De Como Fazer Filosofia Sem Ser Grego Estar Morto Ou Ser Genio

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http://opensadordaaldeia.blogspot.com/2008/09/de-como-fazer-filosofia-sem-ser-grego.html Quinta-feira, 18 de Setembro de 2008 De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio entrevista com Gonçalo Armijos Palácios (Publicado na revista Discutindo filosofia, número 6, 2007, e republicada em Discutindo filosofia - Extra, 2008) por Paulo Jonas de Lima Piva O texto que segue abaixo é uma entrevista que fiz com o filósofo Gonçalo Armijos Palácios, autor do instigante De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio (Editora UFG, 1997)), em 2007. Ela foi publicada na revista Discutindo Filosofia, número 6 - portanto, antes da decadência na qual se encontra - e republicada recentemente numa edição extra da revista. Dada a sua extensão, a entrevista não foi publicada na íntegra na revista. Aqui ele vai completa ********************************************************* Ele não é grego, é equatoriano, está muito vivo e intelectualmente ativo aos cinqüenta e um anos de idade, e não tem nenhuma pretensão de ser gênio só porque é doutor em filosofia pela Indiana University com o tema "Marxismo e pragmatismo" e tem livros publicados sobre o assunto. Ele quer somente pensar com base na sua própria razão e no seu próprio juízo, sem a intromissão de especialistas, isto é, filosofar, como faziam Sócrates e os seus contemporâneos. Em outras palavras, ele deseja apenas ser filósofo. Estamos falando de Gonçalo Armijos Palácios, professor de filosofia da Universidade Federal de Goiás e autor do polêmico livrete De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio, lançado em 1997, pela Editora UFG, e relançado recentemente com novos capítulos ao lado de outra obra explosiva, Alheio olhar, na qual Gonçalo comenta, critica e procura estabelecer um diálogo com os principais personagens da elite filosófica brasileira. Por e-mail Gonçalo conversou com a revista Discutindo Filosofia sobre o destaque dado à filosofia pela mídia, o retorno obrigatório da disciplina ao ensino médio, filosofia universitária, filosofia clínica, entre outros assuntos. R: Professor, como o senhor explica esse aumento do interesse das pessoas pela filosofia? É um fenômeno ocidental ou apenas uma moda brasileira? G: Não penso que querer saber sobre determinados assuntos cujas respostas só nos dá a reflexão filosófica possa ser uma moda. Já vivi em três países diferentes e em todos eles vi que as pessoas, dos mais diversos estratos sociais, têm questões que, saibam elas ou não, são questões filosóficas. O desejo por se aprofundar em certos problemas, assim como o de escrever, ou pintar, compor, esculpir, é conseqüência de uma necessidade das pessoas intelectualmente inquietas, não penso que tenha isso a ver com modas. R: Poderíamos dizer então que estamos vivendo um momento de popularização da filosofia, em particular no Brasil? G:Não vejo isso. A luta pela volta do ensino de filosofia no ensino médio é uma reivindicação, não só dos estudantes do ensino médio e seus professores, mas dos próprios pais desses estudantes. O ser humano não pode deixar de sentir a necessidade de ter um espaço, e a oportunidade, para refletir sobre o que ocorre com o ser humano, enquanto ser humano, com a sociedade, com os rumos da história, com as questões de gênero, com o problema da discriminação, e, portanto, dos direitos humanos, entre muitas outras questões. Penso que, num momento de suas vidas, as pessoas sentem a necessidade de refletir filosoficamente sobre certos assuntos, mesmo sem saber que são questões filosóficas.

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Quinta-feira, 18 de Setembro de 2008

De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio

entrevista com Gonçalo Armijos Palácios(Publicado na revista Discutindo filosofia, número 6, 2007, e republicada em Discutindo filosofia - Extra, 2008)

por Paulo Jonas de Lima Piva

O texto que segue abaixo é uma entrevista que fiz com o filósofo Gonçalo Armijos Palácios, autordo instigante De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio (Editora UFG, 1997)),em 2007. Ela foi publicada na revista Discutindo Filosofia, número 6 - portanto, antes dadecadência na qual se encontra - e republicada recentemente numa edição extra da revista. Dadaa sua extensão, a entrevista não foi publicada na íntegra na revista. Aqui ele vai completa

