Dar Nome Aos Documentos

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Ana Maria de Almeida Camargo Bruno Delmas Danielle Ardaillon Heloísa Liberalli Bellotto Johanna W. Smit Mariano García Ruipérez Sérgio Roberto Costa Sonia Maria Troitiño Rodriguez DA TEORIA À PRÁTICA DAR NOME AOS DOCUMENTOS

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Tipologia Documental

Transcript of Dar Nome Aos Documentos

  • Ana Maria de Almeida Camargo

    Bruno Delmas

    Danielle Ardaillon

    Helosa Liberalli Bellotto

    Johanna W. Smit

    Mariano Garca Ruiprez

    Srgio Roberto Costa

    Sonia Maria Troitio Rodriguez

    DA TEORIA PRTICA

    DAR NOME AOSDOCUMENTOS

  • Ana Maria de Almeida Camargo

    Bruno Delmas

    Danielle Ardaillon

    Helosa Liberalli Bellotto

    Johanna W. Smit

    Mariano Garca Ruiprez

    Srgio Roberto Costa

    Sonia Maria Troitio Rodriguez

    DA TEORIA PRTICA

    DAR NOME AOSDOCUMENTOS

  • Coordenao editorial

    Instituto Fernando Henrique Cardoso

    Grifo Projetos Histricos e Editoriais

    Degravao dos debates

    Morgane Salamin

    Danielle Ardaillon

    Traduo do texto de Bruno Delmas

    Morgane Salamin

    Reviso do texto de Bruno Delmas

    Helosa Liberalli Bellotto

    Edio dos debates

    Ricardo Prado

    Reviso

    EKD Comunicao e Cultura

    Projeto grfi co e diagramao

    Lisia Lemes / Lilemes Comunicao

    Este livro pode ser reproduzido livremente em parte ou na sua totalidade, sem

    modifi caes, para fi ns no comerciais sob a condio de citar a fonte.

    Ficha tcnica

  • FICHA CATALOGRFICA

    Seminrio Dar nome aos documentos: da teoria prtica (2013 : So Paulo)

    Dar nome aos documentos: da teoria prtica / apresentao de Danielle Ardaillon. - So Paulo : Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2015.

    347 p.

    ISBN: 978-85-99588-37-6

    Trabalhos apresentados no seminrio realizado em So Paulo, de 24 a 25 de outubro de 2013, no Instituto Fernando Henrique Cardoso.

    1. Arquivologia. 2. Diplomtica. 3. Tipologia Documental. I. Ardaillon, Danielle. II. Instituto Fernando Henrique Cardoso. III. Ttulo.

    CDD: 025.171CDU: 930.25

  • 08 Apresentao Danielle Ardaillon

    14 Sobre espcies e tipos documentaisAna Maria de Almeida Camargo

    32 Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaesBruno Delmas

    57 Debate com o pblico

    67 La denominacin de tipos, series y unidades documentales: modelosMariano Garca Ruiprez

    158 Atribuir nomes a tipos, sries e unidades documentais: dialogando com Mariano Garcia RuiprezSonia Maria Troitio Rodriguez

    183 Debate com o pblico

    200 O discurso eletrnico-digitalSrgio Roberto Costa

    238 Gneros textuais emergentes do/no discurso eletrnicodigital: um balano crtico de Srgio Roberto CostaJohanna W. Smit

    253 Debate com o pblico

    272 Uma base terminolgica consensual: limites e possibilidadesHelosa Liberalli Bellotto

    286 Sntese dos principais temas e discussesAna Maria de Almeida Camargo

    296 Debate com o pblico

    322 Sobre os autores

    Sumrio

  • 7

  • ApresentaoDanielle Ardaillon

    Os textos que se seguem foram apresentados durante o

    seminrio Dar nome aos documentos: da teoria prtica,

    evidenciando o interesse da Fundao Instituto Fernando

    Henrique Cardoso (Fundao iFHC) em contribuir para o

    debate sobre as diretrizes tericas e metodolgicas da prtica arqui-

    vstica. O evento foi desenhado como uma das atividades do projeto

    Acervo Presidente Fernando Henrique Cardoso: Preservao, Catalo-

    gao, Digitalizao e Acesso, iniciado no fi nal de 2010 e concludo

    no incio de 2015, com captao autorizada pelo Ministrio da Cultura

    (Minc). Alm deste amplo conjunto documental, o acervo detm ain-

    da os arquivos de Ruth Cardoso, Joaquim Ignacio Baptista Cardoso,

    Leonidas Cardoso, Sergio Motta e Paulo Renato Souza, esses dois lti-

    mos doados Fundao iFHC recentemente.

    A iniciativa no desejava apenas aprimorar conceitos j utiliza-

    dos para a organizao de arquivos privados de pessoas que ocupa-

    ram cargos pblicos, mas aprofundar uma discusso sobre tipologia

    documental na era digital. No h profi ssional da rea, tanto em ar-

    quivos quanto em bibliotecas, museus e centros de memria, que no

    tenha dvidas e at mesmo alguma difi culdade na hora de nomear

  • 9

    Apresentao

    adequadamente os documentos. Os que correspondem a atos de ca-

    rter administrativo e jurdico tm linguagens, suportes, tcnicas de

    registro e formatos defi nidos pela Diplomtica e, portanto, so fami-

    liares aos arquivistas. No , porm, o caso daqueles que, gerados por

    inmeras outras atividades, no foram sistematizados em repertrios

    que pudessem auxiliar os arquivistas na tarefa de nomear, descrever

    e tornar acessveis os documentos. E, hoje, as quantidades crescen-

    tes de documentos eletrnicos e digitais no mais fi xados em papel,

    como o foram nas ltimas dcadas obrigam os profi ssionais a bus-

    car uma nominao precisa e a enfrentar frequentemente problemas

    conceituais e terminolgicos.

    Tomando por base a experincia de organizao do Acervo Pre-

    sidente Fernando Henrique Cardoso (doravante Acervo), que rene

    documentos dos mais diversos e surpreendentes, o Seminrio foi con-

    cebido como reunio de especialistas particularmente dedicados s

    palavras, porm de reas distintas e com prticas diferenciadas. Trata-

    va-se de debater a questo na perspectiva de estabelecer uma plata-

    forma de entendimento, capaz de responder enxurrada de web-tec-

    nologias, web-nomes e web-escritas. E de frear aquela criatividade

    vernacular, nem sempre positiva, dos profi ssionais desamparados. Foi

    o que aconteceu ao longo de dois dias de intenso trabalho.

    Este o primeiro e-book e o quarto livro dentre os ttulos

    produzidos pela equipe do Acervo sobre questes de Arquivologia.

    O sumrio reflete a sequncia das apresentaes e dos coment-

    rios da plateia. No houve interveno nos textos finais dos pales-

    trantes; apenas as notas de rodap e as referncias bibliogrficas

    foram objeto de uniformizao. O texto de Bruno Delmas foi tra-

    duzido do francs, mas o de Mariano Garca permaneceu na lngua

    original. Quanto aos debates, foram editados de modo a permitir

    melhor compreenso das opinies e dos argumentos emitidos,

    acrescentando-se palavras ou frases entre colchetes para melhor

    clareza.

  • 10

    Danielle Ardaillon

    Fernando Henrique Cardoso abriu o Seminrio com uma breve

    saudao aos participantes e aos especialistas convidados, tanto pa-

    lestrantes (Ana Maria de Almeida Camargo, professora de Histria da

    Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas da Universidade de

    So Paulo; Bruno Delmas, professor de Arquivstica Contempornea

    da cole Nationale des Chartes, em Paris; Mariano Garca Ruiprez,

    diretor do Arquivo Municipal de Toledo, na Espanha; e Srgio Rober-

    to Costa, professor de Lingustica da Universidade Vale do Rio Verde

    de Trs Coraes, em Minas Gerais), quanto debatedores (Sonia Maria

    Troitio Rodriguez, professora de Arquivologia da Faculdade de Filo-

    sofi a e Cincias da Universidade Estadual Paulista, campus de Marlia;

    Johanna W. Smit, professora de Biblioteconomia e Documentao da

    Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo; e He-

    losa Liberalli Bellotto, professora do Programa de Ps-Graduao em

    Histria Social da Faculdade de Filosofi a, Letras e Cincias Humanas

    da Universidade de So Paulo).

