançar e, acima de tudo, saber avaliar.

Decroly vê, como Dewey, a necessidade de um ensino apropriado aos interesses da criança, em um ambiente propício à experimentação, onde ela possa agir e ter contato com a vida, com os instrumentos culturais, sentindo-se estimulada e desafiada a reagir ativamente no processo de aprendizagem.

Ótimos para conhecer bem as crianças — em suas diferenças, seus gostos e interesses, sua personalidade —, os trabalhos manuais, os jogos ou qualquer atividade criadora, dizia, combinam dois fatores: o conhecimento que a criança tem das coisas e do mundo e a relação individual que estabelece com eles.

Os trabalhos manuais concorrem não somente para . a aquisição da leitura e da escrita, mas também para a

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de outras habilidades e conhecimentos. DALHEM, 1924, p. 45-8 As figuras a seguir mostram como, por meio de atividades de recorte, colagem e dobradura, as habilidades básicas para a alfabetização podem ser trabalhadas de forma ampla: utensílios de cozinha, alimentos, o café da manhã, o trajeto à

escola, os objetos de uso pessoal, os meios de locomoção. Eles dão à criança a oportunidade de interagir com a leitura e a escrita de forma lúdica e prazerosa. com isso, o professor recupera a globalidade do ensino, trabalhando as diferentes aprendizagens de forma integrada e não estratificada.

( figura de uma rua com os carros e casas e figura de uma cena familiar, os avós e os netos. Autores: Agostinho de Paula/Cira Sanches).

Tudo está relacionado à criatividade do professor, que deve ajudar a criança, sugerindo a utilização de sucata ou o aperfeiçoamento do trabalho, mantendo a idéia principal. O desenho e o jogo dramático devem ser igualmente estimulados, pois concorrem para a globalidade do processo educativo, levando a criança a ver, ouvir, perceber formas e estruturas, aguçando sua sensibilidade quanto ao meio ambiente.

Os jogos dramáticos devem ser introduzidos no horário das aulas, por intermédio de atividades rápidas com a participação de todas as crianças. Eles disciplinam e coordenam os gestos, associam os movimentos às idéias e auxiliam o desenvolvimento dos reflexos e da motricidade. Consistem, principalmente, em imitar ações com graus variados de dificuldade: movimentos vistos, imitação abstrata de memória, associadas com rodas cantadas, encenações teatrais, etc.

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MÉTODO GLOBAL

O método decrolyano global ou visual-ideográfico foi adotado durante muito tempo no Brasil. com ele, Decroly recupera a questão da globalidade, como foi proposta pelo abade Radonvilliers, em 1768, que recomendava seguir a ordem natural, a mesma usada para aprender a língua falada, e por Nicolas Adams, em 1787, que dá enorme importância à percepção visual no processo de leitura. ”A alfabetização ou o ensino da leitura deve partir do todo, para posteriormente passar à decomposição”. DECROLY apud BELLENGE.1979. O ”todo” era a palavra, proposta para ser trabalhada como centro da aprendizagem. Decroly também utiliza a palavra, porém estabelece uma diferença: as palavras de que faz uso são retiradas do vocabulário de cada centro de interesse. O processo de alfabetização, para ter sucesso, deve partir do vocabulário da criança, a fim de que esta possa opinar, sintetizar e compreender as idéias. O primeiro contato da criança com o símbolo gráfico deve estar associado á imagem visual.

O caráter global do método Decroly não se /imita ao estudo da palavra. A leitura e a escrita devem estar sempre associadas a uma idéia. A visão é o sentido que mais cedo e mais ativamente se desenvolve; podemos ler um texto apenas com os olhos (leitura mental), compreendê-lo, sem utilizar a linguagem verbal. A criança aprende quando entende ou produz o processo. Há sete décadas, Decroly já condenava a cópia como simples reprodução do pensamento adulto: ”Convém que o trabalho da criança não se reduza a uma simples cópia; é necessário que seja realmente a experiência do seu pensamento” Apud DALHEM, 1924, p.52.

Construir seu conhecimento e não repetir o de outrem! Não é fantástica essa antecipação? O que Piaget viria a caracterizar em 1923 já estava delineado nos escritos de Decroly (principalmente os de 1906 a 1922). O educador deve compreender que as questões envolvidas nos atos de ensinar e aprender não são meramente de ordem motora. A atividade da criança é determinante na construção do conhecimento.

Piaget é um dos maiores teóricos do construtivismo De acordo com a psicologia genética, o conhecimento

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é organizado segundo as estruturas cognitivas, que determinam o modo pelo qual o sujeito apreende o objeto do cohecimento. “ Não foi porém, preocupação de Piaget investigar ou ligar o construtivismo ao ensino-aprendizagem da leitura e da escrita. Isso só viria a ser feito a partir da década de 70, por meio dos estudos de Emilia Ferreiro, os quais consideramos bastante avançados. Para Decroly, a leitura e a escrita são o resultado de um processo de representação de linguagem.

Para ele, a criança aprende a falar e a entender o que lhe dizem desde muito cedo, no primeiro ano de vida, quando exposta ao mundo lingüístico que a rodeia. No entanto, durante muito tempo, nossa escola não considerou a fala, utilizando a leitura e a escrita como critérios de correção da fala.

A leitura

Como Piaget, Decroly dizia que, quanto mais estímulo e contato a criança tiver com o meio e as coisas que a rodeiam, melhor será a sua expressão. O mesmo processo se dá com a leitura: quando exposta a atos de leitura significativos, a criança vai querer aprender a ler. Decroly considera importante que, desde o início, a leitura seja ensinada por meio de frases e pensamentos ou como se aprende a falar, e nunca por meio de letras e sons. As frases escritas, por traduzirem pensamentos, representam a idéia expressa verbalmente. Não é natural obrigar a criança a memorizar sílabas e letras, a pretexto de que é preciso começar do simples para o composto, do concreto para o abstrato. ”O que se constata é que se empregam esses termos de maneira totalmente equivocada, confundindo-se o simples com o mais curto, com a parte das letras dos sons ou das sílabas. ” DECROLY apud DALHEM, 1924, p. 53. O todo — texto, frase ou palavra significativa — é o concreto para a criança, que adquire a noção de ”cadeira” (síntese), antes das noções de ”cor”, ”encosto”, ”assento” (análise). As sílabas, as letras ou os sons constituem o abstrato para ela, uma vez que são partes do todo, a última expressão da análise. Por isso Decroly propõe o método global, ou visual-ideográfico, para o ensino da leitura.

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Partir do que é significativo para a criança e depois passar às partes — palavras, sílabas e letras — é um processo natural de aquisição do ensino, ”as crianças aprendem a ler antes de conhecer os nomes das letras. Além do mais (a leitura) é mais rápida que com os outros métodos”. DALHEM, 1924,p 57.

Se esse processo for seguido, afirma Decroly, a criança não sofrerá restrições e a leitura cumprirá seu objetivo: a expressão. Calcado na observação e na associação de idéias, seu raciocínio também se desenvolverá. Não há limites à imaginação, que extrapola o pretendido nos programas oficiais. Não se deve precipitar o ensino da leitura, mas deixá-lo acontecer naturalmente, desenvolvendo a observação e a linguagem oral pelo maior tempo possível. Deve-se colocar a criança em contato com o ”grande livro” que é a natureza; levá-la a observar e experimentar, para que suas idéias venham a associar-se intimamente, desde o início, com aquilo que lê.

Numa época em que as bases científicas sobre a comunicação verbal mostravam-se bastante reduzidas, e o conhecimento da linguagem e do pensamento, tão pouco explorado, era comum os métodos apelarem para recursos que pudessem auxiliar o aluno a descobrir e memorizar a relação letra/som. Buscar um método de leitura completamente novo foi, sem dúvida, a grande inovação do sistema Decroly, para quem dar sons analisados era fazer uma abstração precoce ou antecipar a evolução mental da criança. Dizia que, com essa opção para o ensino da leitura, a escola torna-se pouco atrativa e deixa de ocupar as crianças com exercícios de observação, de formação e de enriquecimento do vocabulário.

Em seus estudos da psicologia da criança e experiências, Decroly analisa o processo de abstração simbólica da leitura/escrita, em oposição ao que se pensava e aplicava nas escolas. Dalhem comenta a tortura de uma lição de leitura: DALHEM, 1924, p 56

”’Senhor João, você lera hoje o alfabeto.’ Ouço ainda esta palavra que me causa nojo. Tinha eu seis anos. Gostava de belos livros de imagens.

Porém me enfastiava e não queria seguir estas largas regras que enegrecem as páginas, Este trabalho não me divertia e, portanto, o desprezava.”

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Em 1912, Sluys afirmava que, ”decompondo-se as palavras-chave, o espírito da criança não trabalha; o professor tem a ilusão de que o aluno tenha conseguido vencer a dificuldade; porém, na realidade, é ele quem faz o trabalho cerebral e proporciona os frutos a seus alunos”. Apud DALHEM, 1924, p. 57.

A escrita

O mesmo procedimento global deve ser utilizado na escrita. Uma possibilidade é que a criança elabore seu próprio livro de leitura em vez de utilizar a cartilha ou um modelo — isso representaria um grande avanço.

As crianças devem utilizar materiais de leitura significativos para elas, com assuntos de suas vidas, do diaa-dia, imprimindo-os em um duplicador. Os procedimentos devem basear-se em jogos simples, que possam ser confeccionados pelas próprias crianças. No livro que escreveu com Montchamp, La initiation a Ia actividad intelectual y motriz por los juegos educativos (1919), Decroly descreve vários deles, como o jogo para o conhecimento de palavras novas, de acordo com o interesse da criança. Ele

orienta que se escrevam as palavras em tiras de papel, para a criança desenhar e copiar. DECROLY & MONTCHAMP, 1919, p. 68. A palavra passa a se constituir num tesouro para a criança, que a guarda e utiliza várias vezes; a cada repetição, estará associando a palavra à idéia (significado e significante). Quanto às regras gramaticais, dizia que, para construir a escrita, precisava antes fazer uma análise e descrição dos fonemas de modo a simbolizá-los. A representação da linguagem não depende do domínio de atividades motoras, mas de um processo histórico e individual de estruturação de todo um sistema de representação simbólico.

A escrita passa a ser um processo de descoberta para a criança, como a busca do saber científico. A palavra ”cachorro”, por exemplo, deve evocar a imagem e a idéia de cachorro, como nos adultos, isto é, não uma simples imagem auditiva associada a uma imagem motora.

Para Decroly, a representação gráfica dos sons da fala segue as mesmas etapas pelas quais a humanidade passou até dominar esse instrumental para comunicar-se.

As primeiras experiências com crianças pequenas (fase pré-escolar) datam de 1920 e foram registradas por

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L. Dalhem. Não deixam de ser revolucionárias, pois foram desenvolvidas numa época em que se privilegiava a posse do código gráfico e o domínio de habilidades perceptivo-motoras. Observa Dalhem que os educadores ”podem e devem suprimir, sem medo, esses incômodos exercícios sistemáticos, essas idéias intermináveis dos mesmos caracteres ou dos mesmos elementos, que não interessam nem divertem e que são sempre mal feitas. A escrita deve derivar da linguagem gráfica, ser o esboço das idéias. A escrita deve ser um desenho abstrato como o croqui é um desenho concreto”. DALHEM, 1924, p.74.

O período preparatório para a escrita não era visto por Decroly nem por seus discípulos como etapa necessária ou que devesse anteceder a escrita. Por considerarem que essa aprendizagem provém de experiências significativas, contextualizadas, seu sucesso estaria ligado muito mais às oportunidades de a criança operar com a palavra ou o texto escrito — numa totalidade significativa —, do que a treinos de discriminações e percepções. A introdução de jogos e brincadeiras para esse tipo de ensino já demonstra a percepção de que eles constituem uma rotina na vida da criança, uma vez que, por meio deles, ela interage com outros conhecimentos (idéias) a sua volta. Da mesma forma, aprenderá naturalmente a escrever, sabendo para que serve a escrita e o que esta representa para ela. “Desde o primeiro dia a criança escreve o que lê. As frases e as palavras são consideradas desenhos que deve reproduzir. Exemplifiquemos com uma criança que nunca tenha escrito, a quem se dá uma folha de papel, uma caneta e tinta e se manda escrever. Aqueles que dão importância ao caderno limpo e bem cuidado devem se abster de fazer esse ensaio; para eles o bonito caderno é o critério do bom ensino, perdem os resultados de uma experiência verdadeiramente interessante.” DALHEM, 1924, p.74.

Ao colocar em prática o método Decroly, Dalhem estava não só rompendo com o que se fazia no ensino da escrita, como também valorizando

muito mais o processo de aprendizagem. As tentativas de escrita das crianças pequenas (pré-história da escrita) deixavam de ser vistas como rabiscos, uma mistura de grafias retas e curvas, passando a ser consideradas hipóteses — que Daíhem classifica como etapas, uma vez que de uma para outra havia avanços significativos. Para Descoeu-

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dres, discípula de Decroly, a aprendizagem deveria ser o mais natural possível; deveria representar idéias ou cenas observadas, ser o resultado de um processo de representação da linguagem oral, histórica e contextualizada: ”Não se deve seguir as recomendações do programa de Bruxelas, quando diz: é necessário fazer exercícios especiais graduados, a fim de familiarizar os alunos com as formas gráficas e habituais de traçar corretamente as letras; [...] porém inspirar-se sempre na forma com que a criancinha aprende a falar. Devem abandonar as lições sistemáticas com exercícios extensos e demorados sobre os elementos das letras, que exigem a repetição em grande escala com o mesmo elemento”. DALHEM, 1924, p. 75-6.

Etapas de aquisição da escrita

As cinco etapas do processo de escrita da criança são muito semelhantes aos resultados dos estudos que Luria, investigador soviético e discípulo de Vygotsky,desenvolveu na mesma época (década de 20) com crianças que ainda não freqüentavam a escola, e aos resultados das pesquisas de Emilia Ferreiro, realizadas a partir de 1974. Os três pesquisadores procuram investigar as concepções que as crianças pequenas (com algumas diferenças nas idades) têm em relação à escrita, chegando a conclusões bastante semelhantes.

Segundo Dalhem, os primeiros traçados das crianças já indicam o aparecimento de uma relação funcional com a escrita. Embora não apresentem forma definida — freqüentemente desalinhados ou um conjunto de rabiscos, uma mistura de linhas retas e curvas —, já têm a intenção de expressar uma idéia ou produzir um significado. Na primeira etapa, pictórica, a escrita se assemelha a desenhos abstratos dos objetos representados e ainda não é associada ao som, mas à imagem do que se quer representar. Dalhem a considera uma tentativa de imitar a escrita do adulto, composta por signos, escritos, imagens de idéias, retratos esquemáticos das coisas, embora concorde que já corresponda a uma primeira forma de construção real da escrita. DALHEM, 1924, p. 74. O importante é que, nessas tentativas, a criança não procure apenas copiar, mas representar o que ela imagina que é a escrita.

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Aquisição da escrita, primeira etapa. As ilustrações das cinco etapas foram extraídas do caderno de um mesmo aluno.Dalhem, 1924, p. 77

As frases ou palavras eram ditadas pelo professor ou outro aluno, nunca provenientes da cópia de um trecho lido. ”Estas etapas de aquisição da escrita correspondem à evolução da linguagem e da leitura. De início, a criancinha

emite sons disformes, empreende longas e divertidas conversações, com uma seriedade muito grande, porém totalmente ininteligíveis. Pouco a pouco se percebem as palavras, de preferência aquelas que têm sílabas repetidas (papá, mama, nené, etc.), que são mais fáceis de serem emitidas do que uma sílaba separada. Mais tarde, as sílabas vão se tornando compreensíveis e isoladas.” DALHEM, 1924, p. 80-1.

Efetuando um paralelo entre as três evoluções (fala, leitura e escrita), Dalhem insiste no método natural tanto para o ensino da leitura como para o da escrita, ”precisamente porque apresenta muita analogia com o método usado pelas mães para ensinar seus filhos a falarem”. DALHEM, 1924, p.81

A primeira etapa da escrita apresentada por ele visa a ”dar à criança alguma tarefa acessível e observar os estágios sucessivos pelos quais ela passa a assimilar a técnica da escrita”.

Luria relata os passos de um experimento: ”[...] pegávamos uma criança que não sabia escrever e lhe dávamos a tarefa de relembrar um certo número de sentenças que tenham sido apresentadas [...] lhe entregávamos um pedaço de papel e lhe dizíamos para tomar nota ou escrever as palavras por nós apresentadas. [...] sugeríamos que tentasse [...] escrever; [...] apresentávamos à criança várias (quatro ou cinco) séries de seis ou oito sentenças simples, curtas e não-relacionadas umas com as outras”. LURIA, I988,p.147-8.

Ao considerar que a criança escreve para imitar o adulto. Luria explora essa tendência natural, conside-

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rando-a uma imitação puramente externa. Seus estudos reforçam e ampliam os de Decroly. apontando o fato de que, se não dermos à criança os aspectos externos da técnica a ser trabalhada, ficaremos sem condições ”de observar toda uma série de pequenas invenções e descobertas feitas por ela, dentro da própria técnica, que a capacitava gradualmente a aprender a usar este novo instrumento cultural. Era nossa intenção fornecer uma análise psicológica do desenvolvimento da escrita desde suas origens e, dentro de um curto período, acompanhar a transição da criança desde as formas primitivas e exteriores de comportamento até as complexas formas culturais”. LURIA, 1988, p 148

As conclusões de Luria são muito parecidas com as de Dalhem, quando afirma que o ambiente e as condições de vida concorrem para levar a criança a querer escrever como os adultos, embora de forma totalmente intuitiva. Não basta reproduzir traços ou rabiscos e identificá-los como escrita; é necessário haver pelo menos uma hipótese ou idéia relacionada com a escrita real — ou, como Dalhem acrescenta, ”ser imagens de idéias, retrato esquemático das coisas”. DALHEM, 1924, p. 73

Segundo Luria, ”a conexão entre os rabiscos das crianças e a idéia que representam é puramente externa. Isto fica especialmente evidente em casos nos quais o escrever é nítida e sensivelmente divorciado da sentença a ser escrita e começa a desempenhar um papel completamente independente e auto-suficiente [...] de forma puramente externa e imitativa [...] Por não compreender o princípio subjacente à escrita, a criança toma sua forma externa e acredita-se capaz de escrever, antes mesmo de saber o que deve ser escrito”. LURIA, 1988, p. 149-50.

Essa primeira fase dos atos imitativos, que Luria denomina pré-cultural oupré-instrumental, na qual a escrita apresenta características de simples brincadeira, é semelhante à primeira etapa descrita por Dalhem. O mesmo acontece com as etapas seguintes, quando as crianças passam a utilizar, segundo Luria, um sistema de auxílios técnicos da memória, semelhante à escrita dos povos primitivos, sem, no entanto, chegarem a diferenciar suas escritas ou fazê-las expressar um conteúdo específico.

Dalhem nota mudanças da primeira para a segunda etapa: uma tentativa de produzir uma escrita com traços bem próximos à escrita cursiva, com grafismos já

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bem definidos. Comparando as figuras que ilustram as etapas iniciais, vemos que, na primeira, a criança utilizou grafismos constituídos por linhas onduladas ou em forma de ziguezague, embora distribuídos em forma linear, o que demonstra certo conhecimento em relação à forma como o adulto escreve. Na segunda etapa, observa-se certo crescimento no processo de escrita: embora Luria ainda a considere uma escrita que busca auxiliar a memória, reconhece que ela demonstra, nitidamente, um esforço da criança em aproximar sua escrita (que continua cursiva) da escrita-modelo do adulto.

Parece claro que, nas duas etapas, as escritas não apresentam relação alguma (diferença ou semelhança) com os significantes sonoros.

Figura) Aquisição da escrita, segunda etapa Letras reto-altas e retobaixas, mais ou menos formadas. Dalhem, 1924. 9.77

O ingresso na terceira etapa da evolução da escrita, conforme registrado por Dalhem, é marcado por maior preocupação com o traçado da letra e as propriedades sonoras do significante. A escrita, antes ligada, separa-se em pedaços, cortando a cadeia. Aparecem números e palavras isoladas, numa amostra muito semelhante ao estágio que Luria definiu como quarto, no qual ele considera que a criança já elabora uma produção gráfica definida, ou seja, o número ou a quantidade do referencial e a natureza do conteúdo começam a diferenciar-se: o símbolo adquire significado funcional e começa, graficamente, a refletir o conteúdo que a criança deve anotar. Nesse estágio, a criança já conhece letras isoladas, como elas se unem para registrar um conteúdo, e chega à palavra.

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Figura: Aquisição da escrita, terceira etapa As letras reto-altas e retobaixas se distinguem claramente, aparecem palavras isoladas. Dalhem, 1924, 9.78

Como Luria, perguntamos: ”Será que isso significa que agora compreende o mecanismo integral de seu uso?” O mesmo autor responde: ” LURIA, 1988, p 181 Estamos convencidos de que uma compreensão dos mecanismos da escrita ocorre muito depois do domínio exterior da escrita e que, nos primeiros estágios de aquisição desse domínio, a relação da criança

com a escrita é puramente externa. Ela compreende que pode usar signos para escrever qualquer coisa, mas não entende ainda como fazê-lo. Torna-se assim inteiramente confiante em sua escrita, mas é ainda incapaz de usá-la”.

Decroly propõe que as crianças sejam instruídas a escrever frases e pensamentos, associando as palavras às idéias (significante e significado) Segundo ele, para escrever não é necessário que a criança compreenda o processo de escrita. Assim, aproxima-se mais de Luria que de Emilia Ferreiro, para quem ”escrever é reproduzir traços típicos da escrita que a criança identifica como a forma básica da escrita”. FERREIRO & TEBEROSKY,1986, p 183

Na quarta e quinta etapas de evolução da escrita, a criança já escreve de forma original, porém sem ainda dominar toda a complexidade da relação fonema/ grafema. É o momento, como diria Luria, no qual ”a criança começa a escrever e ler o que escreve” LURIA, 1988, p 181

A escrita da quarta etapa é considerada intermediária por Dalhem. ”Distinguem-se as palavras, porém não se escreve geralmente nem entre as linhas de caderno, nem sobre elas. Agrega-se uma etapa de aperfeiçoamento com tendência a evoluir mais ainda na aquisição da escrita, sem exercícios prévios nem sistemáticos; [. ] as etapas também não são imutáveis, não se apresentam sempre nas crianças na ordem indicada. A indivi-

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dualidade infantil se destaca desde os primeiros ensaios. Além do mais, alguns alunos apresentam uma evolução mais rápida ou mais lenta que o normal”. DALHEM, 1924, p 79. Há, pois, necessidade de uma quinta etapa. Só depois de dominada a escrita, deverá vir a preocupação com o aperfeiçoamento ortográfico.

Além de levar em conta a individualidade da criança, é preciso lembrar que se trata de uma pesquisa com crianças francesas, o que dificulta a análise da lógica interna das produções; falta-nos o conhecimento do contexto onde ela se desenvolveu.

Figura:Aquisição da escrita, quarta etapa Dalhem, 1924, p.78

Figura: Aquisição da escrita, quinta etapa O aluno não distingue o o do a.Dalhem, 1924. p.79

Bem próximas, às vezes contraditórias, as pesquisas fazem parte da história da pedagogia e precisam ser resgatadas Afirma Emilia Ferreiro: ”Em alguns momentos da história faz falta uma revolução conceituai. Acreditamos ter chegado o momento de fazê-la a respeito da alfabetizacão”. FERREIRO, 1986, p 41.

Nenhuma revolução conceituai pode ser feita sem que se resgate o passado. Decroly é parte importante do pás-

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sado da alfabetização. Seu programa e método, aplicados por seus discípulos, mostram que não se pode privilegiar apenas o atual, mas deve-se ir

à fonte primeira, resgatar contribuições valiosíssimas sobre práticas de introdução da criança na língua escrita que fugiram à rotina tradicional, o que nos levou a considerá-las inovadoras.

Qualquer método por si só não resolve os problemas do ensino. Todos os métodos dependem da atividade criadora e reflexiva do professor, exigem observação e conhecimento profundo do aluno. Recuperar de escritos o que têm de positivo contribui para aperfeiçoar o nosso trabalho em sala de aula. Decroly postulou uma visão globalizante das questões ligadas ao processo ensino-aprendizagem.

Os experimentos de Dalhem e discípulos confirmam a visão e a prática de Decroly: ”Na aprendizagem da leitura e da escrita, a criança percorre o mesmo caminho que a humanidade tem percorrido até chegar à obtenção das leis e às conclusões científicas”. SAUSENFEIL, 1983, p. 38.

Na seqüência das etapas apresentadas por Dalhem, percebemos todo o caminho do desenvolvimento da escrita pela criança: da tentativa de imitar a escrita adulta, dos simples rabiscos não-diferenciados até a escrita com signos diferenciados. Retrata, além da história da civilização, o próprio desenvolvimento infantil. Esse discípulo, dedicado à prática, supera o mestre; aponta como naturais aspectos que os professores ainda consideram problema, como é o caso das escritas espelhadas — que, no início, podem aparecer em frases inteiras, depois em palavras e, aos poucos, tendem a desaparecer. ”Quando os alunos começam a escrever palavras (quarta etapa), muitos fazem entrar uma letra na outra, com freqüência o a em Ia, m em ma. Pouco a pouco se separa dela como uma bolha de sabão se separa do canudo.” DALHEM, 1924, p. 80-1.

Decroly defendia o paralelismo entre as evoluções da leitura, da fala e da escrita, o que considerava um método natural, uma vez que apresentava certa analogia com o método empregado pelas mães para ensinar os filhos a falar. Os mesmos princípios que empregou para a leitura e a escrita, propôs para o ensino da ortografia, ou seja, começar apenas quando a criança já consegue isolar palavras. Recomendava o que chamamos ditado surdo: mostrar a escrita correta alguns segundos para a criança (clichê visual), a seguir tampa-

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la e então pedir que a criança a escreva. Além disso, recomendava também a aplicação das palavras mais difíceis, em outros textos escritos, de forma que a criança a ela retornasse em diferentes contextos. Para as frases completas, sugeria os jogos de paciência: recortar as palavras, as sílabas da frase e recompô-las.

As regras gramaticais elementares, segundo ele, não deveriam ser trabalhadas de início. Elas seriam adquiridas e, sobretudo, se consolidariam pela leitura, uma vez que não se constrói uma língua pela gramática.

Para Decroly, a escola deve fornecer educação geral, preparando a criança para as exigências sociais por meio do conhecimento que tem de si mesma — suas necessidades, aspirações e ideais — e do conhecimento do ambiente, do qual depende e no qual vai agir.

Os princípios da pedagogia decrolyana — respeitar a liberdade e a espontaneidade da criança — foram retomadas das idéias mais avançadas dos

clássicos da época (Rousseau e Pestalozzi). Das áreas da biologia, psicologia e sociologia surgiram idéias que acrescentam valor a sua proposta. Dentre elas, destaca-se o conceito de globalização para o ensino da leitura de idéias e não de sinais gráficos — visão de idéias. O ponto de partida dessa concepção foi rejeitar o manejo de símbolos abstratos, vazios de sentido. Para Decroly, somente a representação concreta das idéias com base em coisas ou figuras pode despertar o interesse e orientar o próprio conceito de globalização.

RECAPITULANDO

Em 1907, numa palestra dirigida a professores, Decroly apresentou as conclusões práticas do seu trabalho, propondo inverter a ordem tradicional do ensino. DECROLY & DEGAND,1910, p 117-91. Desejava que a escola pública fosse uma escola de formação, de cultura geral, que contribuísse para o livre desenvolvimento das atitudes naturais do ser humano, e não apenas um estabelecimento onde se oferecem rudimentos de instrução.

Para ele. a criança é o centro do universo escolar e o seu desenvolvimento cognitivo, social, físico e emoci-

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onal é simplesmente um processo biológico. Seu método respeita as leis fundamentais que regulam o desenvolvimento e a conservação da vida; usa o poder globalizador ou valorizador, especialmente no ensino do desenho, trabalhos manuais, leitura, escrita, etc.

O programa de ensino deve ser um faciíitador da individualização e atingir o maior número de crianças possível; deve ainda permitir amplas adaptações ao meio em que vivem, deixando ao professor liberdade para propor, principalmente durante os primeiros anos de escolaridade, o contato da criança com o concreto, levando-a a experiências sensoriais e motoras.

Decroly recoloca a questão do interesse do aluno, já destacada por Dewey. Em seus centros de interesse, as matérias se entrelaçam em torno de uma idéia central, formando um todo homogêneo, ajustado à experiência globalizada e às relações afetivas das crianças. As disciplinas devem convergir para um mesmo terna (idéias associadas). Esse tema deve ser selecionado desde o ponto de vista da criança, separando-se o mais possível tudo o que não tem relação com a sua vida; o propósito é trabalhar por grandes sínteses, muito objetivas, que englobem precisamente as atividades principais da vida humana, individual e social.

Quanto à divisão em disciplinas, Decroly considera as três etapas da atividade mental: a recepção ou impressão, a elaboração e a expressão. Os exercícios da primeira etapa utilizam-se de materiais palpáveis, acessíveis aos sentidos, com as quais a criança pode colocar-se em contato direto — observação. A observação diária de fenômenos da natureza, seres vivos, etc. mantém os alunos ocupados e interessados, vivendo as noções em vez de escutá-las. O conhecimento é adquirido por vias ativas (as mãos, a vista), diretamente pelos sentidos e pela experiência imediata com a natureza.

Os exercícios da segunda etapa devem empregar materiais mais abstratos: recordações, imagens, textos, para que a criança chegue a idéias mais gerais. Cabe ao educador ajudar a criança a classificar, comparar os

achados atuais com suas experiências ou com as explicações do professor, um filme, imagens ou leitura. A associação permite recuperar as observações no tempo e no espaço e leva à ampliação dos conhecimentos históricos e geográficos.

