Dar Nome Aos Documentos
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Ana Maria de Almeida Camargo
Bruno Delmas
Danielle Ardaillon
Helosa Liberalli Bellotto
Johanna W. Smit
Mariano Garca Ruiprez
Srgio Roberto Costa
Sonia Maria Troitio Rodriguez
DA TEORIA PRTICA
DAR NOME AOSDOCUMENTOS
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Ana Maria de Almeida Camargo
Bruno Delmas
Danielle Ardaillon
Helosa Liberalli Bellotto
Johanna W. Smit
Mariano Garca Ruiprez
Srgio Roberto Costa
Sonia Maria Troitio Rodriguez
DA TEORIA PRTICA
DAR NOME AOSDOCUMENTOS
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Coordenao editorial
Instituto Fernando Henrique Cardoso
Grifo Projetos Histricos e Editoriais
Degravao dos debates
Morgane Salamin
Danielle Ardaillon
Traduo do texto de Bruno Delmas
Morgane Salamin
Reviso do texto de Bruno Delmas
Helosa Liberalli Bellotto
Edio dos debates
Ricardo Prado
Reviso
EKD Comunicao e Cultura
Projeto grfi co e diagramao
Lisia Lemes / Lilemes Comunicao
Este livro pode ser reproduzido livremente em parte ou na sua totalidade, sem
modifi caes, para fi ns no comerciais sob a condio de citar a fonte.
Ficha tcnica
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FICHA CATALOGRFICA
Seminrio Dar nome aos documentos: da teoria prtica (2013 : So Paulo)
Dar nome aos documentos: da teoria prtica / apresentao de Danielle Ardaillon. - So Paulo : Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2015.
347 p.
ISBN: 978-85-99588-37-6
Trabalhos apresentados no seminrio realizado em So Paulo, de 24 a 25 de outubro de 2013, no Instituto Fernando Henrique Cardoso.
1. Arquivologia. 2. Diplomtica. 3. Tipologia Documental. I. Ardaillon, Danielle. II. Instituto Fernando Henrique Cardoso. III. Ttulo.
CDD: 025.171CDU: 930.25
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08 Apresentao Danielle Ardaillon
14 Sobre espcies e tipos documentaisAna Maria de Almeida Camargo
32 Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaesBruno Delmas
57 Debate com o pblico
67 La denominacin de tipos, series y unidades documentales: modelosMariano Garca Ruiprez
158 Atribuir nomes a tipos, sries e unidades documentais: dialogando com Mariano Garcia RuiprezSonia Maria Troitio Rodriguez
183 Debate com o pblico
200 O discurso eletrnico-digitalSrgio Roberto Costa
238 Gneros textuais emergentes do/no discurso eletrnicodigital: um balano crtico de Srgio Roberto CostaJohanna W. Smit
253 Debate com o pblico
272 Uma base terminolgica consensual: limites e possibilidadesHelosa Liberalli Bellotto
286 Sntese dos principais temas e discussesAna Maria de Almeida Camargo
296 Debate com o pblico
322 Sobre os autores
Sumrio
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7
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ApresentaoDanielle Ardaillon
Os textos que se seguem foram apresentados durante o
seminrio Dar nome aos documentos: da teoria prtica,
evidenciando o interesse da Fundao Instituto Fernando
Henrique Cardoso (Fundao iFHC) em contribuir para o
debate sobre as diretrizes tericas e metodolgicas da prtica arqui-
vstica. O evento foi desenhado como uma das atividades do projeto
Acervo Presidente Fernando Henrique Cardoso: Preservao, Catalo-
gao, Digitalizao e Acesso, iniciado no fi nal de 2010 e concludo
no incio de 2015, com captao autorizada pelo Ministrio da Cultura
(Minc). Alm deste amplo conjunto documental, o acervo detm ain-
da os arquivos de Ruth Cardoso, Joaquim Ignacio Baptista Cardoso,
Leonidas Cardoso, Sergio Motta e Paulo Renato Souza, esses dois lti-
mos doados Fundao iFHC recentemente.
A iniciativa no desejava apenas aprimorar conceitos j utiliza-
dos para a organizao de arquivos privados de pessoas que ocupa-
ram cargos pblicos, mas aprofundar uma discusso sobre tipologia
documental na era digital. No h profi ssional da rea, tanto em ar-
quivos quanto em bibliotecas, museus e centros de memria, que no
tenha dvidas e at mesmo alguma difi culdade na hora de nomear
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9
Apresentao
adequadamente os documentos. Os que correspondem a atos de ca-
rter administrativo e jurdico tm linguagens, suportes, tcnicas de
registro e formatos defi nidos pela Diplomtica e, portanto, so fami-
liares aos arquivistas. No , porm, o caso daqueles que, gerados por
inmeras outras atividades, no foram sistematizados em repertrios
que pudessem auxiliar os arquivistas na tarefa de nomear, descrever
e tornar acessveis os documentos. E, hoje, as quantidades crescen-
tes de documentos eletrnicos e digitais no mais fi xados em papel,
como o foram nas ltimas dcadas obrigam os profi ssionais a bus-
car uma nominao precisa e a enfrentar frequentemente problemas
conceituais e terminolgicos.
Tomando por base a experincia de organizao do Acervo Pre-
sidente Fernando Henrique Cardoso (doravante Acervo), que rene
documentos dos mais diversos e surpreendentes, o Seminrio foi con-
cebido como reunio de especialistas particularmente dedicados s
palavras, porm de reas distintas e com prticas diferenciadas. Trata-
va-se de debater a questo na perspectiva de estabelecer uma plata-
forma de entendimento, capaz de responder enxurrada de web-tec-
nologias, web-nomes e web-escritas. E de frear aquela criatividade
vernacular, nem sempre positiva, dos profi ssionais desamparados. Foi
o que aconteceu ao longo de dois dias de intenso trabalho.
Este o primeiro e-book e o quarto livro dentre os ttulos
produzidos pela equipe do Acervo sobre questes de Arquivologia.
O sumrio reflete a sequncia das apresentaes e dos coment-
rios da plateia. No houve interveno nos textos finais dos pales-
trantes; apenas as notas de rodap e as referncias bibliogrficas
foram objeto de uniformizao. O texto de Bruno Delmas foi tra-
duzido do francs, mas o de Mariano Garca permaneceu na lngua
original. Quanto aos debates, foram editados de modo a permitir
melhor compreenso das opinies e dos argumentos emitidos,
acrescentando-se palavras ou frases entre colchetes para melhor
clareza.
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Danielle Ardaillon
Fernando Henrique Cardoso abriu o Seminrio com uma breve
saudao aos participantes e aos especialistas convidados, tanto pa-
lestrantes (Ana Maria de Almeida Camargo, professora de Histria da
Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas da Universidade de
So Paulo; Bruno Delmas, professor de Arquivstica Contempornea
da cole Nationale des Chartes, em Paris; Mariano Garca Ruiprez,
diretor do Arquivo Municipal de Toledo, na Espanha; e Srgio Rober-
to Costa, professor de Lingustica da Universidade Vale do Rio Verde
de Trs Coraes, em Minas Gerais), quanto debatedores (Sonia Maria
Troitio Rodriguez, professora de Arquivologia da Faculdade de Filo-
sofi a e Cincias da Universidade Estadual Paulista, campus de Marlia;
Johanna W. Smit, professora de Biblioteconomia e Documentao da
Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo; e He-
losa Liberalli Bellotto, professora do Programa de Ps-Graduao em
Histria Social da Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas
da Universidade de So Paulo).
Em Sobre espcies e tipos documentais, Ana Maria Camargo traa
um panorama da diversidade de linguagens encontradas no Acervo e
dos problemas enfrentados pela equipe de arquivistas para identifi car
os documentos, notadamente os objetos ofertados ao presidente da
Repblica.
Quase duas dcadas depois de publicar o Manifesto por uma
Diplomtica contempornea, Bruno Delmas, em Por uma Diplomti-
ca contempornea: novas aproximaes, revisita o confronto entre as
categorias tradicionais da Diplomtica e os documentos produzidos
em meio eletrnico e digital. O documento digital desenvolve-se con-
correntemente com os documentos em suporte-papel e essas duas
formas interagem entre si, o que o leva a postular a necessidade de
desdobrar a Diplomtica em duas (para os documentos digitais e para
os documentos analgicos) e a repensar a disciplina no contexto dos
usos do mundo contemporneo, confi rmando nossa preocupao
como arquivistas e pesquisadores.
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Apresentao
Em La denominacin de tipos, series y unidades documentales: mo-
delos, Mariano Garca oferece uma detalhada descrio histrica da
prtica arquivstica de sua regio. Retoma o incio do uso do termo
tipo documental na Espanha, nos anos 1960, e relata, no sem uma
certa ironia, a complexidade da defi nio de tal termo no reino espa-
nhol. A partir de 2000, com a publicao da Norma Geral Internacional
de Descrio Arquivstica a ISAD(G), apareceram a Norma Espaola
de Descripcin Archivstica (NEDA) e, sucessivamente, as adaptaes
regionais: Norma de Descripcin Archivstica de Catalua (NODAC) e
Norma Galega de Descripcin Archivstica (NOGADA). Para quem busca
uma plataforma de entendimento para defi nies bsicas, a experincia
espanhola bastante sugestiva...
Ao comentar as consideraes de Mariano Garca Ruiprez, So-
nia Troitio pondera que as normas so necessrias, na medida em
que estimulam o rigor metodolgico. Afi rma, no entanto, que elas
podem ocasionar certa morosidade na descrio dos documentos, e
no dispensam a experincia adquirida ao longo dos anos na busca e
escolha do conceito correto.
Ao elencar os Gneros textuais emergentes do/no discurso ele-
trnico-digital: um balano crtico, Srgio Costa mergulha a audincia
no mundo novo da cibercultura, de um novo cdigo discursivo e de
uma linguagem essencialmente multissemitica/multimodal. Inte-
ressante, sim, mas foi um susto! Isso porque, pelo que sei, o foco do
mundo dos arquivos no o da informao nem o da comunicao,
mas o da comprovao do contexto de origem do documento. A pol-
mica terica estava posta na mesa.
O comentrio de Johanna Smit props uma tentativa de sis-
tematizao deste universo to multifacetado, numa tica arqui-
vstica. Com muita clareza e passo a passo, mostrou sua convico
de que documento arquivstico documento arquivstico, indepen-
dentemente de suporte ou tecnologia. Muito sabiamente, quanto
predominncia do webwriting em ingls, prope correr o risco de
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Danielle Ardaillon
usar duas lnguas. E conclui, citando termos de Srgio Costa: a carna-
valizao discursiva na literatura, na poesia e na web tima, criativa,
dinmica, mas, nos arquivos, um problema.
