De Babel à organização do conhecimento: o tratamento ... · o texto da Epopeia de Gilgamesh...

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De Babel à organização do conhecimento: o tratamento hermenêutico nos arquivos e bibliotecas da Antiguidade Alexandra Santos Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos | Universidade de Coimbra INTRODUÇÃO A génese e evolução dos primeiros centros de armazenamento de informação, os denominados arquivos e bibliotecas, remontam à Antiguidade e a sua existência foi sempre acompanhada por um vasto labor hermenêutico num contexto de preservação e transmissão do texto, onde a crítica textual e a aplicação interpretativa de critérios de gosto estético das obras trabalhadas permitiram o desenvolvimento de estudos nas áreas das ciências e das humanidades. Assim, este poster insere-se num projeto mais amplo que abarca um estudo sobre as bibliotecas antigas e digitais, ten- do como objetivo principal melhorar a gestão da informação a partir da compreensão do conceito grego de biblioteka e do seu modo de funcionamento interno, desde os métodos de aquisição à especificidade do tratamento documental, recuperação, preservação e conservação da informação na Antiguidade Clássica, sublinhando a dimensão hermenêutica da função e trabalho das bibliotecas. ARQUIVOS SUMÉRIOS Escrita em linguagem cuneiforme em tabuinhas de argila, os registos da Antiga Mesopotâmia apresentam-se como os primeiros a possuírem uma organização, e os seus acervos eram constituídos por documentos ligados à área administrativa, legal e comercial, e por obras literárias e linguísticas, contendo registos de hinos, encantamentos, temas mitológicos ou provér- bios. Monarcas como Assurbanipal, fundador da biblioteca de Nínive, preocupa- vam-se com a questão da hermenêutica textual e, juntamente com académi- cos e escribas, realizaram este tipo de reflexão e discussão académica, desempenhando assim um importante papel na vida intelectual da Assíria e da Babilónia durante o primeiro milénio a.C. Devido à complexidade dos textos e às várias cópias que se faziam, que muitas vezes alteravam o conteúdo dos documentos, a clarificação textual era feita a partir de explicações baseadas na erudição oral, em listas lexicais ou em comentários. Reconstituição de uma sala da Biblioteca de Ebla Tabuinha de argila pertencente à biblioteca de Assurbanipal contendo o texto da Epopeia de Gilgamesh BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA/ BIBLIOTECAS GREGAS Idealizada por Alexandre, e concretizada no reinado de Ptolomeu I Sóter, a Biblioteca de Alexandria, centro de reunião do todo o saber do mundo anti- go, juntamente com o Serapeion, foram palco de grandes pesquisas e obras nas áreas das ciências e das humanidades. Desde Calímaco de Cirene, responsável pela criação do primeiro catálogo para a organização dos documentos da Biblioteca, os Pinakes, compostos pelos textos de obras gregas e a respetiva informação biográfica e bibliográ- fica, a Aristófanes de Bizâncio, que introduziu o uso dos acentos na língua grega, foram vários os cientistas-filólogos e filólogos-poetas que faziam par- te do círculo alexandrino, que desenvolveram estudos de âmbito hermenêu- tico, onde a filologia e a pesquisa histórico-literária se tornaram essenciais num acervo em que eram inúmeras as cópias de documentos, que muitas vezes continham informações erróneas ou imprecisas. No império helénico, a proliferação de bibliotecas foi visível, assim como a comercialização de livros criando, desta forma, condições para o desenvolvi- mento de bibliotecas privadas e para a difusão do saber. Reconstituição de uma das salas da Biblioteca de Alexandria Imagem pintada numa taça de cerâmica ática onde Museu ostenta uma tabuinha de argila e Lino lê um rolo de papiro BIBLIOTECAS ROMANAS Em Roma, as primeiras bibliotecas criadas eram privadas e resultaram da recolha de vários volumina trazidos por aqueles que regressavam do Orien- te. A partir do final do séc. I d.C. emergiram as primeiras bibliotecas públicas que assumiram um importante papel como instrumento intelectual e veículo de difusão da cultura. Divididas em duas secções, uma com documentação grega e outra romana, estas bibliotecas permitiram que a cultura grega não perecesse e que os romanos tivessem contacto com as grandes obras de referência gregas. Consequentemente, com esses documentos, chegaram também os saberes helénicos relacionados com a atividade livreira e biblioteconómica, junta- mente com os estudos filológicos de Alexandria e a aplicação de práticas na seleção, cópia, catalogação e preservação dos acervos documentais. Biblioteca Ulpia no Fórum de Trajano Plano da biblioteca de Adriano em Atenas CONCLUSÃO Num universo banhado de obras de importância singular, tanto bibliotecários como acadé- micos do mundo antigo, trilharam o caminho para a atual forma como é tratada e recupera- da a informação nos tempos modernos. O advento da tecnologia tem permitido uma evolu- ção no que respeita à recuperação da informação e, baseada no conhecimento antigo, será possível aceder às fontes primárias e secundárias dessa mesma informação através de bases de dados desenvolvidas de forma compreensiva em Open Access.