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O terceiro tipo de exercícios, chamado de segunda mão, é a manifestação do pensamento, ou expressão, resultante da apropriação do conteúdo e expresso por meio de trabalhos manuais (modelagem, recorte e colagem, marcenaria), linguagem falada ou gráfica, sons ou cores (música e pintura). É uma forma de estudar as letras, a ortografia, etc., e as ciências. É importante lembrar que as atividades mentais não se excluem umas às outras. Durante um exercício de observação, por exemplo, intervém os mecanismos superiores do pensamento e da expressão; mesmo no curso de um trabalho de expressão que se desenvolve com diferentes matérias, intervém a observação e a associação. Os exercícios integram-se numa ordem psicológica, constituindo um ciclo de atividades mentais sintéticas, que compreende: a observação, a associação e a expressão (concreta ou abstrata).

O programa decrolyano propõe nova ordenação às disciplinas do currículo, partindo das aquisições do próprio indivíduo e de suas necessidades vitais: alimentar-se, proteger-se contra as intempéries, defender-se, trabalhar, repousar, distrair-se. Decroly vê a sala de aula como uma oficina em que os alunos podem praticar a livre expressão. Os centros de interesse subdividem-se em componentes, ou subtítulos, cada vez mais específicos, e o conhecimento constrói-se sobre a interdisciplinaridade, uma base, até então, inovadora.

Os conhecimentos vivenciados devem ser conduzidos com método, segundo um plano estabelecido; a criança passa, de forma suave, do concreto para as abstrações materializadas, auxiliadas pelos jogos visuais, de manipulação, etc., com simplicidade e regularidade para agradar a todos. Segundo Leif e Rustin, ”é dos jogos aritméticos de Decroly que derivam os livros atuais nos quais as noções dos números e das operações são dadas por imagens variadas e nos quais por vezes até os problemas são concretizados e se transformam em jogos”. LEIF & RUSTIN, 1968, p. 264.

Entre os muitos acertos da nova psicologia infantil, um foi determinante para a inovação da prática metodológica do início do século: a descoberta de que a vida ammica da criança difere da do adulto. Entre os escolanovistas, Decroly retomou essa feliz concepção de Rousseau acerca da originalidade da psicologia inpara nela fundamentar sua proposta, que carac-

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teriza como visão de conjunto — mais tarde denominada ”sincretismo” por Claparède (1908).

O estudo da peculiaridade do pensamento infantil foi por ele abundantemente desenvolvido e serviu de sustentação para outra convicção: o conhecimento não é construído com base nos elementos trazidos pelo adulto, do que lhe é lógico e natural, mas de elementos que precisam ser elaborados pela própria criança.

DECROLY E FREINET

O método Decroly é ainda utilizado no mundo inteiro e influenciou os trabalhos de muitos pedagogos, entre os quais Freinet. As idéias de Decroly sobre delegar ao mestre a tarefa de recriar e refletir sobre os métodos, buscar técnicas e recursos novos para concretizar a tarefa educativa — uma vez que a manutenção da interação espiritual com os alunos, dizia, é sempre incompatível com a rotina tradicional — levaram Célestin Freinet a propor o método natural para o ensino da leitura e da escrita, buscando suprimir o hiato entre a escola e o meio. A pretensão de Freinet era ”contribuir não só com as respostas indispensáveis, além das respostas teóricas cada vez mais fáceis, mas também, sobretudo, com a prova de que as teorias generosas dos grandes pedagogos podem [...] tornar-se realidade”. FREINET, 1975a,p. 14-5.

Sobre Decroly, afirmou Freinet que o considerava ”traído por todos aqueles que, tanto na Bélgica como na França, tornaram escolástico o método global”. FREINET, 19’75a, p 14

Freinet propõe uma pedagogia da totalidade, que não pode ser dividida em compartimentos estanques, dos quais cada um retiraria, aleatoriamente, alguns procedimentos. Propõe a associação de conteúdos — os centros de interesse —, porém a aplicação depende da mentalidade do professor, que deve levar a criança a criar, agir e construir um verdadeiro conhecimento. Era uma nova pedagogia para as classes populares, ou massas, calcada na experiência de um professor que atuou nas séries iniciais do ensino fundamental, comprovou a eficiência da aprendizagem da leitura pelo método global e utilizou-se dos conhecimentos da psicologia experimental.

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Tais práticas e idéias possibilitaram à escola, durante muito tempo, aplicar o método global para o ensino da leitura. No entanto, essa mesma escola esqueceu a vida, esqueceu que a palavra, a frase e o texto precisam estar inseridos intimamente no contexto da vida dos indivíduos. A criança hoje vive em um mundo repleto de escrita, presente na TV, nos jornais, nas revistas, nas embalagens dos produtos, cartazes, letreiros, placas de rua, cartas e bilhetes que recebe. A palavra escrita faz parte do contexto de vida dessa criança, e ela vai fixá-la e procurar reconhecer sua estrutura. Porém, essa palavra só terá sentido no próprio contexto.

As constatações de Decroly, como as de Freinet, são clássicas, embora sejam negligenciadas na aprendizagem escolar. Elas valorizam uma dimensão afetiva e humana que consideramos basilar para a reconstrução do conhecimento histórico e social da humanidade.

Textos selecionados de Decroly

Considerando as já mencionadas dificuldades de acesso a textos de autoria do próprio Decroly (e ainda que sua extensa produção constitua-se mais de trabalhos específicos sobre temas complexos), recorremos, em boa parte, aos escritos de alguns de seus discípulos, principalmente Dalhem, que foi quem aplicou seu método na prática.

CRIANÇA

”A criança precisa possuir a compreensão de si mesma; de seu próprio ser, de suas necessidades, desejos, ideais e propósitos. Precisa saber para que servem seus órgãos, o modo de comer, ler, trabalhar e jogar; como funcionam seus sentidos; como estes a defendem e a ajudam; como se movem seus membros e, especialmente, que serviços lhe presta a mão; por que sente fome, sede e frio, por que se amedronta e encoleriza; quais as falhas e as virtudes que possui. Depois de conhecer-se a si mesma, precisa conhecer o meio natural e o meio humano em que vive, de que depende e onde deve trabalhar a fim de satisfazer suas necessidades, desejos, desígnios e ideais. As necessidades da criança, as que servem de eixo, e tudo o que a sociedade e a natureza, viva ou não-viva, realiza para sua satisfação podem ser objeto de conhecimento na medida em que o cérebro da criança possa assimilá-lo. Em todos os seres, mesmo nos mais sensíveis, há manifestação que permite a conservação da vida e sua adaptação. O homem para viver tem, como todo ser, necessidades essenciais: alimentar-se, proteger-se das intempéries, defender-se contra os inimigos. Deve preparar-se para ser

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capaz, quando adulto, de bastar-se a si mesmo (funções individuais); para bastar à sua família e para cumprir suas obrigações sociais (funções sociais). [...]Todo ser humano deve possuir um mínimo de conhecimentos que lhe permitam compreender as exigências da vida em sociedade, as obrigações que isso impõe e as vantagens que disso resultam.” DECROLY & BOON, 1939, p. 66-7.

EDUCAÇÃO

Decroly enaltece e privilegia a conservação da vida, fim último de sua educação. Sua pedagogia, além de ativista — pois considera que toda educação deve apelar em primeiro lugar à própria atividade da criança, às suas necessidades —, volta-se também para objetivos práticos, úteis à vida.

”A escola responderá pela sua finalidade de educacão geral, preparando a criança para a vida moderna. Esta preparação será melhor se iniciarmos a criança praticamente na própria vida em geral e na social em particular.” DECROLY apud DALHEM,1924, p 9-11

”O destino de um ser qualquer é, antes de tudo, viver [...] a educação deve, pois, ter por fim: primeiro,manter essa vida; segundo, colocar o indivíduo em condições tais que possa conseguir, com um mínimo de tempo e de esforços, o grau de desenvolvimento que implique sua constituição e exija seu meio.” DECROLY & MONTCHAMP, I9i9,p 19

ESCOLA

Decroly acreditava que a escola, por não ser uma instituição independente das outras, precisava preparar para a vida individual e coletiva, refletir tanto a organização como as preocupações da sociedade. Para

transformar o ensino, dizia, deve-se iniciar pela modificação na estrutura física da escola. Queria uma escola viva e para todos.

”A escola que os pedagogos da instrução obrigatóo ria desejam impor a todos não é uma escola para a

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vida, mas uma escola que já não atende aos interesses da maioria devido aos resultados passados por seu atual ensino e às condições ilógicas e anticientíficas nas quais ele se dá [...] Se se tratasse apenas de fazer adquirir a técnica de leitura, da escrita e do cálculo, esse ensino poderia, em rigor,bastar; porém se se pretende, ao mesmo tempo, dar às faculdades e por cima de tudo favorecer a educação, pode-se dizer que o papel que a escola desempenha é bastante insuficiente. [...] há necessidade de progredir com vistas ao futuro e que se leve isso em consideração [as exigências da nova pedagogia] ao construir novos prédios escolares. É necessário pensar em escolas para o povo [...] Uma escola em lugar agradável, pensando-se na rua, rios, bosques, seus habitantes; uma escola onde a natureza variada sirva de modelo para as lições, melhor que as paredes nuas; onde a criança possa observar mais que partes de fenômenos e processos muitos complicados para a sua inteligência, onde possa presenciar o trabalho do homem (lição moral por excelência) [...] Não se pode pretender organizar uma escola para a vida dentro de um quartel sem vida, com um ensino de coisas inertes. [...] Como se pode pretender favorecer a evolução das faculdades da criança, condenando-a à imobilidade e ao silêncio durante as melhores horas do dia e os anos mais formosos de sua existência? [...] Podem-se culpar os métodos e os professores, mas o melhor seria ir mais fundo e recriminar em primeiro lugar a disposição da escola mesmo e o programa imposto. Como modificar este estado de coisas? [...] As reformas necessárias são numerosas [...]” DECROLY & BOON,1939,p 7-29.

Sobre as condições das escolas, os programas e métodos de ensino, recomendava: DECKOLY & BOON, 1939, p 31-2

”— Não passar de trinta o número de alunos das classes comuns, de quinze para a classe de alunos readaptados e doze para a classe de alunos verdadeiramente anormais [,..]

— Modificar o programa de maneira que ele leve em conta a evolução dos interesses, do mecanismo do pensamento, das condições locais, das capacidades da maioria para a aquisição de um programa de idéias associadas;

— Modificar os procedimentos de ensino desde o 1º grau (termo utilizado por Decroly), aplicando-lhes o método dos centros de interesse;

— Dar preferência aos exercícios e à disciplina que favoreçam a atividade pessoal.”

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APRENDIZAGEM

”[...] aprendem [as crianças] independentemente do o método e da escola, porém as crianças de inteligência mediana, mais lentas, no mínimo

reterão alguns conceitos. Para essas é necessário favorecer a aparição destes utilizando meios apropriados. O papel do meio ambiente pode ter, portanto, aqui uma influência muito marcante, segundo se exerça favorável ou desfavoravelmente.” DECROLY apud DALHEM 1924, p 29

”[...] as propriedades da inteligência se traduzem nas definições que se tem dado dela; para uns é um meio de adaptar-se às circunstâncias novas, ou seja, àquelas para as quais não serve o instinto comum; para outros, se caracteriza essencialmente pela compreensão e a invenção, o que significa que faz ressaltar os dados do problema a resolver e permite descobrir os meios de solucioná-las; para outros, enfim, deve ser considerada como a função que permite aprender, significando aqui, esta palavra, adquirir noções sobre as dificuldades que apresenta a vida — quer dizer, sobre as que l não podem ser previstas pelo instinto — e sobre os meios de vencê-las. A inteligência também é considerada como um meio de assimilar o conhecimento, o que, em resumo, significa que serve para aprender ou é função que serve para pensar [...] função que permite tirar proveito do passado para prever o futuro, utilizando as recordações das experiências feitas, com o objetivo de organizar as do futuro.” DECROLY, 1929,p 60.

”O que importa não é isso [dar um número determinado de conhecimentos], mas dar-lhes o gosto para conhecê-los e a chave para aprendê-los.” DECROLY & BOON P 13-8

PROGRAMA DE ENSINO

Um programa de ensino não deve preocupar-se com minúcias, mas possuir algumas idéias gerais, ou diretrizes, que o fundamentem.

”O programa deve buscar a unidade no sentido de que todas as suas partes relacionem-se entre si, formando um todo indivisível {...] O programa deve facilitar a mdividualização indispensável se se deseja que o mai-

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or número de crianças alcancem o fim que se propôs fazê-las alcançar. Deve também permitir amplas e fáceis adaptações ao meio no qual a criança vive e não encerrar o professor em limites estreitos.” DECROLY &. BOON. P. 13-4

No programa, ele distingue quatro necessidades básicas do ser humano: DECROLY & BOON, 1939, p. 18-35.

”1º) Necessidade de alimentar-se, à qual se une, de um modo natural, a necessidade de respirar e de limpeza;

2º) Necessidade de lutar contra a intempérie;3º) Necessidade de defender-se dos perigos e inimigos diversos;4º) Necessidade de atuar e de trabalhar solidariamente, de recrear-se e

de melhorar, à qual se junta a necessidade de luz, repouso, associação, solidariedade e inter-ajuda.”

METODOLOGIA

”[O educador deve] dar [à criança] as noções sobre seu próprio organismo não por meio de uma nomenclatura seca e árida, mas fazendo-a

compreender os mecanismos de seu próprio organismo físico e mental. [...] Os mesmos [mecanismos] que o homem usou para satisfazer as necessidades indispensáveis — alimentar-se, repousar, pôr-se ao abrigo das intempéries, dos acidentes e das enfermidades — devem também ser usados para instruí-lo, prepará-lo para a vida [...] Façamo-lo consciente de sua existência e de sua invencibilidade e mostremo-lhe a contribuição oferecida pela natureza [...] por último, conduzamo-lo a investigar [...] como poderá satisfazer suas necessidades de homem, cidadão, mulher, mãe e cidadã. 1º) a observação representa a lição das coisas e de palavras e as lições de ciências naturais elementares; 2º) a associação no espaço e [a] no tempo substituem a Geografia e a História, porém concebidas de um ponto de vista mais amplo; 3º) a expressão compreende todos os exercícios de linguagem, incluindo neles a ortografia, a linguagem oral e escrita, a produção de textos, etc., assim como os trabalhos manuais, o desenho, o canto, o jogo, a modelagem, a dramatização e os exercícios físicos [...] Quanto ao cálculo, se une

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também estreitamente às outras disciplinas e sobretudo à observação da forma, primeiro de exercícios de comparação, depois de medidas com unidades naturais e, por último [...] de solução de problemas.” DECROLY & BOON, 1939, p. 18-35.

”Os exercícios de observação consistem em fazer trabalhar a inteligência sobre materiais recolhidos em primeira mão, ou seja, pelos sentidos da criança, levando-se em conta os interesses desta, associados à aquisição do vocabulário e portanto dos elementos sobre os quais se referem a leitura e a escrita.” DECROLY & BOON, 1939, p. 86-7.

”A observação deve ocupar lugar preponderante nas atividades escolares, sobretudo no 1a grau (termo utilizado por Decroly)” [...]”DECROLY & BOON, 1939, p. 109.

”[...] as primeiras classes são aquelas onde a observação tem maior importância e deve ser mais investigada [...] nelas são maiores as possibilidades de se elegerem centros de interesse a partir do estado da própria natureza, do meio onde vivem, onde se encontra a escola, através de elementos fortuitos que surgem e que se aproveitam para fazê-los objeto de um centro.Todo esse material não é necessário estar completo todo o tempo, cada dia se farão pequenos exercícios de observações ocasionais, dos quais se poderá, quando necessário, anotar o resultado por meio de representações objetivas, modelagem, desenhos, gráficos, etc.” DECROLY & BOON, 1939, p. 76-88.

Sobre o emprego de materiais, jogos e trabalhos manuais:”De um lado, o ensino absorverá muito material. Este material deverá

ser intuitivo, não sob a forma de gravuras, mas de seres e objetos reais. Se fará uso de jogos educativos [...] que na realidade são noções apresentadas de forma atrativa. Destacamos a importância dos trabalhos manuais, que são o meio mais poderoso para exaltar e respeitar as individualidades. Por outro lado, toda lição compreenderá exercícios para firmar o caráter pessoal da criança, Não se trata de obter trabalhos idênticos para todas, qualquer que seja a matéria, mas produções pessoais diferentes, próprias, que mostrem o grau de

abstração atingido [...] Nada há de novo em tudo o que eu proponho.” DECROLY apud DALHEM, 1924, p. 29.

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”[...] o jogo pode associar-se à imitação, quer dizer, a criança pode imitar o jogo do outro e, então, este último apresenta as características de jogo e o primeiro, as de imitação. Igualmente, a criança que imita pode transformar em jogo o que viu outro realizar, o que dá uma manifestação mais completa das duas tendências.” DECROLY apud DALHEM,1924. p 45-6

”O trabalho manual é um instrumento de cultura dos mais importantes, não somente do ponto de vista técnico mas, sobretudo, do ponto de vista psicológico. [...] A criança classifica espontaneamente os calçados, os chapéus, os veículos. Por pouco que a ajude uma execução em trabalho manual, verá que basta uma palavra para designar essa classificação, e estará criado o conceito. Este modo de proceder leva o aluno a classificar e ensina-o a agir com ordem e método em seus deveres. [...] Os dedos são os que devem trabalhar, prescindindo de toda ferramenta. [...] Assim, para construir uma cadeira [...] se recortam os pés, o assento e o encosto e, depois, se unem essas partes da mesma forma que faz o carpinteiro. [...] Devem ser empregados, também, todos os materiais que se puderem obter: além do papel e da cartolina, devem-se usar caixas de fósforos (carrinhos, locomotivas, vagões, etc.); carreteis de linha ou rolos usados de filmes (rodas, pedestais, etc.)” DECROLY apud DALHEM, 1924. p 45.

LEITURA/ESCRITA

”[...] é necessário introduzir a leitura desde o primeiro ano. Os métodos de ensino devem inspirar-se no princípio de que o que é simples no sentido habitual da palavra não pode ser concreto e, inversamente, o que é concreto não pode ser simples. Convém que o trabalho da criança não se reduza a uma simples cópia; é necessário que seja realmente a expressão de seu pensamento. [...] O que se constata e que se empregam esses termos de maneira totalmente equivocada, confundindo-se o simples com o mais curto, com o partir das letras, dos sons ou das sílabas. [...] Somente este processo segue a evolução mental da criança, para quem o simples é a síntese e o composto é a análise. Precisamos suprimir a maior parte

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de abstrações na leitura, uma vez que esta deve basear-se em idéias o mais concretas possível. [...] Recordemos que o espírito da criança não é sintético, que para ela a frase é mais fácil que a palavra e essa, mais fácil de compreender que a letra. As fases de aquisição da linguagem oral nos mostram que é assim [,..] O mesmo ocorre com a escrita e a leitura. [...] Seu espírito curioso e investigador fará descobrimentos nos símbolos abstratos de urn texto de leitura, que o professor não esperava. Nisto, será este superado pelo aluno. A evolução mental vai da síntese à análise. A aquisição da linguagem oral é uma prova disso e nós consideramos que a aquisição da leitura e da escrita deve seguir a mesma evolução. [...] Para mentalidades fechadas, a letra é mais

sensível que a palavra, a palavra é mais sensível que a frase. Para mentalidades infantis, a frase é mais sensível que a palavra e esta, mais que a letra.” DECROLY apud DALHEM, 1924, p 52.

PROFESSOR

”[...] cumpre ao mestre renovar a sua mentalidade, lendo, meditando, experimentando aos poucos [...] é necessário que a mão seja dirigida pelo cérebro da criança e não pelo professor, o que resultará num ensino com maior liberdade, [...] um trabalho de criação e não uma cópia servil, e [a criança] descobrirá a importância do trabalho pessoal.” DECROLY apud MOURA, 1931, p. 35.

”[...] ter presentes esses interesses espontâneos do escolar, fazê-los brotar quando ainda latentes e explorá-los ao máximo quando despertam. [...] o professor deve ressaltar em cada oportunidade a união íntima que existe entre todos os fenômenos e todos os elementos do universo; desde um raio de sol, que produz o calor e a luz, manancial de toda a vida, ao micróbio, nosso mais poderoso inimigo, até o átomo infinito, do qual o microscópio apenas se nos permite adivinhar os contornos.” DECROLY & BOON, 1939, p. 21.

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3 Recuperando Freinet...

Seja como for, temos de esquecer a nossa formação escolar em que a objetividade pretendia explicar tudo e as nossas obrigações estritamente pedagógicas se identificavam com a mania de ensinar; à nossa frente, sem nos pedir licença, a criança envereda por outros caminhos, os que lhe são próprios, e por processos de tentativas, essencialmente instintivos, deslocando-se para onde quer, certa do concurso dos seuspoderes como o caracol segregando a concha. Há que entrar resolutamente no reino da infância.

Celestin Freinet, 1977, p. 297.

Célestin Freinet (1896-1966) foi exemplo de luta pela transformação da escola, queconsiderava desligada da vida, distante da família, teórica e dogmatica.

Apesar das dificuldades e limitações do período que mediou as duas guerras mundiais, Freinet procurou fazer da escola um centro de atividades e a tudo recorreu para transformar a situação social que não aprovava. É considerado o primeiro educador a fixar as bases para o desenvolvimento de uma. psicologia da ação, embora ele mesmo nunca tivesse chegado a considerar os anos de investimento e trabalho como aquisições definitivas. Encarava-os, antes, como um grande passo para o conhecimento dialético e humano do pensamento infantil e de suas possibilidades.

Para Freinet, a criança que a todo instante dá provas dejsuas aptidões criadoras, que imagina, inventa e cria, só pode ser compreendida e orientada mediante uma pedagogia e uma psicologia da construção e do movimento. Essas idéias, inteiramente inéditas, tinham como suporte as teorias dos grandes clássicos e educadores escolanovistas, que procurou interpretar e vivenciar com os alunos. ”Li Montaigne e Rousseau, e mais tarde Pestalozzi, com o qual senti ter grandes afinidades. Ferrière, com a sua Escola Ativa e a Prática da Escola Ativa, orientou as minhas tentativas”. Rousseau 1975a, p. 21.

Freinet é filho de sua época. Como Rousseau em Emílio, Frinet procurou conhecer a maneira de ser e pensar da criança para ajudá-la nas dificuldades quando da estruturação dos próprios conhecimentos; como Decroly, valorizou a proposta de globalidade da vida anímica, proporcionando ampla gama de atividades, que os alunos podiam escolher livremente, individual ou coletivamente. Nelas acomodava toda a programação escolar, sem rompimento com o meio, com o interesse da criança ou com a vida.

Seus escritos são o registro vivo do trabalho e das pesquisas que desenvolveu e documentam uma concepção antropológica de educação bastante inovadora. Fundamentados em uma vivência histórico-social situada e em um pensar interdisciplinar mostram a valorização do homem, do coletivo, do homem da periferia e das classes trabalhadoras, considerando o erro como possibilidade para aprendizagem.

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Freinet propõe uma metodologia da ação totalmente diferente da utilizada na época, uma metodologia que não se acomodava com os velhos

instrumentos, deixando de lado os manuais escolares, símbolo da pedagogia opressiva. ”Está falseada toda pedagogia que não se apoie em primeiro lugar no educador, nas suas necessidades, nos seus sentimentos e nas suas aspirações mais íntimas.” Freinet 1977a, p. 206.

A essa pedagogia experimental dedicou a maior parte do seu tempo, reinventando e inventando técnicas e atividades, que o ajudaram na edificação de um projeto próprio, calcado em reflexões críticas sobre a educação da época, que nunca deixou de questionar. ”Duvidar do que é certo e não do que é duvidoso, eis a sabedoria [...] Bem longe de ficarmos satisfeitos com os primeiros sucessos, constrangiam-nos as insuficiências e as fraquezas, tínhamos consciência das lacunas a eliminar e não deixávamos de procurar, por tentativas, os ajustamentos materiais e técnicas susceptíveis de tornar mais eficiente todo o nosso sistema educativo.” Freinet 1973b, p. 8.

Na linha de Rousseau, dizia que o educador, como um jardineiro, precisa trabalhar a terra onde a semente deve germinar; cuidar pessoalmente de acompanhar, dirigir o nascimento e crescimento da planta. Para ele, os educadores ”deixavam essa ocupação aos técnicos de base que, por falta de organização, de instrumentos e de técnicas, não conseguiam transformar seus sonhos em realidade”. Freinet 1975, p. 17-8.

Para construir uma teoria com base na ação, era preciso não separar a educação da vida ou isolar a escola dos fatos sociais e políticos que a determinam e condicionam. Freinet voltou a estudar para adquirir a cultura e a formação pedagógica que lhe faltavam, pois havia interrompido os estudos no segundo ano da Escola Normal, onde se formaria professor primário, quando foi convocado para o serviço militar. Ao regressar da guerra, é nomeado (1º de janeiro de 1920) professor adjunto de uma classe rural em Bar-sur-Loup (Alpes Marítimos), no sul da França. Embora ainda em recuperação dos ferimentos de guerra (lesão pulmonar), inicia imediatamente o magistério. Semjnenhuma experiência docente e com pouco conhecimento teórico, enfrenta muitas dificuldades, mas nada o faz acomodar-se. Inscreve-se como candidato ao cargo de inspetor primário e, utilizando o programa proposto

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para o concurso, lê e relê os autores que haviam influenciado o desenvolvimento da Pedagogia e da Escola Ativa: Comenius, Montaigne, Rabelais, Rousseau, Pestalozzi, Spencer, William James, Wundt, Ribot, além dos educadores escolanovistas. Procura relacionar todas essas teorias com as suas intenções e e com o tipo de ensino e aprendizagem em que acreditava. Sentia necessidade de reaproximar a escola da sua essência, recuperar o homem natural, o que não poderia ser feito sem uma mudança metodológica.

Começou por pesquisar e testar com seus alunos as novas técnicas de ensino, e foi assim que descobriu o uso da imprensa na escola. Em vez de tirar patente ou guardar segredo da descoberta do material que estaria na base do novo bétodo – o material --, Freinet abriu-se à coooperação. Em vez de isolar-se procurou uma forma de trabalhar melhor com os professores. Para ele, no processo de construção da cultura, o homem trilhou caminhos diferentes graças a circunstâncias históricas, mas percorreu as mesmas etapas na elaboração e aquisição de conhecimentos. Por meio do fazer, do tateamento, da satisfação das necessidades e interesses, o homem construiu sua cultura.

Freinet compara a construção da cultura à de um edifício: sem alicerce, sem andaimes, sem quedas ou erros a humanidade não teria chegado ao ponto atingido nem continuaria a avançar com novas conquistas. Para ele, o homem só ousa lançar-se à frente quando se sente apoiado em patamar firme. Depois volta a pesquisar e experimentar, até erguer um novo plano cultural, pois não pára nunca.

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Para alguns, Freinet não inventou nada. suas técnicas já haviam sido propostas por outros — o que também teria ocorrido com Rousseau e Decroly. A releitura dos clássicos orientou, sim, seu pensamento e sua ação. No entanto, ele criou muitos princípios novos. Freinet nunca negou o que devia a seus predecessores. Sua originalidade está na forma como assimilou esses ensinamentos e na coerência com que os utilizou. Para apurar e selecionar, no processo, as técnicas mais adequadas ao objetivo pretendido, propõe um outro papel para a escola e para o professor. A escola deve colocar à disposição das crianças os meios para, depois, organizar, sistematizar, enriquecer ou ampliar as suas experiências; deve criar situações desafiadoras que, despertando a curiosidade, as levem a pensar, mas não sem antes querer resolvê-las.

PROPOSTA PEDAGÓGICA DE FREINET

Freinet chama seu método de natural porque procura aproveitar o meio natural, a terra, a água, as plantas e os animais, isto é, toda a natureza. Qualquer criança, mesmo as da periferia e da classe trabalhadora, pode retirar dela seus ensinamentos. Não foi assim, observando a natureza, suas transformações, tentando explicar suas leis, seu ritmo, dominá-la, que o homem construiu a ciência?

Com boa vontade e muitas idéias, Freinet pesquisou alternativas de ensinar e de aprender que lhe permitiram priorizar o trabalho como meio e a busca do conhecimento integral e interdisciplinar como fim. Os conhecimentos das crianças, relacionados uns aos outros nas trocas e cooperação mútua, eram considerados por Freinet como pilares na construção de uma escola viva: a escola moderna.

Freinet não aceitava os procedimentos clássicos ou dicotômicos, uma escola e uma pedagogia que não preparavam para a vida. Para ele, a questão metodológica é de exclusiva responsabilidade do professor, que, com

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intuição e sensibilidade, com equilíbrio, domínio e autoridade, até sem preparação especial, sem técnicas ou material, pode conseguir resultados satisfatórios Basta saber coordenar, organizar ointereses das crianças, incentivar a descoberta e aguçar a curiosidade O emprego do método pessoal, ou seja, da postura de quem quer aprender — sobre o mundo, sobre os alunos, sobre si mesmo —, rever a própria formação (possivelmente escolástica e autoritária) é o primeiro passo para a mudança Na classe Freinet, o professor deve buscar e encontrar as soluções para um born trabalho. ( Citação: Freinet

empregava muito o termo escolástica com o siguinificado de formação tradicional.)

Dependendo dos procedimentos que utiliza, o professor pode gerar desprazer e desatenção nas crianças; é o caso das longas exposições orais, do uso intensivo dos manuais e das composições, do exagero das tarefas e exames Se o aluno não aprende é porque o ensino de alguma maneira não lhe interessa. É de lamentar ”qualquer método que pretenda fazer beber o cavalo que não está com sede”.FREINET, 1985, P. 16

A sua proposta pedagógica exige uma postura diante da \ ida que difere de tudo o que se ensinava nas escolas. Para ele, havia como que um hiato entre as escolas e i vida impedindo que a criança buscasse ou trabalhasse com fatos de sua própria existência e da natureza.