    Em Sobre espcies e tipos documentais, Ana Maria Camargo traa

    um panorama da diversidade de linguagens encontradas no Acervo e

    dos problemas enfrentados pela equipe de arquivistas para identifi car

    os documentos, notadamente os objetos ofertados ao presidente da

    Repblica.

    Quase duas dcadas depois de publicar o Manifesto por uma

    Diplomtica contempornea, Bruno Delmas, em Por uma Diplomti-

    ca contempornea: novas aproximaes, revisita o confronto entre as

    categorias tradicionais da Diplomtica e os documentos produzidos

    em meio eletrnico e digital. O documento digital desenvolve-se con-

    correntemente com os documentos em suporte-papel e essas duas

    formas interagem entre si, o que o leva a postular a necessidade de

    desdobrar a Diplomtica em duas (para os documentos digitais e para

    os documentos analgicos) e a repensar a disciplina no contexto dos

    usos do mundo contemporneo, confi rmando nossa preocupao

    como arquivistas e pesquisadores.

  • 11

    Apresentao

    Em La denominacin de tipos, series y unidades documentales: mo-

    delos, Mariano Garca oferece uma detalhada descrio histrica da

    prtica arquivstica de sua regio. Retoma o incio do uso do termo

    tipo documental na Espanha, nos anos 1960, e relata, no sem uma

    certa ironia, a complexidade da defi nio de tal termo no reino espa-

    nhol. A partir de 2000, com a publicao da Norma Geral Internacional

    de Descrio Arquivstica a ISAD(G), apareceram a Norma Espaola

    de Descripcin Archivstica (NEDA) e, sucessivamente, as adaptaes

    regionais: Norma de Descripcin Archivstica de Catalua (NODAC) e

    Norma Galega de Descripcin Archivstica (NOGADA). Para quem busca

    uma plataforma de entendimento para defi nies bsicas, a experincia

    espanhola bastante sugestiva...

    Ao comentar as consideraes de Mariano Garca Ruiprez, So-

    nia Troitio pondera que as normas so necessrias, na medida em

    que estimulam o rigor metodolgico. Afi rma, no entanto, que elas

    podem ocasionar certa morosidade na descrio dos documentos, e

    no dispensam a experincia adquirida ao longo dos anos na busca e

    escolha do conceito correto.

    Ao elencar os Gneros textuais emergentes do/no discurso ele-

    trnico-digital: um balano crtico, Srgio Costa mergulha a audincia

    no mundo novo da cibercultura, de um novo cdigo discursivo e de

    uma linguagem essencialmente multissemitica/multimodal. Inte-

    ressante, sim, mas foi um susto! Isso porque, pelo que sei, o foco do

    mundo dos arquivos no o da informao nem o da comunicao,

    mas o da comprovao do contexto de origem do documento. A pol-

    mica terica estava posta na mesa.

    O comentrio de Johanna Smit props uma tentativa de sis-

    tematizao deste universo to multifacetado, numa tica arqui-

    vstica. Com muita clareza e passo a passo, mostrou sua convico

    de que documento arquivstico documento arquivstico, indepen-

    dentemente de suporte ou tecnologia. Muito sabiamente, quanto

    predominncia do webwriting em ingls, prope correr o risco de

  • 12

    Danielle Ardaillon

    usar duas lnguas. E conclui, citando termos de Srgio Costa: a carna-

    valizao discursiva na literatura, na poesia e na web tima, criativa,

    dinmica, mas, nos arquivos, um problema.

    Consciente do problema como consequncia de uma larga

    prtica arquivstica, Helosa Bellotto retoma as propostas de cada pa-

    lestrante, deixando claro que Uma base terminolgica consensual ter

    sem dvida limites: suas possibilidades residem na construo de con-

    senso a partir de um trabalho prtico, fruto de discusses ao redor de

    documentos novos, recentes ou estranhos.

    Como antroploga, sinto-me curiosa frente ao mundo arqui-

    vstico. Mas como pesquisadora afeita anlise do discurso, a nuvem

    de palavras, conceitos, denominaes possveis e nomes proibidos le-

    vantada pelo Seminrio me encantou, assim como o af em fi car horas

    no encalo da palavra certa e do rigor para nomear os documentos.

    Espero que sintam o mesmo!

    Danielle Ardaillon, curadora do Acervo

    e organizadora da edio

  • 13

  • Sobre espcies etipos documentais 1

    Ana Maria de Almeida Camargo

    PA

    LEST

    RA

    A nomeao adequada dos documentos, para fi ns de organi-

    zao e descrio dos arquivos, tem sido bastante negligen-

    ciada. Na medida em que a prpria disciplina arquivstica se

    fundamenta nas prticas administrativas dos organismos

    pblicos, em que predominam as aes sequenciais e seu correlato

    documental - os processos -, observa-se entre ns um curioso fenme-

    no: muitos profi ssionais se eximem de identifi c-los, na suposio de

    que, sendo todos da mesma espcie, basta reconhec-los pela funo

    que cumprem ou pelo assunto de que tratam. o que se observa na

    maioria das tabelas de temporalidade vigentes1 e tambm, por razes

    diversas, nos instrumentos de pesquisa que, seguindo risca normas

    feitas imagem e semelhana do que se pratica com livros, registram

    o ttulo do documento.

    As refl exes com que introduzimos o tema deste seminrio to-

    maram por base a experincia da Fundao Instituto Fernando Henrique

    1 Tais tabelas ostentam ainda o agravante de colocar no mesmo patamar, sem di-ferenci-los, tipos documentais, assuntos e elementos estruturais e/ou funcionais do rgo produtor.

  • 15

    Sobre espcies e tipos documentais

    Cardoso, cujo acervo sufi cientemente complexo para ilustr-lo. Aqui

    se encontram no apenas documentos originrios do Gabinete Pessoal do

    presidente Fernando Henrique Cardoso2, acumulados durante seus

    dois mandatos, mas aqueles que refl etem as atividades que desenvol-

    veu antes e depois desse perodo. Temos tambm o arquivo de Ruth

    Cardoso, que abarca, em meio a documentos relacionados com sua

    vida profi ssional e familiar, material originrio do programa Comuni-

    dade Solidria, que dirigiu, na condio de primeira-dama, entre 1995

    e 2002. No processo de descrio desses documentos, com a perspec-

    tiva de alimentar a base de dados que d acesso cpia digital de cada

    um, a identifi cao de espcies e tipos revestiu-se sempre de grande

    importncia, apesar das difi culdades enfrentadas.

    Os exemplos que selecionamos envolvem os conceitos de su-

    porte, tcnica de registro, formato e gnero, responsveis por boa

    parte dos equvocos observados na nomeao dos documentos. En-

    volvem tambm aqueles que, longe de exprimir relaes jurdicas ins-

    titucionalmente necessrias e consagradas3, como ocorre no mbito

    do servio pblico, constituem veculo de relaes informais, sem re-

    gras ou frmulas rgidas.