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Page 1: De Babel à organização do conhecimento: o tratamento ... · o texto da Epopeia de Gilgamesh BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA/ BIBLIOTECAS GREGAS Idealizada por Alexandre, e concretizada

De Babel à organização do conhecimento: o tratamento hermenêutico nos arquivos e

bibliotecas da Antiguidade Alexandra Santos

Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos | Universidade de Coimbra

INTRODUÇÃO

A génese e evolução dos primeiros centros de armazenamento de informação, os denominados arquivos e bibliotecas,

remontam à Antiguidade e a sua existência foi sempre acompanhada por um vasto labor hermenêutico num contexto de

preservação e transmissão do texto, onde a crítica textual e a aplicação interpretativa de critérios de gosto estético das

obras trabalhadas permitiram o desenvolvimento de estudos nas áreas das ciências e das humanidades.

Assim, este poster insere-se num projeto mais amplo que abarca um estudo sobre as bibliotecas antigas e digitais, ten-

do como objetivo principal melhorar a gestão da informação a partir da compreensão do conceito grego de biblioteka e

do seu modo de funcionamento interno, desde os métodos de aquisição à especificidade do tratamento documental,

recuperação, preservação e conservação da informação na Antiguidade Clássica, sublinhando a dimensão hermenêutica

da função e trabalho das bibliotecas.

ARQUIVOS SUMÉRIOS

Escrita em linguagem cuneiforme em tabuinhas de argila, os registos da

Antiga Mesopotâmia apresentam-se como os primeiros a possuírem uma

organização, e os seus acervos eram constituídos por documentos ligados à

área administrativa, legal e comercial, e por obras literárias e linguísticas,

contendo registos de hinos, encantamentos, temas mitológicos ou provér-

bios.

Monarcas como Assurbanipal, fundador da biblioteca de Nínive, preocupa-

vam-se com a questão da hermenêutica textual e, juntamente com académi-

cos e escribas, realizaram este tipo de reflexão e discussão académica,

desempenhando assim um importante papel na vida intelectual da Assíria e

da Babilónia durante o primeiro milénio a.C.

Devido à complexidade dos textos e às várias cópias que se faziam, que

muitas vezes alteravam o conteúdo dos documentos, a clarificação textual

era feita a partir de explicações baseadas na erudição oral, em listas lexicais

ou em comentários.

Reconstituição de uma sala

da Biblioteca de Ebla

Tabuinha de argila pertencente à

biblioteca de Assurbanipal contendo

o texto da Epopeia de Gilgamesh

BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA/

BIBLIOTECAS GREGAS

Idealizada por Alexandre, e concretizada no reinado de Ptolomeu I Sóter, a

Biblioteca de Alexandria, centro de reunião do todo o saber do mundo anti-

go, juntamente com o Serapeion, foram palco de grandes pesquisas e obras

nas áreas das ciências e das humanidades.

Desde Calímaco de Cirene, responsável pela criação do primeiro catálogo

para a organização dos documentos da Biblioteca, os Pinakes, compostos

pelos textos de obras gregas e a respetiva informação biográfica e bibliográ-

fica, a Aristófanes de Bizâncio, que introduziu o uso dos acentos na língua

grega, foram vários os cientistas-filólogos e filólogos-poetas que faziam par-

te do círculo alexandrino, que desenvolveram estudos de âmbito hermenêu-

tico, onde a filologia e a pesquisa histórico-literária se tornaram essenciais

num acervo em que eram inúmeras as cópias de documentos, que muitas

vezes continham informações erróneas ou imprecisas.

No império helénico, a proliferação de bibliotecas foi visível, assim como a

comercialização de livros criando, desta forma, condições para o desenvolvi-

mento de bibliotecas privadas e para a difusão do saber.

Reconstituição de uma das

salas da Biblioteca de Alexandria

Imagem pintada numa taça de

cerâmica ática onde Museu ostenta

uma tabuinha de argila e Lino lê

um rolo de papiro

BIBLIOTECAS ROMANAS

Em Roma, as primeiras bibliotecas criadas eram privadas e resultaram da

recolha de vários volumina trazidos por aqueles que regressavam do Orien-

te. A partir do final do séc. I d.C. emergiram as primeiras bibliotecas públicas

que assumiram um importante papel como instrumento intelectual e veículo

de difusão da cultura.

Divididas em duas secções, uma com documentação grega e outra romana,

estas bibliotecas permitiram que a cultura grega não perecesse e que os

romanos tivessem contacto com as grandes obras de referência gregas.

Consequentemente, com esses documentos, chegaram também os saberes

helénicos relacionados com a atividade livreira e biblioteconómica, junta-

mente com os estudos filológicos de Alexandria e a aplicação de práticas na

seleção, cópia, catalogação e preservação dos acervos documentais.

Biblioteca Ulpia no

Fórum de Trajano

Plano da biblioteca de Adriano em Atenas

CONCLUSÃO

Num universo banhado de obras de importância singular, tanto bibliotecários como acadé-

micos do mundo antigo, trilharam o caminho para a atual forma como é tratada e recupera-

da a informação nos tempos modernos. O advento da tecnologia tem permitido uma evolu-

ção no que respeita à recuperação da informação e, baseada no conhecimento antigo, será

possível aceder às fontes primárias e secundárias dessa mesma informação através de

bases de dados desenvolvidas de forma compreensiva em Open Access.