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Na prática, procura seguir o empenho dos alunos e transformá-los pela livre expressão, pela vivência coletiva permeada pelo meio ambiente, pela ação. Freinet começa por anotar, diária e minuciosamente, os progressos dos alunos, os pontos positivos e negativos do seu desenvolvimento. Graças à confiança que depositava nas suas crianças e à observação constante, era capaz de apontar o que lhes era necessário. Nada lhe escapava’ Conhecedor das personalidades, tentava captar o momento em que uma criança demonstrava interesse em aprender para imaginar ou inventar novas formas de ensinar. Segundo Élise Freinet, sua esposa e colaboradora, ”muito naturalmente, sem ambição nem preconceitos, tentou adaptar um ensino livre de formalismos às suas possibilidades físicas limitadas e às reações dos seus pequenos alunos. Dia a dia, foi improvisando, comparando o seu comportamento com o dos alunos”. FREINET, É., 1978, p. 22-3.

Experimentando, observando, melhorando, comparando, Freinet erigiu as bases de um movimento hoje conhecido internacionalmente. Quarenta e três países estão ligados à Federação Internacional dos Movimentos da Escola Moderna (Fimem), sediada em Bruxelas, para desenvolver a cooperação internacional e o intercâmbio de práticas pedagógicas em todos os continentes. Como associação, a Fimem facilita os contatos e auxilia a pesquisa, a divulgação de experimentos e inovações cooperativas, utilizando: a correspondência internacional; as publicações de jornais, revistas, etc.; a organização de estágios, encontros, seminários, etc.; a troca de materiais didáticos; a constituição de grupos de trabalho (nacionais e internacionais); a organização bienal de um Encontro Internacional dos Educadores Freinet (Ridef); mostras e exposições de trabalhos.

A Fimem é uma associação de movimmentos nacionais e grupos regionais de todo o mudo. que se inspiram na pedagogia popular e na educação operativa iniciada por ’Freinet. É também reconhecida como organização não-gomamental pela Unesco. No braasil, há três grupos regionais — Norte/Nordeste/Sudeste e Sul —, que estão ligados à Fimem.

Freinet tinha a obstinação de honrar a profissão que escolhera e de buscar, entre os seus pares, caminhos para melhorar a qualidade do ensino. Por meio do diálogo com os professores e com o uso do conhecimento científico, procurava estreitar as relações com o outro e com o mundo,

desejando ”encontrar uma maneira de trabalhar sem me isolar dos meus colegas”. FREINET, 1975, p. 20-1

Ao descobrir a imprensa escolar, lança-se à execução de um projeto interdisciplinar: a organização da primeira cooperativa para divulgação das experiências. Circulares, boletins, revistas de textos infantis, como

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La Gerbe, são impressos e intercambiados. Nascia a CEL, Cooperativa de Ensino Leigo, organização financeira para amparar as publicações, a fabricação e a difusão de novos instrumentos pedagógicos.

Rompeu-se o isolamento em que vivia o professor e que lhe gerava insegurança. Lançaram-se as bases de um movimento pedagógico fortalecido e integrado, espontâneo, no qual todos participam de alguma forma, contribuindo para a produção de um conhecimento gerado da experiência. ”Um projeto interdisciplinar de trabalho ou de ensino consegue captar a profundidade das relações conscientes entre pessoas e coisas. Nesse sentido, precisa ser um projeto que não se oriente apenas para o produzir, mas que surja espontaneamente, no suceder diário da vida, de um ato de vontade frente a um projeto que procura conhecer melhor. No projeto interdisciplinar não se ensina, nem se aprende: vive-se, exerce-se.” FAZENDA, 1991 a, p17.

O exercício da vivência cooperativa é um elemento do processo experimental que Freinet coloca no centro do próprio conhecimento pedagógico e de suas técnicas de vida. Visitas a várias escolas comunitárias e participações em congressos, embora o tenham ajudado, não lhe forneceram nenhuma solução acabada que pudesse aplicar em sua escola de aldeia. Ele mesmo começou a traçar suas trilhas pedagógicas. Aprofundava Conceitos, descobria e redescobria técnicas que facilitassem a tarefa de orientar a aprendizagem dos alunos. A classe popular começou, assim, a luta para adaptar a educação dos seus filhos às suas necessidades específicas. A confiança na criança e a fé na vida foram essenciais para a criação de uma escola do trabalho, na qual as crianças se realizavam e onde, ao mesmo tempo, priorizavam-se o meio natural e a atividade construtiva. O importante era mudar os espaços e as mentalidades dar outra abertura ao processo educativo.

Sobre a escola, Freinet dizia: ”Concebemos a esta instalação material (da escola primária) uma importância mais decisiva do que geralmente se crê no que respeita ao sucesso dos métodos [...] Se a própria escola não estiver no centro da natureza auxiliar, se ela não pode estar sempre nas proximidades dos bosques, de riachos, de rochedos, de terrenos de cultura, é indispensável, pelo menos, que esteja rodeada e reforçada pelo meio

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natural [...] com o seu jardim — horta e pomares —. o seu prado, o seu rochedo, o seu aviário, sem esquecer os espaços livres para os jogos, acampamentos, construções, etc.”. FREINET, 1976b, p.68-9

Sua pedagogia preconiza uma escola viva. feliz, onde se trabalha e constrói, dando significação social ao trabalho. Considera que a concentração necessária para qualquer aprendizagem deve significar, antes, um esforço

normal, a busca de determinado objetivo que está naturalmente na linha da vida, o que não pode ser conseguido num meio escolar diferente do meio vital da criança.

EM BUSCA DO EQUILÍBRIO: A ESCOLA DO TRABALHO E DO PENSAMENTO

O trabalho, por envolver integralmente o ser, fornece abertura para a sua realização psicológica. Logo, o trabalho pedagógico deve ser dinâmico, deve partir da base, do conhecimento que a criança já domina, e, respeitando o seu ritmo, proceder de forma que a Teve à plena realização do seu potencial de adaptação à ação. Comparando o ritmo de vida da criança contemporânea com a de alguns séculos atrás, ele percebeu que, antigamente, a criança habitava, alimentava-se e trabalhava da mesma forma que as gerações que a haviam precedido, isto é, não havia alterações profundas e radicais do meio: morava na mesma casa, comia o mesmo tipo de alimento que havia alimentado, com sucesso, gerações anteriores e usava as mesmas ferramentas, nos mesmos campos, para fazer nascer os mesmos grãos e colher os mesmos frutos. Era uma técnica de vida quase perfeita, pela qual a criança herdava naturalmente os conhecimentos, as reflexões e o born senso das gerações que caminhavam bem próximas dela, tutelarmente. Agora, a vida é alterada por uma tecnologia ao inovar, desequilibra e modifica o homem e o meio.

O indivíduo necessita se equilibrar, tanto como de avançar, realizar, ultrapassar a si mesmo e dominar os obstáculos. Ao medir sua força diante do obstáculo, ao exaltar seu potencial de vida e levar ao outro sua ajuda

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individual, a pessoa ”mudará o aspecto do mundo, dominará a natureza, glorificará o destino do homem”. FREINET, 1976a,p 41

O meio é o determinante da mudança: ”Um indivíduo maguinifico à partida, com um potencial máximo de poder e equilíbrio, pode soçobrar rapidamente a um meio hostil e pervertido, enquanto um ser deficiente pode ser regenerado por um meio mais favorável e mais eficiente”. FREINET 1976a p., 44-5

Freinet destaca a importância da integração entre família e escola, uma vez que ambas dependem, e muito, da sociedade à qual a criança pertence e das experiências bem-sucedidas.

Cabe ao educador conhecer as tendência.s naturais da criança para orientar sua intervenção, para não se ’opor à corrente de água mas trabalhar no seu sentido e ritmo, ou seja, no sentido da sua construção. As regras não devem ser impostas pelos adultos; é a criança que deve lançar ”os pilares em que vai assentar a sua construção”, caso contrário estaremos ”no campo da domesticação” e ”domesticação não é educação”. FREINET, 1976a, p 75

Para trazer a vida até a escola é necessário mudar a concepção do processo de ensino-aprendizagem Para Freinet, a escola do futuro será a escola do trabalho e do pensameto integrada no processo geral da vida ambiente: a criança torna-se sujeito, e o professor, aquele que orienta, estimula e facilita sua aprendizagem.

Os jogos devem ligar o interesse da criança às tendências vitais do ser se quisermos um ensino ativo, que privilegie suas atividades criadoras. Para Freinet, quando a criança executa uma atividade que a envolve, ela concentra-se naturalmente na tarefa, triunfando ao descobrir as próprias potencialidades. Quando a criança trabalha de acordo com seus interesses e necessidades, a intervenção do professor limita-se à organização do trabalho, sem imposições ou ameaças. E, ainda, empenhada em uma atividade que a requisite física e psicologicamente, ela adquire disciplina de forma natural.

O meio ambiente contribui na medida em que proporciona experiências e ensaios mais ricos. Da fusão dos dois. surge o equilíbrio necessário.

Como a criança traz, em si, os germes para o própno desenvolvimento e realização, basta o educador a palavra e proporcionar os meios para que se de forma consciente. Usando as próprias

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vivências, sentimentos, conhecimentos, a criança vai querer expressar-se. Não o fará, porém, se não sentir um clima de confiança, aceitação e permissão. a liberdade é necessidade individual e social e, embora relativa, faz parte da vida e do trabalho de cada um.

Com o trabalho, o homem desenvolve total e afetivamente suas potencialidades; não se lhe retira o encanto de construir... ” A criança que com efeito se entrega ao trabalho-jogo [...] é constantemente solicitada pela sua necessidade de conhecer, pelo seu desejo de experimentar, de comparar, de controlar, e também pela sua tendência para reproduzir por sua vez pela criação e ação [...] é um processo profundo que exige muito mais que uma simples explicação verbal. Necessita de um esforço que busca penetrar no objeto para conhecê-lo em profundidade.” FREINET, 1978, p. 171.

A criança deve ser preparada para o papel de homem e trabalhador ativo ou seja, para seu papel social. Por meio do trabalho-jogo, poderoso elemento do comportamento humano, ocorre o estreitamento de relações entre os membros da sociedade, desenvolvendo o melhor que existe em cada um, pois ele (o trabalho-jogo) é tudo. Inteligência, razão, caridade, fraternidade, bondade, justiça, generosidade são características que estão presentes somente no homem que ”pode conservar o sentido do trabalho-jogo” , pois a verdadeira fraternidade, dizia Freinet, ”é a fraternidade do trabalho”. FREINET, É, 1978b,p.44-5.

O trabalho é o único meio de expressão e de exaltação das necessidades de ser, o único elo comum entre os membros da sociedade. A criança quer trabalhar, cabendo ao educador tornar possível o trabalho-jogo, que leva ao verdadeiro conhecimento.

O essencial é permitir que a criança, desde pequena, conheça não só o que está a sua volta, aquilo que lhe vem dos sentidos, mas também o que rio passado ou no espaço; não apenas ensinar-lhe os elementos da história, da geografia, das ciências ou das matemáticas, mas permitir que conheça para enriquecer sua natureza e exaltar seu poder sem limite à imaginação. A metodologia é essencial. O educador pode ajudar a criança motivando-a a agir, criar, realizar — ou simplesmente impor seus métodos, sua disciplina e passar um saber pronto, que não chega a ser transformado pelo indivíduo em verdadeiro conhecimento.

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A LTVRE EXPRESSÃO

O conhecimento é necessário e os indivíduos procuram-no espontaneamente. Freinet considera três estágios de aprendizagem, que devem se interpenetrar e completar a experimentação, a criação e a documentação.

Enquanto a experimentação e a criação são atividades mais comuns, a documentação só é obtida por meio de registros como o livro da vida, a ficha, o jornal, a correspondência, os intercâmbios interescolares, as fotografias e outros meios e materiais. A documentação representa uma tomada de consciência de alguma experiência realizada, ajuda o conhecimento a avançar até lugares distantes, com audácia e segurança. No entanto, quase não é praticada nas escolas. Poderia ajudar a criança que ainda não sabe ler, escrever ou contar. Como documentar sem aprender ao menos os rudimentos dessas técnicas? (citação: Livro da vida livro no qual os, alunos registram, com desenhos ou fotos, os acontecimentos mais importantes de cada dia da classe).

O importante é que o desejo de aprendizagem e de conhecer parta da própria criança e ela sinta sem demora o resultado da sua atividade.

Há dois conceitos-chave na proposta de Freinet: trabalho e livre expressão. Não há a preocupação com a quantidade de conhecimentos, mas com o processo, com a sua construção. Praticar a livre expressão significa inverter o método que a escola utilizava para produzir a aprendizagem, para ensinar. A inversão começa quando a escola passa a ver a criança não mais como um ser que não tem conhecimentos e ao qual o professor tudo precisa ensinar. Na Escola Moderna, o professor parte da tendência natural da criança para a ação, a criação, a vida, permite que ela se expresse, exteriorize seus conhecimentos Como afirma Élise Freinet, ”a livre expressão não é invenção de um cérebro particularmente privilegiado: é a própria manifestação da vida!” FREINET, É, 1979,p 12

Citando Lamarck, ela mostra que Freinet desvincula a livre expressão de seu significado parcial e escolar, devolvendo-lhe o verdadeiro sentido e amplitude. ”A livre expressão foi para Freinet uma aventura; [.. ] estabelecendo o elo permanente entre os impulsos internos e a crescente multiplicidade dos estímulos externos [.. ] a criatura se impõe como ator de seu próprio equilíbrio e didotação de sua ação de viver [...] há um único prouni\ersal. pesquisar, a pesquisa válida no decor-

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rer de toda a ascensão universal da vida. do unicelular aos seres superiores da mais complexa fisiologia. às mais altas funções da consciência e da vontade.” FREINET, É, 1979, p 12-3

A experimentação é o eixo em torno do qual giram todas as aquisições infantis. Cabe ao professor favorecer e organizar o meio, de forma que seja

possível a tentativa experimental. Das tentativas experimentais e das combinações conseguidas, os êxitos são repetidos e se transformam em regras de vida, que são ”a sistematização dos triunfes, diminuindo as falsas manobras e os riscos de erro”. FREINET, 1977a, p. 43.

As experiências bem-sucedidas passam a integrar os hábitos de vida e conduzem a novas situações, enquanto uma criação propriamente dita parte do conhecimento, real ou instintivo, da experimentação consciente ou inconsciente e, por meio da imaginação, eleva-se à concepção ideal do devir humano.

MOTIVAÇÃO: A VIDA DA CRIANÇA

Uma das críticas mais comuns à escola é a excessiva importância dada ao aspecto intelectual. Freinet também a faz, propondo a desintelectualização dos processos de aprendizagem: coloca na base a ação, o trabalho e todas as formas de exploração, exigindo atividades vivas ou relacionadas com a vida da criança. Ela deve trabalhar com prazer; é o interesse que a faz avançar. O controle e a autoridade do adulto devem reduzir-se a fornecer os meios, despertar o interesse e orientar a criança que, por si só, vai querer criar, agir e realizar.

Freinet alerta para a força dinâmica que é o interior de uma criança. Quando prudentemente dirigida, essa força conduz a um beneficio próprio: uma aprendizagem significativa. E nisso também ele inova, uma vez que todo o seu trabalho foi voltado para a criança da classe popular.

A motivação é intrínseca, é parte do interesse sem o qual não se conseguirá concentração e atenção. Élise Freinet conta o caso do aluno Joseph, o amigo dos bichos: ”Acabado o recreio [. . . ] enquanto a coluna se põe em marcha, Joseph, que vinha atrás, sai a correr [. . .] e vai ajoelhar-se diante de um muro. Esquadrinha as ve-

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lhas pedras com o olhar ávido [...] Intrigado, Freinet observa Joseph que, com gesto devoto, eleva os braços para a parede, à altura dos olhos”. Havia no buraco do muro uma lagartixa que prendera o interesse do menino. Freinet percebe que esse interesse deve ser trazido para a sala de aula, a fim de evitar desintegração do pensamento infantil, flagelo da escola tradicional. É para isso que propõe atividades relacionadas ao dia-a-dia dos alunos, ou a escola como continuidade da vida. FREINET, É., 1978, p. 25.

Os educadores tradicionais tomaram por pensamento vital palavras vazias; subestimaram os gestos construtivos e sobre eles quiseram enxertar outros gestos, incompreendidos pelas crianças. Preocupada em ensinar, a escola tradicional não se concentrou no que realmente poderia levar a criança à verdadeira educação; não considerou a natureza social e formativa do trabalho, substituiu-o por regulamentos, normas e um rol de disciplinas. A escola muitas vezes exclui a criança por não lhe proporcionar uma educação efetiva e eficaz, que, para Freinet, é a educação da vida pela própria vida.

Novinha, dinâmica, a criança chega a um mundo em que tudo é mistério para ela, tudo está para ser explorado. O seu campo de experimentação é infinito, se o homem não o limitar arbitrariamente. ”Para a criança, a vida é uma mesa posta com uma variedade infinita de manjares, onde, em qualquer

momento, ela encontra alimentos ao seu gosto. Se reduzirmos essa escolha apenas a algumas variedades, pode acontecer que a criança se afaste, que mostre fastio ou repulsa, que se oponha e bata com os pés no chão.” FREINET, 1976,p. 216-7.

Os indivíduos que viveram os seus primeiros anos em contato com a natureza têm, em geral, vivência muito mais rica e equilibrada, mostram-se mais dinâmicos para a realização do seu destino, pois possuem experiências tateadas na base de seu comportamento atual.

A criança também participa da vida da natureza: cresce, desabrocha, sofre como as plantas e as flores. Ela não pára de comparar, calcular, experimentar, praticar espontaneamente a mais normal e proveitosa das iniciações.

Os conhecimentos, as explicações, as lições só têm valor se ligados às experiências pessoais. Para Freinet, a escola e o educador tradicionais têm demasiada pressa. Em vez de buscar enriquecer o ser humano, os conteú-

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dos que transmitem são alienados da vida; há preocupação apenas com a quantidade, enchem-se cadernos, impõe-se a memorização. Se o educador não tiver paciência, não der tempo para o aluno assimilar os conteúdos, não fará mais que um trabalho de superfície, que não só pode ser inútil, como também perigoso. Segundo Freinet, ”a natureza terá que quebrar esta crosta que incomodará e desviará o seu florescimento e porque, finalmente, será forçada a procurar, apenas do mal que lhe fizeram, as linhas normais e salutares do seu crescimento”. FREINET, 1977a, p. 62

A educação não deve ser apenas um verniz espalhado sobre o metal fundido. Ela deve gravar-se na criança para toda a vida, produzir marcas permanentes; na escola, cabe ao professor oferecer modelos, estimulando experiências pessoais, acompanhando e interpretando suas hipóteses e nunca reduzindo a sua ação a um ensino estreito, acanhado, exclusivamente escolar e individualista. Felizmente, a criança fora das aulas retoma quase todos os seus direitos.

Na escola, a criança precisa encontrar a continuação da vida no lar e não ser transportada para outro mundo, diferente do que vive, um mundo de horários e deveres, com outro ritmo, outras regras às quais tem de se adaptar mais ou menos depressa. As crianças convertem-se em sujeitos orientados exclusivamente sob o ponto de vista escolar; em vez de assimilar os conhecimentos por si mesmas, fazem-no por meio do professor ou para o professor.

Com freqüência, Freinet fugia às regras preestabelecidas pela escola. De temperamento audacioso e não se conformando com a passividade que a escola do seu tempo impunha à criança, compreendia que precisava colher, na própria vida das crianças, os novos elementos para o seu trabalho pedagógico. A solução encontrada foram as aulas-passeio, em que levava os alunos para onde eles se sentiam felizes, fora das quatro paredes da sala de aula.

Segundo Élise Freinet, para satisfazer a necessidade üfc Síwòaòe òa criança, seu marido ”começou por ir buscar à vida da aldeia, às cercanias da escola, os elementos de base dessa nova educação. Levou os alunos à oficina

do tecelão, que, muito obsequiosamente, pôs todo o seu saber à disposição do bando juvenil e curioso”. FREINET, 1978, p. 32.

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Para manter o interesse que a visita havia causado, fez um pequeno tear na sala de aula, compôs um poema sobre o tecelão e leu-o aos seus alunos. A partir desse dia, os alunos compreenderam a utilidade dos poemas e começaram a aprender alguns. Logo, um círculo grande de profissões havia sido transposto para poemas: marceneiro, ferreiro, padeiro, etc.

Não era mais o professor que ensinava, mas o aluno que procurava aprender, explorando os arredores da escola. Esta se abrira para a vida pela cooperação, pela organização regular do trabalho e pelo estabelecimento de relações mais humanas entre professores e alunos, num meio pedagogicamente favorável. Ela não tinha mais só a preocupação de formar o homem de amanhã, consciente de seus direitos e capaz de cumprir seus deveres no mundo, mas também a de transmitir-lhe a verdadeira cultura, integrada na vida dos homens.

Freinet pretendia buscar na experiência coletiva os elementos necessários para uma aprendizagem crítica e dialética, por intermédio de uma pedagogia popular e democrática. O processo precisava ser natural. Como a criança aprende a falar experimentando sucessivamente todas as possibilidades fisiológicas e técnicas, todas as combinações que o seu organismo permite — movimento da língua e dos lábios, ação dos dentes, inspiração e expiração —, imitando o adulto, deverá ser orientada pela escola a aperfeiçoar mais e mais a sua linguagem.

A SENSIBILIDADE DO EDUCADOR

Um método artificial, embora aparentemente lógico e científico, não nos permite captar toda a sensibilidade infantil. Para desabrochar, a criança exige um clima de liberdade e confiança, no qual a simpatia e a disponibilidade venham ao encontro das suas iniciativas mais secretas. Uma metodologia voltada para o rendimento escolar pode ter boas intenções, porém o rigor do controle a excessiva preocupação com a disciplina exterior atropelam e inibem a espontaneidade da criança, não permitindo avaliar suas reais possibilidades. Toda aprendizagem deve permitir o conhecimento das própias regras que lhe formam a base.

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A expressão livre não é uma simples fórmula que o educador se limita a observar e deixar seguir, mas uma pedagogia ousadamente centrada num trabalho interdisciplinar, integrado com a vida comunitária e social. ”A mãe não se contenta em escutar o balbucio do filho, fala-lhe constantemente. A velocidade e a qualidade da aquisição infantil serão função da riqueza não só formal mas também afetiva do exemplo permanente que ela oferece às suas experiências.” FREINET, 1976, p.27- 6.

Se o trabalho escolar fosse motivado como o comportamento fora da escola, a criança naturalmente sentiria a necessidade e o desejo de estudar,

aperfeiçoar experimentalmente suas técnicas, tornando-as mais eficientes diante dos problemas complexos da vida. Embora aalfabetização, ainda que mecânica, possa levar a pessoa a ler e escrever sem erro, ela dificilmente estará harmonizada com os pensamentos, fatos ou acontecimentos expressivos.

Leitura e/ou escrita e compreensão são dois momentos distintos da mesma operação. Há o mecanismo da leitura ou da escrita e a compreensão do sentido. A criança pode chegar a decifrar sem saber, no entanto, traduzir as palavras em pensamento. É necessário deixar a criança falar e/ou escrever livremente e a sua maneira as palavras do próprio vocabulário, sem esquecer-se de motivá-la a buscar o próprio aperfeiçoamento. Pela pedagogia tradicional, a criança aprende as vogais — a, e, i, o, u —, depois as combina comp, t, r, s, para formar sílabas e sons mais complexos, que dão origem às palavras. Na vida, o processo ocorre de forma diferente: a criança ainda muito nova faz-se compreender muito antes de dominar a técnica da fala, da leitura ou da escrita. Mesmo conhecendo apenas quatro ou cinco sílabas e/ou palavras, ela as modula com habilidade, de forma a construir palavras e frases que chegam a surpreender os adultos.

O desafio é o professor ser formado para entender que a criança, quando chega à escola, já interage ou tenta compreender que espécie de sinais são aqueles que se utilizam para ler e escrever. Portanto, a questão que se coloca, e que não deveria existir, é a da dependência entre mecanização e processo inteligente. A proposta de Freinet constituía o início da transição da

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mecanização (codificar e decodificar) para a construção (ênfase nos conteúdos ou no processo de aprendizagem da escrita). Era preciso conseguir, pois, abstrair o objetivo da alfabetização, que é favorecer o desenvolvimento da comunicação e expressão com ênfase no processo de produção e utilização de textos. Mas a questão continua: qual o caminho para diminuir a defasagem entre aquilo que o professor conhece/aprendeu sobre a alfabetização e o modo como desenvolve essa alfabetização em sala de aula?

Ao contrário do jardineiro, que só cuida das flores do jardim quando elas estão prestes a desabrochar, os educadores, conscientes dos erros de sua formação, tudo devem fazer para não os passar adiante. Devem começar pela preparação do terreno: oferecer born alimento à jovem plantinha, e cuidadosamente manter afastadas as ervas daninhas, folhas e ramos supérfluos, permitindo que chegue à planta o máximo de luz, ar e sol.

”[...] as vossas pequenas plantas viverão, crescerão o e florirão, não, na verdade, conforme os caprichos da vossa vontade, mas segundo as linhas misteriosas da sua compleição, cumprindo, cada uma delas, o melhor possível o apelo profundo do seu destino. Deveis [os educadores] aprender do jardineiro esta integração da vossa ação na harmonia natural e principalmente esta comovente confiança na vida, esta paciência exemplar na presença do lento processo pelo qual se elaboram a riqueza da Primavera e do Verão, a fecundidade do Outono, a calma serenidade do Inverno.” FREINET, I977a,p 60

Talvez a filosofia que ainda falta ao nosso educador e que Freinet recupera de Rousseau seja a paciência da espera. Quando dá uma lição ou trabalho ao aluno, quer imediatamente verificar o resultado. Grita, assusta,

castiga porque acredita que suas palavras, suas demonstrações e seus raciocínios devem proporcionar uma modificação imediata no pensamento e na ação dos educandos.

O verdadeiro educador deve ser sensível para acompanhar a construção do conhecimento por parte da criança. Mas, para isso, não pode esquecer as riquezas da infância, que, segundo Bachelard e os artistas e poeus citados por Freinet, duram toda a vida.

O professor que dá apoio a seus alunos, desempenhando o papel de catalisador e de confidente, ajuda-

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os a veneer obstáculos, conservar a iniciativa e o entusiasmo, proporcionando-lhes maiores possibilidades de triunfo na vida.

Não devemos assumir uma postura de especialistas que dominam o saber, mas simplesmente de profissionais conscientes do seu papel de educador. Hoje, inúmeros pedagogos, psicólogos, antropólogos, lingüistas procuram estudar e interpretar como a criança constrói o seu conhecimento da língua escrita. Cada qual a seu modo busca descobrir, nos grafismos infantis, uma demonstração da sua ciência especial e tudo, no geral, continua dentro de concepções puramente pessoais. No entanto, quando esses achados chegam à prática e são utilizados por professores reais no contato diário com a criança, surgem algumas dificuldades e perigos. Sistematizam as diligências da criança apenas num sentido ou projetam situações adultas e mais ou menos fantasiosas nas situações simples e ingênuas das crianças. Acreditam que uma teoria advinda de uma pesquisa em laboratório pode esclarecer definitivamente o que a criança pensa em relação à escrita. Nessa aprendizagem, como em todas as outras, adverte Freinet: ”A simples explicação teórica e o estudo formal das regras e das leis não bastam para fundamentar algo de sólido, de lógico ou de definitivo. O grande segredo da educação inicial, de que estamos a nos ocupar, consiste precisamente em permitir a experiência por tentativas da criança em todos os domínios”.FREINET, 1976, P. 108.

”Todos somos pesquisadores; pesquisar é um processo instintivo através do qual o homem busca o próprio crescimento: tateia porque quer caminhar em direção a um objetivo que serve à vida. Não são as conquistas que impulsionam o homem para a frente? Escrevia Freinet em sua sétima lei do comportamento: ’Uma experiência vitoriosa enquanto se pesquisa cria como um apelo ao de poder, e tende a se reproduzir mecanicamente para transformar-se em regra de vida.” FREINET, É, 1979. P. 123 )grifo nosso).

A automatização só acontece como um ato inteligente, isto é, a pesquisa, antes mecânica, torna-se inteligente ao inscrever-se no processo funcional do indivíduo (permeabilidade à experiência). Élise Freinet sintetiza as palavras de Freinet pelo esquema que veremos na página seguinte.

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Síntese de É. Freinet sobre o comportamento humano durante o processo de pesquisa: FREINET, É, 1979,p 124.

(esquema: um fator seguido do outro)

Recarga vital → pesquisa → Conquista → Permeabilidade à experiência → Regra de vida

O fator: Recarregamento de energia reflete sobre: Permeabilidade à experiência e Regra de vida

AS FASES DA ESCRITA

O método natural, a livre expressão e a pesquisa experimentai são o prolongamento da experiência pessoal; respondem a todas as exigências do indivíduo e favorecem as aprendizagens.

Para Freinet, toda tentativa da criança tem um objetivo, uma finalidade — imediata ou não — que precisa ser iluminada por atividades construtivas. É o indivíduo que deve construir as bases profundas de seu conhecimento, pois só assim obterá a unidade do saber.

A língua materna nunca é esquecida, nem uma sílaba sequer, porque foi construída no período afetivo da primeira infância, de forma natural. A linguagem familiar contrasta com a linguagem aprendida na escola — para fazer os exames ou satisfazer as exigências do currículo escolar —, que precisa ser constantemente praticada para não ser esquecida.