    O sentido de determinados objetos, no arquivo, depende ex-

    clusivamente dos elementos textuais que lhes so associados e que,

    de algum modo, remetem para seu contexto de origem. Vale lembrar

    2 A legislao brasileira em vigor reconhece o interesse pblico do material reunido nos gabinetes pessoais da Presidncia da Repblica; coloca-os, no entanto, na condio de documentos privados. O organismo responsvel pela assistncia direta e imediata do presidente no desempenho de suas funes: alm de coordenar as atividades roti-neiras da agenda presidencial, planeja visitas e viagens no Brasil e no exterior; fornece subsdios para reunies, audincias, despachos e outros compromissos ofi ciais; cuida do cerimonial; e controla mensagens e objetos que lhe so destinados. 3 Luciana Duranti (1996, p. 49) diferencia os atos que so contemplados pelo conjun-to de regras, escritas ou no, em que se baseia o sistema legal de uma sociedade (e aos quais chama de juridicamente relevantes) daqueles que, embora adotados pelo grupo social, no produzem consequncias no mbito do sistema vigente (e so, por isso mes-mo, considerados juridicamente irrelevantes).

  • 16

    Ana Maria de Almeida Camargo

    que os documentos de arquivo so, por exce-

    lncia, do gnero textual4, ou seja, utilizam lin-

    guagem escrita para viabilizar certas aes e, a

    posteriori, para provar que essas mesmas aes

    se realizaram. O recurso a frmulas e conven-

    es refora tal funcionalidade, reduzindo

    a margem de ambiguidade que, afi nal, todo

    texto escrito comporta. Quando os documen-

    tos se apresentam desprovidos de linguagem,

    como o caso de certos objetos que, dentro

    dos arquivos, so equivocadamente chamados

    de tridimensionais5, difcil nome-los e com-

    preender seu sentido.

    O objeto aqui reproduzido, confeccio-

    nado em bambu, foi oferecido ao presidente

    Fernando Henrique Cardoso em Braslia, 1998,

    por Herbert Meneses Coronado, embaixador da

    Guatemala no Brasil. De acordo com sua estrita

    funcionalidade - critrio, alis, que deve sempre

    predominar na abordagem arquivstica -, podera-

    4 Ainda que no desfrute de consenso na literatura arquivstica nacional, em que aparece por vezes indevidamente associado a suporte e formato, como ocorre no Di-cionrio brasileiro de terminologia arquivstica (2005), o conceito de gnero refere-se ao sistema de signos utilizado no documento. , portanto, mais restrito do que aquele adotado na rea da Lingustica Aplicada. No Dicionrio de gneros textuais (2012), de Srgio Roberto Costa, por exemplo, o termo empregado para designar espcies e tipos documentais escritos e orais.

    5 A tridimensionalidade atributo tambm dos mais tnues suportes, como o papel e a pelcula de acetato (fi lme). Seria prefervel design-los como o fazem os bibliotec-rios, que aplicam a palavra latina realia tanto aos objetos coletados na natureza quanto aos fabricados pelo homem, artesanal ou industrialmente. O Dicionrio de Biblioteco-nomia e Arquivologia, de Murilo Bastos da Cunha e Cordlia Robalinho de Oliveira Ca-valcanti (2008), registra o termo j grafado em portugus (relia), com o sentido de objetos e coisas que existem de fato, isto , que no so rplicas ou representaes. Ver, a respeito, CAMARGO (2011).

    Ampliar

    Pau-de-chuva instrumento de percusso que imita

    o som da chuva. Feito de bambu ou de embaba, comum a vrias culturas.

    Alguns estudiosos atribuem sua origem, na Amrica

    do Sul, aos primitivos habitantes das fl orestas e

    montanhas do Chile.

  • 17

    Sobre espcies e tipos documentais

    mos cham-lo simplesmente de presente; foi nessa condio, afi nal, e

    a ttulo de homenagem, que a pea ingressou no acervo. O termo, no

    entanto, por demais genrico, e serviria para designar uma varieda-

    de muito grande de objetos que resultam de aes corriqueiras entre

    titulares de altos cargos pblicos. Foi preciso, portanto, encontrar a

    nomenclatura exata do objeto - pau-de-chuva - para, em seguida, co-

    loc-lo no contexto que justifi ca sua presena no arquivo - a homena-

    gem prestada ao presidente.

    Se a abordagem contextual coloca no mesmo patamar, para os

    arquivistas, documentos de natureza diversa (inclusive aqueles que,

    por tradio e em razo de seu formato, so sempre encaminhados

    para bibliotecas e museus), no os isenta da difcil tarefa de identi-

    fi c-los. Trata-se aqui, na verdade, de desafi o

    similar ao que enfrentam os curadores de mu-

    seus: identifi car cada objeto e os nomes pelos

    quais foram e so conhecidos. Tal tarefa supe,

    como bem assinalou Bergeron (1996), um mni-

    mo de padronizao, sobretudo quando se tem

    a perspectiva de compartilhamento de bases

    de dados6.

    Outro exemplo interessante o da pedra

    que se encontra no arquivo de Fernando Henri-

    que Cardoso. A iniciativa de guard-la deve-se

    ao chefe de gabinete, que a ela anexou mensa-

    gem explicativa.

    Revestido de sentido simblico, o objeto

    pode ser descrito de modo genrico, sem levar

    em conta suas qualidades de mineral ou rocha,

    6 Um bom exemplo de iniciativa nesse sentido o da Canadian Heritage Information Network, responsvel, hoje, pela Nomenclature 3.0 for Museum Cataloging. Third Edi-tion of Robert G. Chenhalls System for Classifying Man-Made Objects, cuja ltima ver-so de 2013. No Brasil, o importante Thesaurus para acervos museolgicos, de Helena Dodd Ferrez e Maria Helena S. Bianchini (1987), ainda est espera de atualizao.

    Ampliar

    Pedra que manifestantes da CUT (Central nica dos Trabalhadores) atiraram na comitiva presidencial que visitava Campina Grande, na Paraba, em 19 de maio de 1995.

  • 18

    Ana Maria de Almeida Camargo

    Ampliar

    Mensagem de Xico Graziano (Francisco Graziano Neto),

    ento chefe do Gabinete Pessoal do presidente

    Fernando Henrique Cardoso, ao Servio de

    Documentao Histrica da Presidncia da Repblica,

    em 22 de maio de 1995.

    Ampliar

    Recibo de pagamento do Cedac (Centro de Educao e Documentao para Ao

    Comunitria) e Cecone (Centro Comunitrio

    Negro) Embrafi lme, pela exibio de Ladres de

    cinema eNa boca do mundo. Documento do fundo

    Ruth Cardoso.

    mais apropriadas para um museu de cincias da

    natureza. A pedra no passa de suporte mne-

    mnico para algo que lhe exterior. Seus atri-

    butos intrnsecos - forma geomtrica, peso,

    cor, textura, dureza7 - no lhe conferem, no

    arquivo em que foi preservada, nenhum valor

    referencial. Para que isso acontecesse, ou seja,

    para que a pedra assumisse o estatuto de do-

    cumento (ainda que simblico), foi necessrio

    preservar seu vnculo com o referido bilhete,

    esclarecedor da situao em que ambos - obje-

    to e texto - ganharam sentido8.

    H documentos que so facilmente iden-

    tifi cados, na medida em que explicitam sua es-

    pcie e ostentam uma estrutura que pouco se

    altera com o passar do tempo. Os recibos, como

    o que foi passado pela Embrafi lme a entidades

    que, sob a coordenao de Ruth Cardoso, atua-

    ram junto a grupos da periferia de So Paulo, na

    dcada de 1980, so um bom exemplo. De acor-

    do com padro usado tanto na administrao

    pblica quanto na esfera privada, o recibo est

    disponvel, como avulso ou bloco talonado, em

    qualquer papelaria.

    Os documentos textuais deixam entre-

    ver, quase sempre, suas caractersticas funcio-

    nais. Obedientes a padres, apresentam re-

    7 Nenhum atributo de sentido imanente, como afi rma Ulpiano Bezerra de Meneses (1998). O objeto, nesse caso, tem carter meramente fi gurativo.

    8 Os objetos como elementos intermedirios de relaes sociais diversas so discutidos por Grard Lenclud (2007).

  • 19

    Sobre espcies e tipos documentais

    gularidades formais que correspondem, como

    afi rmou Bearman (2011), a regularidades de

    contedo. No exemplo ao lado, reconhecemos

    de imediato o cardpio, entendido como rela-

    o das iguarias disponveis para consumo em

    restaurantes, banquetes, jantares de gala etc.