Consciente do problema como consequncia de uma larga
prtica arquivstica, Helosa Bellotto retoma as propostas de cada pa-
lestrante, deixando claro que Uma base terminolgica consensual ter
sem dvida limites: suas possibilidades residem na construo de con-
senso a partir de um trabalho prtico, fruto de discusses ao redor de
documentos novos, recentes ou estranhos.
Como antroploga, sinto-me curiosa frente ao mundo arqui-
vstico. Mas como pesquisadora afeita anlise do discurso, a nuvem
de palavras, conceitos, denominaes possveis e nomes proibidos le-
vantada pelo Seminrio me encantou, assim como o af em fi car horas
no encalo da palavra certa e do rigor para nomear os documentos.
Espero que sintam o mesmo!
Danielle Ardaillon, curadora do Acervo
e organizadora da edio
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Sobre espcies etipos documentais 1
Ana Maria de Almeida Camargo
PA
LEST
RA
A nomeao adequada dos documentos, para fi ns de organi-
zao e descrio dos arquivos, tem sido bastante negligen-
ciada. Na medida em que a prpria disciplina arquivstica se
fundamenta nas prticas administrativas dos organismos
pblicos, em que predominam as aes sequenciais e seu correlato
documental - os processos -, observa-se entre ns um curioso fenme-
no: muitos profi ssionais se eximem de identifi c-los, na suposio de
que, sendo todos da mesma espcie, basta reconhec-los pela funo
que cumprem ou pelo assunto de que tratam. o que se observa na
maioria das tabelas de temporalidade vigentes1 e tambm, por razes
diversas, nos instrumentos de pesquisa que, seguindo risca normas
feitas imagem e semelhana do que se pratica com livros, registram
o ttulo do documento.
As refl exes com que introduzimos o tema deste seminrio to-
maram por base a experincia da Fundao Instituto Fernando Henrique
1 Tais tabelas ostentam ainda o agravante de colocar no mesmo patamar, sem di-ferenci-los, tipos documentais, assuntos e elementos estruturais e/ou funcionais do rgo produtor.
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Sobre espcies e tipos documentais
Cardoso, cujo acervo sufi cientemente complexo para ilustr-lo. Aqui
se encontram no apenas documentos originrios do Gabinete Pessoal do
presidente Fernando Henrique Cardoso2, acumulados durante seus
dois mandatos, mas aqueles que refl etem as atividades que desenvol-
veu antes e depois desse perodo. Temos tambm o arquivo de Ruth
Cardoso, que abarca, em meio a documentos relacionados com sua
vida profi ssional e familiar, material originrio do programa Comuni-
dade Solidria, que dirigiu, na condio de primeira-dama, entre 1995
e 2002. No processo de descrio desses documentos, com a perspec-
tiva de alimentar a base de dados que d acesso cpia digital de cada
um, a identifi cao de espcies e tipos revestiu-se sempre de grande
importncia, apesar das difi culdades enfrentadas.
Os exemplos que selecionamos envolvem os conceitos de su-
porte, tcnica de registro, formato e gnero, responsveis por boa
parte dos equvocos observados na nomeao dos documentos. En-
volvem tambm aqueles que, longe de exprimir relaes jurdicas ins-
titucionalmente necessrias e consagradas3, como ocorre no mbito
do servio pblico, constituem veculo de relaes informais, sem re-
gras ou frmulas rgidas.
O sentido de determinados objetos, no arquivo, depende ex-
clusivamente dos elementos textuais que lhes so associados e que,
de algum modo, remetem para seu contexto de origem. Vale lembrar
2 A legislao brasileira em vigor reconhece o interesse pblico do material reunido nos gabinetes pessoais da Presidncia da Repblica; coloca-os, no entanto, na condio de documentos privados. O organismo responsvel pela assistncia direta e imediata do presidente no desempenho de suas funes: alm de coordenar as atividades roti-neiras da agenda presidencial, planeja visitas e viagens no Brasil e no exterior; fornece subsdios para reunies, audincias, despachos e outros compromissos ofi ciais; cuida do cerimonial; e controla mensagens e objetos que lhe so destinados. 3 Luciana Duranti (1996, p. 49) diferencia os atos que so contemplados pelo conjun-to de regras, escritas ou no, em que se baseia o sistema legal de uma sociedade (e aos quais chama de juridicamente relevantes) daqueles que, embora adotados pelo grupo social, no produzem consequncias no mbito do sistema vigente (e so, por isso mes-mo, considerados juridicamente irrelevantes).
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16
Ana Maria de Almeida Camargo
que os documentos de arquivo so, por exce-
lncia, do gnero textual4, ou seja, utilizam lin-
guagem escrita para viabilizar certas aes e, a
posteriori, para provar que essas mesmas aes
se realizaram. O recurso a frmulas e conven-
es refora tal funcionalidade, reduzindo
a margem de ambiguidade que, afi nal, todo
texto escrito comporta. Quando os documen-
tos se apresentam desprovidos de linguagem,
como o caso de certos objetos que, dentro
dos arquivos, so equivocadamente chamados
de tridimensionais5, difcil nome-los e com-
preender seu sentido.
O objeto aqui reproduzido, confeccio-
nado em bambu, foi oferecido ao presidente
Fernando Henrique Cardoso em Braslia, 1998,
por Herbert Meneses Coronado, embaixador da
Guatemala no Brasil. De acordo com sua estrita
funcionalidade - critrio, alis, que deve sempre
predominar na abordagem arquivstica -, podera-
4 Ainda que no desfrute de consenso na literatura arquivstica nacional, em que aparece por vezes indevidamente associado a suporte e formato, como ocorre no Di-cionrio brasileiro de terminologia arquivstica (2005), o conceito de gnero refere-se ao sistema de signos utilizado no documento. , portanto, mais restrito do que aquele adotado na rea da Lingustica Aplicada. No Dicionrio de gneros textuais (2012), de Srgio Roberto Costa, por exemplo, o termo empregado para designar espcies e tipos documentais escritos e orais.
5 A tridimensionalidade atributo tambm dos mais tnues suportes, como o papel e a pelcula de acetato (fi lme). Seria prefervel design-los como o fazem os bibliotec-rios, que aplicam a palavra latina realia tanto aos objetos coletados na natureza quanto aos fabricados pelo homem, artesanal ou industrialmente. O Dicionrio de Biblioteco-nomia e Arquivologia, de Murilo Bastos da Cunha e Cordlia Robalinho de Oliveira Ca-valcanti (2008), registra o termo j grafado em portugus (relia), com o sentido de objetos e coisas que existem de fato, isto , que no so rplicas ou representaes. Ver, a respeito, CAMARGO (2011).
Ampliar
Pau-de-chuva instrumento de percusso que imita
o som da chuva. Feito de bambu ou de embaba, comum a vrias culturas.
Alguns estudiosos atribuem sua origem, na Amrica
do Sul, aos primitivos habitantes das fl orestas e
montanhas do Chile.
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Sobre espcies e tipos documentais
mos cham-lo simplesmente de presente; foi nessa condio, afi nal, e
a ttulo de homenagem, que a pea ingressou no acervo. O termo, no
entanto, por demais genrico, e serviria para designar uma varieda-
de muito grande de objetos que resultam de aes corriqueiras entre
titulares de altos cargos pblicos. Foi preciso, portanto, encontrar a
nomenclatura exata do objeto - pau-de-chuva - para, em seguida, co-
loc-lo no contexto que justifi ca sua presena no arquivo - a homena-
gem prestada ao presidente.
Se a abordagem contextual coloca no mesmo patamar, para os
arquivistas, documentos de natureza diversa (inclusive aqueles que,
por tradio e em razo de seu formato, so sempre encaminhados
para bibliotecas e museus), no os isenta da difcil tarefa de identi-
fi c-los. Trata-se aqui, na verdade, de desafi o
similar ao que enfrentam os curadores de mu-
seus: identifi car cada objeto e os nomes pelos
quais foram e so conhecidos. Tal tarefa supe,
como bem assinalou Bergeron (1996), um mni-
mo de padronizao, sobretudo quando se tem
a perspectiva de compartilhamento de bases
de dados6.
Outro exemplo interessante o da pedra
que se encontra no arquivo de Fernando Henri-
que Cardoso. A iniciativa de guard-la deve-se
ao chefe de gabinete, que a ela anexou mensa-
gem explicativa.
Revestido de sentido simblico, o objeto
pode ser descrito de modo genrico, sem levar
em conta suas qualidades de mineral ou rocha,
6 Um bom exemplo de iniciativa nesse sentido o da Canadian Heritage Information Network, responsvel, hoje, pela Nomenclature 3.0 for Museum Cataloging. Third Edi-tion of Robert G. Chenhalls System for Classifying Man-Made Objects, cuja ltima ver-so de 2013. No Brasil, o importante Thesaurus para acervos museolgicos, de Helena Dodd Ferrez e Maria Helena S. Bianchini (1987), ainda est espera de atualizao.
Ampliar
Pedra que manifestantes da CUT (Central nica dos Trabalhadores) atiraram na comitiva presidencial que visitava Campina Grande, na Paraba, em 19 de maio de 1995.
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Ana Maria de Almeida Camargo
Ampliar
Mensagem de Xico Graziano (Francisco Graziano Neto),
ento chefe do Gabinete Pessoal do presidente
Fernando Henrique Cardoso, ao Servio de
Documentao Histrica da Presidncia da Repblica,
em 22 de maio de 1995.
Ampliar
Recibo de pagamento do Cedac (Centro de Educao e Documentao para Ao
Comunitria) e Cecone (Centro Comunitrio
Negro) Embrafi lme, pela exibio de Ladres de
cinema eNa boca do mundo. Documento do fundo
Ruth Cardoso.
mais apropriadas para um museu de cincias da
natureza. A pedra no passa de suporte mne-
mnico para algo que lhe exterior. Seus atri-
butos intrnsecos - forma geomtrica, peso,
cor, textura, dureza7 - no lhe conferem, no
arquivo em que foi preservada, nenhum valor
referencial. Para que isso acontecesse, ou seja,
para que a pedra assumisse o estatuto de do-
cumento (ainda que simblico), foi necessrio
preservar seu vnculo com o referido bilhete,
esclarecedor da situao em que ambos - obje-
to e texto - ganharam sentido8.