Como outros pesquisadores, Freinet acompanha o processo de aquisição natural da língua observando longamente sua filha Baloulette (Bal), que nunca conheceu o método tradicional. Como toda criança normalmente desenvolvida, desde muito cedo buscou experimentar o seu poder: ”Bal (l ano e 8 meses) viu-me escrever com um lápis numa bela página branca e imediatamente sentiu a necessidade de me imitar; pega num lápis que agarn desajeitadamente como um cabo... Deste lado, decepção! Não há riscos! Mas do outro — que maravilha! i movimento da mão deixa o seu traço mágico.

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As linhas duplicam-se, cruzam-se ao acaso, sem qualquer ensaio de coordenação e, contudo, deste primeiro e informe desenho, progressivamente vamos ver nascer, precisar-se e florescer a sutil expressão gráfica [..] O grafismo, a princípio absolutamente informe, organiza-se lentamente [...] Este primeiro domínio do utensílio é incontestavelmente um progresso e uma vitória”. FREINET, 1977a, p 79-80

Nessa fase, as crianças realizam suas primeiras tentativas de comunicação por escrito, para exercitar a mão. Dependendo de cada criança, podem apresentar-se por meio de grafismos retos ou verticais, meandros, linhas quebradas ou circulares, ou uma combinação de vários elementos, chegando, às vezes, a representar figuras geométricas mais ou menos regulares e até justapostas. Na repetição e conseqüente aperfeiçoamento do grafismo, há como que uma intenção automática. À medida que melhora seu traçado, a criança tenta justificá-lo com uma explicação posterior. De modo algum, diz Freinet, pode-se considerar que nessa fase é o pensamento que dirige e regula qualquer ato de criação; ao contrário, é deste que originalmente nascem a explicação, a comparação e o pensamento.

Freinet divide em cinco as fases da aquisição da escrita, como se pode ver no quadro. À primeira chama fase do grafismo simples, ou não-diferenciado, constituída de tentativas de exercitar a mão. Em estudo

comparativo entre a evolução do grafismo e da linguagem oral na criança, afirma: ”Ao nascer, a criança grita porque o seu aparelho respiratório e a conformação da sua laringe são tais que produzem sons à passagem do ar. [...] O mesmo sucede com o primeiro grafismo. Existe, na base, uma realidade material: a possibilidade de dispor de um instrumento — lápis, giz ou esferográfica — que produz o primeiro traço”. I977b,p 37-8

Fases da escrita segundo Freinet:1ª fase - fase do grafismo simples ou não- diferenciado. A criança utiliza

– se de garatujos; grafismos separados ou ligados por linhas curvas ou quebradas.

2ª fase - fase do graftsmo diferenciado e/ou justaposto. Os grafismos começam a se aproximar das formas das letras e dos numerais Nessa fase, a criança já começa a diferenciar desenho e escrita

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3ª fase -fase da imitação da escrita: utilização de letras do próprio nome ou nomes conhecidos com repetição e automatização do grafismo conseguido. Pelo método natural, a criança procura interpretar seus desenhos e sua escrita.

4- fase - fase da utilização dos sinais convencionais (letras e números), com ou sem valor sonoro. A criança já percebe que há regras e formas fixas a imitar. Começa a interpretar e reproduzir textos e a solicitar referências aos adultos.

5ª fase - fase da escrita alfabética. A criança domina e identifica um número razoável de palavras e sabe se comunicar por escrito. É o começo da escrita consciente, da qual a criança não se separará mais.

”Ao primeiro grito corresponde o primeiro grafismo.” (FREINET, 1977b, p. 38)

Esta ainda não é uma escrita, mas o primeiro desenho. A criança só consegue traçar com êxito uma linha reta ou um oval regular depois de ter rabiscado linhas curvas, quebradas, irregulares.

Para aprender a desenhar, isto é, para copiar exatamente um modelo ou para realizar-se, enriquecer-se e crescer, a criança desenha. Não é expressão nem comunicação consciente, mas um processo de criação como muitos outros. A criança desenha para imitar o adulto. Suas primeiras garatujas, seus primeiros triunfbs precisam ser transformados num sólido ponto de partida para uma educação altamente promissora, FREINET, I977b,p.20.

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pois a livre expressão e a intuição proporcionam à criança a progressão indispensável para a criação e integração metodológica.

Observando seus alunos e sua filha Bal, Freinet descreve, passo a passo, o trajeto rumo à aquisição da escrita. Na época, suas idéias eram bastante avançadas, pois os pais e os educadores afirmavam que as crianças não sabiam desenhar nem pintar e deveriam ir à escola para aprendê-lo. Esta lhes forneceria as noções técnicas necessárias, uma vez que os sistemas psicológicos e pedagógicos consideravam que a formação do indivíduo devia acontecer de forma cumulativa, por meio da aquisição de mecanismos e conhecimentos. ”Não obstante os ensinamentos dos pensadores e as

demonstrações teóricas dos investigadores do passado e do presente, a escola, seja de que nível for, continua persuadida de que não há cultura possível sem um estudo metódico de tegsas e àe. \e\s, que seriam os seus elementos constitutivos, o esqueleto a que em seguida bastará insuflar vida. Os meios práticos desta cultura são a memorização, os exercícios, as lições e os fatores de sanção inerentes.”FREINET, 1977b,p.21.

Freinet mostra o contrário, ou seja, que não é pela explicação intelectual, pelo recurso às regras e às leis que se faz uma aquisição, mas pelo mesmo processo geral e universal da tentativa experimental (a mesma utilizada para falar e andar) é que a criança construirá o seu conhecimento. Todo homem tem necessidade de triunfar e, para Freinet, o fracasso é sempre destruidor e perturbador: ”É a doença, o sofrimento e a morte. E o indivíduo quer viver”. FREINET, 1977a, p 22

Toda aquisição é fruto de tentativa experimental pessoal, que apenas diversifica e acelera o processo. É uma aprendizagem na qual não há necessidade de lição ou regra; um processo global, o mesmo que regula a aprendizagem da fala e do andar e que está na base de todos os atos correntes da vida, da música, do canto, da pintura, da linguagem escrita, etc. Freinet, no seu método natural, convida-nos a acompanhar a evolução da criança no desenho e na escrita, evidenciando que a prática da alfabetização (como a prática pedagógica em geral) é sempre social e, como tal, dinâmica e dialética. A primeira fase é semelhante à que Emilia Ferreiro denomina nível I, ou pré-silábica. Ambos confrontaram

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suas propostas com as dos métodos tradicionais. Como ela, Freinet considera que, ”antes mesmo de entrar para a escola infantil, aos 2 anos, estabelece-se um contato entre a criança e o sinal convencional (cartazes, sinais de qualquer ordem)”. FREINET, I977c, p 44

Alguns desses sinais, conhecidos e compreendidos, serão retomados espontaneamente pelas crianças na aula: o sentido de proibido, por exemplo, quando o espaço é demasiado restrito para a circulação sem regras. Nesse momento, a ”leitura” é global. Freinet afastou sua filha Bal da tirania dos métodos tradicionais porque ela, como qualquer criança pequena, não tinha ainda condição de entender o que são e o que representam a leitura e a escrita. Foi esse o seu objetivo e não o desejo de fazêla viver afastada do mundo, como um novo Robinson Crusoe (citado por Rousseau). O objetivo dessa intervenção era mostrar-lhe exemplos melhores e colocar a sua disposição instrumentos próprios para suas necessidades de criação, expressão e relação.

Freinet vê o educador como aquele que medeia a construção do conhecimento pela criança, ficando entre esta e o objeto do conhecimento. Ao relatar, pormenorizadamente, a evolução do processo de aquisição do grafismo pela criança — do desenho à escrita —, Freinet indica as formas técnicas desse auxílio que, para ele, é a tarefa por excelência do educador que quer contribuir para a formação e as aquisições da criança.

A criança evolui naturalmente dos rabiscos ao desenho, depois à imitação dos sinais gráficos de palavras e de letras, à utilização de palavras e sinais, para desenvolver, em planos sempre mais complexos, a experiência

tentada, que aperfeiçoará a sua expressão. Para a criança ascender de uma fase a outra é necessário, segundo Freinet, que um novo elemento intervenha, sem o qual não há razão de ser da escrita. Daí a importância dos estímulos e da paciência, de esperar a criança caminhar no próprio ritmo: ”[...] não basta partir muito cedo e a toda velocidade. O importante é o ponto de chegada e o estado da criança nessa chegada. [...] Não tentaremos dotar os passarinhos de asas fictícias para os pôr demasiado cedo fora do ninho. Deixaremos pacientemente que as penas cresçam e se desenvolvam, certos de que o vôo há de chegar sem falta, no monento desejado, natural e forte”. FREINET, 1977a, 119-22

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Não se trata de inventar a técnica da escrita, mas de reinventá-la, imitando a forma estabelecida e imposta pelo meio. A criança que deu um grito, ao perceber a sua repercussão no ambiente, vai querer repeti-lo. Não sabe ainda como fazê-lo, porém é importante afirmar o seu poder e alcançar o domínio fisiológico desse êxito. Seus desenhos são um meio de ação sobre o meio. Da mesma forma, ela executa o seu primeiro grafismo, depois vai repeti-lo e aparecerão traços retos, sobrepostos e circulares, que gradualmente irão se complicando com a introdução de linhas quebradas. Para Freinet, é como o desejo ”de dominar o instrumento e orientar o seu uso no sentido de formas que representam já um começo de diferenciação”. FREINET, I977b,p. 40-3.

(Desenhos de 2 crianças: Bruno aos 2 anos e 3 meses.Dominique, aos 2 anos e 4 mesesFREINET, 1977b, p.39-40.)

“Os traços inicialmente direitos, sobrepostos ou mesmo circulares, complicam-se gradualmente com a introdução de linhas quebradas.”(FREINET, 1977b, p. 4)

Mariette. aos 2 anos e 4 meses. ’A criança, imtada por ter feito nscos circulares, esboça com gestos mais bruscos traços atiguíosos. riscos carregadost,parfim,fatigaila, acaba por dar grandes pancadas com o bico do lápis.” (FREINET, 1977b, p. 41)

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Nascem pontos e manchas que antes não existiam. É um novo triunfo, um triunfo mais especializado, que a criança vai procurar reproduzir mecanicamente até dominar. Repete grafismos, diferenciando-os em muitos outros elementos, agora também justapostos. Aos riscos arredondados acrescenta pontos e manchas, da mesma forma que acrescentará o grito aos gestos. É o início da segunda fase da escrita, ou fase do grafismo diferenciado e/ou justaposto.

Desde os primeiros desenhos ou garatujas das crianças, ”aparecem sinais diferentes do desenho que a crianca interpreta como sinais escritos. Estas primeiras formas da ’escrita’ podem estar ligadas ou separadas. Podem ou não acompanhar desenhos”. Freinet referese à ilustração a seguir. FREINET, I977c, p 44

(Primeiros grafismos de Claude e Netty: diferenciação entre desenho e escrita. FREINET, 1977c p.45.

O primeiro contato da criança com a língua escrita é pelo seu próprio nome, que a professora escreve nos seus desenhos, no seu estojo, na sua mesa, etc. e que a criança consegue reconhecer. ”Vê-la-emos seguidamente utilizar certos elementos-letras desse nome para ’escrever’, empregando simultaneamente os sinais primitivos.” FREINET, 1977c, p 46

Leonel (4 anos) copia o nome, após ter tentado escrevê-lo sozinho, utilizando certas letras desse nome — L, f. n. l e outras (p) — e, simultaneamente, sinais gráficas pessoais para dar os parabéns à mãe.

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(Figura FREINET, 1977c.p.47: Leonel, aos 4 anos. Escrita a partir das letras do nome)

Bal também aperfeiçoará sua técnica não só do ponto de vista gráfico, mas também da lógica da explicação. Esse grafismo será particularmente um triunfo, se o adulto ou as outras crianças lhe derem importância.

(Figura: Bruno, aos 2 anos e 4 meses. E Mariette, aos 2 anos e 5 meses.FREINET.1977c;p47)

A repetição de grafismo conseguido e mais especializado automatiza-se..A criança conquistou um um novo patamar. “criança esforça-se para reproduzir a mancha negra no meio dos rabiscos, vitória traduz por pequenos grafismos isolados.” (FREINET, 1977b, p. 43)

Na fase anterior, a criança ainda não havia tentado explicar o seu desenho, pois nada significava; era apenas uma forma global imitada do adulto. No entanto. se lhe perguntássemos o que desenhara, ela iria procurar explicar seus grafismos. É o que está representado nas figuras a seguir, nas quais Nicole e Mariette procuram interpretar os próprios grafismos.

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(Figuras)

Nicole (aos 2 anos e 5 meses), em cumplicidade com oprimo Alain, distingue no desenho uma maçã e uma flor. (FREINET, 1977b, p. 44)

Na tentativa de interpretar o mesmo desenho, como na figura anterior, Mariette distingue sobre o papel: um sol, biscoitos, a lua, o medalhão da mamãe e até o coração da flor. (FREINET, 1977b,p.45)

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O reconhecimento sincrético e sensível do conteúdo do texto é a única razão de ser da leitura. De início a criança ”lê” as palavras que escreve, uma vez que só escreve aquilo que compreende. Depois, por tentativas, vai penetrando cada vez mais no reconhecimento dos sinais que, mudos ou verbalizados, constituirão a verdadeira leitura, como dois processos simultâneos.

Primeiro, a criança familiariza-se com o valor, o sentido e a figura psíquica das palavras. Para Freinet, ”a profundidade e a riqueza desta primeira

aquisição experimental são o escalão prévio do qual decorrerão a rapidez e a segurança das aquisições ulteriores”. FREINET, 1971 a, p. 133.

Diferentemente do aprendizado da leitura em cartilhas, que reduzem os exercícios a séries de palavras descontextualizadas e que não levam em conta o esplendor das conquistas vivas das crianças, pelo método natural de leitura a criança começa lendo as próprias palavras que escreve.

O mesmo acontece com o desenho e a escrita: a criança que vive em um ambiente estimulante — em que vê o adulto escrever e desenhar, dispõe de lápis e papel, convive com adultos que valorizam suas primeiras produções — experimenta com mais intensidade o êxito. Ela vai querer se apoderar desse instrumento social mais rapidamente, primeiro como meio de ação sobre o ambiente e, depois, como forma de expressão.

A criança que convive com a escrita e que encontra desenhos por toda parte (em jornais, revistas, anúncios, embalagens) vai querer escrever e/ou desenhar. Cabe ao professor criar, na sala de aula, um clima favorável à eclosão e ao desenvolvimento da escrita e do desenho infantil. Bal passa a imitar Freinet na leitura e na escrita, embora não tenha ainda qualquer idéia da significação da leitura e do que a escrita representa. ”Ela não faz aquilo como um jogo, mas porque acredita realmente que aqueles que lêem decifram no papel aquilo que está nele, tal como ela lê nos desenhos o que está no seu próprio pensamento e apenas isso [...] Bal vê-me escrever com uma grande facilidade, como se eu fizesse uma coisa natural. Tal como para a leitura, isso não a surpreende. Uma vez que é tão fácil ler, certamente não é mais difícil escrever [... ] Bal chegou agora a uma etapa nova: na sua página existe, por um lado, o desenho e, por outro, um texto manuscrito que

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é o complemento necessário para a explicação narrativa do desenho ou que talvez não seja mais que um ensaio que vai aperfeiçoando na imitação de uma técnica a que o adulto ostensivamente da grande importância ” FREINET, 1977a,p. 93-8, (FIGURA : FREINET, 1977a,p. 96,)Diferenciação entre desenho e escrita

(FIGURA:Bal imita Freinet: ao terminar a página< assina e sublinha.

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O exemplo, diz Freinet, é muito importante, pois, se a criança tem a tendência de imitar o adulto ao querer inserir uma ação exterior no processo de sua própria tentativa, é porque vê nisso uma finalidade. Ele compara essas duas primeiras fases com o treinar a pegar no arco e a fazer gemer as cordas do violino: enquanto não dominar a técnica do grafismo, a criança avança por tentativas, ajustando lentamente as suas experiências, repetindo os êxitos conseguidos. E, novamente, exemplifica com um desenho de Bal: observa que a menina ”desenha grafismos bem definidos na carta que o pai escreve à avó: um pato, o automóvel, a flor, etc. Mas toma consciência da escrita adulta, da sua rapidez e dos seus sinais dispostos em linhas. Assim, na carta à avó sente

necessidade de reforçar a sua aquisição gráfica com a imitação da escrita, um meio de expressão até então desconhecido”. FREINET, I9~!7b,p 48

(FIGURA: Freinet, 1977b,p. 49)Desenho de Bal aos 3 anos e 10 meses. O processo empregado para o

desenho transfere-se agora para a escrita

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Se o ambiente favorecer a tentativa experimental da criança, mais rapidamente ela avançará na escrita e entenderá o que é e o que representa.

Ao assinar seu desenho, Bal usa o mesmo princípio dos grafismos conseguidos e escreve duas vezes o mesmo motivo, grifando-os. Posteriormente, essa escrita é repetida e se diferencia totalmente do desenho, como se pode ver a seguir.

(FIGURA: FXEI.\ET, 1977 a, p 100) Diferênciação da escrita, apoio para novas conquistas.

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(FIGURA: FREINET, 1977 a, p 101)Escrita autônoma, diferenciando-se do desenho

Seus caracteres aproximam-se mais das letras convencionais, configurando uma nova fase, que Freinet descreve minuciosamente: ”Vemos aparecer o primeiro sinal diferenciado: a cruz que imita o í. É um primeiro triunfo de uma reprodução fácil e simples, mas não deixa de ser para a criança uma conquista definitiva, um degrau vencido que servirá de ponto de apoio para as outras conquistas. Observa-se também um regresso ao desenho justaposto e sobreposto com texto a completar a página. Aparecimento do e ou /. Além dos t e dos /, os o ou a diferenciam-se lentamente”. FREINET, 1977 a, p 101

Na figura que ilustra a escrita autônoma, além dos sinais já citados, há disposição sintética do texto, com título e assinatura (sublinhados). É o alvorecer da verdadeira escrita

Quando acontece essa libertação, assegura Freinet, ”começa a sua história autônoma. [.. ] Mas, a partir dessa separação, para que a evolução prossiga, é necessário que intervenha um elemento novo sem o qual a escrita não teria razão de ser. [...] O texto manuscrito entregue à sua própria sorte não é mais que um rabiscar sem significação intuitiva nem beleza atraente. Só ganha o seu valor pela sua função de instrumento, de intérprete para exprimir um desejo, um pensamento ou uma ordem”. FREINET, 1977a, p 103

Enquanto o desenho pode bastar-se a si mesmo, produzir beleza, vida, cores, o texto precisa ter a função de um instrumento ao qual aquele que escreve sente o desejo de recorrer. A escola tradicional não descobriu

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essa motivação e, por isso, impõe um ensino de fora ou pelo constrangimento. Se antigamente a escrita era pouco utilizada, é porque o homem nada tinha a dizer para corresponder-se com outros homens afastados. Em nosso século,

as descobertas e a intensificação dos deslocamentos humanos tornaram mais e mais necessária a utilização de meios de comunicação a distância — e a escola permaneceu, timidamente, no estágio primitivo, sem motivar para a escrita.

Hoje, as crianças e familiares recebem cartas com fotografias, convivem com muitos escritos, percebem a razão da escrita e da leitura. Isso é ainda mais acentuado nos lares onde elas são expostas freqüentemente a atos de leitura e escrita. Freinet criou em sua sala de aula um ambiente semelhante ao das crianças da classe média, introduzindo nela o jornal escolar e a correspondência ínterescolar, reproduzindo o mesmo ambiente que Bal vivenciava em sua casa. Escrevendo muitas vezes e em presença da filha, correspondendo-se com parentes distantes, ele vê que a menina também sente vontade de escrever para a madrinha, para a avó ou para as primas. Aos 4 anos e 3 meses, Bal começa a escrever as suas primeiras cartas independentes do desenho, iniciando a utilização dos sinais gráficos convencionais, embora sem valor sonoro ou qualquer diferenciação progressiva e global do conjunto gráfico.

(FIGURA: FREINET: 1977ª, p. 106.)Bal, com 4 anos e 3 meses, escreve à prima O documento mostra

progresso na escrita linhas quase regulares, margem, uso de sinais convencionais da escrita (t, o, a, e, l)

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(FIGURA: Freinet, 1977,a, p. 107.)“Bal copia para adquirir o dominío da técnica.”A menina passa a perceber que há regras e formas fixas a imitar. Já

escreve o próprio nome e os das pessoas queridas, começando a relacionar o som à grafia. O sentido da escrita, como a ligação entre a língua falada e a escrita, está descoberto e já aparece o entendimento da convenção (emprego de letras e números). Não há mais mistura entre o desenho e a escrita.

Começa a quarta fase da escrita ’e é somente nela, diz Freinet, que a criança vai se interessar pelo texto redigido em comum na sala e tentar reproduzi-lo: ”Copia algumas letras ou palavras de um livro ou de um jornal. Aplica-se durante alguns dias a reproduzir números que são sinais nitidamente separados, de uma forma mais geométrica e menos caprichosa do que as letras. Vamos assistir primeiro à evolução destes ’exercícios’ espontâneos ou, antes, continuados, não como obrigação, mas sob o impulso das necessidades nascidas da nossa poderosa motivação”. FREINET, 1977a, p 107.

(FIGURA)”Bal experimenta o seu domínio, utilizando sinais em cujo traçado

triunfou anteriormente.” (FREINET, 1977a, p. 108)

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Os sinais, longe de serem rígidos e quebrados como numa escrita de base analítica, são ágeis e ligados, formando uma espécie de harmonia sintética. Só após atingir o domínio da técnica, a criança começa a estabelecer relação entre o grafismo das palavras e a palavra oral ou o pensamento.

Percebe que as letras e as sílabas são sinais, grafias de sons que ela pronuncia ao falar e que, associados ou combinados, permitem traduzir graficamente, escrever as suas palavras e as suas frases. Durante muito tempo, a criança utiliza essa conquista para pôr a funcionar o novo instrumento adquirido, nomeando desenhos, escrevendo os nomes próprios de familiares: papai, mamãe, vovô, Max, Germaine, Dedé... Essas palavras conhecidas são como que o eixo para todos os grafismos. Começam os pedidos de referência à professora e a sua utilização em frases e expressões. Numa classe Freinet, os textos das crianças são afixados e, depois de impressos, constituem o livro da vida da sala de aula.”[...] a identificação da palavra com o objeto, a compreensão do código e a cópia cada vez mais correta das letras avançam consoante o ritmo de cada criança, mas num ambiente rico e numa atmosfera propícia.” FREINET, 19770, p 49

Aos poucos, as crianças deixam de utilizar essas referências e, com um maior domínio da língua escrita, o sentido do sinal passa a revelar-se na identificação do objetohistória com a expressão escrita (sentido do texto)

Quando dominar e identificar um número razoável de palavras, suficientes para compreender o pensamento nelas expresso, a criança conseguirá ler o texto. Bal, comenta Freinet, no dia em que lê a palavra forêt (”floresta”), ”começa por ler ’for-te’... Mas que quer dizer aquiIo? Lê finalmente: Ia forêt, mas precisa ainda um momento para vestir a palavra na sua verdadeira figura, para identificar o grafismo e o som e o sentido que contém. Ah! compreendi, disse ela por fim.. Por vezes lemos sem saber ler Sabemos ler a palavra, mas não sabemos o que ela quer dizer. É como se não soubéssemos ler”. FREINET, 1977a, p 134

As palavras de Bal nos esclarecem sobre o fenômeno da explosão, ao qual os pedagogos davam tanto destaque com sua ingenuidade, a menina fala aquilo que o educador nem sempre consegue dizer. O verdadeiro sentido da leitura, para Freinet, não se adquire por meio de exercícios estéreis de fonetização com base em si-

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nais manuscritos ou impressos, “mas pelo reconhecimento do pensamento expresso pela interpretação destes sinais”.FREINET, 1977a, p. 135.

No decorrer da evolução novas conquistas vão se juntando, integrando e justapondo às primeiras, de forma mais ou menos lógica. Às vezes, temos a impressão de que a crança regride. É o começo da escrita consciente e da qual ela não se separará mais. Difere da escrita em que a criança é treinada e passa a imitar letras, copiar palavras e frases.

(FIGURA: FREINET, 1977a, p. 114.)Bal, aos 5 anos e 6 meses.Novas palavras ou sinais vêm intercalar-se

ao texto, totalmente original, ao lado de desenhos explicativos (reminiscências do passado).

A copia e o ditado nessa metodoligia tomam outro sentido “A criança escreve todas as palvras que conhece, seja pela cópia imediata de um modelo, seja por uma construção fonética que irá aperfeiçoando até reproduzir o mais exatamente possivel a figura gráfica, por assim dizer, “oficial destas palavras”. FREINET, 1977a, p.134.

Ele convida o educador a abandonar, temporariamente, as preocupações escolares para ver os problemas da construção e uso da língua escrita com mais objetividade. Já no inicio do século. XX, denunciou que o ensino praticado nas escolas impedia a criança de redigir, ao impor prioridade ao dominio do rabiscar com modelos ou pontilhados. “Tais documentos obrigan-nos a ultrapassar as considerações escolares do realismo, as explicações parciais e tão pobres pela habilidade motora da

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mão, coordenada com a acuidade visual. A criança situa-se para além das preocupações pedagógicas do pedagogo; acha-se imersa num estado de vida total que ultrapassa os seus meios de expressão; arrisca-se integralmente numa tentativa experimental que inflama todas as lenhas; é por si próprias que as energias instintivas se invocam, se disciplinam e se educam para criar.” FREINET, 1977b, p. 380.”Não lhe virá à idéia, para escrever, de fazer uma aborrecida página de ’i’, depois uma página de ’o’. Reproduzirá à sua maneira os grafismos de que viu os modelos. Esboçará primeiro os gestos rápidos da vossa caneta, que vai e vem, gira como uma formiga atarefada e pára de quando em quando para fazer pontos. Ah! isso mesmo, os pontos e os pequenos riscos serão as primeiras conquistas no seu grafismo, com que semeará a página. Depois deste rabiscar por imitação, sempre emergirão alguns triunfos [...] aos quais a criança ciosamente se afeiçoará, primeiros degraus de onde partirá com segurança e dinamismo para continuar a ascensão.” FREINET, 1977a, p. 73.

Na quinta fase, propõe explorar totalmente a livre expressão da criança que, segundo ele, ultrapassa em amplitude o simples globalismo, segundo o qual a criança vê o todo antes de distinguir as partes. Mesmo admitindo as descobertas psicológicas e pedagógicas da época, como as de Decroly, Freinet entende, diferentemente desse, que a criança constrói pelo processo de tentativa experimental, por atos conseguidos, sucessivamente encadeados e subordinados a uma visão central que domina ao mesmo tempo o todo e aparte.

Piaget, contemporâneo de Freinet, gostava de repetir: ”Tudo aquilo que se ensina à criança impede que ela o invente. [...] isso porque não há maneira de apropriar-se de um conhecimento sem compreender seu processo de construção, quer dizer, reconstruí-lo”.PIAGET, apud, AMAE, S.D, P.5

Se hoje temos muitas crianças desadaptadas, evasão e repetência, uma das causas, talvez a maior, esteja nos erros metodológicos, na repetição de lições enfadonhas das cartilhas ou manuais, cujos resumos, questionários ou exercícios os alunos precisam decorar. Freinet propõe uma metodologia que restabeleça os circuitos normais com a vida, permitindo que a criança se expresse naturalmente, construa e crie. Propõe partir não do texto do adulto, mas da vida da criança, da sua expressão lê escrita, do seu texto livre; basear-se nos princípi-

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os das práticas ancestrais que asseguraram o êxito na aquisição da fala, do andar da criança e para os quais todo ato conseguido se reproduz até tornar-se

técnica de vida. Ele costumava repetir que as experiências que nós mesmos construímos são como degraus sólidos de uma escada que nos conduzirá aos andares superiores. ”Enquanto não dominar a marcha, a criança só pensará em dominar o equilíbrio. Uma vez senhora desse equilíbrio, poderá então partir para outras experiências.” FREINET, I977b,p 35

Quanto à questão do tempo, cada criança tem seu próprio ritmo; umas conseguem mais rapidamente apoderar-se de uma experiência e automatizá-la, enquanto outras demoram mais, precisam de vários estímulos. O importante é o educador saber que todos chegam lá, que tudo é questão de tempo; que o trabalho da criança esteja fundamentado na pesquisa e ação próprias (fundamento da investigação científica) e não seja artificial, imposto pelo adulto. O educador não deve apressar, mas estimular o processo. Embora algumas crianças possam levar dois ou três anos para dominar a escrita, ele deve saber esperar.

Imaginemos se todas as famílias resolvessem apressar seus filhos para que falassem antes de estarem aptos para tal. É o que aconteceu com nossa filha Paula. com um ano e oito meses ainda não falava. Mamãe chegou a sugerir que consultássemos um especialista. Pedimos-lhe paciência pois, na hora certa, a menina falaria. Alguns meses depois, viajávamos juntos de carro e mamãe chegou a se irritar porque Paula falava tanto que a impedia de conversar.

O mesmo acontece com a escrita e a leitura. É possível, por um processo autoritário, ensinar uma criança a ler e a escrever mais rapidamente, tal como se ensina um papagaio a falar. Mas isso prejudica o seu equilíbrio. O tempo que o educador julga ganhar com essa iniciação será perdido, pois a criança não conseguirá realizar as ligações íntimas que fazem da leitura/escrita uma expressão e não uma eterna e desesperante tarefa, cuja gênese se desconhece. Quando o processo de aprendizagem da leitura e da escrita está ligado intimamente à vida psíquica e social da criança, surge com sentido total e verdadeiro. Comenta Freinet: ”Nossa criança saberá ler e para sempre, porque esta aprendizagem natural fará corpo com a própria vida e o processo de evolução do indivíduo”. FREINET, 1977a,p 209.