    Vislumbramos tambm, sem problemas, o con-

    texto em que foi produzido. A nica dvida que

    o documento pode suscitar quanto maneira

    de design-lo: ementa (como preferem os por-

    tugueses), menu ( moda francesa) ou cardpio?

    Apesar das remissivas registradas no glos-

    srio de documentos que elaboramos ao longo do

    trabalho de organizao do acervo da Fundao,

    optamos quase sempre pelas palavras e expres-

    ses em portugus: prospecto, em lugar de folder;

    lista, em lugar de checklist; noticirio, em lugar de

    clipping; currculo, em lugar de curriculum vitae; car-

    taz de divulgao, em lugar de pster; programa

    de entrevistas, em lugar de talk show; artigo ou

    comunicao, em lugar de paper; visto de trabalho,

    em lugar de work permit. Os vocbulos estrangei-

    ros s so consignados como termos preferen-

    ciais, no glossrio, quando ainda no dispem de

    equivalente satisfatrio em lngua portuguesa.

    o caso, na rea de comunicao, de briefi ng (conjunto de informaes

    passadas aos jornalistas a respeito de um fato ou acontecimento), jingle

    (mensagem publicitria musicada, com estribilho simples e de curta du-

    rao), making of (registro do processo de criao e desenvolvimento de

    determinado trabalho de comunicao, incluindo cenas de bastidores, reu-

    nies e todo tipo de material bruto) e release (conjunto de informaes

    previamente preparadas por equipes de divulgao de rgos pblicos ou

    empresas, para distribuio imprensa escrita, falada e televisada).

    Ampliar

    Ampliar

    Cardpio de banquete oferecido ao presidente Fernando Henrique Cardoso e a Ruth Cardoso no Palcio da Ajuda, em Portugal (1995).

  • 20

    Ana Maria de Almeida Camargo

    Button, pin e broche como se costuma denominar os objetos

    que aparecem acima. O que dispe de nome com grafi a em portu-

    gus distingue-se dos dois primeiros por ter, no verso, uma presilha

    similar que se encontra em joia ou bijuteria. Todos eles, no entanto,

    cumprem a mesma funo e tm as mesmas caractersticas formais:

    so instrumentos de propaganda poltica e podem ser aplicados a di-

    ferentes peas do vesturio.

    A palavra que escolhemos para designar tal modalidade de material

    de campanha - distintivo - no leva em conta as inmeras variaes que

    seus fabricantes introduziram no mercado e substitui, em nosso glossrio,

    alfi nete, alfi nete de lapela, braadeira, broche, button, escudo e pin.

    AmpliarAmpliarAmpliar

    Material de campanha utilizado nas eleies municipais de So Paulo, em 1985.

    Ampliar AmpliarAmpliar

    Caderno de enquete utilizado para o registro de opinies de Fernando Henrique Cardoso, Clio Benevides de Carvalho, Luiz Carlos da Costa e Luiz Ventura, quando alunos do Colgio So Paulo (1945-1948).

  • 21

    Sobre espcies e tipos documentais

    A persistncia de certos hbitos permite reconhecer documen-

    tos que, primeira vista, no revelam seu sentido. Nas imagens acima,

    o que poderia ser uma agenda, no fossem as datas riscadas, serve de

    suporte a inmeras perguntas, cada qual submetida a pessoas dife-

    rentes. Trata-se de antiga prtica entre colegas de escola, que elabo-

    ram e fazem circular caderno em que deixam registradas suas ideias e

    preferncias a respeito de mltiplos assuntos.

    Os nomes variam: caderno de enquete, caderno de perguntas,

    caderno de opinies, questionrio. A enquete, entre colegas do arqui-

    vo de Fernando Henrique Cardoso distingue-se dos seus congneres

    pela seriedade dos temas tratados. Mas a prtica de dar voz aos colegas

    e amigos, sobretudo para abordar temas tpicos da adolescncia, so-

    brevive tanto em suporte-papel quanto em meio eletrnico. Hoje em

    dia h aplicativos especialmente desenvolvidos para promover enquete

    entre os jovens. Resta saber se, cumprindo a mesma funo que o ca-

    derno, sua verso online continuar a receber o mesmo nome9.

    semelhana do caderno, a confi gurao fsica de determina-

    dos suportes - ou o formato, como conceituam os arquivistas - incor-

    pora-se ao nome de alguns tipos documentais. Livro-caixa, fi cha de

    consulta, carteira de motorista, cdula de identidade e folha corrida

    so exemplos desse fenmeno.

    9 Um dos casos mais interessantes de sobrevivncia do nome original o do telegra-ma, termo associado ao meio de transmisso. Ao invs de ser rebatizado, por ter perdi-do as caractersticas que lhe foram impostas pelo uso do telgrafo, manteve o nome, ajustando-o a outros meios: a telefonia (telegrama fonado) e as redes de computadores (telegrama via internet).

  • 22

    Ana Maria de Almeida Camargo

    A obra acima, cujo ttulo A Amrica que ns fi zemos, foi con-

    feccionada em couro, madeira, metal e tecido. Parece livro, mas na

    verdade o objeto artstico idealizado por Beatriz Balen Susin para

    representar o tema da Festa da Uva no ano de 1996. Tambm co-

    nhecido como livro de artista, o livro-objeto costuma ser produzido

    em pequena escala, quando no exemplar nico. Sua ambiguidade

    consiste em estender o campo literrio, tradicionalmente simbolizado

    pelo livro, em direo ao das artes plsticas.

    Nesta imagem h outro tipo

    de ambiguidade. So dois docu-

    mentos num s: tabela de jogos

    (relao das partidas de um cam-

    peonato esportivo, com suas res-

    pectivas datas) e panfl eto (texto

    de propaganda eleitoral impresso

    em folha avulsa, com informaes

    Ampliar Ampliar

    AmpliarAmpliar

    O livro-objeto, que se apresenta como experimento formal, de carter artstico, foi ofereci-do ao presidente Fernando Henrique Cardoso na inaugurao da 21a Festa Nacional da Uva, em Caxias do Sul (RS), em 23 de fevereiro de 1996.

    Ampliar

    Tabela de jogos como suporte depropaganda poltica.

  • 23

    Sobre espcies e tipos documentais

    sucintas sobre determinado candidato). Os eventos que lhes servem

    de contexto tambm so dois, ambos ocorridos em 1986: a Copa do

    Mundo, no Mxico, e a candidatura de Fernando Henrique Cardoso

    ao Senado, no Brasil. No processo descritivo adotado, nossa escolha

    recaiu, de modo pragmtico, sobre a segunda opo tanto dos docu-

    mentos quanto dos contextos que os justifi cam.

    A sobreposio de tipos documentais bastante comum en-

    tre ns, sobretudo em situaes de campanha poltica, quando uma

    gama variadssima de adereos, peas de vesturio e utenslios serve

    para angariar votos. Mas ocorre tambm, com igual intensidade, nos

    processos de propaganda cujo propsito enaltecer produtos, servi-

    os, marcas e conceitos, com fi ns ideolgicos ou comerciais.

    Igualmente ambguos so

    os documentos que, apesar de sua

    estrutura convencional, so re-

    gistrados em suporte distinto do

    papel. No teria cabimento consi-

    der-los realia apenas em razo do

    material em que foram gravadas

    as informaes que lhes do senti-

    do. A Comenda Coronel Esperidio

    Rodrigues, com que foi agraciado

    o presidente, certifi cada por espcie em metal, aplicada em base de

    acrlico. Trata-se de documento do gnero textual, como tantos ou-

    tros, e de diploma, que ttulo pelo qual se confere cargo, dignidade,

    habilitao ou profi cincia a uma pessoa. A solenidade do suporte no

    pode obscurecer a natureza do documento, cuja linguagem e frmula

    no deixam margem a dvidas.

    pequena imagem que representa a fi gura de um santo qual-

    quer d-se o nome de santinho. Sua presena, nos arquivos, suge-

    re, em primeiro lugar, prtica religiosa e devocional. Mas h outras

    funes explicitamente associadas imagem do santo, nos rituais

    Ampliar

    Diploma de honraria concedida ao presidente Fernando Henrique Cardoso pela Prefeitura Municipal de Arapiraca (AL), em 1998.