H documentos que so facilmente iden-
tifi cados, na medida em que explicitam sua es-
pcie e ostentam uma estrutura que pouco se
altera com o passar do tempo. Os recibos, como
o que foi passado pela Embrafi lme a entidades
que, sob a coordenao de Ruth Cardoso, atua-
ram junto a grupos da periferia de So Paulo, na
dcada de 1980, so um bom exemplo. De acor-
do com padro usado tanto na administrao
pblica quanto na esfera privada, o recibo est
disponvel, como avulso ou bloco talonado, em
qualquer papelaria.
Os documentos textuais deixam entre-
ver, quase sempre, suas caractersticas funcio-
nais. Obedientes a padres, apresentam re-
7 Nenhum atributo de sentido imanente, como afi rma Ulpiano Bezerra de Meneses (1998). O objeto, nesse caso, tem carter meramente fi gurativo.
8 Os objetos como elementos intermedirios de relaes sociais diversas so discutidos por Grard Lenclud (2007).
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19
Sobre espcies e tipos documentais
gularidades formais que correspondem, como
afi rmou Bearman (2011), a regularidades de
contedo. No exemplo ao lado, reconhecemos
de imediato o cardpio, entendido como rela-
o das iguarias disponveis para consumo em
restaurantes, banquetes, jantares de gala etc.
Vislumbramos tambm, sem problemas, o con-
texto em que foi produzido. A nica dvida que
o documento pode suscitar quanto maneira
de design-lo: ementa (como preferem os por-
tugueses), menu ( moda francesa) ou cardpio?
Apesar das remissivas registradas no glos-
srio de documentos que elaboramos ao longo do
trabalho de organizao do acervo da Fundao,
optamos quase sempre pelas palavras e expres-
ses em portugus: prospecto, em lugar de folder;
lista, em lugar de checklist; noticirio, em lugar de
clipping; currculo, em lugar de curriculum vitae; car-
taz de divulgao, em lugar de pster; programa
de entrevistas, em lugar de talk show; artigo ou
comunicao, em lugar de paper; visto de trabalho,
em lugar de work permit. Os vocbulos estrangei-
ros s so consignados como termos preferen-
ciais, no glossrio, quando ainda no dispem de
equivalente satisfatrio em lngua portuguesa.
o caso, na rea de comunicao, de briefi ng (conjunto de informaes
passadas aos jornalistas a respeito de um fato ou acontecimento), jingle
(mensagem publicitria musicada, com estribilho simples e de curta du-
rao), making of (registro do processo de criao e desenvolvimento de
determinado trabalho de comunicao, incluindo cenas de bastidores, reu-
nies e todo tipo de material bruto) e release (conjunto de informaes
previamente preparadas por equipes de divulgao de rgos pblicos ou
empresas, para distribuio imprensa escrita, falada e televisada).
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Cardpio de banquete oferecido ao presidente Fernando Henrique Cardoso e a Ruth Cardoso no Palcio da Ajuda, em Portugal (1995).
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20
Ana Maria de Almeida Camargo
Button, pin e broche como se costuma denominar os objetos
que aparecem acima. O que dispe de nome com grafi a em portu-
gus distingue-se dos dois primeiros por ter, no verso, uma presilha
similar que se encontra em joia ou bijuteria. Todos eles, no entanto,
cumprem a mesma funo e tm as mesmas caractersticas formais:
so instrumentos de propaganda poltica e podem ser aplicados a di-
ferentes peas do vesturio.
A palavra que escolhemos para designar tal modalidade de material
de campanha - distintivo - no leva em conta as inmeras variaes que
seus fabricantes introduziram no mercado e substitui, em nosso glossrio,
alfi nete, alfi nete de lapela, braadeira, broche, button, escudo e pin.
AmpliarAmpliarAmpliar
Material de campanha utilizado nas eleies municipais de So Paulo, em 1985.
Ampliar AmpliarAmpliar
Caderno de enquete utilizado para o registro de opinies de Fernando Henrique Cardoso, Clio Benevides de Carvalho, Luiz Carlos da Costa e Luiz Ventura, quando alunos do Colgio So Paulo (1945-1948).
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21
Sobre espcies e tipos documentais
A persistncia de certos hbitos permite reconhecer documen-
tos que, primeira vista, no revelam seu sentido. Nas imagens acima,
o que poderia ser uma agenda, no fossem as datas riscadas, serve de
suporte a inmeras perguntas, cada qual submetida a pessoas dife-
rentes. Trata-se de antiga prtica entre colegas de escola, que elabo-
ram e fazem circular caderno em que deixam registradas suas ideias e
preferncias a respeito de mltiplos assuntos.
Os nomes variam: caderno de enquete, caderno de perguntas,
caderno de opinies, questionrio. A enquete, entre colegas do arqui-
vo de Fernando Henrique Cardoso distingue-se dos seus congneres
pela seriedade dos temas tratados. Mas a prtica de dar voz aos colegas
e amigos, sobretudo para abordar temas tpicos da adolescncia, so-
brevive tanto em suporte-papel quanto em meio eletrnico. Hoje em
dia h aplicativos especialmente desenvolvidos para promover enquete
entre os jovens. Resta saber se, cumprindo a mesma funo que o ca-
derno, sua verso online continuar a receber o mesmo nome9.
semelhana do caderno, a confi gurao fsica de determina-
dos suportes - ou o formato, como conceituam os arquivistas - incor-
pora-se ao nome de alguns tipos documentais. Livro-caixa, fi cha de
consulta, carteira de motorista, cdula de identidade e folha corrida
so exemplos desse fenmeno.
9 Um dos casos mais interessantes de sobrevivncia do nome original o do telegra-ma, termo associado ao meio de transmisso. Ao invs de ser rebatizado, por ter perdi-do as caractersticas que lhe foram impostas pelo uso do telgrafo, manteve o nome, ajustando-o a outros meios: a telefonia (telegrama fonado) e as redes de computadores (telegrama via internet).
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22
Ana Maria de Almeida Camargo
A obra acima, cujo ttulo A Amrica que ns fi zemos, foi con-
feccionada em couro, madeira, metal e tecido. Parece livro, mas na
verdade o objeto artstico idealizado por Beatriz Balen Susin para
representar o tema da Festa da Uva no ano de 1996. Tambm co-
nhecido como livro de artista, o livro-objeto costuma ser produzido
em pequena escala, quando no exemplar nico. Sua ambiguidade
consiste em estender o campo literrio, tradicionalmente simbolizado
pelo livro, em direo ao das artes plsticas.
Nesta imagem h outro tipo
de ambiguidade. So dois docu-
mentos num s: tabela de jogos
(relao das partidas de um cam-
peonato esportivo, com suas res-
pectivas datas) e panfl eto (texto
de propaganda eleitoral impresso
em folha avulsa, com informaes
Ampliar Ampliar
AmpliarAmpliar
O livro-objeto, que se apresenta como experimento formal, de carter artstico, foi ofereci-do ao presidente Fernando Henrique Cardoso na inaugurao da 21a Festa Nacional da Uva, em Caxias do Sul (RS), em 23 de fevereiro de 1996.
Ampliar
Tabela de jogos como suporte depropaganda poltica.
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23
Sobre espcies e tipos documentais
sucintas sobre determinado candidato). Os eventos que lhes servem
de contexto tambm so dois, ambos ocorridos em 1986: a Copa do
Mundo, no Mxico, e a candidatura de Fernando Henrique Cardoso
ao Senado, no Brasil. No processo descritivo adotado, nossa escolha
recaiu, de modo pragmtico, sobre a segunda opo tanto dos docu-
mentos quanto dos contextos que os justifi cam.
A sobreposio de tipos documentais bastante comum en-
tre ns, sobretudo em situaes de campanha poltica, quando uma
gama variadssima de adereos, peas de vesturio e utenslios serve
para angariar votos. Mas ocorre tambm, com igual intensidade, nos
processos de propaganda cujo propsito enaltecer produtos, servi-
os, marcas e conceitos, com fi ns ideolgicos ou comerciais.
Igualmente ambguos so
os documentos que, apesar de sua
estrutura convencional, so re-
gistrados em suporte distinto do
papel. No teria cabimento consi-
der-los realia apenas em razo do
material em que foram gravadas
as informaes que lhes do senti-
do. A Comenda Coronel Esperidio
Rodrigues, com que foi agraciado
o presidente, certifi cada por espcie em metal, aplicada em base de
acrlico. Trata-se de documento do gnero textual, como tantos ou-
tros, e de diploma, que ttulo pelo qual se confere cargo, dignidade,
habilitao ou profi cincia a uma pessoa. A solenidade do suporte no
pode obscurecer a natureza do documento, cuja linguagem e frmula
no deixam margem a dvidas.
pequena imagem que representa a fi gura de um santo qual-
quer d-se o nome de santinho. Sua presena, nos arquivos, suge-
re, em primeiro lugar, prtica religiosa e devocional. Mas h outras
funes explicitamente associadas imagem do santo, nos rituais
Ampliar
Diploma de honraria concedida ao presidente Fernando Henrique Cardoso pela Prefeitura Municipal de Arapiraca (AL), em 1998.
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24
Ana Maria de Almeida Camargo
catlicos: a celebrao da primeira comunho
(como no exemplo ao lado, retirado do fundo
Ruth Cardoso), do batismo, da missa fnebre,
das bodas de casamento... De acordo com tais
funes a imagem do santo pode ceder lugar
a smbolos religiosos (cruz, clice, peixe, folha
de palmeira etc.), a pensamentos e oraes, a
dados biogrfi cos e retratos das pessoas ho-
menageadas. As derivaes possveis no afe-
tam a espcie documental, que continua a ser
identifi cada como santinho.
A mesma palavra, desta feita por analo-
gia, extravasa o territrio das celebraes de
carter espiritual e recai sobre a vida poltica.
Utilizado por Fernando Henrique Cardoso
na campanha pela Prefeitura de So Paulo, em
1985, o santinho passa a ter uma segunda defi -
nio em nosso glossrio. Trata-se agora de pe-
queno prospecto de propaganda eleitoral, com
retrato e nmero de candidato a cargo pblico.
Se a polissemia de certas palavras pode
nos confundir, no processo de dar nome aos
documentos, preciso estabelecer com bas-
tante rigor as diferenas de uso dos termos
iguais. Vejamos outro exemplo emblemtico.