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O trabalho do professor é acompanhar essa evolução em seus diferentes estágios e registrá-la, como fazia Freinet. Élise organizou todos os registros deixados por Freinet e publicou-os depois de sua morte, como é o caso das ricas coleções de desenhos dos alunos.

O registro e a troca de materiais escritos (produções infantis), frutos quase sempre de realizações coletivas, são ainda uma constante entre os simpatizantes do movimento da Escola Moderna em todo o mundo. Do mesmo modo que adquire a técnica da linguagem escrita, para se comunicar a criança utiliza-se do registro da correspondência. Comunica-se com outras crianças ou pessoas familiares e vai sempre aperfeiçoando essa técnica.

(FIGURA: freinet, 1977c, p.51.)Sexta-feira 17 18 de março de 1966 / hoje há sol / hoje as nuvens

foram-se embora / ontem brinquei com os meus carros em casa / ontem houve nuvens no lago

ESCRITA PESSOAL E LIVRE

Freinet fazia o estudo global dos textos que as crianças escreviam livremente e traziam para a sala de aula e dos que elas recebiam dos correspondentes, propondo varias atividades: reconhecimento das palavras do texto — com recorte e reconstituição em linhas, em palavras —, cópia do texto, escrita espontânea de textos ou de palavras escolhidas pela criança, compreensão dos textos e de cartas dos correspondentes, aquisição de formas escritas, etc.

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As crianças eram acostumadas a escrever sozinhas; nessa fase, ainda não há preocupação com a ortografia, apenas com a expressão e a compreensão. No entanto, continuarão a aperfeiçoar-se, buscando à sua volta os meios para enriquecer e variar sua técnica. Desse momento em diante, afirma Freinet, ”o caminho à sua frente está livre. Sabe escrever: sabe fixar no papel os pensamentos que deseja comunicar. [...] E conseguirá com tanto mais segurança e rapidez quanto o ambiente for favorável e a ajudar”. FREINET, 1977a,p 124-5.

Freinet mostra a evolução da escrita de sua filha: ”Bal descobriu, portanto que as letras são sinais gráficos de sons que ela pronuncia ao falar e que, ao associar e ao combinar estes sinais, pode chegar a traduzir graficamente, a ’escrever’ as suas palavras e as suas frases”. FREINET, 1977a,p 126.Aperfeiçoará cada vez mais sua escrita, não copiará, mas exprimir-se-á de forma satisfatória para a sua idade.

Contrário ao ensino de regras gramaticais e sintáticas na fase em que a criança ainda está aprendendo a língua escrita, Freinet considera a ortografia como complemento. Seu ensino serve para aperfeiçoar a escrita, podendo construir belos textos mesmo com incorreções ortográficas. Cita Anatole France: ”Os grandes clássicos, de Comeille a Voltaire e o próprio rei Luís XIV, não se preocupavam com a ortografia... O estudo da Ortografia constitui para a criança uma considerável perda de tempo e contribui para restringir o desenvolvimento do conhecimento humano”. FREINET, 1977a,p 224.

Freinet valorizava a escrita pessoal e livre que permite à criança expressar seus sentimentos, em vez de utilizar apenas a lógica e a memória. Ao condenar os exercicios sistemáticos com que se leva a criança a praticar ortografia apenas pela repetição, enchendo páginas e páginas dos seus cadernos, nos dá uma grande lição. Não basta saber se a criança é capaz de escrever sem erros — valor especificamente escolar —, mas se sabe exprimirse com elegância e sentimento, se está em condições de manejar a língua com destreza e habilidade, se sabe demonstrar, convencer, comover. É uma nova visão, que vai muito além do aspecto puramente ortográfico.

A criança marcada por um ensino autoritário, atrelada à lição e à cópia, é como uma chama que, depois de acesa, vacila e apaga-se, uma flor prestes a desabrochar que murcha e seca. Ao vir para a escola, a criança tem conhe-

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cimentes que devemos ajudar a ampliar. Se os alunos não sabem desenhar nem pintar, se não têm idéias e esperam passivamente que o professor ou o livro as forneça, é porque foram marcados por um método que lhes tirou essa espontaneidade para a criação, o que é muito triste.

Os métodos tradicionais ainda são praticados em nosso país. Apesar das medidas do Ministério da Educação e Cultura e das Secretarias de Educação — horário integral nas escolas para permanência dos alunos das séries iniciais, do ensino fundamental, formação em serviço de professores pelo Programa de Educação Continuada (PEC) —, a mudança de postura dos educadores ainda não se completou. Continuamos a preparar uma massa de crianças analfabetas, porque, mesmo sabendo ler e escrever, são incapazes de exprimir, por escrito, as dificuldades de sua vida, as suas alegrias, desgostos ou sonhos. Disso resulta termos mais oradores — um domínio no qual ainda não se impuseram regras — que escritores.

Para Freinet, o erro dos métodos tradicionais está em partir dos textos eruditos para ensinar a língua. A expressão e a criação pessoais são nossas marcas, enquanto os exercícios formais estão na razão inversa da atividade criadora. Em nossa própria escrita de adulto, muitas vezes riscamos o que escrevemos, começamos tudo de novo, voltamos a uma expressão e a modificamos. Estamos aperfeiçoando o nosso texto. É a criação literária em toda a sua complexidade, com todas as suas virtudes arrebatadoras e fecundas.

Só depois de ter passado pelo processo de criar a própria frase ou texto, só depois de o ver escolhido e valorizado pelos coleguinhas, só depois de ter passado pelas mesmas dificuldades dos escritores e dos poetas, é que a criança ganha consciência de suas insuficiências e êxitos e começa a apreciar a arte dos outros. Sensíveis à experiência dos outros, elas progredirão com mais rapidez e segurança, sem necessidade de regras. Bastamlhes os bons exemplos, os modelos de textos literários simples, em linguagem coloquial, com base nos quais poderão criar a própria forma ou marca de escrita.

De acordo com Freinet, não há idade definida para introduzir a criança na escrita. Desde a escola maternal, devemos valorizar os textos infantis. Nessa fase, o professor é o escriba e precisa ser fiel ao pensamento da criança, que é convidada a copiar o seu texto ou o do

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coleguinha ou, mesmo, produzir a própria escrita Começa o trabalho de composição e de criação. Segundo Freinet, ”por mais desajeitados que sejam, estes textos assim redigidos são os primeiros exercícios indispensáveis, são as primeiras tentativas para montar a bicicleta [...] O essencial é que a criança sinta e mantenha a necessidade de escrever que lhe fará vencer todas as dificuldades”. FREINET, 1977a,p 261. O texto de Bal mostrado a seguir é uma verdadeira composição livre, que conta um pouco do seu cotidiano, muito semelhante ao de pessoas com pouca experiência em manejar o instrumento da escrita.

(FIGURA)

Trecho de um rios primeiros textos livres escritos por Bal, aos 6 anos e 6 meses ”Ontem à noite quando Lucrene e Germaine e Pigeon foram deitar-se ” (FREINET, 1977a, p 130)

Começa agora o trabalho de ajustamento da forma escrita ao pensamento e expressão de seu autor. Munida da técnica da escrita, a criança da classe Freinet trabalha consoante o próprio ritmo ou em conjunto com toda a classe, individualmente ou em pequenos grupos. Conduzida e amparada pela vida coletiva da aula, a criança age sempre por tentativa experimental. Sabendo se ouvida, participa da seleção dos textos que serão aperfeiçoados (textos escolhidos por votação entre as produções livres dos alunos) e polidos, sintática e gramaticalmente; participa da discussão e pesquisa para a reelaboração. Todos têm seu texto afixado, ou seja, a mesma atenção é dispensada a todas as crianças: todas participam das descobertas, experiências e achados. A mesma ajuda solicitada ao coleguinha é retribuída com gentileza, num clima de confiança que suscita as trocas e permite o born desempenho das crianças no grupo.”Não será isto aprender a escrever e a viver?” FREINET, I977c, p 55

A escrita deve traduzir o mais exatamente possível o que se pretende dizer, e o leitor, mesmo não iniciado, deve compreender com clareza a maior parte do que se quis exprimir. O trabalho de ajustamento da forma

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escrita ao pensamento e à sua expressão só pode começar a partir do momento em que a criança for autônoma na escrita.

Deve-se ajudar a criança a aperfeiçoar o próprio texto, trabalhar a gramática pelo método natural, seguindo os passos de Freinet:

1. Aperfeiçoado o texto, ele procedia, todos os dias, a um rápido exercício de reconhecimento das palavras: substantivos, adjetivos, verbos, pronomes, etc., sem regra especial, mas por meio de um exercício inteligente.

2. Nesse exercício de reconhecimento, juntamente com as crianças, detectava as dificuldades (”erros”), que utilizava para exercícios de aperfeiçoamento (correção): os plurais, os femininos, a concordância, o uso dos adjetivos e dos pronomes demonstrativos e, principalmente, o uso dos verbos.

3. Quanto ao sentido das frases, trabalhava a análise lógica de forma contextualizada.

4. A cópia só era feita dos textos já aperfeiçoados (corrigidos) no quadro. Os alunos copiavam textos vivos, construídos por eles mesmos, porém corretos. Faziam a composição de textos e frases na tipografia, letra por letra, até a linha tornar-se impecável. Não era um exercício passivo, sem finalidade, mas um trabalho motivado.

5. O ditado era usado para as crianças avaliarem a si mesmas e aos outros.

6. Propunha exercícios de caça de palavras. As crianças procuravam num texto de seu interesse palavras que ajudariam,posteriormente, o estudo ortográfico ou gramatical; palavras com oi, ur, mp, mb, br, bl,pr, ar, es, s, ss, f, famílias de palavras, sinônimos, homônimos, etc.

Freinet garantia grande espaço às técnicas de trabalho que contribuem para a manutenção e o desenvolvimento dos sentidos matemático, científico, artístico e poético e, principalmente, o intuitivo. Este ”é como uma claridade que ilumina bruscamente, através das nuvens, num céu agitado; é o apelo da vida, o indispensável impulso do homem no sentido do futuro, talvez a marca verdadeira da nossa superioridade pensante e atuante”. Valorizava, ainda, a postura de ”caminhar

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como conquistadores”, FREINET, I977a,p. 208. que não nasce, não se adquire nem se cultiva segundo normas escolares, de forma metódica e racional, por meio de lições e exercícios controlados e sancionados.

As crianças mostram-se mais criativas quando não há intervenção da autoridade do adulto para corrigir seus erros, subestimar e asfixiar seu impulso e seu gênio que nasce. Freinet encarava as suas crianças como seres criativos procurando a verdade, nos seus pensamentos, preocupações e primeiros contatos com o mundo, e cujos êxitos eram ponto de partida para novas superações. Humildemente confessava que também aprendia com suas crianças: ”as próprias palavras das crianças tornam-se para nós ensinamentos, porque nos lembram de que não se vê o mundo, de que não se compreendem as palavras, de que não se abordam as situações aos dois ou quatro anos como se fará mais tarde, quando a experiência boa ou má tiver marcado os seres”. FREINET, 1977a, p. 282.

Ao dar a palavra à criança, suprimindo as lições mortas, os educadores ficarão maravilhados com o mundo de sensibilidade que ela nos fornece: ”É esta candura sistematicamente revelada que nos deve dar o puro acolhimento dos poemas”. BACHELARD apud FREINET, 1977a,p. 283.

A criança começa a emitir palavras intuitivamente, tropeça, busca equilíbrio. Tudo acontece por tentativas, de forma progressiva e inteligente, e cabe ao professor descobrir, valorizar, libertar. Freinet cita o exemplo de Bal, aos 3 anos: ”Oh! mamãe, olha como as folhas estão contentes: estão a esfregar as mãos”. E acrescenta o de Christian, de 4 anos, que, ouvindo um ralho do avô, baixou as pálpebras e disse: ”Vovô, tu estás zangado... eu me escondo atrás dos meus olhos”. FREINET, 1977a, p. 285.

A AULA VIVA: UM SONHO A SER REALIZADO

O sonho de Freinet era que a escola fosse um dia ua magnífica continuação da infância e sua florescência, o seu desenvolvimento e, no futuro, a sua frutificação”. FREINET, 1977a,p. 287. Para Bachelard, o sonho é um meio de conhecimento e aprofundamento do ser: ”Quem vai ao fundo do sonho

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encontra o sonho natural, um sonho de primeiro cosmos e de primeiro sonhador. Então o mundo já não está mudo. O sonho poético reanima o mundo das primeiras palavras. Todos os seres do mundo se põem a falar segundo o nome que usam. Quem lhes deu nome não teria dado nome a si mesmo, tão

bem escolhido foi? Uma palavra arrasta outra. As palavras do mundo querem fazer frases. O sonhador sabe bem que, duma palavra que sonha, faz sair uma avalanche de palavras... No sonho cósmico, nada fica inerte, nem o mundo nem o sonhador. Tudo vive numa vida secreta de que tudo fala sinceramente. A poesia é a criação do ser pela palavra”. BACHELARD apud FREINET, 1977a,p. 309.

Quando a criança pode exprimir com espontaneidade sua fantasia e sentimentos, encontramos a poesia. Como seria born se os educandos voltassem a sonhar e conseguissem captar, mesmo que intuitivamente, os pensamentos que chegam de todos os lados! Como seria born se pudessem pôr à mostra toda sua riqueza interior, detectando os instantes privilegiados nos quais a criança se torna sobrenatural Segundo Bachelard, ”as palavras se atraem e se cortejam [...] precisa-se de gênios para fazer ramalhetes literários”. FREINET, I977a,p 310-3 Freinet questiona: ”Quando consentirão os adultos que as crianças caminhem pelos próprios passos infantis? Quando verão [...] a vida das crianças com olhos de crianças?” FREINET, I977a,p 333 Para nós, a resposta é: quando a sala de aula tornar-se um ambiente em que professor e alunos vivam juntos a mesma aventura de suas vidas, um ambiente no qual encontrem oportunidades de vivenciar uma pedagogia libertadora, uma pedagogia que suscite novas possibilidades de penetração e de poder, que favoreça a explosão de talentos e garanta o equilíbrio do ser.

Embora as propostas de Freinet encontrem fundamentação em teorias e experimentos científicos, o ensino que propõe é sobretudo prático, os métodos são naturais, criados e desenvolvidos segundo os modos de vida e de trabalho do meio em que a criança vive (meio vivo) entre os seus. Trabalhando num meio popular, de linguagem bastante pobre, Freinet propõe-se a melhorá-la por meio de variadas técnicas, como o texto livre, o jornal, a correspondência, a imprensa, as aulas-passeio, etc.

O educador, mesmo dotado de espírito inovador e criativo, não despertará o interesse ou organizará de forma útil a vida da classe no vácuo; a atividade inte-

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lectual só pode desenvolver-se plenamente e dar fruttos com o auxílio de uma multiplicidade de meios: ”Tal como a mão desarmada, não vale de muito o intelecto deixado entregue a si próprio; com instrumentos e ajuda se leva a cabo a empresa; e de instrumentos e ajuda necessitam tanto o intelecto como a mão”. BACON apud, CIARI,1979,p.21. Bacon refere-se a meios materiais, às técnicas, como a imprensa utilizada por Freinet, que poderão ajudar o educador a aproximar o educando o mais possível de uma compreensão crítica àa realiàaàe e dos conhecimentos, e valores humanos — que não possui por si próprio, mas que pode adquirir quando se lhe dá a possibilidade de fixar mais profundamente os olhos na realidade.

Nenhuma metodologia de ensino que priorize a alfabetização pode desconhecer a proposta de Freinet. Todo o processo de integração da criança ao ambiente físico e social que a rodeia já era vivenciado por ele na prática. Era suficiente um meio estimulador em que abundassem exemplos (perfeitos) para a criança neles se agarrar e subir sempre mais alto, alcançar os frutos do próprio conhecimento (construído). Ter os pés bem seguros e firmes no solo

era oportunidade suficiente para triunfar. Freinet é um inovador quando propõe criar um ambiente rico, acolhedor e propício; dar exemplos e amor; permitir a contínua construção do conhecimento pela tentativa experimental e nela incluir a cultura e a arte; estudar e compreender as produções das crianças; dar destaque às formas de comunicação. Freinet soube utilizar-se da observação e do registro para avançar na compreensão e definição das etapas de evolução da escrita e do desenho.

Condena a escola da época, que impunha ao desenho e à escrita infantil uma finalidade e uma motivação, como uma espécie de anomalia, sem significado, feitos como uma obrigação e segundo regras impostas de fora. Acredita na criança pois sabe (por ter trabalhado a prática) que os erros que comete serão corrigidos por ela mesma, mediante experiências e tentativas. Por isso, descarta a cópia e a regra como forma de correção. São numerosos, hoje, no ambiente social e familiar, os estímulos à leitura. Em qualquer lugar está presente um aparelho de televisão. Todos — crianças, jovens e adultos e até mesmo os bebês — ficam a ver com olhos atônitos antes mesmo de poder compreender a signi-

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ficacão das histórias que são transmitidas. Depressa aprendem a distinguir certas palavras: fim, Coca-cola... Na rua, muitas palavras reaparecem nos cartazes, nos outdoors. A criança, aos poucos, passa a reconhecêlas. Essa nova realidade vem conduzindo o educador (alfabetizador) a rever suas hipóteses metodológicas sobre a aprendizagem da leitura. A escolha e a busca das primeiras leituras são importantíssimas, decisivas. Freinet utilizava-se de fichas de leitura para trabalhar pequenas canções e histórias, adivinhas, cantos populares ou parlendas que redescobria com os alunos, receitas traduzidas por eles, etc.

A criança aprendia a ler de forma natural, não se detendo apenas num processo estritamente global. Para Freinet, a criança passa por três fases na aquisição da leitura: global, quando se familiariza com a figura gráfica de palavras que são de seu conhecimento e de frases que quer utilizar de maneira prática; reconstituição ativa, na qual parte dos sinais fonéticos das palavras e expressões que ela própria criou e quer aperfeiçoar (que não deixa de ser um exercício no qual avança, analiticamente, do elemento para a síntese viva da palavra) e regresso à identificação global, em que a criança, quando lê, não balbucia, isto é, não procura decifrar a palavra simplesmente pela leitura dos seus elementos.

No emprego do método global para iniciar a criança na leitura, devem-se utilizar palavras já conhecidas. As palavras desconhecidas ou desligadas do cotidiano conduzem a uma técnica falsa e à deformação do próprio sentido da leitura. A precisão e a riqueza da leitura dependem unicamente da prática e da compreensão global das palavras desconhecidas do texto. Freinet valoriza a leitura, as descobertas e as pesquisas das crianças. A leitura representa uma etapa intermediária indispensável no processo de relações entre a criança e o meio. Quando nascida da compreensão, gera a compreensão. Longe de negligenciá-la, a escola deveria contribuir para o seu aprimoramento constante.

Freinet aprofunda o conhecimento da criança por meio da investigação coletiva. Juntos, seus seguidores de todo o mundo levantam e discutem os

problemas dos alunos. Apóiam-se no velho para construir o novo, com base em uma pedagogia libertadora. Não estão em busca de originalidade ou de novidade, mas de vida,

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ação e trabalho. Para servir a essa vida, lançam mão de todos os recursos disponíveis, como trabalhadores esclarecidos e conscientes, conhecedores do valor dos elementos e do esforço exigido

Os métodos naturais possibilitam ao mestre acompanhar os processos de tentativa de cada criança, descobrindo os patamares pelos quais o ato conseguido se mecaniza e estrutura em técnica.

Quem observar o espetáculo de uma aula viva, entusiasta — que caminha, eleva-se e que, ao seguir em frente, fatalmente atingirá e ultrapassará os objetivos propostos ou impostos pelos programas e discursos oficiais, transcritos nos decretos ou regulamentos —, perceberá a diferença radical da prática metodológica do educador Freinet Seria um sonho que essa aula se tornasse realidade na maioria das escolas públicas do Brasil e do mundo? Talvez possamos realizá-lo antes do que imaginamos. Mas, enquanto esperamos essa evolução consciente da prática, cabe a nós, educadores ao çtesenxe, cwvYveceàotcs q\xt %omos, das xcot\a¥> do passado, sugerir a mudança metodológica necessária.

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Textos selecionados de Freinet

Os escritos de Freinet, bastante atuais, trazem grande contribuição para a formação de educadores. É possível perceber uma profunda preocupação em integrar os aspectos sociais, cognitivos e afetivos do funcionamento psicológico humano à consideração que a sua pedagogia tem para com a educação e a escola. Adverte que, para ser eficiente, a escola precisa construir as bases, ou seja, substituir toda aquisição metódica e j ensino mecanicista, falsamente científico, pela v ida. Figuram também em seus textos concepções, avançadas para a época, sobre educação, criança, aprendizagem/conhecimento, leitura/escrita/desenho, liberdade, trabalho e relação professor/aluno.

EDUCAÇÃO

”A educação não é uma fórmula de escola, mas sim uma obra de vida [...] É já na semente, ou no broto, que o jardineiro prudente cuida e prepara o fruto que virá. Se esse fruto é doente, é porque a própria árvore que o gerou estava enferma e degenerada. Não é do fruto que se deve tratar, mas da vida que o produziu. O fruto será o que fizerem dele o solo, a raiz, o ar e a folha. É deles que devemos cuidar, se quisermos enriquecer e garantir a colheita.” FREINET, 1985, p. 7

”[...] domesticação não é educação.

Na educação, é a criança que sobe, de acordo com as linhas que mais respondem às suas necessidades instintivas; é a criança que edifica a sua construção, com a ajuda dos adultos.” FREINET, 1976a, p 75

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”Temos que alargar o horizonte da escola; temos que integrar o seu processo no processo da natureza e da vida social, se quisermos equilibrar a educação e dar-lhe o máximo de eficácia que a justifique.” FREINET, 1976a, p. 187.

”[...] a única educação efetiva e eficaz é a educação da vida, pela própria vida.” FREINET, 1977a, p 209

CRIANÇA

Compara o desenvolvimento da criança com a construção de uma casa:”[...] existe um mínimo de arrumação abaixo do qual a vida de um

indivíduo não pode decorrer normalmente. É este mínimo que é preciso procurar conquistar.” FREINET, 1973t>, p. 83.

”[...] a criança precisa de brincar, de correr, de respirar, de dormir bastante e deve ter um horário semanal [de aula] mais curto do que o dos adultos [...] a educação precisa seguir os passos da vida, adaptarse a ela para suscitar seus valores mais ricos, capazes de desenvolver a personalidade da criança, preparando-a ao máximo para o futuro,” FREINET apud É. FREINET, 1978,p. 373.

”Basta um ambiente que auxilie e uma tentativa experimental suficiente [...] e a introdução de instrumentos e técnicas que permitam um trabalho que corresponda às necessidades funcionais das crianças.” FREINET, 1977a, p, 118-20

”[...] a criança quer conhecer o que se passa, o que cresce, o que se encontra, o que vive, e como, cada vez mais longe, cada vez mais alto [...]”FREINET, 1976, p. 130.

APRENDIZAGEM E CONHECIMENTO

”Se atingirmos uma pedagogia viva e motivada, permitindo o funcionamento normal da tentativa experimental, já não veremos alunos sentirem gosto pela escola em formas de linguagem de expressão ou de ortografia erradas em relação às normas do meio. A criança, que parte da primeira balbuciação, irá aper-

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feiçoando as suas técnicas ao máximo: na linguagem, na redação, nas ciências, no cálculo, no desenho e na pintura, na música e em todas as manifestações humanas da cultura,” FREINET, 1977a, p 53.

”Ao comparar a eficiência dos métodos escolásticos com as aquisições obtidas experimentalmente através da vida; ao lembrar como aprendi a falar e a andar, em seguida a cavar, a lavrar, a pescar à linha, e a indestrutível riqueza que me ficou, fiquei convencido de que havia necessariamente algo de

deturpado no processo de ensino da Escola, algo que fazia com que, para nós, a máquina funcionasse muito mal, com um rendimento ínfimo.” FREINET, I977c,p 17

”O caminho normal da aprendizagem da leitura parece-nos [...] ser o seguinte: FREINET, I977a,p 134

1. Expressão oral das palavras, de vocábulos e de frases obtidas [...] com o máximo de riqueza, mas exclusivamente pelo método natural da tentativa experimental viva, servida por um ambiente rico e auxiliar mas com exclusão de qualquer lição pretensamente metódica.

2. Expressão, para uso das pessoas afastadas, pelo intérprete da escrita destas mesmas palavras, vocábulos e frases, pelos mesmos processos, com exclusão de qualquer lição formal. Riqueza do ambiente para facilitar e acelerar esta experiência por tentativas.

3. Reconhecimento destas palavras quando as encontram num texto estranho.”

”A literatura psicológica sobre a aprendizagem é profusa e diversa, e tende a englobar toda a Pedagogia. [...] É preciso, na aprendizagem, associar sempre teoria experimental a prática experimental, uma sempre levando a outra. [...] Nunca editamos uma regra intransigente de Pedagogia Freinet. Apresentamos todo um conjunto de experiências bem-sucedidas. Nem mesmo dizemos que se devem empregá-las na classe. Cabe apoiar-se nestas [experiências] bem-sucedidas para estabelecer os próprios pontos de apoio, sobre os quais talvez seja o único a poder passar, pois toda classe continua sendo única, como continua sendo única a personalidade de educador.” FREINET apud É FREINET,1979, p 141-3.

”Pelo fato do Método Natural tocar as bases profundas e seguras da vida, porque dá uma unidade permanente aos nossos comportamentos e aquisições de saber, é um meio incomparável de aprendizagem, de

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técnica e de cultura. Os métodos naturais são os únicos que corrigem a fragmentação e a dispersão dos conhecimentos científicos [...] E preciso mudar a técnica de aprendizagem, conceber ou encontrar outra mais viva e decisiva.” FREINET, É., 1979,p. 141-3

As considerações sobre o ambiente, isto é, as reações dos adultos à criança, têm muita importância no processo de tentativa experimental ou, como afirma Freinet,

”[...] muito maior relevância do que se pensa. São elas que constituem definitivamente as verdadeiras condições determinantes da educação. Se é raro ouvir conversas ao seu redor, se o ambiente — pais, professores [...] — não dá importância aos seus primeiros gritos, a criança não sentirá tão depressa a alegria de exprimir-se com êxito, levará mais tempo a aprender a falar.” FREINET, 1977b,p 46.

Sobre a imitação, considerava o homem um imitador, que se apropria”[...] por observação ou por leitura da experiência alheia, da experiência

presente e passada das gerações. Porém, essa apropriação opera-se agora à base e em função da experiência pessoal que continua a orientar a tentativa.

[,.,] Os erros acidentais de alguns adultos são sempre superados e corrigidos pelas conquistas experimentais da vida.” FREINET, 1977b,p.22-3

”À medida que se exercita a segurar e a manobrar o lápis, de maneira a permitir-lhe reproduzir imagens [grafias] cada vez mais próximas da realidade, a criança caminha para uma diferenciação crescente dos seus grafismos.” FREINET, 1977b,p.299.

LEITURA/ESCRITA/DESENHO

Destaca o desenho como uma”[...] etapa indispensável ao acesso normal à escrita e à leitura, as quais

também não são [...] atividades maiores, indispensáveis ao equilíbrio e ao poder, mas utensílios que o disco, o cinema e a rádio [e agora, os computadores] estão, aliás, em vias de destronar e de ultrapassar.” FREINET, 1977a, p. 93.

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”O desenho pode bastar-se a si próprio. Produz beleza, vida [...] É uma criação exaltante, principalmente quando se enfeita com a magia das cores.” FREINET, I977a,p. 103

”[...] a língua escrita, tal como a língua falada, fazse apenas por tentativa experimental. Ninguém apela para a regra na aprendizagem da ortografia. [...] poderíamos interrogar-nos se os alunos que têm a melhor ortografia são aqueles que melhor conhecem as regras ou se, como pensamos, não existe qualquer relação entre estes dois fatos. [...] a escrita, tal como a linguagem, não é uma mecânica que se suba sistematicamente. É uma parte da vida. Nela as palavras ganham primeiro o seu rosto, não segundo a etimologia ou as regras forjadas arbitrariamente pelos pedagogos, mas segundo o seu emprego na frase, o seu sentido por assim dizer dialético, as suas recíprocas ressonâncias, as ligações que se estabelecem entre os elementos do pensamento e da ação. Eis o motivo por que, na aprendizagem da linguagem, as palavras estão sempre carregadas de pensamento e de vida e por que os mecanismos nunca funcionam em falso, por que o êxito é tão total, sem qualquer dos dramas que acompanham na escola a língua escrita. [.,.] Mas saber exprimir-se não só corretamente, mas com elegância e sentimento, estar em condições de manejar a língua com destreza e habilidade, saber demonstrar, convencer, comover, é uma coisa completamente diferente, que condiciona amplamente, na nossa época, o nosso comportamento e a nossa vida.” FREINET, 1977a, p, 227-8, 233-4

LIBEHDADE

”O que conta, em todas as circunstâncias, não é a liberdade em si mesma, mas a possibilidade maior ou menor que temos de satisfazer as nossas necessidades essenciais, de aumentar o nosso poder, de nos elevarmos, de triunfar na luta contra a natureza, contra os elementos, contra os inimigos. Para consegui-lo, somos capazes de aceitar os mais pesados sacrifícios em matéria de liberdade. [...] A privação da liberdade é a

impossibilidade em que caímos de caminhar assim para a luz, consciente ou não, cuja atração sentimos; é o extravio em atalhos sem objetivo onde os nossos inimigos nos dominam incessantemente, despojando os nossos esforços de todo o seu sentido humano.” FREINET, 1978b,p 144-5

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TRABALHO

”A nossa reforma educativa não deve ser uma regressão, uma reação, mas um progresso, uma adaptação às realidades, por mais decepcionantes que elas sejam por vezes, da sociedade atual. A criança tem necessidade de conhecer, de saber; ela interroga incessantemente sobre a ordenação e os mistérios da natureza, e também sobre as espantosas maravilhas da máquina e da ciência. Esse desejo faz parte da sua permanente sede de poder e de conquista. [...] Prepararemos tecnicamente uma escola onde [a criança] se construa, onde se edifique, não apenas pelo estudo, mas pelo trabalho único criador, e na sua falta, por certos jogos [...] Poremos à sua disposição os entrepostos logicamente ordenados onde ela os poderá ir buscar, no próprio momento em que deles sentir necessidade.” FREINET, 1978b,p. 110.