  • 24

    Ana Maria de Almeida Camargo

    catlicos: a celebrao da primeira comunho

    (como no exemplo ao lado, retirado do fundo

    Ruth Cardoso), do batismo, da missa fnebre,

    das bodas de casamento... De acordo com tais

    funes a imagem do santo pode ceder lugar

    a smbolos religiosos (cruz, clice, peixe, folha

    de palmeira etc.), a pensamentos e oraes, a

    dados biogrfi cos e retratos das pessoas ho-

    menageadas. As derivaes possveis no afe-

    tam a espcie documental, que continua a ser

    identifi cada como santinho.

    A mesma palavra, desta feita por analo-

    gia, extravasa o territrio das celebraes de

    carter espiritual e recai sobre a vida poltica.

    Utilizado por Fernando Henrique Cardoso

    na campanha pela Prefeitura de So Paulo, em

    1985, o santinho passa a ter uma segunda defi -

    nio em nosso glossrio. Trata-se agora de pe-

    queno prospecto de propaganda eleitoral, com

    retrato e nmero de candidato a cargo pblico.

    Se a polissemia de certas palavras pode

    nos confundir, no processo de dar nome aos

    documentos, preciso estabelecer com bas-

    tante rigor as diferenas de uso dos termos

    iguais. Vejamos outro exemplo emblemtico.

    A palavra apresentao remete, em pri-

    meiro lugar, ao de apresentar, ou seja, ao

    ato de dar a conhecer, mostrar, expor ou exi-

    bir algo a uma ou mais pessoas. Mas a palavra

    pode assumir tambm o sentido de algo que

    se materializa sob a forma de documento. o

    que ocorre com a carta de apresentao, men-

    Ampliar

    Santinho de propaganda poltica.

    Ampliar

    Ampliar

    Santinho de primeira comunho.

  • 25

    Sobre espcies e tipos documentais

    sagem escrita pela qual se recomenda algum para a ocupao de um

    cargo, ou ainda com a carta de pedido de apresentao, com signifi ca-

    do similar. O acervo da Fundao possui tambm o que convenciona-

    mos chamar de apresentao de obra. Trata-se de texto destinado a

    integrar obra de carter cientfi co, tcnico, literrio ou artstico, com

    comentrios que justifi cam sua publicao e lhe confere importn-

    cia. A expresso substitui, nesse caso, termos equivalentes, como

    antembulo, antelquio, introduo, orelha de livro, posfcio, prem-

    bulo, prefcio. H ainda uma terceira espcie documental a que se

    d o nome de apresentao: o conjunto de quadros sinpticos cria-

    dos em PowerPoint ou software equivalente. Essa espcie est hoje

    to difundida que muitas instituies lhe do preferncia para fi ns de

    publicao em anais, em lugar do texto expandido ou completo da

    comunicao submetida ao evento.

    Nem todos os manuscritos encontrados num arquivo pessoal

    constituem estgios anteriores de um texto cuja verso fi nal foi publi-

    cada ou se destinava a publicao. Quando podemos ligar o rascunho ao

    discurso, ao artigo, ao ensaio, carta, ao relatrio ou tese, trabalhamos

    com o conceito arquivstico de forma, ou seja, identifi camos as etapas de

    preparao e transmisso do documento. s vezes impossvel estabe-

    lecer nexos de sentido entre tais manuscritos e as

    diferentes atividades a que se dedicou o titular do

    arquivo, especialmente quando se trata de anota-

    es informais, marcadas pela espontaneidade.

    Tais documentos foram chamados de

    apontamentos, e defi nidos como registro infor-

    mal do que foi lido, ouvido, observado ou pen-

    sado, para eventual uso posterior. Ainda que as

    anotaes se apresentem de modo esquemtico,

    com frases curtas e palavras-chave, como no do-

    cumento acima, possvel lig-lo aos estudos e s

    pesquisas de Ruth Cardoso sobre marginalidade.

    Ampliar

    Apontamentos de pesquisa feitos por Ruth

    Cardoso, sem data.

  • 26

    Ana Maria de Almeida Camargo

    Poderamos ainda estender

    nossa amostra, de modo a abarcar

    problemas relacionados com do-

    cumentos audiovisuais, sonoros e

    iconogrfi cos. No livro Tempo e cir-

    cunstncia (2007), em que os pro-

    cedimentos metodolgicos ado-

    tados na organizao do acervo

    foram amplamente discutidos, os

    gneros no textuais mereceram

    ateno especial. Uma certa hie-

    rarquia foi estabelecida entre eles, fi cando os audiovisuais em lugar

    privilegiado quanto a seu potencial discursivo e prpria dimenso

    temporal que, mal ou bem, est presente na imagem sonorizada em

    movimento, favorecendo uma relao analgica do documento com

    seu referente. No outro extremo, e sem dispor de repertrio tipolgi-

    co mnimo10, os documentos iconogrfi cos so os que no podem, de

    modo algum, prescindir de elementos contextuais.

    O documento com que encerramos esse painel introdutrio re-

    ne, na mesma moldura, itens distintos, mesclando imagens e textos

    que compem, no mbito da trajetria de Fernando Henrique Cardo-

    so, um sentido peculiar.

    Os retratos de Thomas Jeff erson e James Madison, com os res-

    pectivos dados biogrfi cos, fi cam nas laterais do texto assinado por

    ambos, cuja centralidade, na composio, no deixa dvidas quanto

    10 Ao contrrio da documentao audiovisual e da sonora, que admitem similaridade maior com os textos, os produtos da fotografi a constituem um repertrio restrito de espcies, obrigando ao uso de mecanismos especfi cos de identifi cao. Na p. 103 de Tempo e circunstncia, reconhecemos a difi culdade de identifi car o tipo documental ico-nogrfi co por analogia com o textual, apontando como exemplo o discurso de agrade-cimento: quer tenha sido transcrito, fi lmado ou gravado, isto , quer se apresente como gnero textual, audiovisual ou sonoro, o tipo documental pode ser identifi cado como discurso de agradecimento. Se o ato de discursar foi fotografado, no entanto, jamais poderamos chamar as imagens produzidas de discurso de agradecimento.

    Ampliar

    Um presente de Amazonino Mendes, governador do Amazonas, ao presidente

    Fernando Henrique Cardoso, em 1996.

  • 27

    Sobre espcies e tipos documentais

    importncia a ele atribuda. A condio formal do texto revela ainda

    que se trata de formulrio impresso, com campos preenchidos mo,

    selado e fi rmado pelo presidente dos Estados Unidos da Amrica e

    seu secretrio de Estado.

    A traduo do documento, abaixo transcrita, permite defi ni-lo

    como termo de doao de terra ao tenente James Barnett, datado da

    cidade de Washington, em 17 de fevereiro de 1809. Trata-se de do-

    cumento emanado do poder pblico, com os correspondentes sinais

    de validao, destinado a comprovar, junto ao benefi cirio, o direito

    terra que lhe foi concedida por mritos militares.