*********************************************************Ele não é grego, é equatoriano, está muito vivo e intelectualmente ativo aos cinqüenta e um anosde idade, e não tem nenhuma pretensão de ser gênio só porque é doutor em filosofia pela IndianaUniversity ― com o tema "Marxismo e pragmatismo" ― e tem livros publicados sobre o assunto.Ele quer somente pensar com base na sua própria razão e no seu próprio juízo, sem a intromissãode especialistas, isto é, filosofar, como faziam Sócrates e os seus contemporâneos. Em outraspalavras, ele deseja apenas ser filósofo. Estamos falando de Gonçalo Armijos Palácios, professorde filosofia da Universidade Federal de Goiás e autor do polêmico livrete De como fazer filosofiasem ser grego, estar morto ou ser gênio, lançado em 1997, pela Editora UFG, e relançadorecentemente com novos capítulos ao lado de outra obra explosiva, Alheio olhar, na qual Gonçalocomenta, critica e procura estabelecer um diálogo com os principais personagens da elite filosóficabrasileira. Por e-mail Gonçalo conversou com a revista Discutindo Filosofia sobre o destaque dadoà filosofia pela mídia, o retorno obrigatório da disciplina ao ensino médio, filosofia universitária,filosofia clínica, entre outros assuntos.

R: Professor, como o senhor explica esse aumento do interesse das pessoas pela filosofia? É umfenômeno ocidental ou apenas uma moda brasileira?

G: Não penso que querer saber sobre determinados assuntos cujas respostas só nos dá a reflexãofilosófica possa ser uma moda. Já vivi em três países diferentes e em todos eles vi que aspessoas, dos mais diversos estratos sociais, têm questões que, saibam elas ou não, são questõesfilosóficas. O desejo por se aprofundar em certos problemas, assim como o de escrever, ou pintar,compor, esculpir, é conseqüência de uma necessidade das pessoas intelectualmente inquietas,não penso que tenha isso a ver com modas.

R: Poderíamos dizer então que estamos vivendo um momento de popularização da filosofia, emparticular no Brasil?

G:Não vejo isso. A luta pela volta do ensino de filosofia no ensino médio é uma reivindicação, nãosó dos estudantes do ensino médio e seus professores, mas dos próprios pais desses estudantes.O ser humano não pode deixar de sentir a necessidade de ter um espaço, e a oportunidade, pararefletir sobre o que ocorre com o ser humano, enquanto ser humano, com a sociedade, com osrumos da história, com as questões de gênero, com o problema da discriminação, e, portanto, dosdireitos humanos, entre muitas outras questões. Penso que, num momento de suas vidas, aspessoas sentem a necessidade de refletir filosoficamente sobre certos assuntos, mesmo semsaber que são questões filosóficas.

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R: A propósito, como o senhor avalia best-sellers filosóficos como “O mundo de Sofia”, de JosteinGaarder, e “Quando Nietzsche chorou?”. E filmes como “Matrix”, também considerado “filosófico”por muitos?

G: Não pensemos nos best-sellers, pensemos em obras literárias clássicas ou em clássicos docinema. Não penso que uma obra prima da literatura, ou um filme que seja considerado uma obrade arte, leve necessariamente alguém para fazer literatura ou a querer ser cineasta. O que nosleva a filosofar são problemas, situações de perplexidade em que nos encontramos. Podemos sermotivados para refletir filosoficamente por diversas coisas, incluídos filmes e livros, tenham ou nãoa intenção de nos fazer filosofar. Basta que provoquem em nós o desejo de refletir sobre algumproblema e tentar resolvê-lo com nossos próprios meios; basta que nos deixem pasmos, perplexos,que nos mostrem que estamos perdidos sobre algo de fundamental importância para nós ou osoutros. Pois só fazemos filosofia quando estamos perdidos, não quando sabemos onde estamos.Quem sabe onde está não precisa procurar.

R: A filosofia chegou até à televisão, e o fez dando picos de audiência para o programa“Fantástico” da Rede Globo, com o quadro “Ser ou não ser”, protagonizado pela professora VivianeMosé, em horário nobre, o que gerou muita controvérsia entre os filósofos acadêmicos. “Caféfilosófico” e “Balanço do século XX”, ambos da TV Cultura de São Paulo e da Rede Educativa, e“Saia Justa”, da CNT, também de São Paulo, são outros programas de televisão em que a filosofiaaparece com destaque. Qual é a avaliação do senhor a respeito desses programas televisivos? Osenhor acha que o filósofo ou o profissional de filosofia deve ocupar os espaços oferecidos pelatevê, freqüentando inclusive programas de auditórios com apelo popular? Não haveria nisso umperigo de banalização da filosofia e de perda de credibilidade para o filósofo que se expõe dianteda câmera falando para leigos sobre um assunto tão complexo e que exige tanto rigor?