”O trabalho [escolar] não é uma coisa que se explique e se compreenda; é uma necessidade que se inscreve no corpo, uma função que procura satisfazerse, músculos que funcionam, relações de íntima concordância que se estabelecem, trajetos que despertam e se reforçam. [...] O trabalho será o grande princípio, o motor e a filosofia da pedagogia popular, a atividade de onde advirão todas as aquisições.” FREINET, 1978b,p. 125.

”A criança que se apercebe de que o seu trabalho tem um objetivo e que pode abandonar-se completamente a uma atividade não já escolar mas simplesmente social e humana sente-se invadida por uma forte necessidade de agir, de procurar, de criar.” FREINET, 1973a, p. 113-4.

RELAÇÃO PROFESSOR/ALUNO

Na classe Freinet, o professor deverá buscar e encontrar as soluções certas para um born trabalho. FREINET, 1977a,p. 60-74 (grifos nossos).

”Devem aprender do jardineiro esta integração da vossa ação na harmonia natural e principalmente esta comovente confiança na vida, esta paciência exemplar na presença do lento processo pelo qual se elaboram a

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riqueza da Primavera e do Verão, a fecundidade do Outono, a calma serenidade do Inverno.

É esta filosofia que lhes falta, principalmente nas vossas práticas diárias. Dão [os professores da escola tradicional] uma lição aos vossos filhos, impõe-lhes um trabalho e vão verificar imediatamente, com umajniopia de burocrata, o efeito que dali resultou, como aqueles pobres citadinos que plantam na terra uma estaca, a regam apressadamente e vêm ver no dia seguinte se os frutos cresceram. Gritam, assustam, castigam, porque a vossa palavra, os vossos raciocínios, as vossas demonstrações, não originaram uma modificação

imediata no pensamento e na ação daqueles que os escutam. [...] pela nossa intervenção generosa, as flores nascerão e a seara ficará cor de ouro.

[...] Como querem que as vossas lições possam, instantaneamente, trazer proveito aos vossos filhos? É realmente preciso que os elementos que lhes trazem sejam pacientemente assimilados, dissolvidos, lentamente filtrados, incorporados na seiva e que esta, finalmente, suba enriquecida. E nesse momento, aliás, já não distinguirão sequer no crescimento a parte especial da vossa intervenção. Mas o essencial não é que o crescimento corresponda aos vossos desejos, sejam quais forem os seus autores anônimos. [...]

”Em vez de considerar, como faz a escola tradicional, que a criança nada sabe e que ao educador cabe ensinar-lhe tudo — o que é pretensioso e irrealizável — partimos, para o nosso ensino, das tentativas naturais à ação, à criação, ao amor do belo, à necessidade de se exprimir e de se exteriorizar.

Ajudamos o indivíduo a realizar-se e a apurar, pela ação, o seu sentido artístico latente [...] nele preservamos e cultivamos o seu sentido literário, poético, científico, matemático; e, com este expediente, vamos sempre mais alto e mais longe [...]”FREINET, I977a,p.237

”[Não nos precipitemos] a submeter a criança a nossa norma: deixemo-la treinar-se a dominar os seus grafismos e a pôr os seus êxitos aos serviços da sua expressão viva e dinâmica. Encorajemos mesmo a eclosão de gêneros expressivos que serão como flores silvestres suscetíveis de fazer esquecer por vezes a monotonia e a rigidez dos jardins cultivados demasiado metodicamente.” FREINET, I977b,p. 88

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4 Recuperando Emilia Ferreiro...

No princípio, a Palavra.Depois, o universo. Espelho de Deus. A Palavra assumindo visibilidade. Universo. Uni-Verso.Na terminologia hegeliana, a objetivação do Espírito.Não é o universo que é o sentido da Palavra.É a palavra que é o sentido do universo.Não é o dedo que aponta para a Lua.É a Lua que aponta para o dedo.Sentido do universo éo versoque jaz escondido, não falado,dentro do seu silêncio.

(Guimarães Rosa)

Os resultados das pesquisas desenvolvidas por Emilia Ferreiro e colaboradores a partir da década de 70 vêm constituindo importante referencial para a reorganização gradativa da prática de sala de aula, na qual o eixo central muda radicalmente, passando de ”como se ensina” para ”como se aprende”. Rumo a essa reorganização, como vimos nos capítulos precedentes, surgiram iniciativas desde há muito tempo, mas não tiveram continuidade. Também não contaram com a participação do professor e do aluno, aqueles que deveriam construir a proposta pedagógica e a prática escolar num contexto de mudanças, no sentido de uma reformulação curricular, como queria Decroly, ou numa revisão da prática pedagógica, como apontava Freinet.

A questão que colocamos, e que emergiu naturalmente no fim do século XX, é a construção de uma proposta educacional que leve o aluno a adquirir e desenvolver novas competências, em função dos novos saberes que se produzem e que demandam um novo tipo de profissional, preparado para lidar com as novas tecnologias e linguagens, para responder a novos ritmos e processos. Exige, portanto, estudo e reflexão contínuos sobre as experiências acumuladas, evitando a repetição de rotinas construídas ao acaso, sem definição de metas, pontos de chegada e marcos do caminho a ser percorrido por professores e alunos. Reconhece-se a necessidade de preparar o aluno para o exercício da cidadania, qualificando-o para o trabalho e possibilitando-lhe amplas condições e oportunidades de aprendizagem.

É função da escola criar tais condições, adotar uma proposta que permita a todos os alunos desenvolver suas capacidades e aprender os conteúdos necessários para compreender e intervir na própria realidade. Mas qualquer proposta só contribuirá para a melhoria da qualidade do ensino se não se apresentar como uma receita metodológica a ser seguida. As pesquisas de Emilia Ferreiro tratam da aplicação da teoria psicogenética de Piaget e dos conceitos da psicolingüística contemporânea na compreensão dos processos de aquisição de conhecimento e da língua escrita.

Ao recuperar os resultados dos seus estudos — que sem dúvida contribuíram (e contribuem) para uma revolução conceituai, mudando a maneira de encarar a prática em sala de aula e, mais especificamente, a prá-

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tica da alfabetização —, nosso intuito é tão-somente desvelar a face oculta da alfabetização que Ferreiro, mesmo sem intenção, nos deu a conhecer. Como Rousseau, Decroly, Freinet e muitos outros filósofos e pedagogos, ela mostra que o problema principal da alfabetização é político.

Ao discutir as aprendizagens básicas (na reunião de Consulta Técnica Preparatória, em Havana, organizada pelo escritório regional da Unesco — Orealc —, em março de 1988), (Citação: A partir da década de 80, com o aumento da crise econômica nos países da América Latina, houve sensível redução do gasto público em educação. A Unesco declarou 1990 como o Ano Internacional da Alfabeti:ação, inaugurando a década da educação básica. Em lomtien, na Tailândia, foi assinada a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, acordo que teve a participação da Unicef do Banco Mundial.) Emilia Ferreiro ressalta que a mais básica de todas as aprendizagens continua sendo a alfabetização, e que é difícil falar desta sem reproduzir as posturas dominantes: de um lado, o discurso oficial, e de outro, o discurso meramente ideológico da denúncia. Considera que os pesquisadores não podem ter uma perspectiva estritamente técnica porque a persistência do analfabetismo na região da América Latina e Caribe é antes de tudo um problema político, reconhecido como tal não apenas por grupos de uma só tendência política, mas também de várias. ”Ainda que seu discurso não possa ser neutro, o pesquisador deve cumprir com os requisitos elementares de seu ofício: distinguir as afirmações que podem sustentar-se com evidência empírica satisfatória daquelas que só podem apresentar-se como hipótese plausível; distinguir entre o dado e as leituras possíveis dos dados; não trabalhar com informações isoladas, mas com a congruência ou a incongruência que resulta das intenções para integrar essas informações; descobrir os pressupostos subjacentes a certo modo de descrever ou avaliar um fenômeno ou uma situação; não confundir as expressões verbais utilizadas com as distinções conceituais estabelecidas.” FERREIRO, 1992, p. 10.

Ao analisar as propostas para reduzir as altas taxas de retenção e evasão escolar, especialmente nos três primeiros anos do ensino fundamental, destaca como causa e justificativa principal da repetência a não-aquisição dos rudimentos de leitura e escrita. ”Não adianta a criança freqüentar a escola e ser promovida mediante a exigência de um mínimo de alfabetização, ou seja, receber apenas a técnica da leitura e da escrita para poder codificar e decodificar textos breves e escrever algumas palavras, sem significação real de comunicação ou intenção de atingir a língua escrita para expressar-se.” FERREIRO, 1992, p. 10.

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Sabemos que, até a década de 70, poucos eram os estudos e documentação sobre a natureza dos sistemas de leitura e escrita. O que encontramos são iniciativas e reflexões individuais, como as relatadas nos capítulos anteriores. Emilia Ferreiro mostra que o sucesso da alfabetização requer a superação da visão estreita que considera a aprendizagem inicial da leitura e da escrita como uma técnica, pois o fato de recitar o alfabeto não

assegura a ninguém o acesso à leitura ou à escrita, isto é, ser alfabetizado. Até então não se dava a mínima atenção ao significado da escrita embutida nos rabiscos artísticos das crianças, nem havia preocupação em identificar os processos cognitivos infantis subjacentes à aquisição da escrita. Também recebia pouca atenção dos educadores a constatação de que, além da leitura e da escrita, existe um universo de conhecimentos, de novas linguagens e recursos da tecnologia moderna que precisamos dominar durante toda a vida; e a de escrever é uma tarefa de ordem conceituai que precisa ser retraduzida.

O processo alfabetizador tem uma tradição de séculos ligada à idéia de aprender o alfabeto, que só recentemente veio a ser desmistificada. A preocupação era como ensinar a ler e a escrever, como estabelecer a correspondência entre a oralidade e a escrita ou decodificar as grafias em sons — e não acompanhar o processo ou obter informações sobre o que a criança já dominava em relação à escrita e suas hipóteses antes de iniciar a aprendizagem escolar.

Ao pesquisar o desenvolvimento das conceitualizações infantis sobre a língua escrita, Emilia Ferreiro concluiu que ”as crianças são facilmente alfabetizáveis; foram os adultos que dificultaram o processo de alfabetização delas”. FERREIRO: 1992, p. 17.

Os resultados de suas pesquisas apontam, para o início desse processo, a necessidade de trabalhar ambos, leitura e escrita, com base na compreensão de suas funções na sociedade, evitando ao máximo a fragmentação do conhecimento. Eles nos fazem rever a psicogênese que até então vinha sendo reduzida a uma seqüência cronológica e à noção de estágio ou catálogo de noções.(Citação: Psicogênese: estudo da origem da mente (representações mentais, memória, pensamento) e dos conhecimentos (todo e qualquer conhecimento). Atualmente, a psicogênese da língua escrita, ou o percurso de cada indivíduo para adquirir a base alfabética da língua escrita, é a mais conhecida.)

À medida que desvendamos a alfabetização, passamos a perceber também que o crescimento intelectual não se dá apenas pela acumulação de uma série de conhecimentos, mas também por grandes períodos de

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reestruturação; reestruturação das mesmas informações anteriores, que mudam de natureza ao entrar em um novo sistema de relações.

Considerando que a psicologia genética não é simplesmente uma psicologia evolutiva, ao buscar conhecer a seqüência evolutiva de como se passa de um estado de conhecimento a outro e os elos entre os níveis de conceitualização da escrita, Emilia Ferreiro conclui, com Piaget, que o conhecimento é de natureza assimiladora e não simplesmente registradora. Como ele nos deu a conhecer, o desenvolvimento cognitivo é um processo interativo e construtivo, uma vez que todo conhecimento implica a existência de elementos fornecidos pelo objeto (com suas propriedades físicas, sociais e culturais) e elementos acrescentados pelo sujeito (com a organização de seus esquemas de assimilação).

Por meio de organizações parciais o sujeito chega, obrigatoriamente, a momentos de reestruturações totais (uma reorganização completa dos esquemas cognitivos) a partir da ação. Remetendo-nos ao que já foi enfatizado

no capítulo anterior, no qual Freinet nos propõe uma pedagogia do trabalho, a ação está na origem de todo conhecimento (não só o material), pois propicia a transformação tanto do sujeito (ampliando seus esquemas de assimilação e modificando seus esquemas cognitivos) como do objeto (que pode ser transformação física, transformação nas interações sociais ou, ainda, uma transformação conceituai).

Vindos de diferentes épocas e áreas de estudo e, portanto, com orientações diversas, Rousseau, Freinet, Decroly e Emilia Ferreiro sinalizaram a necessidade de proceder a uma revisão completa das idéias sobre a aprendizagem da língua escrita. Os primeiros (Rousseau e Freinet) acharam as suas respostas por meio da pesquisa naturalística, coletando informações e observando os quadros reais da vida, enquanto os outros dois (Decroly e Ferreiro) coletaram dados em estudos experimentais.

Ao resgatar propostas e resultados de estudos de grande relevância para a educação, precisamente porque redefinem a noção de aprendizagem e apontam caminhos para recuperar o prazer de aprender, tornase necessário falar um pouco mais das experiências de Emilia Ferreiro e colaboradores. Estas, atualmente, colocam-se como as mais recentes contribuições a rés-

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peito da compreensão das funções da língua escrita e sua importância na sociedade. Como afirma Ferreiro: ”A escrita é importante na escola porque é importante fora dela, e não o inverso”. FERREIRO, 1992, p 21

A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE EMILIA FERREIRO

Utilizando a abordagem clínica ou método de exploração crítica, amplamente desenvolvido na escola de Genebra, Emilia Ferreiro pesquisou os conhecimentos da criança no que se referia às atividades de leitura e escrita. Doutora em psicologia pela Universidade de Genebra, foi orientanda e colaboradora de Jean Piaget. Argentina de nascimento, realizou suas primeiras pesquisas em seu país de origem. É professora do Centro de Investigação de Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional do México, onde investiga o desenvolvimento da leitura e da escrita do ponto de vista do sujeito que aprende.

Em mais de um decênio de pesquisa para descobrir qual era o processo de construção da escrita, planejando e divulgando as situações experimentais em que a criança evidencia a escrita tal qual a vê, a leitura tal como a entende e os problemas tal como os propõe para si, Emilia Ferreiro tem entusiasmado pesquisadores de várias partes do mundo; interessados na temática, muitos tornaram-se seus colaboradores, desenvolvendo pesquisas semelhantes em seus países.

A primeira e mais conhecida entre esses pesquisadores é Ana Teberosky. Psicóloga e pesquisadora do Instituto Municipal de Educação de Barcelona, desde 1974 dedica-se à aplicação da teoria psicogenética diretamente na sala de aula, enfocando o impacto da colaboração de ambientes bilíngües (catalão e espanhol) sobre a alfabetização de crianças.

Muitos outros podem ser citados, porém nos restringiremos apenas a alguns. Lilíana Tolchinsky Landsmann, psicóloga da Universidade de Telavive,

pesquisa o desenvolvimento cognitivo e da linguagem escrita, enunciando os resultados de suas pesquisas para a prática educacional. Clotilde Pontecorvo, psicóloga e diretora

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do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento da Universidade de Roma, utiliza as abordagens piagetianas e vygotskianas de pesquisa, enfocando o entendimento de como os processos cognitivos se desenvolvem ao longo do currículo e, em particular, nas áreas das disciplinas como ciências naturais e sociais

No Brasil, colaboram com Emilia Ferreiro: Esther Pular Grossi, doutora em psicologia cognitiva, que participa do Grupo de Estudo sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação, mais conhecido como Geempa, de Porto Alegre, e aplica o conhecimento da psicogênese na sala de aula; Telma Weisz, Virgínia Balau e toda a equipe técnica do ciclo básico da Secretaria de Estado da Educação, em São Paulo; Terezinha Carraher e Lúcia Brown Rego, em Pernambuco. Estes e pesquisadores de muitos outros estados brasileiros utilizam os resultados das experiências de Emilia Ferreiro para um melhor entendimento dos processos cognitivos envolvidos no ato de escrever e vêm provando que as conceitualizações da escrita de nossas crianças seguem uma linha evolutiva similar à das crianças de língua espanhola.

Os contatos com pesquisadores de todo o mundo, em especial os latino-americanos, permitiram que Emilia Ferreiro concluísse ser possível encarar de maneira diferente a aprendizagem da leitura e da escrita, conseguindo, assim, uma alfabetização de melhor qualidade.

Alguns aspectos apontados como necessários para entender os objetivos dessa alfabetização são aqui apresentados de forma esquemática. FERREIRO, E, 1992 pp 17-32

1. A escola (como instituição) deve apresentar a língua escrita para a criança, como um objeto sobre o qual pode atuar, sem a preocupação inicial com detalhes.

2. O importante é a criança saber que as letras, como unidades da língua, não possuem forma fixa, cada uma se define em função das outras, com diferentes objetivos e variações para sua identificação; a escrita, tal como a língua oral, evolui, as normas ortográficas são convenções necessárias para uma comunicação a distância, entre falantes da mesma língua.

3. A escrita deve ser apresentada à criança como o produto de uma prática histórica, um poderoso

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instrumento nas ações sociais, e não como um objeto em si, importante dentro da escola, quase sacralizado.

4. Deve ser feita a distinção (não apenas termiriológica) entre sistema de codificação e de representação, uma vez que, ao pensar sobre|’a escrita, a criança procura compreender a natureza desse sistema simbólico de representação e levanta hipóteses sobre ele, buscando, basicamente, entender ”o que a escrita representa e como se estrutura esta forma de representação. A

invenção da escrita foi um processo histórico de construção de um sistema de representação, não um processo de codificação”.

5. Deve-se considerar que muitas crianças chegam à escola sabendo para que serve a escrita, pois tiveram oportunidades de interagir com ela, e terminam sua alfabetização inicial com sucesso. Outras, porém, justamente as que mais necessitam da escola para se apropriar da escrita ou de informações sobre suas funções na sociedade, são vítimas de métodos, manuais ou programas ainda apegados à concepção de que só se aprende algo por meio de repetição, memorização, cópia de modelos de escrita ou mecanização.

6. Interpretar as escritas infantis é um longo aprendizado, que requer uma atitude teórica definida. ”Se pensarmos que as crianças são seres que ignoram que devem pedir permissão para começar a aprender, talvez comecemos a aceitar que podem saber, embora não tenha sido dada a elas a autorização institucional para tanto.” FERREIRO, 1985, p. 17.

7. Para entender o processo construtivo da criança, o educador precisa ”cotejar uma série de produções escritas e conhecer as condições de produção, o processo de produção e a interpretação final dada pelo sujeito”. FERREIRO, 1992, p. 80.

8. Restituindo à língua escrita seu caráter de objeto social, estaremos ajudando a criança a descobrir a importância da leitura em sua sociedade, a obter e ampliar seus conhecimentos sobre a língua escrita, considerada como poder, e também estimulando seu raciocínio próprio e sua criatividade.

(Citação:A escrita pode ser concebida de duas formas: como transcrição gráfica de unidades sonoras ou como uma representação da linguagem. No caso da codificação, tanto os elementos como as relações já estão predeterminados; o novo código não faz senão encon trar unia representação dife rente para os mesmos elementos e as mesmas relações, No caso da criação de uma representação, nem os elementos nem as relações estão determinados. A construção de um sis tema de representação envolve um processo de diferenciação dos elementos e relações reconhecidos ou objeto a ser apresentado e uma seleção daqueles elementos e relações que serão retidos na representação Se a aprendizagem da escrita é concebida como um código de transcrição, sua aprendizagem é entendida como uma técnica; se for ”concebida como um sistema de representação, sua aprendizagem se converte na apropriação de um novo objeto de conhecimento, ou seja, em uma aprendizagem conceituai”. (FERREIRO, 1985, p. 12-6))

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9. Na visão construtivista, o que interessa do erro (ou desvio) é a sua lógica.

Para entender essas descobertas, ou o modo de representação da linguagem e sua correspondência com o sistema alfabético de escrita, Emiliaa Ferreiro esclarece, ainda, outras questões importantes: Cf. FERREIRO, 1992, p. 23-73

• A compreensão das funções sociais da escrita pela criança determina diferenças na sua organização da língua escrita e, portanto, gera diferentes expectativas a respeito de o que se pode encontrar nos múltiplos objetos sociais que são portadores de escrita (livros, jornais, cartas, embalagens de produtos comestíveis ou de medicamentos,cartazes na rua, etc.);

• A leitura compreensiva de textos fundamenta a percepção dos diferentes registros de língua escrita (textos narrativos, informativos, jornalísticos, instruções, cartas, recados, listas, etc.) e para sua realização contribui mais a leitura silenciosa do que a oralidade convencional;

• A produção de textos respeita os modos de organização da língua escrita;

• É preciso estimular na criança uma atitude de curiosidade e coragem diante da língua escrita;

• A escrita representa a língua, e não a fala. Qualquer tentativa de justificar a ortografia com base na pronúncia despreza ou ignora as variantes de fala das populações socialmente marginalizadas e dificulta a aprendizagem dessas crianças;

• É preciso permitir:- explorações ativas dos vários tipos de objetos materiais que são

portadores de escrita (e, além disso, conhecê-los por seus nomes específicos: jornais, revistas, dicionários, calendários, agendas, livros ilustrados, livros sem ilustração, livros de poesias, livros de canções, enciclopédias, cartas, receitas, recibos, telegramas, etc.);

- o acesso à leitura em voz alta, ou oral, dos diferentes registros da língua escrita que aparecem nesses distintos materiais;

- escrever com diferentes propósitos e sem medo de cometer erros, em contextos em que as escritas serão aceitas, analisadas e comparadas sem serem sancionadas;

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- antecipar o conteúdo de um texto escrito, utilizando inteligentemente os dados contextuais e, à medida do possível, os dados textuais;

- participar de atos sociais de utilização funcional da escrita;- perguntar e ser entendido; perguntar e obter resposta;- interagir com a língua escrita para copiar formas, para saber o que se

diz, para julgar, para descobrir, para inventar.Para compreender o desenvolvimento da leitura e da escrita do ponto de

vista dos processos de apropriação de um objeto social, Emilia Ferreiro concluiu que há uma série de modos de representação da linguagem. Sua psicogênese da língua escrita distingue cinco níveis:

Níveis I e II - Pré-silábicoNível III - SilábicoNível IV - Silábico-alfabéticoNível V - AlfabéticoCada um deles apresenta uma fase de evolução, que procuramos

sintetizar em quadros com base em quatro tópicos principais: a hipótese central da criança, a construção gráfica, os níveis de conceitualização da escrita e os da leitura. Consultar ELIAS, 1992.

Características das escritas pré-silábicas (Nível I)

Hipótese central• Escrever é reproduzir os traços típicos da escrita, identificados pela

criança como a forma básica da escrita.

Construção gráfica• Escrita não formada por grafias convencionais.• Formas utilizadas:— grafismos primitivos: predomínio de garatujas ou pseudoletras;— escritas unigráfícas: uma só grafia para cada nome (quantidade

constante). Pode ser sempre a mesma grafia (repertório fixo) ou diferente (repertório variável)

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• Escritas convencionais, mas sem controle de quantidade: sucessões de grafias só interrompidas pelo limite da folha.

• Presença de letras e números.• Formas básicas utilizadas:— grafismos separados, compostos de linhas curvas e retas e suas

combinações (grafia de imprensa);—grafismos ligados entre si com uma linha ondulada, na qual se

inserem curvas fechadas e semifechadas (grafia cursiva).• Surgimento da ordem linear na escrita (traçado linear de diferentes

formas’ ondulados ou descontínuos)• No uso da letra de imprensa aparecem duas hipóteses:— as grafias são variadas,— a quantidade de grafia é constante.

Escrita (níveis de conceitualização)• A criança acredita que a escrita é outra maneira de desenhar as coisas

ou que escrever é produzir um traçado que se diferencia do desenho por possuir alguns traços típicos da escrita Há a intenção subjetiva da criança quanto ao significado atribuído à escrita ou existe intenção de escrever.

• A escrita do nome próprio é impossível ou se realiza segundo as características das outras escritas, com um número indefinido ou variável de grafismos.

• As diferenças dos significados não são modeladas objetivamente na produção gráfica, por se encontrarem escritas iguais para palavras diferentes.

• Ocorrem tentativas de correspondência entre o tamanho do objeto e a escrita. A escrita representa os nomes dos objetos e a criança a imagina como um dos atributos do objeto: coisas grandes devem ter escritas grandes; coisas pequenas, escritas menores.

• Todas as escritas se assemelham, mas as crianças as consideram diferentes.

Leitura• A leitura é sempre global correspondência do todo sonoro com o todo

gráfico.• A leitura do nome também é global, sem buscar correspondência entre

as partes.• Cada um pode interpretar sua própria escrita mas não as dos outros: a

escrita é individual e instável.• Não há definição quanto à orientação espacial dos caracteres.

• A representação é alheia a qualquer busca de correspondência entre a pauta sonora de uma emissão e a escrita.

• As relações entre as partes e o todo não são analisáveis. cada letra vale pelo todo.

• A criança pensa que, quando alguém lê, lê as figuras.

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Características das escritas pré-silábicas (Nível II)

Hipótese central• Para ler coisas diferentes, isto é, atribuir significados diferentes, deve

haver uma diferença objetiva nas escritas.

Construção gráfica• A forma dos grafismos é mais definida, mais próxima das letras.• Predomínio da escrita de imprensa em maiúscula (influência dos

estímulos do meio).• Formas estáveis e fixas de escrita: relacionadas com contingências

culturais e pessoais (estas não são usadas para produzir diferenças objetivas na escrita, mas simplesmente para garantir o significado diferente para escritas idênticas).

Escrita (níveis de conceitualização)• A criança antecipa a hipótese silábica; não lhe basta a intenção

subjetiva. Chega à conclusão de que para ler coisas diferentes deve haver diferença objetiva nas escritas, e que essa diferença pode ser marcada pelo uso de letras diferentes para cada palavra (de seu repertório ou inventadas).

• Elabora duas hipóteses:— necessidade de quantidade mínima de grafias para que se possa ler

algo, que em geral se situa em termos de três grafias ou caracteres;— necessidade de uma variedade de caracteres para que uma série de

letras ”sirva para ler”.• Descobre os antecessores da análise combinatória, ou seja, que as

grafias podem variar na ordem linear e que pode ser mantida a quantidade constante.

• Aparecem reações de bloqueio com base no seguinte raciocínio: se aprender a escrever copiando a escrita do outro, na ausência do modelo não haverá possibilidade de escrita.

• Ao resolver problemas que a escrita lhes apresenta, as crianças enfrentam necessariamente problemas gerais de classificação, seriação e ordenação.

• O nome próprio geralmente é o ponto de partida (primeira forma estável dotada de significação) para o uso de letras na escrita.

• A criança descobre a possibilidade de uma correspondência termo a termo entre cada letra e uma parte do seu nome completo. A correspondência se estabelece entre as ”partes-palavras” do nome próprio e as letras, mas não entre ”partes-sílabas” do nome próprio e as letras.

Leitura

• Leitura global, sem correspondência entre as partes sonoras e gráficas.

• Cada letra vale como parte de um todo e não tem valor em si mesma.• A correspondência entre a escrita e o nome é ainda global e não-

analisável: à totalidade da escrita corresponde o nome.

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Características das escritas silábicas (Nível III)

Hipótese central• Tentativa de dar um valor sonoro a cada uma das letras que compõem

a escrita.

Construção gráfica ’• Podem aparecer grafias distantes das formas das letras e também

grafias bem diferenciadas• Escnta de letras com ou sem valor sonoro convencional.• Uso da primeira letra da palavra, cujo valor sonoro é importante.

Escrita (níveis ãe conceitualização)• Tentativa de foneüzação da escrita: a criança estabelece uma livre

(simples) correspondência entre aspectos sonoros e gráficos em sua escrita. Porém, os valores atribuídos às letras não são fonéticos, mas silábicos

• Ao atribuir a cada grafia o valor de uma sílaba, a criança antecipa progressiva e regularmente a quantidade de grafias e escreve tantas letras quantas forem as sílabas das palavras.

• As escritas são construídas com base na análise silábica da palavra, mas em alguns casos podem apresentar mais grafias do que as exigidas, como para os monossílabos e dissílabos.

• Quando a criança começa a trabalhar com a hipótese silábica, a exigência da quantidade de grafias (três letras) pode desaparecer.

• Uma vez instalada a hipótese silábica, a exigência de variedade volta a aparecer.

• Conflito cognitivo entre a quantidade mínima de caracteres e a hipótese silábica, por ocasião da escrita de dissílabos ou monossílabos.

• Esses conflitos obrigam a criança a abandonar progressivamente a hipótese silábica em favor de uma análise fonética mais exaustiva da palavra.

• Utilização sistemática da hipótese silábica aplicada ao nome próprio.

Leitura• Na leitura, a criança tenta passar da correspondência global para a

correspondência termo a termo, isto é, do todo para as partes da expressão oral (recorte silábico do nome).