A palavra apresentao remete, em pri-
meiro lugar, ao de apresentar, ou seja, ao
ato de dar a conhecer, mostrar, expor ou exi-
bir algo a uma ou mais pessoas. Mas a palavra
pode assumir tambm o sentido de algo que
se materializa sob a forma de documento. o
que ocorre com a carta de apresentao, men-
Ampliar
Santinho de propaganda poltica.
Ampliar
Ampliar
Santinho de primeira comunho.
-
25
Sobre espcies e tipos documentais
sagem escrita pela qual se recomenda algum para a ocupao de um
cargo, ou ainda com a carta de pedido de apresentao, com signifi ca-
do similar. O acervo da Fundao possui tambm o que convenciona-
mos chamar de apresentao de obra. Trata-se de texto destinado a
integrar obra de carter cientfi co, tcnico, literrio ou artstico, com
comentrios que justifi cam sua publicao e lhe confere importn-
cia. A expresso substitui, nesse caso, termos equivalentes, como
antembulo, antelquio, introduo, orelha de livro, posfcio, prem-
bulo, prefcio. H ainda uma terceira espcie documental a que se
d o nome de apresentao: o conjunto de quadros sinpticos cria-
dos em PowerPoint ou software equivalente. Essa espcie est hoje
to difundida que muitas instituies lhe do preferncia para fi ns de
publicao em anais, em lugar do texto expandido ou completo da
comunicao submetida ao evento.
Nem todos os manuscritos encontrados num arquivo pessoal
constituem estgios anteriores de um texto cuja verso fi nal foi publi-
cada ou se destinava a publicao. Quando podemos ligar o rascunho ao
discurso, ao artigo, ao ensaio, carta, ao relatrio ou tese, trabalhamos
com o conceito arquivstico de forma, ou seja, identifi camos as etapas de
preparao e transmisso do documento. s vezes impossvel estabe-
lecer nexos de sentido entre tais manuscritos e as
diferentes atividades a que se dedicou o titular do
arquivo, especialmente quando se trata de anota-
es informais, marcadas pela espontaneidade.
Tais documentos foram chamados de
apontamentos, e defi nidos como registro infor-
mal do que foi lido, ouvido, observado ou pen-
sado, para eventual uso posterior. Ainda que as
anotaes se apresentem de modo esquemtico,
com frases curtas e palavras-chave, como no do-
cumento acima, possvel lig-lo aos estudos e s
pesquisas de Ruth Cardoso sobre marginalidade.
Ampliar
Apontamentos de pesquisa feitos por Ruth
Cardoso, sem data.
-
26
Ana Maria de Almeida Camargo
Poderamos ainda estender
nossa amostra, de modo a abarcar
problemas relacionados com do-
cumentos audiovisuais, sonoros e
iconogrfi cos. No livro Tempo e cir-
cunstncia (2007), em que os pro-
cedimentos metodolgicos ado-
tados na organizao do acervo
foram amplamente discutidos, os
gneros no textuais mereceram
ateno especial. Uma certa hie-
rarquia foi estabelecida entre eles, fi cando os audiovisuais em lugar
privilegiado quanto a seu potencial discursivo e prpria dimenso
temporal que, mal ou bem, est presente na imagem sonorizada em
movimento, favorecendo uma relao analgica do documento com
seu referente. No outro extremo, e sem dispor de repertrio tipolgi-
co mnimo10, os documentos iconogrfi cos so os que no podem, de
modo algum, prescindir de elementos contextuais.
O documento com que encerramos esse painel introdutrio re-
ne, na mesma moldura, itens distintos, mesclando imagens e textos
que compem, no mbito da trajetria de Fernando Henrique Cardo-
so, um sentido peculiar.
Os retratos de Thomas Jeff erson e James Madison, com os res-
pectivos dados biogrfi cos, fi cam nas laterais do texto assinado por
ambos, cuja centralidade, na composio, no deixa dvidas quanto
10 Ao contrrio da documentao audiovisual e da sonora, que admitem similaridade maior com os textos, os produtos da fotografi a constituem um repertrio restrito de espcies, obrigando ao uso de mecanismos especfi cos de identifi cao. Na p. 103 de Tempo e circunstncia, reconhecemos a difi culdade de identifi car o tipo documental ico-nogrfi co por analogia com o textual, apontando como exemplo o discurso de agrade-cimento: quer tenha sido transcrito, fi lmado ou gravado, isto , quer se apresente como gnero textual, audiovisual ou sonoro, o tipo documental pode ser identifi cado como discurso de agradecimento. Se o ato de discursar foi fotografado, no entanto, jamais poderamos chamar as imagens produzidas de discurso de agradecimento.
Ampliar
Um presente de Amazonino Mendes, governador do Amazonas, ao presidente
Fernando Henrique Cardoso, em 1996.
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27
Sobre espcies e tipos documentais
importncia a ele atribuda. A condio formal do texto revela ainda
que se trata de formulrio impresso, com campos preenchidos mo,
selado e fi rmado pelo presidente dos Estados Unidos da Amrica e
seu secretrio de Estado.
A traduo do documento, abaixo transcrita, permite defi ni-lo
como termo de doao de terra ao tenente James Barnett, datado da
cidade de Washington, em 17 de fevereiro de 1809. Trata-se de do-
cumento emanado do poder pblico, com os correspondentes sinais
de validao, destinado a comprovar, junto ao benefi cirio, o direito
terra que lhe foi concedida por mritos militares.
THOMAS JEFFERSON, Presidente dos Estados Unidos da
Amrica
A QUEM INTERESSAR, DECLARA:
Assim, que de acordo com a lei do Congresso datada do pri-
meiro dia de janeiro de 1796, intitulada Uma lei para regula-
mentar as doaes de terras destinadas a usos militares e
sociedade dos Irmos Unidos para a evangelizao dos no-
cristos ou judeus; e com vrias leis suplementares, datadas
do segundo dia de maro de 1799, do dcimo primeiro dia de
fevereiro e do primeiro dia de maro de 1800, e do terceiro
dia de maro de 1803, foram doadas a James Barnett, tenen-
te do ltimo exrcito dos Estados Unidos, em considerao aos
seus servios militares, duas reas de terra de 40,47 hectares
(100 acres) cada uma, sendo Lotes nmero Sete e Oito, no Ter-
ceiro setor da Nona circunscrio, na Oitava parte da rea des-
tinada a uso militar, medidas e localizadas em cumprimento
dos atos citados acima. Para ter e guardar a rea de terra
descrita em suas partes, pelo dito James Barnett e seus her-
deiros e designados, para sempre, sujeita s condies, res-
tries e determinaes contidas nas leis supracitadas.
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28
Ana Maria de Almeida Camargo
Dando f, o dito Thomas Jeff erson, Presidente dos Estados
Unidos, determinou que fosse aposto o selo dos Estados Uni-
dos e assinado de prprio punho na cidade de Washington,
no dcimo stimo dia de fevereiro do ano de nosso Senhor
1809 e trigsimo terceiro da Independncia dos Estados Uni-
dos da Amrica.
PELO PRESIDENTE, Thomas Jeff erson
James Madison, Secretrio de Estado
Mesmo que no se conheam os tipos documentais norte-ame-
ricanos do incio do sculo XIX, podemos com facilidade identifi car sua
funcionalidade original (a concesso de terras, como prerrogativa do
poder pblico) e a rea de jurisdio em que foi acumulado (a esfe-
ra privada, como prova de direito nominal). Podemos inferir tambm
que, em algum momento de sua vida de quase duzentos anos, o do-
cumento saiu das mos de James Barnett ou das de seus herdeiros,
onde cumpria a funo de legitimar um bem patrimonial, para ganhar
o estatuto de objeto histrico e merecer os frisos dourados que o cer-
cam na moldura. A metamorfose ntida, e o documento, que no
deixou de ser o que foi desde o incio (um termo de doao de terra),
passou a valer pelas assinaturas de dois personagens de indiscutvel
relevncia na histria da Amrica do Norte. Transformou-se, portan-
to, num artefato novo, de valor simblico, que tornou indissolveis os
elementos emoldurados (termo de doao, retratos, legendas, passe
-partout). Foi nessa condio que entrou, em 1996, no arquivo de Fer-
nando Henrique Cardoso, graas iniciativa de Amazonino Mendes.
Como nome-lo, ento, de modo a conciliar os atributos espe-
cfi cos adquiridos ao longo do tempo, de um lado, e o contexto de
seu ingresso no acervo, de outro? Chegamos ao termo autgrafo, en-
tendido como manuscrito original de autor ou personagem clebre.
A defi nio passou a fi gurar no glossrio com as ressalvas: aplica-se a
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29
Sobre espcies e tipos documentais
documento de qualquer espcie cuja presena no arquivo se justifi ca
em razo da importncia de quem o assina ou subscreve; e pode de-
signar tambm a assinatura isolada, precedida ou no de dedicatria.
Temos plena conscincia de que h muito ainda que caminhar,
antes de atingir a plataforma de entendimento a que este seminrio
almeja. Que os exemplos aqui apresentados sirvam de ponto de parti-
da e estmulo para nossas discusses.
REFERNCIAS
BEARMAN, David. Structural formalisms in documentation: refl ecting function and supporting meaning. In: COOK, Terry (Ed.). Controlling the past: documenting society and institutions: essays in honor of Helen Willa Samuels. Chicago: Society of American Archivists, 2011. p. 241-255.
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DURANTI, Luciana. Diplomtica: usos nuevos para una antigua ciencia. Trad. Manuel Vzquez. Carmona: S & C Ediciones, 1996. (Biblioteca Archivstica, 5).
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30
Ana Maria de Almeida Camargo
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-
Por uma Diplomtica contempornea:
novas aproximaes
2
Bruno Delmas
PA
LEST
RA
Por que ter escolhido este tema para a apresentao? Porque
a questo do nome e da defi nio dos documentos est no
cerne da Diplomtica. Tenho tambm trs razes de ordem
pessoal:
h 40 anos, comecei a ensinar Diplomtica contempornea;
h quase 20 anos, publiquei um manifesto por uma Diplom-
tica contempornea;
e, hoje, nos defrontamos com documentos digitais.
Qual a conexo entre essas trs datas, esses trs momentos?