G: Eu assisti com interesse o Ser ou não ser, mas fiquei desapontado. A palavra ‘superficial’ nãoserve para descrever esse programa. Precisaria de um termo que denote algo mais superficial quea própria superficialidade. Era uma mistura de questões que confundia o linguajar da psicologia(área principal, parece, da apresentadora) e da filosofia. Um programa que não ficou perto deapresentar com o mínimo de seriedade e clareza as questões que se propunha apresentar. Operigo de programas com apoio comercial é esse: tudo pode ser banalizado. O fato é que épossível apresentar, para um público interessado, um programa, na televisão, que trate questõesfilosóficas e consiga aprofundá-las. O formato, contudo, tem de ser completamente diferente. Eu jávi isso, por exemplo, na televisão pública norte-americana. Em geral são discussões em quefilósofos são convidados, não há cortes comerciais, e é um debate moderado pelo apresentador —alguém, naturalmente, muito bem preparado e que fez um curso de filosofia ou exerce a cátedrafilosófica. Aqui no Brasil, numa rede não comercial, já vi faz poucos meses vários episódios de umprograma espanhol (legendado) em que o entrevistador tinha uma hora para conversar com oconvidado. Vi entrevistas com intelectuais como o colombiano García Márquez, o argentino JulioCortázar, o mexicano Octavio Paz, o cubano Guillermo Cabrera Infante, e o pintor colombianoFernando Botero. Se isso fosse feito com um filósofo, o resultado não poderia ser diferente outro:excelente. Refiro-me, claro, a programas sem apelo comercial. Quando entra o lado comercial e o‘apelo popular’, a coisa começa a desandar, que é o que aconteceu com, pelo menos, aquele doFantástico.

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R: O senhor tem um programa numa emissora de rádio de Goiânia, não é isso? Por favor, fale-nossobre essa sua experiência.

G: O programa tem quinze minutos. Pode parecer pouco tempo, mas em quinze minutos só tenhotempo de introduzir um problema, mostrar por que é um problema e quais as possíveis linhas desolução. Em geral procuro tratar questões que interessam a todos os seres humanos, não aespecialistas. Contudo, faço isso sem banalizar ou ficar em superfluidades. Por exemplo, tratosobre o direito ao aborto, sobre poder e enriquecimento, sobre valores, sejam éticos ou estéticos.Numa ocasião, motivado pela pergunta de uma menina de sete anos sobre a existência do mal,mostrei as questões que surgem quando pensamos nos conflitos entre a existência de Deus e a domal, entre a onisciência divina e a liberdade humana etc. Naturalmente, não esgoto o assunto numprograma, e nem poderia, continuo nos programas subseqüentes, apesar de muitas questõesserem inesgotáveis. Aproveito, também, para refletir sobre o momento político brasileiro do pontode vista filosófico. Mas há muitas questões que é possível trazer para um programa de rádio. Aliás,na Europa e nos Estados Unidos isso não é incomum. E há filósofos mundialmente famosos, comoKarl R. Popper, Bochenki e Karl Jaspers que leram artigos pelo rádio ou que tiveram também umprograma de rádio. E os textos lidos por eles não eram nada triviais, o que não deixa desurpreender quem acha que o rádio ou a televisão só estão para coisas banais e comerciais. Aemissora em que tenho o programa, claro, é pública, é a Rádio Universitária, da UFG, e é ouvidadentro e fora de Goiânia. Fiquei surpreso quando comecei a receber cartas e e-mails dos ouvintes.Isso é muito estimulante. O programa vai ao ar segundas e quartas, ao vivo, em dois horários, das7:15 às 7:30h e das 1845 às 19:00h. O programa também é transmitido pela internet:http://www.radio.ufg.br/. Poucas semanas atrás foi ao ar o centésimo programa (considerando oprograma da segunda-feira, um, e o da quarta, outro). O programa já está no ar, ininterruptamente,mais de um ano. Penso que o jornal também é um veículo para levantarmos e discutirmosquestões filosóficas. Tenho uma coluna num semanário de Goiânia (que também está na internetfaz alguns anos: http://www.jornalopcao.com.br/), a coluna chama-se “Idéias”. Nele tenhodesenvolvido muitas questões filosóficas do meu interesse e do interesse de muita gente. Digo istopelo retorno que tenho por meio de e-mails. Voltando ao programa de rádio. Fiquei muito motivadoe feliz quando, certo dia, um aposentado escreveu uma carta em que me congratulava peloprograma. Mas, apesar de morar longe, fez questão de levar a carta pessoalmente à emissora.Considero a experiência muito gratificante e positiva. Quando vêm a Goiânia professores de outrascidades, os convido para uma entrevista, o que ocorreu com a professora Maria das Graças deSouza, do Departamento de Filosofia da USP.