    THOMAS JEFFERSON, Presidente dos Estados Unidos da

    Amrica

    A QUEM INTERESSAR, DECLARA:

    Assim, que de acordo com a lei do Congresso datada do pri-

    meiro dia de janeiro de 1796, intitulada Uma lei para regula-

    mentar as doaes de terras destinadas a usos militares e

    sociedade dos Irmos Unidos para a evangelizao dos no-

    cristos ou judeus; e com vrias leis suplementares, datadas

    do segundo dia de maro de 1799, do dcimo primeiro dia de

    fevereiro e do primeiro dia de maro de 1800, e do terceiro

    dia de maro de 1803, foram doadas a James Barnett, tenen-

    te do ltimo exrcito dos Estados Unidos, em considerao aos

    seus servios militares, duas reas de terra de 40,47 hectares

    (100 acres) cada uma, sendo Lotes nmero Sete e Oito, no Ter-

    ceiro setor da Nona circunscrio, na Oitava parte da rea des-

    tinada a uso militar, medidas e localizadas em cumprimento

    dos atos citados acima. Para ter e guardar a rea de terra

    descrita em suas partes, pelo dito James Barnett e seus her-

    deiros e designados, para sempre, sujeita s condies, res-

    tries e determinaes contidas nas leis supracitadas.

  • 28

    Ana Maria de Almeida Camargo

    Dando f, o dito Thomas Jeff erson, Presidente dos Estados

    Unidos, determinou que fosse aposto o selo dos Estados Uni-

    dos e assinado de prprio punho na cidade de Washington,

    no dcimo stimo dia de fevereiro do ano de nosso Senhor

    1809 e trigsimo terceiro da Independncia dos Estados Uni-

    dos da Amrica.

    PELO PRESIDENTE, Thomas Jeff erson

    James Madison, Secretrio de Estado

    Mesmo que no se conheam os tipos documentais norte-ame-

    ricanos do incio do sculo XIX, podemos com facilidade identifi car sua

    funcionalidade original (a concesso de terras, como prerrogativa do

    poder pblico) e a rea de jurisdio em que foi acumulado (a esfe-

    ra privada, como prova de direito nominal). Podemos inferir tambm

    que, em algum momento de sua vida de quase duzentos anos, o do-

    cumento saiu das mos de James Barnett ou das de seus herdeiros,

    onde cumpria a funo de legitimar um bem patrimonial, para ganhar

    o estatuto de objeto histrico e merecer os frisos dourados que o cer-

    cam na moldura. A metamorfose ntida, e o documento, que no

    deixou de ser o que foi desde o incio (um termo de doao de terra),

    passou a valer pelas assinaturas de dois personagens de indiscutvel

    relevncia na histria da Amrica do Norte. Transformou-se, portan-

    to, num artefato novo, de valor simblico, que tornou indissolveis os

    elementos emoldurados (termo de doao, retratos, legendas, passe

    -partout). Foi nessa condio que entrou, em 1996, no arquivo de Fer-

    nando Henrique Cardoso, graas iniciativa de Amazonino Mendes.

    Como nome-lo, ento, de modo a conciliar os atributos espe-

    cfi cos adquiridos ao longo do tempo, de um lado, e o contexto de

    seu ingresso no acervo, de outro? Chegamos ao termo autgrafo, en-

    tendido como manuscrito original de autor ou personagem clebre.

    A defi nio passou a fi gurar no glossrio com as ressalvas: aplica-se a

  • 29

    Sobre espcies e tipos documentais

    documento de qualquer espcie cuja presena no arquivo se justifi ca

    em razo da importncia de quem o assina ou subscreve; e pode de-

    signar tambm a assinatura isolada, precedida ou no de dedicatria.

    Temos plena conscincia de que h muito ainda que caminhar,

    antes de atingir a plataforma de entendimento a que este seminrio

    almeja. Que os exemplos aqui apresentados sirvam de ponto de parti-

    da e estmulo para nossas discusses.

    REFERNCIAS

    BEARMAN, David. Structural formalisms in documentation: refl ecting function and supporting meaning. In: COOK, Terry (Ed.). Controlling the past: documenting society and institutions: essays in honor of Helen Willa Samuels. Chicago: Society of American Archivists, 2011. p. 241-255.

    BERGERON, Yves. Les systmes de classifi cation et linformatisation des collections: enjeux et droutes. Revue dHistoire de la Culture Matrielle, Ottawa, n. 43, p. 19-33, 1996.

    CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Objetos em arquivos: algumas refl exes sobre gnero documental. In: SEMINRIO Servios de Informao em Museus, 1o, So Paulo, 25 e 26 de novembro de 2010. Anais. So Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. p. 157-165.

    CAMARGO, Ana Maria de Almeida, GOULART, Silvana. Tempo e circunstncia: a abordagem contextual dos arquivos pessoais: procedimentos metodolgicos adotados na organizao dos documentos de Fernando Henrique Cardoso. So Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2007.

    COSTA, Srgio Roberto. Dicionrio de gneros textuais. 3. ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Autntica, 2012.

    CUNHA, Murilo Bastos da, CAVALCANTI, Cordlia Robalinho de Oliveira. Dicionrio de Biblioteconomia e Arquivologia. Braslia: Briquet de Lemos, 2008.

    Dicionrio brasileiro de terminologia arquivstica. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

    DURANTI, Luciana. Diplomtica: usos nuevos para una antigua ciencia. Trad. Manuel Vzquez. Carmona: S & C Ediciones, 1996. (Biblioteca Archivstica, 5).

  • 30

    Ana Maria de Almeida Camargo

    FERREZ, Helena Dodd, BIANCHINI, Maria Helena S. Thesaurus para acervos museolgicos. Rio de Janeiro: Ministrio da Cultura, Secretaria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, 1987. 2 v. (Srie Tcnica, 1).

    LENCLUD, Grard. tre un artefact. In: DEBARY, Octave, TURGEON, Laurier (d.). Objets et mmoires. Paris: Maison des Sciences de lHomme; Qubec: Presses de lUniversit Laval, 2007. p. 59-90.

    MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Memria e cultura material: documentos pessoais no espao pblico. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 89-103, 1998.

  • Por uma Diplomtica contempornea:

    novas aproximaes

    2

    Bruno Delmas

    PA

    LEST

    RA

    Por que ter escolhido este tema para a apresentao? Porque

    a questo do nome e da defi nio dos documentos est no

    cerne da Diplomtica. Tenho tambm trs razes de ordem

    pessoal:

    h 40 anos, comecei a ensinar Diplomtica contempornea;

    h quase 20 anos, publiquei um manifesto por uma Diplom-

    tica contempornea;

    e, hoje, nos defrontamos com documentos digitais.

    Qual a conexo entre essas trs datas, esses trs momentos?

    Eles defi nem as etapas de uma mesma histria; e essa a histria

    que eu gostaria de evocar neste momento para chegar s questes

    atuais. tambm, confesso, um pouco de ego-histria, como se costu-

    ma dizer entre historiadores. Est na moda, no momento, na Frana,

    e peo-lhes desculpas pela parte de imodstia que isso implica. Mas

  • 33

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    , sobretudo, um testemunho que quero trazer. Em primeiro lugar,

    lembrar as origens e a evoluo da disciplina ao longo do tempo e o

    que podem nos ensinar; ver tambm em que consiste realmente o

    fenmeno da digitalizao; e, fi nalmente, considerar os caminhos de

    uma Diplomtica digital.

    Como de praxe, temos que comear por uma defi nio. O que

    a Diplomtica? A Diplomtica a cincia que estuda os documen-

    tos de arquivo propriamente ditos, em sua condio de documentos a

    partir de sua elaborao, sua forma e sua transmisso, para julgar sua

    autenticidade e considerar seu valor de testemunho e de informao.

    O documento em si, isto , no o seu contedo, mas o que ns no

    olhamos nem buscamos ao consultar um documento. Portanto, o do-

    cumento como documento.

    1. Quais so as origens da Diplomtica?Vamos ver quais so as origens da Diplomtica, a seguir, da Di-

    plomtica contempornea; e, fi nalmente, quais so as caractersticas

    desta ltima.