Eles defi nem as etapas de uma mesma histria; e essa a histria
que eu gostaria de evocar neste momento para chegar s questes
atuais. tambm, confesso, um pouco de ego-histria, como se costu-
ma dizer entre historiadores. Est na moda, no momento, na Frana,
e peo-lhes desculpas pela parte de imodstia que isso implica. Mas
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33
Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
, sobretudo, um testemunho que quero trazer. Em primeiro lugar,
lembrar as origens e a evoluo da disciplina ao longo do tempo e o
que podem nos ensinar; ver tambm em que consiste realmente o
fenmeno da digitalizao; e, fi nalmente, considerar os caminhos de
uma Diplomtica digital.
Como de praxe, temos que comear por uma defi nio. O que
a Diplomtica? A Diplomtica a cincia que estuda os documen-
tos de arquivo propriamente ditos, em sua condio de documentos a
partir de sua elaborao, sua forma e sua transmisso, para julgar sua
autenticidade e considerar seu valor de testemunho e de informao.
O documento em si, isto , no o seu contedo, mas o que ns no
olhamos nem buscamos ao consultar um documento. Portanto, o do-
cumento como documento.
1. Quais so as origens da Diplomtica?Vamos ver quais so as origens da Diplomtica, a seguir, da Di-
plomtica contempornea; e, fi nalmente, quais so as caractersticas
desta ltima.
1.1 Quais so as circunstncias da criao da Diplomtica contempornea?
Para os historiadores e para os arquivistas, a Diplomtica uma
disciplina criada por um monge beneditino, dom Jean Mabillon, monge
da abadia de Saint-Germain-des-Prs, em Paris, por ocasio de uma con-
trovrsia com o jesuta Daniel van Papenbroeck, no fi nal do sculo XVII.
A polmica se deu sobre a autenticidade de um diploma de doao me-
rovngio, guardado nos arquivos da abadia de Saint-Denis, perto de Paris.
Aps profundos estudos sistemticos de documentos solenes
da Alta Idade Mdia, Mabillon defi niu, nessa ocasio, um mtodo de
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34
Bruno Delmas
estudo e de anlise de atos reais (De re Diplomatica, 1682) que permi-
tia demonstrar se esses atos eram autnticos ou falsos. Depois, em
meados do sculo XVIII, o mtodo foi estendido por dois eruditos be-
neditinos, dom Tassin e dom Toustain, aos atos ofi ciais e, sucessiva-
mente, a todos os documentos das instituies da Idade Mdia, no
mais como objetivo de prova jurdica, mas tanto de erudio histrica,
quanto de uma Diplomtica prtica de classifi cao, de conservao e
de inventrio. Passamos assim da crtica de atos reais autnticos para
o reconhecimento da presuno de autenticidade dos documentos
administrativos.
Do mesmo modo, os diplomatistas medievalistas desenvolve-
ram estudos sobre a tradio (dos originais e das cpias, mobilizando a
paleografi a, a cronologia etc.), a forma (estudos dos suportes, escritas,
estilos e frmulas) e a gnese dentro do funcionamento das secreta-
rias, com o objetivo de fazer edies crticas de documentos. No entan-
to, os historiadores das pocas posteriores ao Renascimento tiveram
pouco interesse pela Diplomtica dos documentos de arquivos da era
moderna, os quais, entretanto, comeavam a proliferar. Esses docu-
mentos no apresentavam os mesmos problemas de autenticidade e
no mobilizavam os mesmos recursos de aparato crtico. Citemos entre
as excees, na Frana, Georges Tessier (1962) e, na Espanha, a grande
arquivista Vicenta Corts Alonso (1979), que tinha se interessado pela
Diplomtica dos documentos da Amrica Latina Espanhola.
No decorrer dos anos 1960, os pases mais desenvolvidos foram
confrontados com o fenmeno da exploso documental, consequn-
cia do novo mpeto da sociedade industrial, aps a Segunda Guerra
Mundial. Vimos a proliferao de novos documentos e de cpias pro-
duzidos desde o sculo XIX, por mquinas cada vez mais diversifi cadas,
notadamente informticas; de documentos redundantes e documen-
tos intermedirios, de uso efmero, produzidos por meio de procedi-
mentos administrativos, cada vez mais longos. O principal problema
resultante dessa evoluo surgiu de maneira diferente na Amrica do
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35
Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
Norte e na Europa. Na Amrica do Norte anglfona, regida pela Com-
mon Law e mais avanada no uso da informtica, a questo crucial era
a da prova legal (forensic). Foi a via que Luciana Duranti (1989, p. 12)
desenvolveu com o seu programa. O interesse de Duranti por docu-
mentos eletrnicos comeou no decorrer de seus estudos arquivsti-
cos: sua anlise compreensiva objetivava os desafi os apresentados s
instituies arquivsticas pelo aumento da produo de documentos
eletrnicos nas reparties pblicas. Entretanto, quando ela veio para
a Amrica do Norte, sua investigao incidiu sobre documentos ele-
trnicos quando entendeu que teria que ensinar prxima gerao
de arquivistas a lidar com o novo mundo da comunicao eletrnica.
A pesquisa de Duranti consistiu, primeiro, em testar a validade dos
conceitos, dos princpios e dos mtodos para adquirir e manter o con-
trole de registros eletrnicos. A pesquisa teve tambm o propsito de
encontrar solues para as questes que no fossem especfi cas de
um contexto sociocultural e jurdico, mas que pudessem ser aplicadas
universalmente.
Na Europa, os rgo administrativos e os arquivos estavam so-
brecarregados, o principal problema dos servios de arquivos j no
era mais o da autenticidade dos documentos, uma vez que todos
eles tinham uma presuno de autenticidade, nem tampouco era o
problema da edio crtica de textos raros, mas o da destinao, para
conservar os documentos essenciais prova e ao conhecimento, e o
problema da criao de instrumentos de pesquisa mais cientfi cos.
At ento, a Diplomtica era o campo de atuao de especialistas me-
dievalistas que tinham muito a fazer com a massa de documentos me-
dievais, contados em dezenas de quilmetros s na Frana. Por causa
dos seus conhecimentos em Diplomtica medieval, eles conseguiam
abordar intuitivamente os problemas da Diplomtica contempornea
e resolver as questes sem a necessidade de formao especial.
Em 1973, eu estava em misso na Universidade de Dakar, onde
a UNESCO tinha decidido fundar uma escola de arquivistas para as
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36
Bruno Delmas
administraes de todos os Estados da frica francfona. Os docu-
mentos mais recentes, que esses arquivistas teriam que tratar, com
exceo de alguns mais antigos, datavam de meados do sculo XIX.
Fazamos trabalhos prticos de destinao e de classificao
nos Arquivos do Senegal, trabalhando em documentos produzidos
pela Presidncia da Repblica. No tendo estudado Diplomtica,
os alunos no distinguiam, por exemplo, o original da cpia, e entre
as cpias, qual ou quais os documentos mais importantes a conser-
var. Era, portanto, necessrio criar um curso de Diplomtica adap-
tado para os arquivos que eles deveriam conservar. dessa forma
que nasceu o ensino da Diplomtica contempornea, assim chama-
da para distingui-la da Diplomtica clssica, que a Diplomtica
medieval.
Em 1977, fui eleito professor na cole des Chartes, para a cadei-
ra de Arquivstica Contempornea, que acabava de ser criada, na qual
introduzi o ensino da Diplomtica contempornea.
1.2 Quais so os objetivos desse ensino, do que era composto, como evoluiu?
Inicialmente, eu me inspirei na metodologia e na abordagem da
Diplomtica medieval: estudo da forma, claro, mas tambm estudo
da gnese, mais do que da tradio j que o problema no era de
raridade, nem de busca de autenticidade, mas de superabundncia de
documentos de arquivo.
O objetivo era fornecer uma ferramenta intelectual de crtica
dos documentos dos sculos XIX e XX, a fim de instituir, com uma
abordagem racional, a descrio e a anlise, tanto quanto a avaliao e
a destinao dos documentos - problemas, a partir de ento, cruciais,
provocados pelo alongamento da cadeia da gnese e pela multiplica-
o dos meios de difuso. Isso implicava levar em conta conhecimen-
-
37
Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
tos diferentes, por exemplo, a paleografia ou a cronologia discipli-
nas pouco teis, no caso, para desenvolver novas ferramentas, com
o cuidado de evitar a destruio das provas ou dos vestgios nicos.
Tratava-se, tambm, de contribuir para o aperfeioamento cientfico
dos instrumentos de pesquisa.
Isto me levou, em primeiro lugar, a prestar uma ateno espe-
cial histria dos modos de produo copiosa de suportes e de es-
critas na era industrial (final do sculo XVIII a final do sculo XX), a
fim de conceber uma nova Diplomtica material e conhecer seus usos
- elementos indispensveis para a preservao e autenticao dedo-
cumentos.
Era preciso tambm renovar a abordagem da gnese e da tra-
dio dos documentos; recolocar os documentos no seu contexto
de produo segundo as funes e os processos administrativos de
elaborao das decises (projetos, consultas, histria administrati-
va); e levar em conta o aumento da formalizao dos processos e
as restries de normas que se ajustaram durante todo o perodo
(documentos legislativos ou regulamentos que regem a produo
de documentos, Cdigo Comercial, decreto sobre a contabilidade
pblica de 1867, multiplicao dos formulrios em todas as reas
da administrao). A Diplomtica erudita aproximava-se, assim, da
Diplomtica prtica, com a implementao do controle de produo
dos documentos pelo Centro de Registro e Reviso dos Formulrios
Administrativos (Cerfa) ou, ainda, com o histrico da multiplicao
dos meios e das formas de difuso dos documentos de arquivo (tele-
grama, telecpia, fax etc.). Todos esses elementos eram necessrios
para discernir as formas a ser mantidas para a prova, o acesso pes-
quisa ou a conservao.
Muito naturalmente, fui levado a me interessar por documen-
tos de arquivo do gnero audiovisual cada vez mais presentes nos
arquivos administrativos (fotografi a, gravao sonora, cinematogra-
fi a) , a conhecer os processos de fabricao material de documentos
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38
Bruno Delmas
audiovisuais e, em seguida, aos arquivos do gnero audiovisual con-
servados em organismos audiovisuais pblicos.
Da mesma maneira, os arquivos de entidades de pesquisa cien-
tfi ca e tcnica no se limitam a seus papis administrativos; todos os
documentos cientfi cos e tcnicos so produzidos no quadro de pro-
tocolos de experincias ou por processos automticos submetidos a
prescries legislativas e regulamentares. So documentos to sub-
missos quanto os documentos administrativos, e eles podem, por
isso mesmo, ser objeto de anlise diplomtica. Devemos incluir nesses
arquivos peas arqueolgicas ou de coleta cientfi ca, testes de expe-
rincias, resultados registrados em relatrios de escavao ou em ca-
dernos de laboratrio - documentos que se tornam arquivsticos por
destino, e no pornatureza.