• Na leitura de monossílabos e dissílabos nos quais sobram letras, a criança tende a atribuir significados complementares à interpretação da palavra ou à sua omissão na leitura.

• A mudança qualitativa em relação ao nível anterior justifica-se por:

— superação da correspondência global entre escrita e expressão oral, que passa a ser recortada (sílabas orais) para expressar-se em partes do texto (cada letra); f

— pela primeira vez a criança trabalha a hipótese de que a escrita representa os sons da fala. ,

• As formas fixas aprendidas do meio geram novos conflitos quando a criança propõe a ^ leitura destas em forma de hipótese silábica. O mesmo acontece com relação à leitura do ’ nome (forma fixa recebida do meio). Esses conflitos ajudam a criança a ”ir mais além” da sílaba para encontrar uma correspondência satisfatória.

• A leitura tende a limitar-se ao nome (sem sobrenome), a não ser nos casos dos nomes dissílabos ou quando há sobra silábica na leitura (correspondência de uma sílaba para cada letra).

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Características das escritas silábico-alfabéticas (Nível IV)

Hipótese central• Coexistência de duas formas de corresponder sons e grafias, fonemas

para algumas partes das palavras e sílabas para as outras.

Construção gráfica• Escritas diferenciadas com valor sonoro inicial.• Quantidade e repertório variáveis• Escrita na qual algumas grafias representam uma sílaba e outras, um

fonema. Na perspectiva da psicogenética, não se trata de omissão de letras, mas de um tipo de escrita que procura incorporar grafias rumo a escrita alfabética

• A construção total não é determinada por uma intenção de correspondência sonora.

Escrita (níveis de conceituallzação)• A criança abandona a hipótese silábica e descobre a necessidade de

fazer uma análise que ”vá mais além” da sílaba. Surge um conflito entre a hipótese silábica e a exigência de quantidade mínima de grafias (conflito entre uma exigência interna e uma realidade exterior ao próprio sujeito).

• Passo intermediário entre a ausência de correspondência sonora e o começo dessa correspondência ou passagem da hipótese silábica para a alfabética.

• As escritas aparecem com a característica de ”omissões” de letras pela coexistência das hipóteses alfabética e silábica.

• A letra que inicia cada escrita não é fixa nem aleatória- é uma das letras que correspondem ao valor sonoro da primeira sílaba da palavra.

• Surgem perguntas e pedidos de ajuda em relação a qual fonema ou sílaba usar.

• São feitas seguidas análises sonoras das palavras.• É típica a mistura, na leitura do nome, da hipótese silábica e de um

começo da hipótese alfabética.

Características das escritas alfabéticas (Nível V)

Hipótese central• Compreensão de que.— cada som (fonema) corresponde a uma letra;— as letras combinam-se para formar sílabas e palavras.

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Construção gráfica• Escrita alfabética com valor sonoro convencionado.

Escrita (níveis de conceitualização)• A criança compreende que:— os caracteres da escrita correspondem a valores menores que as

sílabas (antecipação quantitativa);— devem-se escrever tantas grafias quantos fonemas tenha a palavra.• A criança elabora sistematicamente uma análise dos fonemas das

palavras que vai escrever.• Esse nível constitui o final da evolução, pois a criança já compreendeu

o modo de construção do código.• A partir desse momento, a criança já compreendeu o modo de

construção do código.• A criança não terá problemas de escrita (no sentido estrito, conceituai),

mas se defrontará ainda com duas dificuldades.— a ortografia das palavras, — a separação entre palavras, pode escrever orações (frases) sem

deixar espaço entre as palavras ou fazer cortes que não correspondem à separação convencional da escrita.

Leitura• A criança já lê alfabeticamente.• A escrita e a leitura do nome próprio operam sobre os princípios

alfabéticos, aparecendo, no entanto, problemas ortográficos. A leitura de partes do nome já não oferece nenhuma dificuldade.

Por meio de seus numerosos livros e artigos, Emilia Ferreiro permite-nos conhecer as conclusões a que tem chegado utilizando como informação básica as descobertas sobre a psicogênese da língua escrita, tanto na criança como no adulto. Esses escritos contribuem para o aprofundamento de pontos fundamentais do construtivismo e do processo de alfabetização. Embora não seja nosso objetivo discutir o construtivismo, sabemos que o pensamento ocidental moderno, marcado desde Rousseau pelo conflito entre o racionalismo e o empirismo, vem sendo revitalizado com as teorias de conhecimento de origem construtivista. Mencionaremos alguns pontos necessários para um melhor entendimento da psicogênese da língua escrita e dos processos de aprendizagem.

(Citação: Racionalismo-teoria epistemológica que valoriza a razão, ou o pensamento, como fonte de conhecimento.

Empirismo: teoria epistemológica segundo a qual o conhecimento vem de fora, dos objetos, por meio das sensações ou experiências, e o sujeito as

recebe passivamente. A psicologia recebeu grande influência. do empirismo comportamentalista fbehaviorismo) e do associacionismo (em razão dos condicionamentos e das associações estímulo-resposta).)

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REVENDO A PSICOGENESE DA LÍNGUA ESCRITA

No século XVIII, Rousseau já percebera o erro das filosofias da época que analisavam apenas, na constituição do conhecimento, o papel do sujeito (no caso do racionalismo) ou do objeto (no caso do empirismo). Em seu tratado sobre educação, deixa claro que não concorda com nenhum dos dois reducionismos (que consideram o conhecimento em função de um dos elementos da relação sujeito/objeto). Incorporando a proposta de educação para Emílio, antecipa Piaget, quando afirma que o conhecimento deve-se dar na relação entre o sujeito e o objeto e por meio dela. Se retrocedermos no tempo para acompanhar um pouco mais da discussão sobre a construção do conhecimento (o que é fundamental para entender o construtivismo), veremos que as idéias de Rousseau de que o sujeito recebe as impressões do mundo exterior (sensações) e deve trabalhá-las para chegar aos conceitos (que dão forma aos objetos) foram retiradas de Kant. Este, por sua vez, tentou casar as duas visões díspares do conhecimento: a visão de que a análise lógica das ações e objetos conduz ao aumento do conhecimento e a visão de que a experiência individual de alguém gera novo conhecimento. Para Kant, ”conhecer é dar forma a uma materia, e é claro que a matéria é a posteriori, e a forma, a príori. com efeito, a matéria do conhecimento é variável de um objeto a outro, visto depender do objeto; mas a forma, sendo imposta ao objeto pelo sujeito, será reencontrada invariavelmente em todos os objetos e por todos os objetos”. MATUI, 1996, p. 42.

Ao considerarmos a interação entre sujeito e objeto uma estrutura bifásica, vemos que esses elementos são inseparáveis quando se trata da construção do conhecimento. Não há sujeito sem objeto e não há objeto sem sujeito que o construa. O sujeito não está simplesmente situado no mundo, mas o meio (o objeto) entra como parte integrante do próprio sujeito, como matéria e conteúdo cognitivo e histórico.

As contribuições de Vygotsky, Wallon, Luria, Leontiev, Nuttin e outros vieram imprimir dimensão cultural ao objeto e histórica ao sujeito. Todo objeto é

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cultural e se apresenta na sociedade. E a maneira de captá-lo ou assimilá-lo é pelo diálogo. Segundo Jiron Matui, construtivismo é ”um sistema epistemológico que fundamenta a construção da mente e do conhecimento sobre bases anteriores, num processo extremamente dinâmico e reversível de equilíbrio majorante”. MATUI, 1996, p. 32. Logo, a principal questão levantada pelos teóricos é a de que o construtivismo é, antes de tudo, uma nova visão de mundo e da natureza humana — embora ainda seja considerado por muitos educadores um métov do de ensino (talvez pela própria necessidade de encontrar uma forma ou caminho para melhorar o rendimento escolar). Foi, no entanto, a epistemologia genética, de Jean Piaget, pela ótica de como se

origina o conhecimento científico na criança, que nos deu a conhecer essa nova visão sobre o processo de interação entre sujeito e objeto da aprendizagem.

Se considerarmos o desenvolvimento cognitivo um (processo interativo e construtivo, com base em conhecimentos anteriores que são reestruturados a cada nova informação recebida, concluiremos que se trata de umprocesso dinâmico e dialético. ”Não ocorrerá a construção de novos conhecimentos se não ocorrer a reconstrução de velhos conhecimentos.” MATUI, 1996, p. 33. Da mesma forma, o sujeito não nasce com o pensamento ou os conhecimentos; estes têm sua gênese (origem) no ser humano por internalização e reconstrução. Sendo, como afirmamos acima, histórico e social, o homem os constrói, reconstrói e internaliza, durante toda a vida, de acordo com os seus esquemas, nível de desenvolvimento e participação na sociedade. Freire destaca a importância do diálogo, definindo-o como o ”encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu”. FREIRE, 1987,p 78. Daí a necessidade da interação social, como ”forma privilegiada de acesso à informação/ao objeto de conhecimento”. MATUl,1996,p.45.

Para Marx, ”não é a consciência que determina a vida mas a vida é que determina a consciência”. MARX, 1983, p. 22. Sendo de formação histórica, o pensamento, a consciência, enfim, a essência do sujeito surgem como ”emanação direta do seu comportamento material.” O ser vivo interage com o meio físico e social, e por força de sua ação constrói conhecimento. Daí a afirmação de Becker

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de que o construtivismo significa que ”nada, a rigor, está pronto, acabado, e de que, especificamente o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como algo terminado”. BECKER, 1983, p 88-9. Para Piaget, o conhecimento prolonga-se em função das múltiplas relações existentes na sua realidade material e toma a forma de ”uma espiral que se amplia infinitamente em altura”. PIAGET, 1971, p 75.

”As estruturas mentais, ao mesmo tempo que têm uma gênese, isto é, que se constróem no tempo, chegam a um estado de equilíbrio perfeito, alcançando as características intemporaís das estruturas lógico-matemáticas, ou seja, universidade e necessidade.” RAMOZZI-CHIAROTTINO,1972,p 77

(Citação: Estrutura, tanto da pessoa como da mente, corresponde ao conjunto dos elementos e à relação contínua e dialética destes entre si, fazendo parte dela conceitos de totalidade, equüibração e transformação)

Em Genebra, os pesquisadores de Emilia Ferreiro, Inhelder, Sinclair e Bovet, com base em estudos experimentais, concluem que. cada nova estrutura forma-se mediante a integração e coordenação de esquemas jáexistertes. BOVET, INHELDER, SINCLAIR,1977. Essa integração produz-se como conseqüência dos conflitos que surgem quando os esquemas existentes encontram-se com outros em novos contextos e mostram-se impossíveis de ser relacionados e aplicados.

É, pois, participando da prática social de sua comunidade, da cultura a que pertence, juntamente com outras pessoas, em situação de dialogicidade,

vivenciando as funções sociais da leitura e da escrita, que a criança aprende sobre esse objeto de conhecimento.

A ação da práxis humana, como a que se deve realizar num ambiente escolar, recriada de forma didática, deve possibilitar a produção dos conhecimentos. Freinet si-

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tua no tateio experimental o patamar inicial dessa construção, constituído — como para Piaget — pelos primeiros contatos dos sentidos (visão, audição, tato, paladar, olfato) e dos sentimentos com o objeto do saber.

As escritas ainda não são verdadeiras construções, para as quais faltam os nexos lógicos de explicação que ocorrerão em outro plano, patamar da reflexão e abstração lógico-matemãtica. Os conhecimentos construídos nesse segundo plano chamam-se conhecimentos físicos e são formados de características e propriedades do objeto, descobertas mediante ação direta do sujeito sobre o objeto. Daí a importância de proporcionar o contato com símbolos (figuras, fotos, filmes, etc ) quando for impossível o contato direto com o objeto No caso da alfabetização, recomenda-se que as funções sociais da linguagem e da escrita sejam vivenciadas interindividualmente, em situação de aprendizagem.

Inicialmente, a criança formará imagens mentais (mas não conceitos) dos objetos, fenômenos e acontecimentos (representações simbólicas) Ao vivenciá-los em grupo (por meio do diálogo), a ação é internalizada. É quando ocorre a elaboração interna, em nível mental, ação sobre ação ou experiência lógico-matemática (Piaget), ou experiência de experiência, pensar a palavra, discurso interior (Vygotsky).

Segundo Ramozzi-Chiarottino, devemos entender a abstração reflexiva em dois sentidos complementares. Em primeiro lugar, ela transpõe para um plano superior aquilo que retirou do plano anterior. Piaget chama a isso réfléchissement, que seria o refletir (espelho). Em segundo lugar, o sujeito reconstrói sobre o plano das formas ou das representações (plano B) aquilo que é retirado do plano das ações (plano A). Essa reconstrução no plano B é um estabelecimento de relações entre as representações, ou formas novas, e aquelas que já existiam em B com certa organização. A essa reorganização Piaget chama reflexão. RAMOZZI CHIAROTTINO,1972,p 69

A passagem da ação para a conceituação é que per mite a construção do conhecimento, ou metacognição Para Vygotsky, o ato de pensar as palavras é o próprio desenvolvimento do discurso interior (metacognição), alimentado pela aprendizagem e pelo desenvolvimento dos conceitos científicos. O discurso interior evo-

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lui, atingindo o patamar da abstração reflexiva, ou verdadeiro conhecimento, que é a construção do saber de forma global.

Para conhecer, o sujeito age sempre de forma integral, como um ser total. Transforma todos os seus esquemas de pensamento em ação, ou, nas palavras de Piaget, em ”esquema antecipador ou procedural”. Daí a constatação de que, na construção do conhecimento, deve-se levar em

consideração as estruturas mentais. São elas que, quando desenvolvidas, determinam a aprendizagem e permitem a ampliação dos conhecimentos.

A estrutura pressupõe um conjunto de elementos e suas relações, que são, para Piaget, totalidade, equilibração (ou auto-regulação) e transformação. Os elementos que serão conhecidos fazem parte de um todo que se regula e se transforma de forma dialética, contínua. O conhecimento é construção da função simbólica, aquisição da estrutura própria de cada nível do desenvolvimento e da própria aprendizagem. As estruturas não derivam ”exclusivamente da sensação ou da percepção, mas também dos esquemas de ações ou dos esquemas operatórios de diversos níveis, uns e outros irredutíveis à mera percepção. De um lado, a própria percepção não consiste em simples leitura dos dados sensoriais, mas comporta uma organização ativa, na qual intervém decisões e pré-inferências e que é devida à influência, sobre a percepção, do esquematismo das ações ou das operações”. PIAGET, 1973, p. 92. E exemplifica:

”l.O agrupamento lógico mais simples é o da classificação ou encaixamento hierárquico das classes. Repousa ele numa primeira operação fundamental: na reunião dos indivíduos em classes e das classes entre si. O modelo completo é construído pelas classificações zoológicas ou botânicas. PIAGET, 1971, p. 71 (grifo nosso).

2. Um segundo agrupamento elementar põe em prática a operação, que consiste não mais em reunir entre si os indivíduos considerados como equivalentes (como em 1), mas em ligar as relações assimétricas que expressam suas diferenças. A reunião dessas diferenças supõe, então, uma ordem de sucessão, e o agrupamento constitui, por conseqüência, uma seriação qualitativa.”

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Cada estrutura cognitiva é um esquema operatório ou sensório-motor que capacita o sujeito para a aprendizagem de novos conteúdos e faz parte de um conjunto estruturado de respostas ou sistemas, denominado, por Piaget, de agrupamento. Diante de uma situação nova, o sujeito age de forma integral, colocando em ação todas as suas estruturas. No caso da alfabetização, cada hipótese que a criança elabora sobre a leitura/escrita permite-lhe adquirir novos conhecimentos. Daí a importância dos resultados das pesquisas de Emiíia v. Ferreiro. Na Psicogênese da língua escrita ela mostra que, a cada hipótese cognitiva, a criança avança para novos conhecimentos. Observa, por exemplo, que no início da representação gráfica infantil, espontânea, desenho e escrita se confundem; ambos consistem em .marcas ou traços visíveis sobre o papel. Quando a criança constrói a hipótese de que o texto está no lugar do desenho, consegue escrever o que pensa (imagem mental) por meio da escrita (embora, de início,ideográfica). ”A hipótese silábica, que é uma verdadeira revolução dentro do processo de alfabetização, permite à criança escrever, pela primeira vez, o som que ouve e não mais escrever a idéia que pensa.” MATUI, 1996, p. 118.

Na perspectiva de Piaget, ”o desenho, sendo uma imitação gráfica, reprodução material de um modelo, implica a função semiótica, entendida como a possibilidade de diferenciar significantes de significados. Considera [Piaget] que a função semiótica aparece durante o segundo ano de vida,

continuando, em outro nível, as ações sensório-motoras iniciais. A linguagem, o jogo simbólico, a imitação diferida, a imagem mental e a expressão gráfica envolvem a função semiótica. Na posse dela, a criança é capaz de usar significantes diferenciados, sejam estes símbolos individuais ou sinais sociais”. FERREIRO & TEBEROSKY,1986, p. 64

A escrita também é um objeto simbólico, um significante que mantém relações muito estreitas com o desenho e com a linguagem — embora não seja transcrição desta nem derivada daquele. Ao ler as imagens, as crianças aprendem muitas das coisas que as cercam. O ”livro, desde muito cedo, é algo que serve para olhar e para muitos, mais especificamente,para ler”. FERREIRO & TEBEROSKY,1986, p 64 Os textos que contém estão distribuídos de forma diferenciada pelas páginas que o compõem, acompanhados ou não por ilustrações (desenhos, fotografias, gráficos) e estão

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impressos em diferentes tipos de letras As crianças também deparam, durante o período escolar, com outros textos que não do livro didático: jornais, panfletos, cartazes, cartas, bilhetes, livros de história, enciclopédias, etc. São elementos novos que podem contribuir para a organização do trabalho em sala de aula, desenvolver leitores comprometidos, capazes de ampliar, para si, os significados traduzidos em linguagem escrita.

Um fato observado por Emilia Ferreiro durante suas pesquisas sobre as hipóteses das crianças com respeito à escrita, quando esta viesse acompanhada de imagem, e que lhe causou preocupação, foi como conciliálas em função da imagem e a realidade das propriedades do texto. Percebeu-se que as crianças de 4 anos esperam encontrar no texto o nome do objeto desenhado, por acreditarem que este representa o nome do objeto total presente no desenho

Esse e outros mal-entendidos, em relação ao construtivismo sob o enfoque pedagógico, Emilia Ferreiro procurou desfazer com exemplos tirados de suas pesquisas. A experiência relatada a seguir foi realizada^çQni urna amostra de 30 crianças argentinas nos anos de 1974 a 1976; eram 17 meninos e 13 meninas, alguns dos quais freqüentavam pela primeira vez uma escola (7 crianças) e outros haviam cursado ou o jardim-de-infância ou a pré-escola, de forma irregular (21), todos eram de famílias de baixa renda, com idades variando de 5 a 11 anos no início da pesquisa.

Entrevistadas no começo, no meio e no final do curso, as crianças deram indícios que permitiram a Emilia Ferreiro agrupar as questões, concluindo que o processo de aprendizagem da criança pode acontecer por vias insuspeitadas para o docente e, por outro lado, crianças de classe baixa, inclusive as da pesquisa, não começam do zero na primeira série. Aos 6 anos, a criança já possui várias jconcepções sobre a escrita e é preciso procurar sua gênese em idades mais precoces. com efeito, o problema suscitado foi: em que momento a escrita se constitui em objeto de conhecimento? As sondagens feitas por Emilia Ferreiro indicam que até por volta dos 4 anos as crianças espontaneamente fazem perguntas do tipo como se escreve? ou o que se diz?, ao mesmo tempo que solicitam do adulto a leitura de histórias ou revistas. FERREIRO & TEBEROSKY,1986, p 37

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Ferreiro afirma que o interesse pela escrita não começa quando a criança atinge determinada idade cronológica, e é possível que essa preocupação comece muito antes, em função dos sujeitos e das condições ambientais. Ao contrário do que educador e criança esperam quando esta inicia sua escolaridade, o aprendizado da escrita requer tempo, paciência e maturidade.

O educador precisa ter claro que a criança primeiro aprende a escrever para só depois dominar a ortografia. As incorreções que comete, portanto, não significam que não tenha aprendido. É preciso compreender as causas do erro para levá-la a superá-lo com base em um trabalho de conhecimento da forma ortográfica correta. O conhecimento de uma pesquisa sobre a história da escrita, feita com os alunos, pode ajudá-los a encontrar respostas para questões que, certamente, eles se fazem quando precisam realizar tarefas impostas pelos professores e para as quais nem sempre encontram sentido, tais como: Por que todos devem escrever com a mesma ortografia? Por que é preciso caprichar na letra? Por que a língua escrita tem regras de acentuação? Por que a gramática da língua escrita nem sempre corresponde à da língua oral?

Outra tarefa louvável é transmitir aos alunos a idéia de que a escrita é um instrumento fascinante que a humanidade levou séculos para criar, como ilustra a história relatada a seguir:

”Para os antigos egípcios, uma das primeiras civilizações a adotar a escrita como disciplina escolar, o aprendizado da escritura estava impregnado de magia. Thot, o deus da sabedoria na mitologia egípcia, havia criado o sistema da língua escrita e presenteado os homens com esse novo saber. Naquela época, aprender a ler e a escrever eqüivalia, de certo modo, a descobrir uma arte encantadora exercida por poucos eleitos e que atribuía ao seu aprendiz poderes supremos. Era a época da crença na magia da palavra, em encantamentos secretos cuja eficácia não era jamais posta em discussão. Os escribas, detentores deste conhecimento e responsáveis por ensiná-los aos jovens, formavam a casta mais poderosa da sociedade e exerciam grande influência sobre os faraós [...] Foi graças ao seu rigor que os antigos egípcios puderam registrar sua história, sua medicina, gastronomia, astronomia, mitologia e literatura.

O sistema gráfico por eles utilizado era, realmente, uma escrita dos deuses — a palavra ’hieróglifo’ significa ’grafia sagrada’ — e era composta de magníficos desenhos admiravelmente estilizados, formando belíssimos poemas visuais que, tantos séculos depois, permanecem extasiantes. A originalidade e complexidade dessa escritura contém três tipos de signos’ os pictogramas (desenhos representando coisas ou seres, aliados a uma combina-

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cão de signos para exprimir idéias), os fonogramas (desenhos que representam sons) e os determinativos (os signos que permitem saber a que categoria pertencem as coisas e seres em questão).

Os egípcios foram também os inventores do papel, em sua forma mais arcaica, o papiro. Como o trabalho no papiro exigia muita minúcia e paciência,

criou-se a escrita cursiva, mais fácil de ser aplicada sobre esse suporte e que contribuiu para a popularização da escrita.

Para uma criança egípcia, o caminho da alfabetização era um tanto árduo. ’O melhor ouvido da criança são suas costas’, rezava um provérbio da época, justificando a prática de bater com varas nas costas das crianças que por ventura dessem um pequeno sinal de distração durante as aulas. Ingressando na escola aos dez anos de idade, as crianças custavam alguns anos a alfabetizar-se. Os alunos com mais facilidade de aprender eram escolhidos pelos escribaspara que prosseguissem com os estudos até a idade adulta.

O método utilizado pelos mestres egípcios consistia em exercícios de memorização, leitura, cópias e ditados. Como se vê, suas estratégias ainda freqüentam muitas salas de aula contemporâneas.

Em meados de VIII a.C., quando os egípcios ainda traçavam hieróglifos e na Palestina

já se utilizavam escritas alfabéticas, na Grécia se falava uma língua muito diferente e que não era capaz de transcrever os alfabetos existentes.

Foi nessa época que os gregos tiveram uma idéia simples e genial — para anotar suas vogais, tomaram emprestado do alfabeto aramaico diversos signos que representavam caracteres inexistentes na língua grega. Assim nasceram o A — alfa, E — epsílon, O — ômicron, Y— ipsilon.

No século V a.C. o alfabeto grego já existia contendo vinte e quatro signos ou letras, dezessete consoantes e sete vogais. Sabe-se também que esse alfabeto podia ser escrito em letras maiúsculas ou minúsculas. As letras maiúsculas eram utilizadas para gravar em pedras, ao passo que as minúsculas eram usadas para escrever sobre o papiro. Os gregos haviam inventado as ’ardósias’, tabuletas cobertas de cera sobre as quais os alunos traçavam as letras com um estilete e que depois podiam apagar. com a invenção do alfabeto grego, surge nos séculos V e VI antes de Cristo uma das mais ricas literaturas de todos os tempos, representada por todos os gêneros: poesia, teatro, história e filosofia.

É desse alfabeto que nasce nosso alfabeto latino, que se distingue de outros sistemas de escrita por permitir escrever tudo que se desejar com uma pequena quantidade de signos.” CAVALCANTI, 1996, p. 5.

As questões relativas à leitura e aos gestos de ler ”vêm sendo discutidas já há mais de duas décadas. O ato de ler, antes restrito a ambientes fechados, hoje acontece em todos os lugares. Lê-se em casa, mas lê-se também nos bancos das praças, nas ruas, no ônibus, no metrô, nos aviões. E além de textos nas mãos, o indivíduo recebe outras mensagens escritas: placas, avisos, luminosos, outdoors”’. ROCCO, 1996, p. 5. Todas as formas de leitura são importantes e devem ser valorizadas. A escola não pode, portanto, desconsiderar as informações que a criança domina e exigir dela o que não tem. Precisa, sobretudo, conhecer o momento do processo de compreensão da língua escrita em que está a criança e resgatar com ela esse objeto de conhecimento, colocando-o à sua disposição para

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que, por meio de experiências significativas, ela possa interagir com ele e compreender seu significado e uso.

A vida do homem, principalmente nos últimos dois séculos, está marcada por documentos escritos, aos quais a leitura está intimamente associada. Cabe à escola estabelecer relações entre leitura/escrita e criança/adulto, aprofundando e ampliando o domínio dos níveis de leitura e escrita, e orientar a escolha dos materiais de leitura.

A condição primeira para que isso aconteça é que o professor também goste de ler, tenha preparo teórico e metodológico para selecionar textos interessantes, leia para e com seus alunos, seja paciente para ouvir as leituras que fazem dos textos estudados e/ou que venham a produzir com a expressão ”preparo teórico e metodológico”, estamos nos referindo às questões do ensinar e aprender, no âmbito da escola, como processo específico e intencional de organizar e propor situações para que ocorra determinada aprendizagem. Todo professor precisa ter um born preparo profissional que garanta, entre outros requisitos, o domínio do saber e do saber-fazer, isto é, da metodologia do processo ensino-aprendizagem entendido como prática social transformadora e democrática.

Ciente de que conhecimento, desenvolvimento e aprendizagem são processos relacionados entre si, que acontecem por construção e interação, o professor vinculará os conteúdos de ensino à realidade, prevendo interações com os alunos, deles entre si e deles com o conhecimento, baseando-se em procedimentos que assegurem uma aprendizagem significativa e prazerosa. A aprendizagem é provocada mediante um problema que toque realmente cada aluno. O professor só pode trabalhar se os alunos e seus desejos estiverem presentes: é o prazer de dar significação às coisas e ao universo que move o ensino-aprendizagem.

Isso mostra a importância de conhecer o nível de desenvolvimento de cada aluno para poder orientar sua aprendizagem, uma vez que a psicogênese é evolucionista ou um ramo do evolucionismo. Categorias ou estruturas mentais surgem e se desenvolvem durante toda a vida do indivíduo Cada desenvolvimento corresponde a uma possibilidade de aprendizagem nova, embora apoiada nas já existentes (funções mentais previamente

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amadurecidas). Essas aprendizagens são o ponto de partida para a conclusão de um ciclo de desenvolvimento ou amadurecimento das estruturas mentais.

Ao período que vai da inexistência de uma estrutura até sua existência, Piaget chama nível intermediário de desenvolvimento (corresponde à área de desenvolvimento proximal de Vygotsky). Seus estudos sobre conservação de número, seriação, classificação, tempo, espaço, acaso, etc. fazem parte da busca de entendimento maior dos níveis intermediários, uma vez que cada um deles é marcado por novas características de desenvolvimento que auxiliarão o nível subseqüente.

Algumas vezes, características do nível anterior se conservam (desenvolvimento real) e surge um conflito, ou contradições que levam a um desequilíbrio. Isso, em vez de prejudicar, auxilia o nível seguinte. Podemos exemplificar com a experiência de Piaget sobre o transvasamento de um líquido, de um recipiente baixo e largo para outro estreito e alto, em que o nível de líquido sobe. Só quando tiver adquirido a reversibilidade de pensamento, a

criança irá compreender que o líquido se conservou, uma vez que não se acrescentou nem retirou líquido, chegando à conclusão de que existe a mesma quantidade.

A psicogênese da língua escrita, conforme mostra Emilia Ferreiro, é um tratado sobre as hipóteses cognitivas e os conflitos presentes nos níveis intermediários do processo de construção da escrita e da leitura pela criança. O nível silábico-alfabético é um exemplo típico dessa afirmação, uma vez que apresenta as características do nível alfabético (sílabas de consoantes e vogais), porém conserva as características da escrita silábica (uma letra para cada som), conforme descrevemos no quadro da página 174.

”A passagem [de um nível a outro] se completa pela tomada de consciência, principalmente em situações de grupo ou atividades interindividuais, em que o outro desempenha um papel mediador fundamental.” MATUI, 1996, p. 122.,

(Citação: Estrutura e desenvolvimento são por nós utilizados como sinônimos, significando o produto do processo de construção ou da aprendizagem. Para Piaget, o desenvolvimento das estruturas mentais é que produz a aprendizagem

Para Vygotsky, há um nível de desenvolvimento efetivo ou real (desenvolvimento das funções psicointelectuais da criança), um nível de desenvolvimento potencial (desenvolvimento que a criança pode alcançar) e uma área de desenvolvimento proximal (distância entre o nível real e o potencial).)