    1.1 Quais so as circunstncias da criao da Diplomtica contempornea?

    Para os historiadores e para os arquivistas, a Diplomtica uma

    disciplina criada por um monge beneditino, dom Jean Mabillon, monge

    da abadia de Saint-Germain-des-Prs, em Paris, por ocasio de uma con-

    trovrsia com o jesuta Daniel van Papenbroeck, no fi nal do sculo XVII.

    A polmica se deu sobre a autenticidade de um diploma de doao me-

    rovngio, guardado nos arquivos da abadia de Saint-Denis, perto de Paris.

    Aps profundos estudos sistemticos de documentos solenes

    da Alta Idade Mdia, Mabillon defi niu, nessa ocasio, um mtodo de

  • 34

    Bruno Delmas

    estudo e de anlise de atos reais (De re Diplomatica, 1682) que permi-

    tia demonstrar se esses atos eram autnticos ou falsos. Depois, em

    meados do sculo XVIII, o mtodo foi estendido por dois eruditos be-

    neditinos, dom Tassin e dom Toustain, aos atos ofi ciais e, sucessiva-

    mente, a todos os documentos das instituies da Idade Mdia, no

    mais como objetivo de prova jurdica, mas tanto de erudio histrica,

    quanto de uma Diplomtica prtica de classifi cao, de conservao e

    de inventrio. Passamos assim da crtica de atos reais autnticos para

    o reconhecimento da presuno de autenticidade dos documentos

    administrativos.

    Do mesmo modo, os diplomatistas medievalistas desenvolve-

    ram estudos sobre a tradio (dos originais e das cpias, mobilizando a

    paleografi a, a cronologia etc.), a forma (estudos dos suportes, escritas,

    estilos e frmulas) e a gnese dentro do funcionamento das secreta-

    rias, com o objetivo de fazer edies crticas de documentos. No entan-

    to, os historiadores das pocas posteriores ao Renascimento tiveram

    pouco interesse pela Diplomtica dos documentos de arquivos da era

    moderna, os quais, entretanto, comeavam a proliferar. Esses docu-

    mentos no apresentavam os mesmos problemas de autenticidade e

    no mobilizavam os mesmos recursos de aparato crtico. Citemos entre

    as excees, na Frana, Georges Tessier (1962) e, na Espanha, a grande

    arquivista Vicenta Corts Alonso (1979), que tinha se interessado pela

    Diplomtica dos documentos da Amrica Latina Espanhola.

    No decorrer dos anos 1960, os pases mais desenvolvidos foram

    confrontados com o fenmeno da exploso documental, consequn-

    cia do novo mpeto da sociedade industrial, aps a Segunda Guerra

    Mundial. Vimos a proliferao de novos documentos e de cpias pro-

    duzidos desde o sculo XIX, por mquinas cada vez mais diversifi cadas,

    notadamente informticas; de documentos redundantes e documen-

    tos intermedirios, de uso efmero, produzidos por meio de procedi-

    mentos administrativos, cada vez mais longos. O principal problema

    resultante dessa evoluo surgiu de maneira diferente na Amrica do

  • 35

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    Norte e na Europa. Na Amrica do Norte anglfona, regida pela Com-

    mon Law e mais avanada no uso da informtica, a questo crucial era

    a da prova legal (forensic). Foi a via que Luciana Duranti (1989, p. 12)

    desenvolveu com o seu programa. O interesse de Duranti por docu-

    mentos eletrnicos comeou no decorrer de seus estudos arquivsti-

    cos: sua anlise compreensiva objetivava os desafi os apresentados s

    instituies arquivsticas pelo aumento da produo de documentos

    eletrnicos nas reparties pblicas. Entretanto, quando ela veio para

    a Amrica do Norte, sua investigao incidiu sobre documentos ele-

    trnicos quando entendeu que teria que ensinar prxima gerao

    de arquivistas a lidar com o novo mundo da comunicao eletrnica.

    A pesquisa de Duranti consistiu, primeiro, em testar a validade dos

    conceitos, dos princpios e dos mtodos para adquirir e manter o con-

    trole de registros eletrnicos. A pesquisa teve tambm o propsito de

    encontrar solues para as questes que no fossem especfi cas de

    um contexto sociocultural e jurdico, mas que pudessem ser aplicadas

    universalmente.

    Na Europa, os rgo administrativos e os arquivos estavam so-

    brecarregados, o principal problema dos servios de arquivos j no

    era mais o da autenticidade dos documentos, uma vez que todos

    eles tinham uma presuno de autenticidade, nem tampouco era o

    problema da edio crtica de textos raros, mas o da destinao, para

    conservar os documentos essenciais prova e ao conhecimento, e o

    problema da criao de instrumentos de pesquisa mais cientfi cos.

    At ento, a Diplomtica era o campo de atuao de especialistas me-

    dievalistas que tinham muito a fazer com a massa de documentos me-

    dievais, contados em dezenas de quilmetros s na Frana. Por causa

    dos seus conhecimentos em Diplomtica medieval, eles conseguiam

    abordar intuitivamente os problemas da Diplomtica contempornea

    e resolver as questes sem a necessidade de formao especial.

    Em 1973, eu estava em misso na Universidade de Dakar, onde

    a UNESCO tinha decidido fundar uma escola de arquivistas para as

  • 36

    Bruno Delmas

    administraes de todos os Estados da frica francfona. Os docu-

    mentos mais recentes, que esses arquivistas teriam que tratar, com

    exceo de alguns mais antigos, datavam de meados do sculo XIX.

    Fazamos trabalhos prticos de destinao e de classificao

    nos Arquivos do Senegal, trabalhando em documentos produzidos

    pela Presidncia da Repblica. No tendo estudado Diplomtica,

    os alunos no distinguiam, por exemplo, o original da cpia, e entre

    as cpias, qual ou quais os documentos mais importantes a conser-

    var. Era, portanto, necessrio criar um curso de Diplomtica adap-

    tado para os arquivos que eles deveriam conservar. dessa forma

    que nasceu o ensino da Diplomtica contempornea, assim chama-

    da para distingui-la da Diplomtica clssica, que a Diplomtica

    medieval.

    Em 1977, fui eleito professor na cole des Chartes, para a cadei-

    ra de Arquivstica Contempornea, que acabava de ser criada, na qual

    introduzi o ensino da Diplomtica contempornea.

    1.2 Quais so os objetivos desse ensino, do que era composto, como evoluiu?

    Inicialmente, eu me inspirei na metodologia e na abordagem da

    Diplomtica medieval: estudo da forma, claro, mas tambm estudo

    da gnese, mais do que da tradio j que o problema no era de

    raridade, nem de busca de autenticidade, mas de superabundncia de

    documentos de arquivo.

    O objetivo era fornecer uma ferramenta intelectual de crtica

    dos documentos dos sculos XIX e XX, a fim de instituir, com uma

    abordagem racional, a descrio e a anlise, tanto quanto a avaliao e

    a destinao dos documentos - problemas, a partir de ento, cruciais,

    provocados pelo alongamento da cadeia da gnese e pela multiplica-

    o dos meios de difuso. Isso implicava levar em conta conhecimen-

  • 37

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    tos diferentes, por exemplo, a paleografia ou a cronologia discipli-

    nas pouco teis, no caso, para desenvolver novas ferramentas, com

    o cuidado de evitar a destruio das provas ou dos vestgios nicos.

    Tratava-se, tambm, de contribuir para o aperfeioamento cientfico

    dos instrumentos de pesquisa.

    Isto me levou, em primeiro lugar, a prestar uma ateno espe-

    cial histria dos modos de produo copiosa de suportes e de es-

    critas na era industrial (final do sculo XVIII a final do sculo XX), a

    fim de conceber uma nova Diplomtica material e conhecer seus usos

    - elementos indispensveis para a preservao e autenticao dedo-

    cumentos.