R: O que o senhor teria a dizer de iniciativas como “Casa do saber”, em São Paulo e no Rio deJaneiro, onde a procura pelas palestras e cursos oferecidos é enorme sobretudo por pessoas dealto poder aquisitivo?

G: Não tenho informações sobre isso, mas suponho que fiquem nisso, em palestras bem pagaspara pessoas interessadas em ter um tipo de entretenimento sofisticado. Algo assim como ir aoteatro e ter depois de que conversar com os amigos num restaurante caro.

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R: Muitos expoentes da filosofia universitária brasileira afirmam nos bastidores que a filosofiaclínica seria uma tremenda picaretagem. O senhor compartilha desse julgamento? O senhorconcorda que a função essencial da filosofia é criar problemas e não tentar resolvê-los?

G: A última frase é esquisita. Nem na matemática nem na física se entra para criar problemas.Ninguém pode entrar na filosofia com esse propósito esdrúxulo: “a partir de agora vou criarproblemas”! Por outro lado, não há ingresso na filosofia, porque ‘a’ filosofia não existe. Se começa,ou não, a filosofar, que é diferente. E isso ocorre quando se tem um problema. Naturalmente, setemos um problema, o humanamente natural é procurar uma solução, que podemos ou não achá-la. E a filosofia ocorre ao se encontrar um problema e na tentativa de resolvê-lo. A palavra ‘clínica’tem a ver com pacientes. É um termo da medicina, e é nas faculdades de medicina que ‘clinica’aparece como parte da grade curricular que prepara as pessoas para tratar de doençasespecíficas. Assim como os estudantes têm ‘laboratório’ de isto e de aquilo, tem ‘clínica’. O mesmoocorre com psiquiatras e com psicólogos. Nenhum curso de filosofia tem a menor relação comtratar pacientes, tratar doenças, nem suas grades curriculares estão para isso. Portanto, quemquer tratar alguém se esta fosse um paciente e cobrando pela consulta, como faria um clínico, porter o título de filosofia, deve ser denunciado e ir preso. Não é picaretagem, é crime!

R: E o retorno da filosofia como disciplina obrigatória no ensino médio? Trata-se de um avanço oude um projeto educacional fadado ao fracasso?

G: Eu participei da luta, no Centro-Oeste, pela volta da filosofia ao ensino médio. E estive no ForoSul de Filosofia, organizado pela professora Adriana Mattar Maamari, na Universidade Estadual deLondrina, pouco antes da aprovação em Brasília da resolução que tornava obrigatória a disciplinano Brasil. Em Goiás ela foi aprovada no final de 2005. Pouco depois da aprovação, uma professorade filosofia disse, numa entrevista a um jornal de Goiânia, “a volta da filosofia não vai resolver osproblemas da educação”. Eu fiquei perplexo. Acaso alguém defendeu o disparate de que ainclusão desta ou daquela disciplina represente uma solução dos problemas da educação? Deonde ela tirou essa idéia, não consigo imaginar. O ensino do português está nos currículos,suponho, desde que há escolas no Brasil. E não é pelo fato de muitas pessoas usarem “tu vai”, “tufica” (incluída aquela professora, que assim fala quando conversa com as pessoas) que adisciplina deve ser retirada das escolas. Que significa “fadado ao fracasso”? Se meus colegasbrasileiros, mestres ou doutores, não falam como se supõe que uma pessoa culta deveria falar,significa que o ensino do português nas escolas fracassou? Que a maioria das pessoas tenhaojeriza das matemáticas, significa que ela é um rotundo fracasso como disciplina e deveria serretirada do ensino nas escolas? Que devemos entender por “sucesso”? Que disciplinas são, ouforam, um sucesso na escola e quais não? E qual é o critério que nos permitiria decidir isso? Achoque o problema está mal colocado. Está posto em termos econômicos, utilitaristas, quase quemercadológicos. Cada vez que uma disciplina é bem ministrada por alguém, tem sucesso comesse alguém, e se é mal ministrada por outro professor, fracassa com esse professor. Pois hápessoas, não disciplinas. Não podemos falar delas como se elas pairassem no ar, comosubstâncias misteriosas, como realidades platônicas. O que devemos perguntar é: um colégio deveou não abrir um espaço para a discussão, para a reflexão, um espaço em que não se julgue acapacidade de memorização do estudante e que se estimule a própria reflexão, a criatividade, seaproveitando do entusiasmo e senso crítico próprio dos jovens.