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Textos selecionados de Eimília Ferreiro

Desde 1974, Emilia Ferreiro vem afirmando que não construiu nenhum método de alfabetização, mas que estuda o processo que percorrem aqueles que se apropriam de leitura e escrita. Afirma com clareza, em seus escritos, que considera a criança um sujeito do conhecimento que, quando fracassa, o faz por causa de uma inadequada proposta escolar ou por ter uma bagagem de conhecimentos muito diferente da trabalhada pela escola. Sua preocupação como pesquisadora volta-se, portanto, para o caminho que percorrem aqueles que se apropriam da leitura e da escrita, mostrando como, nesse processo, eles desvendam a história da pré-escrita.

A alfabetização, segundo a autora, passa necessariamente por etapas, de modo independente da camada social. As etapas são iguais, variando apenas em função da idade, nunca da condição social da criança. Todo professor que alfabetiza deve ter consciência de porque a criança precisa ser alfabetizada, quando deve ser alfabetizada e que tipo de alfabetização é necessário, uma vez que, como ser histórico, a criança depende das solicitações culturais do mundo em que vive.

Os estudos de Emilia Ferreiro sobre a psicogênese da língua escrita são suficientemente fundamentados, situados entre a teoria de Jean Piaget e a sala de aula. Apresentamos, a seguir, trechos que ilustram seu pensamento em relação a criança, escola, aprendizagem, conhecimento, linguagem escrita/leitura, métodos/ metodologia, professor, avaliação.

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CRIANÇA

”A criança é também um produtor de textos desde tenra idade, [...] Tratando de resolver os problemas que a escrita lhes apresenta, as crianças enfrentam, necessariamente, problemas gerais de classificação e ordenação. Descobrir que duas ordens diferentes dos mesmos elementos possam dar lugar a duas totalidades diferentes é uma descoberta que terá enormes conseqüências para o desenvolvimento cognitivo nos mais variados domínios em que se exerça a atividade de pensar.” FERREIRO & TEBEROSKY,1986, p. 181-190.

”A criança se vê continuamente envolvida, como agente e observador, no mundo ’letrado’.[...] Se pensarmos que a escrita remete de maneira óbvia e natural à linguagem, estaremos supervalorizando as capacidades da criança, que pode estar longe de ter descoberto sua natureza fonética. [...] A criança que cresce em um meio ’letrado’ está exposta à influência de uma série de ações. E quando dizemos ações, neste contexto, queremos dizer interações. Através das interações adulto/adulto, adulto/criança e crianças entre si, criamse as condições para a inteligibilidade dos símbolos.” FERREIRO, 1985, p. 59-61.

ESCOLA

”A instituição social criada para controlar o processo de aprendizagem é a escola. Logo, a aprendizagem deve realizar-se na escola.

Felizmente, as crianças de todas as épocas e de todos os países ignoram esta restrição. Nunca esperaram completar 6 anos e ter uma professora à sua frente para começarem a aprender. Desde que nascem são construtoras de conhecimento. No esforço de compreender o mundo que as rodeia, levantam problemas muito difíceis e abstratos e tratam, por si próprias, de descobrir respostas para eles. Estão construindo objetos complexos de conhecimento e o sistema de escrita é um deles.” FERREIRO, 1985, p. 65.

”Propõem-se à criança orações para ler e para copiar que constituem uma afronta à inteligência infantil.

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Há crianças que chegam à escola sabendo que a escrita serve para escrever coisas inteligentes, divertidas ou importantes. Essas são as que terminam de alfabetizar-se na escola, mas começaram a alfabetizar-se muito antes, através da possibilidade de entrar em contato, de interagir com a língua escrita. Porém há outras crianças [...] que necessitam da escola para apropriar-se da escrita. Essas práticas escolares, entretanto, não lhes permitem apropriar-se de nada: acabam por ser meras reprodutoras de signos estranhos.” FERREIRO, 1992, p. 22-5.

APRENDIZAGEM

”As crianças iniciam o seu aprendizado de noções matemáticas antes da escola, quando se dedicam a ordenar os objetos mais variados (classificando-

os ou colocando-os em série). Iniciam o aprendizado do uso social dos números, participando de diversas situações de contagem e das atividades sociais relacionadas aos atos de comprar e vender. [...] A cópia é um dos procedimentos usados para apropriar-se da escrita, mas não é o único (nem sequer é o mais importante). Aprende-se mais inventando formas e combinações do que copiando.

A tão comentada ’prontidão para leitura-e-escrita’ depende muito mais das ocasiões sociais de estar em contato com a linguagem escrita do que de qualquer outro fator que seja invocado.” FERRíIRO, 1985, p 98 102

”O desenvolvimento da alfabetização ocorre, sem dúvida, em um ambiente social. Mas as práticas sociais, assim como as informações sociais, não são recebidas passivamente pelas crianças. Quando tentam compreender, elas necessariamente transformam o conteúdo recebido. Além do mais, a fim de registrarem a informação, elas a transformam. Este é o significado profundo da noção de assimilação que Piaget colocou no âmago de sua teoria.” FERREIRO, 1980, p 24

CONHECIMENTO

”Sabemos perfeitamente que o conjunto de conhecimentos que um indivíduo adquire no curso de seu

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desenvolvimento depende das exigências do meio cultural em que cresce. A cultura do campo exige conhecimentos diferentes da cultura da cidade. [...] Contudo, na medida em que a participação na sociedade global (não apenas nacional, mas também internacional) requer o domínio dos conhecimentos que são ’essenciais’ em uma cultura urbana, e, na medida em que esses conhecimentos são transmitidos de maneira privilegiada através de textos escritos, a falta de capacidade para manejar os sistemas simbólicos de uso social põe qualquer indivíduo em situação de carência. O funcionamento da sociedade global requer indivíduos alfabetizados; portanto, os indivíduos podem exigir o direito à alfabetização, o que não pode ser entendido como uma opção individual, mas como uma necessidade social.” FERREIRO, 1992, p 57-8 (grifo nosso)

”Os processos de construção sempre supõem reconstrução; no entanto, o que é que se reconstrói? É preciso reconstruir um saber construído em certo domínio para aplicá-lo a outro; há reconstrução de um saber construído previamente com respeito a um domínio específico para poder adquirir outros conhecimentos do mesmo domínio que, de algum modo, têm sido registrados sem poder ser compreendidos; também há reconstrução do conhecimento da língua oral que a criança tem para poder utilizá-lo no domínio da escrita.” FERREIRO, 1992, p. 87.

” Dizemos apropriação de conhecimento, e não aprendizagem de uma técnica. com tudo o que essa apropriação significa, aqui como em qualquer outro domínio da atividade cognitiva: um processo ativo de reconstrução por parte do sujeito que não pode se apropriar verdadeiramente de um conhecimento senão quando compreendeu seu modo de produção, quer dizer, quando o reconstituiu internamente.” FERREIRO & TEBEROSKY1986,p. 275.

”A construção de um objeto de conhecimento implica muito mais que mera coleção de informações. Implica a construção de um esquema conceituai que permita interpretar dados prévios e novos dados (isto é, que possa receber informação e transformá-la em conhecimento); um esquema conceituai que permita processos de inferência acerca de propriedades não observadas de um determinado objeto e a construção de novos observáveis, na base do que se antecipou e do que foi verificado.” FERREIRO, 1985, p. 66.

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LINGUAGEM ESCRITA/LEITURA

”No caso da aprendizagem da língua oral, os adultos que rodeiam a criança manifestam entusiasmo quando ela faz suas primeiras tentativas para comunicar-se oralmente. Ninguém espera que, desde a primeira palavra emitida, a pronúncia seja correta. Ninguém espera que, desde as primeiras combinações de palavras que tente produzir, a sintaxe seja perfeita. Todos tentam compreender o que a criança disse supondo que quis dizer algo, e dão feedback lingüístico ao responder as suas perguntas parafraseando, quando parece necessário, a emissão infantil (isto é, retraduzindo no código adulto o significado identificado na emissão infantil). [...] Quando a criança faz suas primeiras tentativas para escrever é desqualificada de imediato porque ’faz garatujas’. Desde as primeiras escritas o traçado deve ser correto, e a ortografia, convencional. Ninguém tenta compreender o que a criança quis escrever, porque se supõe que não possa escrever nada até ter recebido a instrução formal pertinente (na realidade: é melhor que não escreva até saber grafar de modo conveniente). Ninguém tenta retraduzir o que a criança escreveu, porque lhe nega o direito de aproximar-se da escrita por um caminho diferente do indicado pelo método escolhido pelo professor.” FERREIRO, 1992, p. 27-30.

“[...] a evolução da escrita que nós evidenciamos não depende da maior ou menor destreza gráfica da criança, de sua maior ou menor possibilidade de desenhar letras como as nossas, mas sim do que chamamos seu nível de conceitualização sobre a escrita, quer dizer, o conjunto de hipóteses exploradas para compreender este objeto. Impedindo-a de escrever (isto é, de explorar suas hipóteses no ato de produção de um texto) e obrigando-a a copiar (isto é, a repetir o traçado de outro, sem compreender sua estrutura) a impedimos de aprender, quer dizer, descobrir por si mesma. Quando corrigimos sua escrita-cópia em termos de relações espaciais (barra à esquerda, duas barras no lugar de três, curva fechada, etc.) ou em termos de letras ’de mais’ ou ’de menos’, deixamos de lado o essencial do texto: o que se quer representar, e a maneira na qual se representa.” FERREIRO & TEBEROSKY,1986,p 274-5

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”A língua escrita é um objeto de uso social, com uma existência social (e não apenas escolar). Quando as crianças vivem em um ambiente urbano, encontram escritas por toda parte (letreiros da rua, vasilhames comerciais, propagandas, anúncios da tevê, etc.). No mundo circundante estão todas as

letras, não em uma ordem preestabelecida, mas com a freqüência que cada uma delas tem na escrita da língua.Todas as letras em uma grande quantidade de estilos e tipos gráficos. Ninguém pode impedir a criança de vê-las e se ocupar delas.” FERREIRO, 1985,p 37-8.

MÉTODOS/METODOLOGIA

”No que diz respeito à discussão sobre os metodos, já assinalamos [...] que essa querela é insolúvel, a menos que conheçamos quais são os processos de aprendizagem do sujeito, processos que tal ou qual metodologia pode favorecer, estimular ou bloquear. Porém, certamente, essa distinção entre métodos de ensino, por um lado, e processos de aprendizagem do sujeito, pelo outro, requer uma justificativa teórica.” FERREIRO & TEBEROSKY,1986, p. 26.

”É útil se perguntar através de que tipo de práticas a criança é introduzida na língua escrita, e como se apresenta este objeto no contexto escolar. Há práticas que levam a criança à convicção de que o conhecimento é algo que os outros possuem e que só se pode obter da boca dos outros, sem nunca ser participante na construção do conhecimento. Há práticas que levam a pensar que ’o que existe para se conhecer já foi estabelecido, como um conjunto de coisas fechado, sagrado, imutável e não modificável. Há práticas que levam a que o sujeito (a criança neste caso) fique de fora’ do conhecimento, como espectador passivo ou receptor mecânico, sem nunca encontrar respostas aos ’porquês’ e aos ’para quês’ que já nem sequer se atreve a formular em voz alta. FERREIRO, 1985,p. 30-1.

Nenhuma prática pedagógica é neutra. Todas estão apoiadas em certo modo de conceber o processo de aprendizagem e o objeto dessa aprendizagem. São provavelmente essas práticas (mais do que os métodos em si) que têm efeitos mais duráveis a longo prazo, no domínio da língua escrita como em todos os outros. Conforme se coloque a relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento, e conforme se caracterize a ambos.

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certas práticas aparecerão como ’normais’ ou como ’aberrantes’. É aqui que a reflexão psicopedagógica necessita se apoiar em uma reflexão epistemológica.”

PROFESSOR

”Para que uma proposta construtivista possa se realizar em sala de aula, o professor precisa ser tão ativo quanto seus alunos, tão criativo quanto eles, deve estartão interessado em ajudá-los quanto eles em aprender coisas novas. Os professores que começam a entender a alfabetização como um processo falam menos e escutam mais. E escutar é infinitamente mais importante do que falar.” (Anotações nossas em palestra de Emílio. Ferreiro.)

”O que sabemos é que os professores que se atrevem a dar a palavra às crianças e a escutá-las descobrem rapidamente que seu próprio trabalho se torna mais interessante (e inclusive mais divertido), embora seja mais difícil porque os obriga continuamente a pensar.” FERREIRO, 1992,p. 50-2.

”A transformação destas práticas é que é realmente difícil, já que obriga a redefinir o papel do professor e a dinâmica das relações sociais dentro e fora da sala de aula. [...] o professor não é mais o único que sabe ler e escrever na sala de aula; todos podem ler e escrever, cada um ao seu nível [...JTemos uma imagem empobrecida da criança que aprende: a reduzimos a um par de olhos, um par de ouvidos, uma mão que pega um instrumento para marcar e um aparelho fonador que emite sons.” FERREIRO, 1985,p.39-40.

AVALIAÇÃO

”Como a escola não faz avaliações do nível inicial, não se dá conta de que algumas crianças chegam sabendo mais do que outras. E quando digo avaliação não estou pensando em prova específica, mas simplesmente em atividades que permitam ao professor ver o que a criança pode fazer. [...] Uma das coisas mais reprimidas na escola tradicional tem sido a escrita. Uma das coisas mais proibidas é a escrita es-

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pontânea. A escola fala em texto livre, mas proíbe textos livres como representação da escrita da melhor maneira que o sujeito é capaz de conseguir em cada momento de sua evolução. [...] Uma das coisas que sabemos hoje em dia com maior clareza é que a correção ortográfica fora de tempo pode inibir a língua escrita. Eu não estou dizendo que a escola deva ignorar o erro ortográfico, apenas que deve saber qual o momento certo para fazê-lo, sem criar inibições. Porque eu me nego a chamar de alfabetizada a criança que produz apenas estereótipos, ainda que seu texto não tenha erros ortográficos. [...] A correção sobre a ortografia não se deve confundir com a avaliação da língua escrita que está por trás. [...] É através desse material, produzido espontaneamente pelas crianças, que devemos acompanhar o processo de aquisição da língua escrita.” Anotações nossas em palestra de Emilia Ferreiro.

”Em língua escrita todas as metodologias tradicionais penalizam continuamente o erro, supondo que só se aprende através da reprodução correta, e que é melhor não tentar escrever, nem ler, se não se está em condições de evitar o erro. A conseqüência inevitável é a inibição: as crianças não tentam ler nem escrever e, portanto, não aprendem.” FERREIRO, 1992, p. 31.

”Em uma visão construtivista o que interessa é a lógica do erro: trata-se às vezes de idéias que não são erradas em si mesmas, mas aparecem como errôneas porque são sobregeneralizadas, sendo pertinentes apenas em alguns casos, ou de idéias que necessitam ser diferenciadas ou coordenadas, ou, às vezes, idéias que geram conflitos, que por sua vez desempenham papel de primeira importância na evolução. Alguns desses conflitos entendemos muito bem; esperamos entender melhor outros em um futuro não muito distante.” FERREIRO, 1992, p. 82-3.

”[...] é muito difícil julgar o nível conceituai de uma criança, considerando unicamente os resultados, sem levar em conta o processo de construção. Só a consideração conjunta do resultado e do processo permite-nos estabelecer interpretações significativas. [...] precisamos adotar o ponto de vista do sujeito em desenvolvimento. Definir semelhanças apenas na base dos resultados é

privilegiar nosso próprio ponto de vista. Esta é uma das razões pelas quais é tão difícil fazer uma análise psicogenética coerente.” FERREIRO, 1985, p. 82-3.

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Considerações finais

A eficiência da ação docente depende não só da consciência crítica da realidade, mas também do instrumental teórico que o professor recebe durante o processo de sua formação, que não cessa nunca. E é esse instrumental teórico, fundamentado nos vários campos do conhecimento [...] que constitui a base do saber-fazer pedagógico O professor-educador se forma a partir de uma base sólida de conhecimentos da prática refletida, da consciência crítica da realidade e do papel da escola dentro deste contexto. NICOLAU & MAURO, 1986, p 6

Buscar respostas a questões presentes em nosso saber-fazer pedagógico, nos textos de estudiosos e educadores do passado e do presente, em informações ligadas a nossa prática, representa uma inversão dos procedimentos que utilizávamos para teorizar sobre educação. Não nos satisfazia apenas analisar as teorias; sentíamos que precisávamos captar nelas a totalidade do que havia sido pensado e produzido. Só assim poderíamos entender por que muitas teorias ainda são tão pouco divulgadas ou apreendidas tão superficialmente no curso de formação, permanecendo alheias aos profissionais, como se não tivessem ligação com a prática pedagógica. Seu conhecimento passou a ser fragmentado e, mesmo, deturpado, dando lugar a uma nova teoria: teoria teorizada e não teorizante.

Para conhecer como nosso fazer pedagógico vem sendo estruturado, precisávamos recuperar a identidade dos primeiros teóricos ou a origem de suas idéias. Ninguém constrói uma verdadeira teoria da educação sem antes rever as teorizações já realizadas. Para haver avanço é preciso entrelaçar o passado e o presente, e disso se originará a nova teoria e prática.

Neste livro, ousamos recuperar os clássicos da pedagogia que mais nos influenciaram: Rousseau, Decroly, Freinet e Emilia Ferreiro, cientes de que suas propostas representam uma busca para o processo particular de apoderar-se da escrita. Eles fazem parte de nossa formação e de nosso processo de conhecer, não sendo possível ignorá-los.

Conforme ocorrem as mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais, a teoria em que se fundamenta a prática pedagógica também se modifica e precisa ser reelaborada, para que o conhecimento avance. Toda medida, para surtir efeito, exige investimento permanente em recursos humanos e materiais. A problemática da alfabetização continua, pois não se enfrentam as causas da retenção e da evasão nem se analisa por que a escola continua não sendo atraente para o aluno. Certamente é porque lhe falta vida!

A democratização da sociedade passa pela democratização do ensino e do saber, a qual se efetiva com a conquista da cidadania. As teorias aqui resgatadas priorizam a criança e a construção do seu conhecimento; as experiências que procuram acompanhar a evo-

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lução da aquisição da escrita pela criança contribuem para o aprofundamento e o entendimento das questões do ensinar e do aprender e também para a construção de uma teoria de alfabetização.

As preocupações dos educadores do passado são as mesmas de hoje. Por que não as revisitar? Constatamos que Dalhem (discípulo de Decroly) e

Freinet chegaram a algumas conclusões bastante semelhantes às apresentadas, hoje, por Emilia Ferreiro e colaboradores — e que, no entanto, são tão pouco conhecidas e divulgadas.

A maioria das pesquisas e estudos que analisaram a psicogênese da língua escrita é proveniente da psicologia, da sociologia, da lingüística, da sociolingüística e de outras ciências. As de Emilia Ferreiro têm o mérito de haver contribuído para a gradativa mudança da prática pedagógica dos professores alfabetizadores, ao serem divulgadas pelas universidades e órgãos centrais da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Elas apontam aos educadores um novo entendimento da prática da alfabetização — que, na década de 80, ainda privilegiava o método, considerando a leitura e a escrita objetos de instrução sistemática. Hoje, os educadores começam a ter uma visão mais clara dos processos cognitivos envolvidos nessa aprendizagem e das características de cada etapa dessa evolução.

Alguns professores tentam, sem conhecimento e adaptação metodológica, aplicar essas pesquisas em sala de aula. Chegam a utilizá-las como se fossem um método, com passos e seqüências a seguir. Esses professores desconhecem algo que a própria Emilia Ferreiro procura esclarecer, em suas palestras: que não criou nenhum método de alfabetização, que seus estudos são experimentais e voltados para entender e explicar o processo pelo qual a criança constrói o conhecimento da língua escrita (sua psicogênese).

Os autores estudados, diferentemente, não consideram a escrita processo isolado, linear, cujo somatório levaria o educando a avançar letra por letra, sílaba por sílaba, palavra por palavra, até atingir a totalidade ou viceversa. Ao proporem um trabalho em que todos possam expressar-se socialmente, por meio das várias linguagens, avançam no tempo e nos deixam um grande ensinamento: o educador é um agente político que precisa estender sua esfera de atuação para além dos limites da sala

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de aula. Em suas propostas, já estavam embutidos os fundamentos do construtivismo de Piaget, que exige compreensão de como se ensina e como se aprende.

Nossos teóricos nos ensinam muitas coisas sobre a criança e sua educação. Mostram que atividades, interesses e tateios experimentais da criança constituem o ponto de partida para a. ação pedagógica; que os conteúdos devem ser buscados no meio em que a criança vive e se desenvolve. O educando (criança ou adulto) não é passivo, mero receptor, mas está em constante atividade, tudo quer conhecer, cabendo à escola não anular essa vivacidade e esse interesse com imposições e, sim, ativá-los constantemente.

A educação deve fundamentar-se na natureza, no homem e na sua capacidade de construir o conhecimento. Este só é verdadeiramente construído quando a criança dispõe de liberdade — para selecionar o que quer aprender, para desejar — e de estímulo. Logo, o verdadeiro conhecimento tem como alicerces o trinômio liberdade/interesse/ação.

O conhecimento não deve esgotar-se na compreensão, mas voltar-se para a prática; não deve ser vazio, abstrato, mas vinculado à experiência para,

posteriormente, avançá-la. Aprender não consiste apenas em somar informações; enquanto aprende, a criança reformula seus mecanismos cognitivos, construindo conhecimentos novos mediante conceitos, idéias, representações. Combina o novo com o já conhecido. Os fracassos da escola em transmitir conhecimentos residem sobretudo no divórcio entre ela e a vida. Muitas vezes, a escola passa uma experiência estranha, solta e sem significado. Assim, os alunos aprendem (ou tentam conviver com) uma realidade escolarizada, em ambiente desestimulante, afastado de situações-problema que os motivem e desafiem.

Não se pode esquecer da relação afetiva: educador e educando precisam ser amigos, realizar um trabalho de forma cooperativa, numa relação horizontal, sem imposições, na qual o aluno possa compor e ampliar seu repertório de significados. Somente um clima em que todos selecionam conteúdos, assimilam, processam, interpretam, conferem significado — isto é, em que todos aprendem e ensinam — possibilita que o educador se torne educando, e o educando, educador. Como media-

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dor da aprendizagem, o educador deve propor problemas, provocar desequilíbrios, lançar desafios, levar a criança a reformular idéias anteriores, nunca apresentando as soluções. Deve conviver com os alunos, observando seus comportamentos, conversando com eles, perguntando, sendo interrogado e com eles realizando experiências para auxiliar sua aprendizagem e desenvolvimento. Deve catalisar as informações para ajudar a criança a vencer obstáculos, progredir cada vez mais, num clima de confiança, aceitação e compreensão. Ao dar a palavra à criança, descobrirá que nela existe um mundo de sensibilidade a ser estudado, acompanhado e interpretado.

A aprendizagem deve ser significativa; a sala de aula, um espaço natural, para a busca de objetivos da vida por meio do trabalho-jogo, do registro e da expressão livre. Vista como oficina de trabalho, deve ser um espaço acolhedor e estimulante, em que exista uma rotina diária que favoreça a organização das atividades individuais e grupais Um ambiente no qual se possibilite ao aluno ler e escrever não para a escola, mas para a vida; no qual tanto a linguagem oral como a escrita sejam aprendidas no uso e na interação com as pessoas, em que a criança tenha oportunidades de falar e escrever sem que o educador se preocupe em adivinhar o que ela quer dizer/escrever, mas busque o verdadeiro sentido do que diz/escreve

O processo de alfabetização deve ter conteúdos reais e próximos da criança, com eventos de leitura e escrita, em diferentes contextos socioculturais. A leitura e a escrita não se aprendem mediante regras, mas por tentativa experimental, com disponibilidade dos instrumentos para satisfazer essa necessidade de criação, expressão e relação É preciso valorizar o repertório e as experiências de vida da criança. Cabe ao educador motivá-la para a leitura e a escrita, acompanhar e interpretar a evolução do seu grafismo, possibilitandolhe atingir a livre expressão na escrita e a plena autonomia para agir, descobrir, inventar e criar, para saber estabelecer relações entre os conteúdos em um processo interdisciplinar Cabe ao educador partilhar com os alunos a análise de suas produções para juntos reconhecerem seus avanços e

suas dificuldades, desenvolvendo neles a consciência dos progressos feitos em relação às situações anteriores.

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O professor deve ter clareza do cotidiano da aprendizagem de seus alunos para saber onde e como intervir a fim de que avancem na direção desejada. Deve colocar à disposição deles todos os recursos necessários para que aprendam. A organização do tempo e do espaço, a disponibilidade de livros, mapas, cartazes e outros materiais e, sobretudo, a orientação do professor, todos esses recursos devem estar a serviço da aprendizagem efetiva. Cabe a ele ajudar a criança a refletir sobre sua escrita, visando a melhorá-la, e eliminar bloqueios.

A rotina de uma sala de aula Freinet consiste em levar a criança a.• escrever textos livres para ler durante as aulas e selecionar alguns

para serem impressos,• ler os textos e cartas recebidas dos correspondentes;• escrever aos correspondentes;• registrar no livro da vida os acontecimentos mais importantes;• redigir, de acordo com o plano de trabalho semanal, traçado

individualmente, textos para serem comunicados e conferências;• rever e aperfeiçoar o texto selecionado para ser impresso, trabalhando

a gramática em conjunto.Por intermédio do trabalho com textos, a criança tem oportunidade de

exprimir os pensamentos que dominam sua vida. O erro é visto de forma construtiva, corrigido pela criança, com o auxílio das experiências e das tentativas de sucesso. ”Se esta atividade de expressão criadora motivada pudesse ser representada na vida escolar, o mecanismo de aprendizagem natural funcionaria a 100%. Não funciona senão a 50%, se apenas se fizer texto livre, comunicados e conferências. Só funciona a 20%, se apenas se fizer um texto livre sem repercussões escolares e extra-escolares. Não dará mais que 5%, se se fizer texto livre sem tipografia, sem correspondência e sem jornal.” FREINET, 1977a, p 283

A sensibilidade das crianças dará harmonia às frases e ao texto todo. Freinet conferia grande importância à poesia, dizendo que ”uma classe onde não floresce a poesia é uma aula onde o professor não conseguiu ainda libertar-se”. FREINET, 1977a, p 288

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Como transmitir aos alunos a varinha mágica que nós próprios perdemos? Deixando emergir nossas reações profundas e não somente intelectuais, as que vibram em nosso ser como batidas de coração. Para entender a criança, detectar-lhe as tendências poéticas, temos de nos aproximar muito delas. Nady, uma menina de 5 anos e meio, aluna de Freinet, não gostava de se expressar em voz alta, mas ouvia atenta a fala dos coleguinhas Logo que conheceu algumas palavras, começou a escrever seus próprios textos, muito curtos, mas que agradavam bastante; eles nasciam espontâneos e dispensavam correção coletiva. Vejamos três deles:

Les oiseauxLes oiseaux sont mignonsMalheureuxComme des pauvres genslis s’en vont vite.Ob! Qu’ils sont pauvresdans Ia pluieet dans lê vent.

Os pássaros / Os pássaros são bonitos / Infelizes /Como gente pobre / Depressa se vão embora. / Oh! Como eles são pobres/na chuva/ao vento.

NuitNuit mignonnenuit bleue et noireétoiles d’or.Nuit mignonne,nuit noire et bleue,lune d’argent.Nuit mignonne,étoiles d’or,lune d’argentNuit mignonne, ,étoiles d’or,lune d’argent.Je me cache et je dorssous le ciei bleue et noirde Ia nuit noire et bleue.

Noite / Noite bonita / noite azul e negra / estrelas de ouro. /Noite bonita, / noite negra e azul, /lua de prata./ Noite bonita, / estrelas de ouro, / lua de prata. / Escondo-me e durmo / sob o céu azul e negro / da noite negra e azul.

Beau, beau, Beau, beau,mon texte est tout petit. S’il ètait grand il serait laid.Belo, belo,/Belo, belo,/o meu texto é pequenino./Se fosse ande/seria

feio.FREIRE, 1977a, pp. 294-295.

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Não existem receitas ou modelos A realidade nos desafia a cada momento, e é preciso responder de forma original, se quisermos modificá-la A elaboração e o desenvolvimento do conhecimento estão ligados ao processo de conscientização que condiciona pensamento e ação.Ao educador cabe fornecer condições de trabalho e ação, aproximar a criança da realidade para

desvelá-la e criticá-la, reconstruí-la e reinventá-la, transcendendo a simples esfera da apreensão

Para Rousseau, a criança tem a sua própria história, é um ser concreto e real, livre para querer, sentir, pensar e proceder. Para Decroly, é uma individualidade — o que exige um trabalho diferenciado Todos aprendem com ritmo e estímulos diferentes Para Freinet, a criança possui os germes do próprio desenvolvimento e realização Quando motivada e orientada, cria, age, realiza, disciplina-se sozinha.

Todos os nossos autores concordam em que, cada uma a seu modo, ritmo e tempo, todas as crianças são capazes de conhecer, progredir e tornar-se autônomas. Não há possibilidade de alfabetização sem relação escrita-mundo, escrita-contexto. ”A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”, nos diz Paulo Freire. FREIRE, 1985,p 11.

Quando a criança é estimulada por materiais escritos, ela constrói conhecimentos sobre a escrita e a leitura e, em conseqüência, conhecimentos do mundo. O ambiente alfabetizador, ao fornecer elementos estimulantes, desafia o sujeito a pensar sobre a língua escrita como sistema de representação de significados contextuais. A alfabetização passa a ser um processo que se inicia muito antes da entrada na escola — processo que, evidentemente, apresenta diferenças, pois depende do ambiente social em que a criança vive, mais que do desejo ou intenção das pessoas que com ela convivem.

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