Essas constataes me levaram a publicar, em 1996, um mani-
festo por uma Diplomtica contempornea como disciplina merece-
dora de pesquisas especfi cas e necessrias para a formao intelec-
tual e cientfi ca dos arquivistas de hoje.
claro que, nesse percurso, encontrei documentos digitais tan-
to nos arquivos administrativos quanto nos audiovisuais, cientfi cos e
tcnicos. Mas nada mais eram do que produtos de nova tcnica, de
documentos cuja leitura exige a mediao de aparelho e at mesmo
de um manual de instrues para que, mais tarde, possam ser utiliza-
dos e compreendidos, semelhana do que ocorre com as cadernetas
de laboratrio.
Mas antes de chegar ao nosso segundo ponto, gostaria de fa-
zer um comentrio diretamente ligado ao tema do nosso colquio.
Trata-se da defi nio diplomtica dos documentos; isto , do nome
do documento e de sua defi nio, uma palavra podendo ter, s vezes,
vrios signifi cados. Em todas as extenses sucessivas da Diplomtica,
encontrei novas palavras para designar esses novos documentos. Um
mesmo documento pode ser defi nido de acordo com a sua natureza
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39
Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
jurdica (como uma lei) ou sua funo (como uma conta), mas tambm
de acordo com o seu modo de elaborao ou de produo (como uma
fotografi a), sua forma (como uma lista) ou seu modo de transmisso
(como um telegrama). Na maioria dos casos (documentos administra-
tivos), essas palavras eram nicas. Seu nome era defi nido em textos
ofi ciais. s vezes, vrias palavras podiam designar o mesmo documen-
to ou uma nica palavra podia denominar vrios documentos dife-
rentes. Foram tambm encontradas palavras insignifi cantes, palavras
prprias de jarges profi ssionais, palavras desaparecidas de formas
ou suportes ultrapassados, de documentos esquecidos. Em todos es-
ses usos, qual termo manter para um uso cientfi co seno aquele que
melhor correspondia natureza diplomtica do documento?
As defi nies dessas palavras que encontramos em dicionrios
eram muito variveis: prximas de uma defi nio diplomtica nos ca-
sos de documentos administrativos,ou,por vezes, muito distantes no
tempo especialmente para documentos no estritamente administra-
tivos ou produzidos em determinado momento do sculo XIX ou do
sculo XX por alguma tcnica, hoje ultrapassada. Era preciso, no para
o pblico em geral, mas para os arquivistas, encontrar o melhor termo
quando necessrio e elaborar a melhor defi nio; ou seja, uma defi ni-
o diplomtica que refl etisse a funo e a forma dos documentos.
o que tentamos fazer com um lxico (DELMAS, 1986) e, em seguida,
com um dicionrio de arquivos (DELMAS, 1991).
O que uma defi nio diplomtica? aquela que indica a na-
tureza da ao que o documento autoriza ou acompanha. Assim, a
fatura, documento nomeado e defi nido pelo Code du commerce [C-
digo Comercial] quanto sua utilizao e ao seu contedo obrigat-
rio, acompanha a venda de um bem ou de um servio. Muitas vezes, a
palavra autorreferente, porque descreve um modo de organizao
do escrito e, a partir dele, sua estrutura (tabela, lista). Uma lista uma
sequncia de palavras ou nmeros em coluna, classifi cados em deter-
minada ordem. s vezes, uma palavra designa, ao mesmo tempo, uma
-
40
Bruno Delmas
ao e sua estrutura. Lista de nomeao uma expresso que d,
simultaneamente, a ao e a frmula.
Quanto aos novos documentos criados sem antecedentes pelo
sistema tcnico, vemos que, em geral, eles tm um nome que lhes
dado rapidamente na ocasio de sua apario, onde ela ocorreu, para
identifi c-los em relao a outros documentos. Como no passado,
a tcnica, o suporte ou a analogia que vo inspirar esse nome. Ele
fonte de grande diversidade e incompreenso at que a utilizao
de um nome ou de uma expresso se torne indispensvel. A princi-
pal difi culdade encontrar para esse nome provisrio uma defi nio
diplomtica, cientfi ca, que indique sua natureza diplomtica, da qual
os arquivistas e pesquisadores precisam para realizar a avaliao ou a
crtica dos documentos.
A difi culdade vem da denominao dos documentos produzi-
dos em novos suportes, em que, muitas vezes, o processo tcnico
que d o nome (fotografi a, fi ta magntica). Nestes casos, necessrio
precisar a tcnica pela funo: a foto de identidade, a foto antropo-
mtrica. Tomemos o caso do telegrama. Ele defi nido pela tcnica
que garante sua funo de informao rpida e tem uma estrutura
que lhe foi imposta pela tcnica do momento de sua apario, defi ni-
da pelo nome de estilo telegrfi co. Mas vemos bem que, ao faz-lo,
no fomos at o fi m da defi nio diplomtica, pois apenas indicamos
o modo de transmisso. Deveramos especifi car, por exemplo, tele-
grama informativo, ordem telegrfi ca, resposta telegrfi ca, demanda
telegrfi ca, ou, ainda, telegrama codifi cado, telegrama ministerial?
Assim, para ser cientfi ca, a defi nio diplomtica de um documento
contemporneo no pode, na maior parte dos casos, limitar-se a uma
nica palavra. Ela precisar ser uma expresso que concilie o estatuto
jurdico, a funo e a ao e, muitas vezes, a natureza do suporte.
Todas as proliferaes de documentos e as extenses consecu-
tivas da Diplomtica levaram a desenhar uma tipologia dos documen-
tos de acordo com classifi caes que recolocavam cada documento;
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41
Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
seja em seu lugar de gnese e tradio (Diplomtica geral), seja em
seu contexto institucional e funcional (unidade da ao, dossi, Diplo-
mtica especial)1.
2. O que aconteceu nos ltimos 20 anos?O fenmeno da digitalizao
Nesta segunda parte, pretendo explicar brevemente que a di-
gitalizao no se limita a um simples fenmeno tcnico de grande
magnitude, mostrar suas consequncias em particular, antropol-
gicas e, fi nalmente, indicar o que trouxe de mudana para os docu-
mentos de arquivo.
2.1 A digitalizao: um novo sistema tcnicoSem cair em grandiloquncia ou em banalidade, podemos dizer
que sabemos hoje que mudamos de mundo. Entramos na chamada
sociedade da informao, a sociedade do conhecimento. Por trs des-
sas expresses, bastante comuns atualmente, esconde-se um fen-
meno maior na histria da humanidade, anunciado h vrias dcadas.
Acabamos de vivenciar a passagem de um sistema tcnico para outro.
Houve outros em diferentes momentos da histria dos homens.
O que que um sistema tcnico? uma teoria formulada por
um francs, arquivista e historiador das cincias e das tcnicas, Ber-
trand Gille, que explica que cada sociedade constri para si prpria
um sistema tcnico que, por sua vez, a modifi ca. Ela o estende a sua
cultura, seu direito, sua economia, e ele a transforma, numa interao
contnua. Ele permite sociedade tirar o melhor partido dos seus re-
cursos e, assim, crescer e se desenvolver. tambm, portanto, um mo-
1 Ver em Lexique de terminologie archivistique e depois no Dictionnaire de terminologie archivistique, ambos on-line: Disponvel em: , e .
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Bruno Delmas
delo dinmico, adaptado a uma situao particular muito estruturante
para uma sociedade; mas que tem seus limites, ao termo dos quais ou
a sociedade desaparece ou ela muda drasticamente. De toda maneira,
esta mudana, independentemente de suas formas, violenta.
O ltimo sistema tcnico que conhecemos aquele da socie-
dade industrial (fi m do sculo XVIII ao fi m do sculo XX). A mquina a
vapor e o carvo constituram o sistema cujo auge se deu com a ele-
tricidade e o petrleo. A mquina foi substituindo, cada vez mais, o
homem em todas as reas de produo para fabricar bens materiais
em massa a partir dos recursos naturais que eram descobertos. As ins-
tituies e o direito, os modos de vida e de trabalho, os usos sociais
foram profundamente transformados. As sociedades anteriormente
agrrias com seus estilos de vida e relaes com a natureza foram
abaladas e existem, ainda, na Europa em sua forma tradicional apenas
residualmente. A indstria criou uma nova organizao territorial (con-
centrao humana nos locais de explorao ou de produo), modos de
produzir (organizao do trabalho), de trocar (lojas de departamento) e
de consumir (consumismo), novos relacionamentos humanos (sindica-
tos), modos de vida radicalmente diferentes e um relacionamento com
a natureza (explorao, poluio) renovado (ecologia).
Abandonamos a sociedade industrial em meados de 2000 e en-
tramos em um novo sistema em processo de consolidao. Neste novo
sistema, a produo de ideias e a pesquisa em todas as reas, a orga-
nizao, a gesto dos recursos que permitem a economia de energia e
a melhor utilizao, com menos esforo e menos matria, dos recursos
esgotveis, substitudos por recursos imateriais inesgotveis.
A evoluo foi gradual desde os anos 1970 quando o sistema
mecanizado da sociedade industrial foi dominado aos poucos, de for-
ma difusa e no incio imperceptvel, por mquinas de uma nova esp-
cie: os computadores, os aparelhos eletrnicos, capazes de processar
rapidamente dados em massa.
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Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
Os computadores intervieram em primeiro lugar, para substi-
tuir em um dado momento e numa dada rea, processos que, feitos
em papel e manualmente, eram morosos e falhos (anlise de pes-
quisas estatsticas). Ao faz-lo, o computador substitua um ou mais
documentos tradicionais por novos documentos (balancetes decon-
tasmensais, por exemplo). Por trs dessas conquistas, novas ativida-
des se desenvolveram, formaram-se documentos de um novo tipo.