R: O senhor é favorável a que a filosofia se torne uma disciplina de vestibular?

G: A questão não é simples. Porque se ela é incluída no vestibular, as comissões do vestibular,nem sempre compostas por pessoas da área, podem terminar forçando os colégios a modificar(desvirtuar, na verdade) seus programas de filosofia em virtude do que se pergunta no vestibular,como sucede com outras disciplinas. O vestibular pauta os conteúdos dos programas nos colégiose nos cursinhos. E como tais comissões têm uma espécie de autonomia inquestionável, podemterminar pondo questões de múltipla escolha no que deveriam ser perguntas filosóficas. Equestões de múltipla escolha na filosofia... é de arrepiar.

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R: Como o senhor acha que a filosofia deva ser ensinada no ensino médio? Na forma de históriada filosofia ou de temas filosóficos?

G: Eu elaborei e entreguei o programa de filosofia para o ensino médio à Superintendência deEducação do Estado de Goiás. E proponho que a filosofia exista na escola para se discutiremproblemas atuais, em primeiro lugar. Assim, penso que o estudo não deve ser temático, e simproblemático. A partir dos problemas, proponho, os professores entram nos vários temas e, a partirdaí, trazem para a discussão o que os filósofos clássicos, do passado ou do presente, têmdefendido sobre os assuntos em questão. Por exemplo, podemos entrar no problema da igualdade.A igualdade de direitos, por exemplo, entre homens e mulheres. Uma vez introduzida a questão edebatida com os estudantes, podem ser trazidas à tona as idéias e argumentos que Platãoofereceu sobre isso. No programa abro a possibilidade para que o professor discuta com cadaturma o que interessa a essa turma. E a partir da discussão, mostrar o que este ou aquele filósofodisse sobre aquilo, pedindo que, de novo, e com base no que os filósofos disseram, depois de osalunos terem tomado suas posições, sem a leitura dos filósofos, ou seja, os estudantes escrevamredações curtas se posicionando sobre o que estes propuseram. Se isso ocorrer, pouco a poucodefinhará aquela tradição que pensa que filosofia é fazer meros comentários sobre os queintocáveis gênios da filosofia propuseram, e mostrará aos estudantes que sempre podemos discutircriticamente com a tradição.

R: A maneira de se ensinar filosofia num colégio particular de classe média deve ser a mesmanuma escola pública de periferia? Na sua opinião, como deve proceder um professor de ensinomédio em sala de aula?

G: A pergunta, parcialmente, já foi respondida na questão anterior. Mas gostaria de me pronunciarsobre a distinção colégio particular/colégio público. Comecei a dar aula no Brasil quase 20 anosatrás. Naquela época, em Goiânia, ao menos, a diferença na formação dos estudantesprocedentes do ensino privado e público era muito grande. Nos últimos anos, contudo, essadiferença praticamente desapareceu. Apesar de não ter sido disciplina obrigatória, a filosofia eraministrada em muitos estabelecimentos públicos e privados. E o nosso departamento de filosofia,na Universidade Federal de Goiás, assim como o da Universidade Católica, continuou formandolicenciados em filosofia. Esses estudantes foram dar aula na rede pública e privada e, penso,estamos colhendo os frutos. Por experiência própria devo dizer que nos últimos anos tenhorecebido calouros melhor formados, tanto os que vieram da rede privada como os que estudaramna rede pública. Por último, é óbvio que uma escola com mais recursos vai estar em melhorescondições que outra em que até carteiras podem faltar. Mas, no fundo, a filosofia pelo menos podeser feita quando há mentes reflexivas, mesmo com poucas condições materiais — pois até a faltade condições pode nos levar a refletir sobre a desigualdade entre os homens, o que é umaoportunidade para se filosofar.

R: Qual é a sua opinião sobre o método de se ensinar filosofia para crianças? Não seria algoprematuro demais?

G: Não sei qual seria o método. Não tenho pensado sobre o assunto pois sinceramente não seicomo isso seria possível.

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R: O senhor acredita que as faculdades de filosofia estão ofertando ao mercado bonsprofissionais? Aliás, no seu livro De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio, osenhor ataca implacavelmente a figura do especialista em filosofia. O senhor fala em “peste docomentador” e também em “comentariologia”. O que exatamente quer dizer com essasexpressões?

G: Vou responder com sinceridade. E não me leve a mal. Mas jamais agi na minha vida tendo emvista o mercado, ou o dinheiro. Nunca mesmo. Até abri mão, no meu país, de levar uma vidaacomodada. Meu pai era dono de uma empresa de publicidade, a mais antiga da cidade, a capitaldo meu país, e não se cansava de me dizer como era possível fazer muito dinheiro trabalhandonela. Sou filho único e teria ficado com a empresa. Mas nunca me passou pela cabeça trabalharpara fazer dinheiro ou ajudar a que outras pessoas façam. Sou sincero, meu mundo foi outro,desde criança. Entrei na graduação para filosofar, e quando me formei, sempre pensei em formarfilósofos, nunca alguém preparado para seja lá o que signifique ‘mercado’. Ao formar pessoascapazes de filosofar, pensei sempre, eles poderiam achar um lugar que lhes permita continuarfilosofando. Porque ‘bons profissionais para o mercado’ brasileiro, na filosofia, muitosdepartamentos formam. Mas, cuidado, se entendemos que ‘bom profissional’ é um termovalorativo, e os valores são decididos por esses mesmos departamentos que pensam que umprofessor de filosofia se deve limitar a comentar e nunca discutir ou questionar ou rebater o que jáfoi feito por algum gênio intocável da tradição filosófica. Para um departamento que pensa que oque interessa é formar profissionais que se curvem ante a superioridade intelectual européia ounorte-americana, limitando-se a louvar e comentar o que por lá se fez ou se faz, isso é um ‘bomprofissional’. Nesse sentido, eu formei e quis formar, maus profissionais: mentes abertas, críticas,criativas, problematizantes. Ninguém que faz isso é considerado bom em meios em que impera amentalidade escolástica.

R: No Equador, seu país natal, qual é a situação da filosofia e do seu ensino?

G: Minha entrada no Departamento de Filosofia, em Quito, em 1974, coincidiu com um dosperíodos mais terríveis na América Latina. Em setembro de 1973 houve o golpe no Chile,orquestrado pela CIA e dirigido pelo assassino e — hoje sabemos, ladrão — general AugustoPinochet. Uruguai estava sob uma ditadura, Paraguai há muito tempo, Bolívia e Peru também e,pouco depois, Argentina. Isso fez que muitos intelectuais fugissem dessas ditaduras sanguinárias.Um dos primeiros países que lhes deu abrigo foi o Equador. Que tinha uma ditadura, mas umaditadura não repressiva nem de direita. Para mim foi uma sorte porque o departamento em queestudei chegou, por esses anos, a receber muitos professores de filosofia do Cone Sul e a ser umareferência internacional. Nossa faculdade tinha muitos exilados chilenos, argentinos e uruguaios.Começava uma tradição de discussão filosófica e nela eu me formei. E foi esse o espírito da minhaformação filosófica e intelectual. Eu defendi meu primeiro doutorado naquela universidade em1982, frente a uma banca de estrangeiros, todos exilados, chilenos e argentinos. Mas já tinhadecidido começar um outro doutorado nos Estados Unidos, para onde fui depois de defenderminha dissertação. Naquela época, a ultradireita tomou o poder no Equador e a SagradaCongregação para a Educação Católica deu um golpe na nossa faculdade. Converteu oDepartamento de Filosofia, que fazia parte da Faculdade de Ciências Humanas, em FaculdadeEclesiástica de Filosofia. O Departamento de Sociologia passou a ter o próprio reitor como chefede departamento, e o Departamento de Antropologia foi fazer parte do Departamento de História.Aí terminou, penso, o processo que começava uma tradição filosófica no meu país. Penso que atéagora não conseguimos recuperar o que tínhamos naqueles anos.

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R: E essa história de “complexo de inferioridade” daqueles que fazem filosofia no Brasil? É possívelfalarmos numa “filosofia brasileira” assim como falamos numa “filosofia latino-americana” ou numa“filosofia anglo-saxã”?