Ao contrrio de aparelhos que captam automaticamente, e
criam novos tipos de documentos, utilizando ou no o suporte papel,
alguns desses documentos dependem rigorosamente da tcnica que
os produz: a fotografi a, da mquina fotogrfi ca; o registro sonoro, do
gravador; o fi lme, da cmera etc. J o telegrama, produto do telgrafo,
ou mesmo o programa de rdio ou de televiso transmitem uma men-
sagem que no produzem, que tem existncia prvia. Da mesma forma,
o computador processa dados que lhe preexistem. No incio, quando
era apenas instrumento intermedirio, seus documentos pouco inte-
ressavam aos arquivistas, j que mantinham o documento fi nal em su-
porte-papel. Nas atividades cientfi cas, estatsticas e de contabilidade,
o interesse j era maior, mas era um campo para especialistas. Assim,
essas formas de documentos apenas visveis na tela ou impressas em
papel faziam, ento, negligenciar o fato de que esses documentos
existiam, em primeiro lugar, nos computadores; e que estes no eram
meras mquinas de tratamento de documentos, como a mquina foto-
grfi ca ou a mquina de xerox, mas tinham uma memria, e que esses
documentos possuam uma forma legvel e utilizvel pela mquina.
2.2 Os progressos incessantes da eletrnica mudaram a natureza do papel da informtica
Desde os meados dos anos 1970, a informtica no cessou
de fazer progressos prodigiosos tanto em termos de hardware
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como de software: capacidade das memrias, sistemas operacio-
nais, capacidade de processamento, multiplicidade de software
com a queda dos preos. A informtica estabeleceu-se em todas as
atividades humanas e tornou-se comum. Deixou a rea do simples
tratamento de dados para dominar tambm o setor de criao de
documentos por meio da captura de imagens, de sons ou de fen-
menos naturais.
A esse fenmeno juntou-se outro no decorrer dos anos 1990:
as redes de comunicao entre computadores, tambm constitudas
paralelamente aos avanos das telecomunicaes, levaram interco-
nexo geral de todas essas mquinas por meio da rede Internet. Essa
revoluo da transmisso de documentos e de dados possibilitou a
instalao do sistema. Criado por uma poderosa inovao nos pro-
cessos de informtica e telemtica, o novo sistema tcnico provocou
um deslocamento da inovao. Passamos da inovao no procedi-
mento (computador) para a inovao dos produtos (smartphones,
tablets, aplicativos de software). O gigantismo das transformaes
de empresas como a IBM e a Bull e, mais ainda, como a Apple, em-
blemtico desta evoluo. Seguiram-se as adaptaes legais e insti-
tucionais necessrias, j que o sistema tcnico no seria concludo
sem a consagrao legal que completa o sistema e o instala na socie-
dade. Da tcnica passa-se para a organizao social. Na Europa, uma
diretriz de 2002 da Unio Europeia atribu ao documento eletrnico
o mesmo valor do documento em papel. A globalizao atual no
seria possvel sem este sistema tcnico. E no foi ele que a criou?
Tal o sistema no qual vivemos doravante, no qual o docu-
mento digital se afi rma como ferramenta indispensvel para criar,
trabalhar, intercambiar. Ele veio acompanhado de uma segunda ex-
ploso documental, bem maior do que a que tivemos nos anos 1960,
devido maior facilidade de capturar, analisar, calcular, modelar e,
portanto, de produzir documentos e difundi-los. No somente a
massa desses documentos digitais produzidos considervel, no
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Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
somente eles esto presentes em nossas vidas dirias, mas vo se
diversifi cando cada vez mais graas aos novos usos que a tcnica
permite (Facebook, chats, tweets, blogs etc.) e so a nica forma de
muitos documentos.
2.3 As consequncias polticas, culturais, econmicas e sociais desse fenmeno
Os documentos em formato digital apresentam preciso aqui
lembrar vantagens considerveis: eles so acessveis instantanea-
mente, de modo simultneo e, geralmente, de maneira gratuita para
qualquer pessoa, em todos os lugares da Terra, e seu uso repetido no
os destri, compartilhando-os infi ndavelmente.
Para a humanidade, as consequncias so inumerveis: tanto
para as pessoas, com a globalizao da educao (cursos de auto-
formao de todos os nveis, acadmicos ou profissionais, de livre
acesso on-line) e da cultura (bibliotecas, museus, arquivos etc.),
quanto para a democratizao do acesso ao conhecimento e, ain-
da, para o cidado e o empresrio, para polticas e aes em fa-
vor dos open data e a reutilizao dos dados pblicos. possvel
trabalhar conjunta e simultaneamente em toda parte do mundo,
alm de compartilhar (os Wiki e outros programas de colaborao).
Com isso pode ser alcanada a igualdade de oportunidades e de
possibilidades de cada homem e de cada Estado. No h mais pa-
ses desenvolvidos e pases em desenvolvimento. As convulses
atuais da economia mundial mostram claramente que s h pases
em desenvolvimento. Tudo isso baseado em documentos digitais
ou digitalizados. Eles tornaram-se objetos centrais da sociedade da
informao. Cabe, desde j, ao arquivista, a todos, interessar-se
profundamente por esses documentos.
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Bruno Delmas
3. O documento digital e os arquivistas precisam da Diplomtica?
Esta pergunta suscita mais trs: quais so as questes coloca-
das Diplomticapelapreservaodedocumentosdigitais? Queres-
postaselapodedar? A Diplomtica digital vai eliminar a Diplomtica
contempornea?
3.1 A Diplomtica digital vai eliminar a Diplomtica contempornea?
O papel e permanecer ainda por muito tempo o objeto da
Diplomtica contempornea, e isto por vrias razes. Existe uma
massa considervel de documentos em papel (3.500 km de arquivos
pblicos na Frana) e apenas uma pequena parte deles ser copiada
e convertida em documentos digitais. A operao cara e limitada.
Ser feita para categorias escolhidas, de acordo com as necessidades
do momento. Atualmente, por exemplo, o estado civil, o recruta-
mento, o cadastro e alguns programas de pesquisa que so objeto
de digitalizaes sistemticas. Por outro lado, bem provvel, ainda,
que continuemos por muito tempo a converter documentos digitais
em suporte-papel (impresso), pela boa razo de que sua conserva-
oalongo prazomaisseguraemaisbarata.Maspor quanto tempo?
Todos os documentos digitais no sero convertidos em documentos
em papel. Sem dvida, vamos continuar por algum tempo com esse
vai-e-vem entre as duas formas de documentos. preciso considerar o
desenvolvimento de duas Diplomticas contemporneas: a Diplom-
tica analgica do papel e dos documentos tradicionais e a Diplomtica
digital dos dados. No h ruptura entre esses dois mundos, pois mui-
tos documentos administrativos em papel vo sendo substitudos por
documentos digitais que conservam o mesmo nome, a forma e ouso.
Mas por quanto tempo ainda? Vir, sem dvida, o momento, talvez
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Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
no to distante, em que a Diplomtica dos documentos dos sculos
XIX e XX ir se juntar Diplomtica medieval.
3.2 Quais questes os documentos digitais levantam para a Diplomtica?
Os documentos digitais ensejam dois tipos de perguntas para
o arquivista: as relativas preservao fsica, perenidade da pro-
va por longo prazo; e aquelas colocadas pelos novos documen-
toscomofonte depesquisa.
A questo da perenidade dos documentos uma preocupao
antiga dos arquivistas. Na Frana, por exemplo, j faz 30 anos que en-
genheiros e arquivistas se preocupam com este problema (ver o pro-
jeto Constance, nos Arquivos Nacionais da Frana, em 1983, para o
arquivamento de dados do censo de estatsticas agrcolas). Eles tm
trabalhado sobre as especifi caes gerais funcionais e tcnicas dos
documentos eletrnicos para sua conservao duradoura. A experi-
ncia foi enriquecida ao longo do tempo, da evoluo da tecnologia
e dos fundos recebidos. Desde essa poca, procedimentos tanto de
software como de hardware foram elaborados para a conservao
dos dados. A partir de 2001, a preocupao aumentou levando cons-
tituio de grupos de trabalho multidisciplinares, com profi ssionais
vindos de reas diferentes, essencialmente, engenheiros e arquivistas
(Grupo PIN [Prennisation de l Information Numrique] Perenizao
da Informao Digital na Frana).
A perenizao deve resolver trs contradies irredutveis, de
importncia vital para o futuro: como conciliar com o digital a autenti-
cidade e a confi abilidade dos dados? Como garantir a perenidade dos
documentos digitais com a desmaterializao? Como dar acesso de
tudo a todos e garantir a proteo dos dados da vida privada? O caso
atual de espionagem da NSA [National Security Agency] ilustra a gravi-
dade dessas questes.
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Voltemos ao documentodigital, sua condio formal.Se odo-
cumentoescritoougravadopodeserconsiderado umaunidadedocu-
mental,odocumentodigitalpodeserconsideradoinformaoestru-
turada elemento de conhecimento que deve ser codifi cado para ser
conservado, tratado ou acessado. Os documentos digitais so codifi ca-
dos de acordo com o cdigo binrio, que usado para alimentar e con-
trolar a mquina eletrnica. por isso que o documento digital precisa
de uma mquina complexa para dar acesso ao seu contedo. Todas as
mquinas utilizam a mesma codifi cao eletrnica binria, que permite
representar os mais diversos documentos, trat-los com uma grande
variedade de softwares, em muitas mquinas diferentes, e de comuni-
c-los em todas as redes, por todos os provedores de acesso. Assim,
noo de documento acrescenta-se uma nova, a de dado, que uma
representao formalizada da informao, adaptada comunicao,
interpretao ou ao tratamento por um computador.
O procedimento digital converteu o documento e seu suporte
em dados digitais, em um objeto imaterial. Os dados no so mais liga-
dos fi sicamente a um suporte material. Essa imaterialidade apresenta
grandes vantagens bem conhecidas: ela libera a gesto dos documen-
tos do volume e do peso do papel; ela os converte em dados e, as-
sim, facilita o tratamento e o acesso instantneo. Face aos benefcios
prticos dessa converso, a imaterialidade apresenta tambm cons-
trangimentos no menos conhecidos, especialmente a dependncia
do usurio de uma mquina para acessar o documento. Alm disso,
prisioneiro das mquinas, dos sistemas operacionais e dos aplicativos
que envelhecem rapidamente (menos de 10 anos), o documento di-
gital obrigado a evoluir constantemente para poder continuar a ser
utilizado pelas mquinas e softwares mais atuais.