G: Em Alheio olhar teço uma série de reflexões sobre as declarações de 16 importantesprofessores de filosofia brasileiros que apareceram em Conversas com filósofos brasileiros, deMarcos Nobre e José Marcio Rego (São Paulo : Editora 34, 2000.) Ante a pergunta sobre se existeuma filosofia brasileira, no sentido em que se fala de filosofia anglo-saxã ou européia, a respostade todos eles, se minha memória não me engana, é “não, não existe”. Muitos entrevistadosafirmam que existe trabalho historiográfico de qualidade, mas que não podemos falar, ainda, defilosofia brasileira como, por exemplo, falamos de filosofia alemã. Penso que as razões para issoencontremos na própria história do Brasil, incluído o passado recente, uma história de colonialismoe dependência. Em outras áreas da atividade intelectual e espiritual, contudo, o Brasil conseguiusair dessa dependência, como na pintura, na música e, sem dúvida, na literatura. Podemos falar depintura, música e literatura brasileiras que conseguiram projeção e reconhecimento universais. Nafilosofia, pelo que já tenho visto ocorrer, parece que, finalmente, as coisas vão mudar. Um fatoimportante são as declarações de uma das mais destacadas personalidades na nossa área:Oswaldo Porchat. Nas novas gerações já temos a sementes que produzirão filosofia, de qualidade,como se faz em outras partes do mundo. Pelo que tenho visto nos últimos anos, parece que osjovens que se doutoraram há pouco tempo e estão se formando não vão aceitar mais o papel desubalternos da filosofia: o de ficar como meros comentadores que devem esperar que se faça láfora o que não se faz aqui para poder publicar comentários e justificar seus salários, sem produzir,isto é, eles próprios, filosofia. Estou convencido que na mente dos mais novos há esta palavra:“chega!”

R: Num determinado momento do seu livro De como fazer filosofia o senhor afirma de maneiracontundente que a Capes, o CNPq e o Ministério da Educação deveriam não só deixar de financiarmestrados e doutorados baseados em comentários das obras de filósofos clássicos, mas proibiresse tipo de pesquisa, já que seria em última instância um desperdício de dinheiro público. Nãohaveria um certo exagero nessa sua posição? O que então essas instituições públicas de fomentoà pesquisa deveriam financiar?

G: Esta é uma questão extremamente delicada. Poder-se-ia pensar que sou absolutamente contraa pesquisa historiográfica ou contra qualquer tipo de comentário. Não sou. Gosto que as coisas seconheçam pelos seus nomes. Devemos reconhecer que fazer história da pintura não é fazerpintura assim publicar como um comentário sobre as composições de Heitor Villa-Lobos não éfazer música. O trabalho, a pesquisa filosófica, mantenho, requer, precisa e se auxilia dos doistipos de atividade. O grave é que se tenha feito o que o professor Porchat reconhece: sedesestimular, pior ainda, proibir, a produção de idéias próprias por se considerar isso umaveleidade. Não há nenhum problema em se desenvolver uma pesquisa historiográfica ou seescrever um comentário. O grave é se obrigar os estudantes a só fazer uma coisa ou outra, pois éinaceitável que se proíba a produção de pensamento filosófico original, de teses e teorias próprias,se identificando ‘trabalho filosófico’ com ‘trabalho sobre as idéias de determinado filósofo clássico’.Desse modo, penso ser grave que agências de fomento à pesquisa considerem que está muitobem financiar, quase que exclusivamente, pesquisas sobre o que se pensa em outros lugares domundo e, de entrada, não se dê um centavo a quem quer fazer pesquisa original, pensar umassunto que não tenha sido pensado por nenhum grande filósofo europeu ou norte-americano, vivoou morto. Imagine: uma agência de fomento concede uma bolsa de pós-graduação para que umbrasileiro faça um doutorado sobre neurocirurgia na Europa. O estudante se forma e volta aoBrasil. Você consideraria apropriado que este novo doutor se limite a dizer em artigos o que se fazpor lá em lugar de ele mesmo pôr as mãos à obra? No esperaríamos que opere aqui e, a partirdisso, publique os resultados das suas próprias experiências ao ele mesmo desenvolver técnicasnão conhecidas por lá? E, o que é pior, poder-se-ia considerar apropriado que todos os novosdoutores que se formem em física, biologia e qualquer outra ciência, na Europa ou nos EstadosUnidos, não publiquem, quando voltam, artigos que não sejam exclusivamente sobre o que se fazna Europa e nos Estados Unidos?

Page 8: De Como Fazer Filosofia Sem Ser Grego Estar Morto Ou Ser Genio

R: Em sua coluna semanal sobre filosofia num jornal de grande circulação em Goiânia o senhor jádisparou contra a filósofa Marilena Chauí, muito conhecida pelo seu pensamento combativo emuito criticada ou admirada pelo seu engajamento político-partidário. Como o senhor entende quedeva ser a postura de um filósofo brasileiro diante dos fatos políticos nacionais? O filósofo deve secomprometer com algum projeto político-patidário e com alguma bandeira ideológica?