Uma questo crucial: podemos confi ar da mesma maneira na
tela de um tablet e no papel que seguramos em nossa mo? Livre
das restries do suporte fsico, pode-se temer que o documento,
submetido a tantos riscos tcnicos, possa ser facilmente manipula-
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Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
do e processado. UmanovaDiplomticase impe, e de modoradi-
cal:nodeveramosfalar agora de uma Diplomtica do documento
digitale,paraosoutrosdocumentos, de uma Diplomtica do docu-
mento analgico? Essa nova Diplomtica seria caracterizada por um
certo nmero de traos essenciais.
4. A vulnerabilidade do documento digitalA primeira observao que acompanha a passagem para o di-
gital a extraordinria vulnerabilidade do documento digital na sua
durao. Independente de qualquer suporte fixo,sua base um con-
junto complexo que engloba um meio de armazenamento, um dis-
positivoparaa leituradessemeio,umcomputador,umsistemaope-
racional e um ou mais programas. Esta simples enumerao, que
poderiaserbem maior,mostraacomplexidadeeafragilidadedosiste-
ma e de suaeficcia.A perenidade do sistema depende, como em uma
cadeia, da fraqueza ou obsolescncia do elo mais frgil. Cada um dos
elementos do dispositivo de leitura deve ser substitudo regularmente.
Alguns elementos no tm incidncia sobre a representao dos dados,
outros sim. a fragilidade do sistema. A mquina e tudo o que a acom-
panha envelhecem mais rapidamente do que os suportes tradicionais.
A manuteno do sistema em estado de funcionamento para
os documentos antigos no depende apenas de fatores tcnicos; indi-
retamente, necessrio contar com uma organizao slida e fortes
competncias em tcnica e em arquivos para gerenciar essa comple-
xidade ao longo do tempo; com meios fi nanceiros diferentes daque-
les do armazenamento anterior em prdios de arquivos, tambm
necessrio reduzir a complexidade do sistema por elementos norma-
tivos que unifi quem e, assim, facilitem os procedimentos. preciso,
tambm, um quadro legislativo e regulamentar para dar ao documen-
to digital o mesmo valor probatrio do documento em papel, mas
com obrigaes tcnicas adicionais, para garantir a integridade e a
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autenticidade dos documentos. Estas restries no so novas, elas j
existem para documentos em papel, e a Diplomtica contempornea
j valorizou sua crescente importncia. Mas, com a digitalizao, elas
adquirem um carter de absoluta necessidade. Para realizar tudo isso,
precisamos de pessoas competentes.
5. O estudo do documento comeana sua concepo
O segundo ponto o deslocamento completo do estudo do
documento. A Diplomtica analgica interessa-se pelo documen-
toexistenteetemporobjetivo,nocasodenecessidadede prova,re-
montarsuatradioatchegar aodocumentooriginalparaverificar
suaautenticidade;ou,porexemplo,remontaratagneseparaana-
lisar os processos de deciso. Mas ela no se interessa pela Diplo-
mtica prtica que, entretanto, existe nos servios administrati-
vos e nos cursos de secretariado. A Diplomtica digital no pode
se limitaraoreconhecimentodaautenticidade.Paraesta,oproces-
so digital deve, como para os arquivistas responsveis pela conser-
vao perene dos dados, situar-se no ponto de origem, no mo-
mento de criao do documento. O diplomatista no pode tratar
um documento digital produzido sem a sua interveno; ou melhor,
no se pode criar um documento digital sem a interveno de um
arquivista diplomatista. Alm de intervir na concepo, ele deve
usardispositivosadequadosparaacompanharo documento aolon-
godesuagneseedifuso.Paradocumentosjurdicos, eledevega-
rantir a rastreabilidade de seu andamento. Em tal situao, a Di-
plomtica est mais do que nunca ligada Arquivologia, que tem
asmesmaspreocupaesdeperenizaocom osdadosinformticos.
Pode-se dizer que o documento analgico se conserva sozinho
se estiver fi sicamente bem protegido. Numerosos documentos muito
antigos sobreviveram atravs dos milnios apesar de desastres natu-
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Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
rais ou humanos. Mas os dados digitais no se conservam por si s.
Acabamos de discutir sua extrema fragilidade: a mquina no permite
amadorismo, negligncia ou abandono. Ela impe regras ainda mais
rigorosas do que os procedimentos administrativos de documentos
analgicos. tanto uma necessidade benfi ca, dada a facilidade de
manipulao do documento digital, quanto um fator unifi cador numa
rea de grande abundncia de hardwareesoftwareproprietrios,que
tornam cativos seus usurios. Haveria ainda mil formatos de docu-
mentosdiferentes,almdesuasversessucessivas.
Adefiniodenormasparatodosos aspectos do documen-
to digital representa um fator de estabilidade e perenidade. As
normas so regras funcionais ou tcnicas relativas a um produ-
to, a atividades ou aos seus resultados estabelecidas por con-
senso entre especialistas e registradas em documento produzi-
doporumaorganizao, nacional ou internacional,reconhecidano
campo da normalizao. As normas so, hoje, o prolongamen-
to mais preciso de regulamentaes administrativas (formulrios
etc.) que facilitam a padronizao e a uniformidade da produ-
o de documentos administrativos em suporte analgico, levan-
doosdiversosatoresdodigitalaproduzirelementosquecontri-
buemparaasuaperenizao. Da mesma forma, existem no campo
privado padres criados por empresas que se impem de facto e
so adotados por outros produtores (ISO, por exemplo). H gru-
pos de normalizao em muitas reas, o que podemos considerar
como equivalente ao que existe na Diplomtica dos documentos
analgicos.
No domnio dos dados digitais, os interesses e objetivos da Di-
plomtica se confundem com os objetivos da Arquivstica. Os exem-
plos abundam com uma srie de normas.
Normas gerais de organizao arquivstica: modelo OAIS
[Open Archival Information System], que abrange a questo da orga-
nizao arquivstica no seu conjunto.
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Bruno Delmas
Normas para reas especficas:
normas relativas ao armazenamento e aos suportes (Diplom-
tica material);
normas de representao dos dados, quer se trate de texto,
imagens, grficos, documentos multimdia, udio, vdeo, dados tc-
nicos, dados cientficos e todos os tipos de informao digital em
formatos abertos ou proprietrios. O PDF, por exemplo, pode ter um
equivalente nos elementos grficos dos documentos analgicos da
Diplomtica clssica;
metadados: a rea mais prxima da Diplomtica tradicional.
De fato, as caractersticas externas da Diplomtica dos documentos
analgicos se multiplicaram durante os sculos XIX e XX, com o mes-
mo objetivo de encontrar de maneira rpida e segura um documento
pesquisado (selo,objeto, data tpica e crnica, documentos anexados,
destinatrios etc.). Com o digital, novas caractersticas foram adiciona-
das a isso. So os metadados tcnicos que garantem a capacidade de
restaurar a informao de forma compreensvel. A generalizao digital
provocou a criao de muitos formatos de metadados genricos (Du-
blin Core, ISO 15836) ou especializados, que o diplomatista reconhece.
integridade e autenticidade: trata-se de normas que permi-
tem chegar a provar a integridade e a autenticidade dos documen-
tos. Sabemos que esse um dos pontos sensveis dos documentos di-
gitais. Eles tambm deram lugar a desenvolvimentos especfi cos que
o diplomatista conhece: a criptografi a, os algoritmos de clculo de im-
presses digitais, os protocolos de comunicao segura, os processos
de assinatura eletrnica (normas ISO endossadas pela Comisso Eu-
ropeia NESSIE [New European Schemes for Signatures, Integrity and
Encryption] e a [agncia regulatria] norte-americana NIST [National
Institute of Standards and Technology].
normas de encapsulamento, que permitem associar os obje-
tos digitais a uma estrutura global consistente e porttil. Estes podem
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Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes
ser compostos por um ou mais arquivos (isto , documentos) com os
metadados que os caracterizam, ligaes existentes entre os prprios
arquivos ou entre os componentes do objeto e os metadados. Todos
os dados e as normas de acompanhamento podem ser considerados
como uma extenso das unidades de arquivamento e dos arquivos em
papel tratados pela Diplomtica clssica.
normas de identificao: permitem o reconhecimento de um
objeto digital de maneira nica no mbito de um ou mais arquivos ou,
com mais frequncia, hoje, dentro de conjuntos muito maiores. Essa
necessidade foi resolvida, por exemplo, com o uso do ISBN [Interna-
cional Serial Bibliographical Number] para livros ou pelo ISSN [Inter-
national Standard Serial Number] para os peridicos. Os servios de
arquivos tambm trabalham nesse sentido.
validao e certificao de arquivos digitais: um novo aspec-
to, porm indispensvel, introduzido pela perenidade dos arquivos di-
gitais. Ele apresenta uma srie de novos problemas e, em particular, a
confiana posta nos repositrios terceirizados aos quais entregamos
nossos dados. Hoje, a via de certificao ISO 9001 uma norma bas-
tante difundida, que pode ser utilizada pelas organizaes de cust-
dia. Melhor ainda a norma AFNOR NF Z 42-013: Especifi caes rela-
tivas concepo e ao aproveitamento de sistemas informticos para
assegurar a conservao e a integridade dos documentos armazena-
dos nestes sistemas, maro de 2009. Outras normas mais completas
esto em elaborao.
normas para os sistemas de gesto da segurana da informa-
o (incluindo privacidade, proteo de informaes delicadas, planos
de continuidade de negcios).
normas relativas terceirizao de servios de guarda de ar-
quivos etc.
ver tambm o projeto Inter PARES 3 [International Research
on Permanent Authentic Records in Electronic Systems] que, expli-
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cita normas e padres potencialmente teis (omisses, ausncia de
classifi cao).
Na Frana, o Ministrio das Finanas que dirige a poltica de in-
formatizao da administrao e o desenvolvimento da e-administra-
o. Motivado pela experincia adquirida pelos Arquivos Nacionais da
Frana, associou-se a eles para a conservao e segurana de grandes
quantidades de dados.
Esto em andamento programas nacionais e internacionais so-
bre os principais desafios da informtica na dcada de 2010-2020:
o Big Data, que prev um volume de dados demasiado grande para
ser tratado com as ferramentas convencionais de gesto; e o Cloud
Computing (nuvem informtica), que permitiria a conservao on-line
de forma perene. Tais programas so, atualmente, objeto de reunies
constantes. Fala-se tambm de Family Cloud Computing ou famlia de
sistemas integrados.
A rea est em plena evoluo. Mas o que certo que os ar-
quivos digitais j constituem um desafio percebido pela sociedade
inteira como crucial para o futuro. Arquivistas e diplomatistas no se
desqualificam pelo