G: Eu não disparei contra a professora Chauí. A afirmação já pressupõe um ataque pessoal daminha parte. Eu fiz uma avaliação de um texto dela em que há trechos que considerei e continuoconsiderando equivocados. Isso é ‘disparar’? Isso é ‘injuriar’, ‘atacar’, ‘ofender pessoalmente’? Poisquando você levanta críticas sobre as idéias de alguém, aqui no Brasil, como pude perceberdepois, você é lido como se atacasse a pessoa ou, pior ainda, a ultrajasse. Como parece serproibido criticar alguém, pois toda crítica, por mais correta ou bem-intencionada que seja, sempre étida como agressão, ninguém se atreve a dize nada sobre os trabalhos dos colegas. E se alguém ofaz, então ‘ultraja’, ‘ataca’ ou, como você diz na sua pergunta, ‘dispara’. Em segundo lugar, que eutenha tido a ousadia inaceitável — agora vejo — de criticar o texto de alguém considerado umícone da esquerda no Brasil, levou muitos a dizer: só pode ser por razões escusas, ideológicas,pessoais. Não tenho trato pessoal com a professora Chauí, não formo parte de nenhum gruporegional aqui no Brasil, não me formei aqui, não faço parte de clubes ou turmas. Portanto, nãoposso ter razões pessoais se nunca tratei a pessoa que supostamente ataquei nem formo parte deum grupo de desafetos. Penso que posso criticar o texto de um amigo querido e respeitado, dizerque o texto está completamente equivocado, e continuar querendo e respeitando meu amigo.Posso fazer isso em outro lugar, claro, porque aqui parece que isso é como uma declaração deguerra. Presenciei nos Estados Unidos esta cena. O filósofo, já falecido, Héctor-Neri Castañeda,conversava com Jay Rosenberg num almoço. (Eu estava sentado ao lado do professorCastañeda.) E um dizia ao outro a que periódico iria enviar o artigo em que criticava um outroartigo do colega. E o que iria ser criticado se sentiu satisfeito de que o outro tivesse consideradoseu artigo digno de reflexão e análise, sem se sentir ofendido. Quando apareceu o Festschrift doprofessor Castañeda, num dos artigos, o mesmo Jay Rosenberg disse o seguinte sobre ohomenageado: “Aprecio muito meu amigo Héctor-Neri Castañeda, mas penso que sua teoriaontológica está completamente equivocada”! Por que não podemos dizer algo assim e continuarrespeitando a pessoa? Parece que só aqui no Brasil há essa idéia esdrúxula segundo a qualcriticar é agredir ou desrespeitar. Perceba que pela forma como foi feita a pergunta se insinua, ouse deixa pairando no ar, a idéia de que meus artigos sobre a professora Chauí teriam motivações,se não pessoais, ideológicas. Se você tiver tempo, poderia ler todos os artigos que escrevi poucoantes da última eleição presidencial no Jornal Opção — os textos estão na internet ainda, na seção“Edições Anteriores”. Lula então foi eleito presidente. Penso que fui um dos poucos, se não o únicointelectual da região Centro-Oeste, o do Brasil, que sistematicamente escreveu artigos apoiando acandidatura do PT, mesmo contra a linha política escolhida pelo Jornal Opção — que, devo dizer,nunca me impediu de publicar o que eu pensava. Apoiei o PT para presidente naquelaoportunidade, e tenho apoiado, aqui em Goiânia, as candidaturas da esquerda para outrasdignidades. Como ocorreu com Darci Accorsi, quando como militante do PT chegou a se elegerprefeito de Goiânia, e quando apoiei Pedro Wilson, do PT, que também se chegou a eleger para omesmo cargo. Não sou um intelectual de direita, nunca fui, e não mudei de posição pelo aparentetriunfo do capitalismo nos últimos anos. Mantenho minha posição de esquerda e é por isso que mesolidarizei com a então senadora Heloísa Helena quando, num ato vergonhoso, foi expulsa do PT.Por ser de esquerda, novamente, fiquei feliz de vê-la obter a votação que obteve nestas eleições,impedindo que o novo centrão chegue a uma nova presidência no primeiro turno. Quem foi para adireita, penso, foi o próprio PT. Por isso, mais uma vez, fui um dos poucos intelectuais a reagir,pela imprensa, quando estourou o escândalo do mensalão. Não me omiti. Pois não por ter apoiadoo PT vou ter que apoiá-lo sempre e sob quaisquer condições. E não vou apoiá-lo, certamente,quando vejo que perdeu o rumo histórico. Quando vejo que seus mais notáveis representantesvestiram terno e gravata, o que não é grave, pondo, no entanto, dentro dos bolsos internos dessesternos talões de cheques cujos canhotos, num único mês, devem ter um saldo de movimentaçãomaior do que a movimentação de vários operários juntos durante um ano. (O filho do presidenteLula que o diga.) Sempre estive na esquerda e continuo na esquerda.