    Era preciso tambm renovar a abordagem da gnese e da tra-

    dio dos documentos; recolocar os documentos no seu contexto

    de produo segundo as funes e os processos administrativos de

    elaborao das decises (projetos, consultas, histria administrati-

    va); e levar em conta o aumento da formalizao dos processos e

    as restries de normas que se ajustaram durante todo o perodo

    (documentos legislativos ou regulamentos que regem a produo

    de documentos, Cdigo Comercial, decreto sobre a contabilidade

    pblica de 1867, multiplicao dos formulrios em todas as reas

    da administrao). A Diplomtica erudita aproximava-se, assim, da

    Diplomtica prtica, com a implementao do controle de produo

    dos documentos pelo Centro de Registro e Reviso dos Formulrios

    Administrativos (Cerfa) ou, ainda, com o histrico da multiplicao

    dos meios e das formas de difuso dos documentos de arquivo (tele-

    grama, telecpia, fax etc.). Todos esses elementos eram necessrios

    para discernir as formas a ser mantidas para a prova, o acesso pes-

    quisa ou a conservao.

    Muito naturalmente, fui levado a me interessar por documen-

    tos de arquivo do gnero audiovisual cada vez mais presentes nos

    arquivos administrativos (fotografi a, gravao sonora, cinematogra-

    fi a) , a conhecer os processos de fabricao material de documentos

  • 38

    Bruno Delmas

    audiovisuais e, em seguida, aos arquivos do gnero audiovisual con-

    servados em organismos audiovisuais pblicos.

    Da mesma maneira, os arquivos de entidades de pesquisa cien-

    tfi ca e tcnica no se limitam a seus papis administrativos; todos os

    documentos cientfi cos e tcnicos so produzidos no quadro de pro-

    tocolos de experincias ou por processos automticos submetidos a

    prescries legislativas e regulamentares. So documentos to sub-

    missos quanto os documentos administrativos, e eles podem, por

    isso mesmo, ser objeto de anlise diplomtica. Devemos incluir nesses

    arquivos peas arqueolgicas ou de coleta cientfi ca, testes de expe-

    rincias, resultados registrados em relatrios de escavao ou em ca-

    dernos de laboratrio - documentos que se tornam arquivsticos por

    destino, e no pornatureza.

    Essas constataes me levaram a publicar, em 1996, um mani-

    festo por uma Diplomtica contempornea como disciplina merece-

    dora de pesquisas especfi cas e necessrias para a formao intelec-

    tual e cientfi ca dos arquivistas de hoje.

    claro que, nesse percurso, encontrei documentos digitais tan-

    to nos arquivos administrativos quanto nos audiovisuais, cientfi cos e

    tcnicos. Mas nada mais eram do que produtos de nova tcnica, de

    documentos cuja leitura exige a mediao de aparelho e at mesmo

    de um manual de instrues para que, mais tarde, possam ser utiliza-

    dos e compreendidos, semelhana do que ocorre com as cadernetas

    de laboratrio.

    Mas antes de chegar ao nosso segundo ponto, gostaria de fa-

    zer um comentrio diretamente ligado ao tema do nosso colquio.

    Trata-se da defi nio diplomtica dos documentos; isto , do nome

    do documento e de sua defi nio, uma palavra podendo ter, s vezes,

    vrios signifi cados. Em todas as extenses sucessivas da Diplomtica,

    encontrei novas palavras para designar esses novos documentos. Um

    mesmo documento pode ser defi nido de acordo com a sua natureza

  • 39

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    jurdica (como uma lei) ou sua funo (como uma conta), mas tambm

    de acordo com o seu modo de elaborao ou de produo (como uma

    fotografi a), sua forma (como uma lista) ou seu modo de transmisso

    (como um telegrama). Na maioria dos casos (documentos administra-

    tivos), essas palavras eram nicas. Seu nome era defi nido em textos

    ofi ciais. s vezes, vrias palavras podiam designar o mesmo documen-

    to ou uma nica palavra podia denominar vrios documentos dife-

    rentes. Foram tambm encontradas palavras insignifi cantes, palavras

    prprias de jarges profi ssionais, palavras desaparecidas de formas

    ou suportes ultrapassados, de documentos esquecidos. Em todos es-

    ses usos, qual termo manter para um uso cientfi co seno aquele que

    melhor correspondia natureza diplomtica do documento?

    As defi nies dessas palavras que encontramos em dicionrios

    eram muito variveis: prximas de uma defi nio diplomtica nos ca-

    sos de documentos administrativos,ou,por vezes, muito distantes no

    tempo especialmente para documentos no estritamente administra-

    tivos ou produzidos em determinado momento do sculo XIX ou do

    sculo XX por alguma tcnica, hoje ultrapassada. Era preciso, no para

    o pblico em geral, mas para os arquivistas, encontrar o melhor termo

    quando necessrio e elaborar a melhor defi nio; ou seja, uma defi ni-

    o diplomtica que refl etisse a funo e a forma dos documentos.

    o que tentamos fazer com um lxico (DELMAS, 1986) e, em seguida,

    com um dicionrio de arquivos (DELMAS, 1991).

    O que uma defi nio diplomtica? aquela que indica a na-

    tureza da ao que o documento autoriza ou acompanha. Assim, a

    fatura, documento nomeado e defi nido pelo Code du commerce [C-

    digo Comercial] quanto sua utilizao e ao seu contedo obrigat-

    rio, acompanha a venda de um bem ou de um servio. Muitas vezes, a

    palavra autorreferente, porque descreve um modo de organizao

    do escrito e, a partir dele, sua estrutura (tabela, lista). Uma lista uma

    sequncia de palavras ou nmeros em coluna, classifi cados em deter-

    minada ordem. s vezes, uma palavra designa, ao mesmo tempo, uma

  • 40

    Bruno Delmas

    ao e sua estrutura. Lista de nomeao uma expresso que d,

    simultaneamente, a ao e a frmula.

    Quanto aos novos documentos criados sem antecedentes pelo

    sistema tcnico, vemos que, em geral, eles tm um nome que lhes

    dado rapidamente na ocasio de sua apario, onde ela ocorreu, para

    identifi c-los em relao a outros documentos. Como no passado,

    a tcnica, o suporte ou a analogia que vo inspirar esse nome. Ele

    fonte de grande diversidade e incompreenso at que a utilizao

    de um nome ou de uma expresso se torne indispensvel. A princi-

    pal difi culdade encontrar para esse nome provisrio uma defi nio

    diplomtica, cientfi ca, que indique sua natureza diplomtica, da qual

    os arquivistas e pesquisadores precisam para realizar a avaliao ou a

    crtica dos documentos.

    A difi culdade vem da denominao dos documentos produzi-

    dos em novos suportes, em que, muitas vezes, o processo tcnico

    que d o nome (fotografi a, fi ta magntica). Nestes casos, necessrio

    precisar a tcnica pela funo: a foto de identidade, a foto antropo-

    mtrica. Tomemos o caso do telegrama. Ele defi nido pela tcnica

    que garante sua funo de informao rpida e tem uma estrutura

    que lhe foi imposta pela tcnica do momento de sua apario, defi ni-

    da pelo nome de estilo telegrfi co. Mas vemos bem que, ao faz-lo,

    no fomos at o fi m da defi nio diplomtica, pois apenas indicamos

    o modo de transmisso. Deveramos especifi car, por exemplo, tele-

    grama informativo, ordem telegrfi ca, resposta telegrfi ca, demanda

    telegrfi ca, ou, ainda, telegrama codifi cado, telegrama ministerial?

    Assim, para ser cientfi ca, a defi nio diplomtica de um documento

    contemporneo no pode, na maior parte dos casos, limitar-se a uma

    nica palavra. Ela precisar ser uma expresso que concilie o estatuto

    jurdico, a funo e a ao e, muitas vezes, a natureza do suporte.

    Todas as proliferaes de documentos e as extenses consecu-

    tivas da Diplomtica levaram a desenhar uma tipologia dos documen-

    tos de acordo com classifi caes que recolocavam cada documento;

  • 41

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    seja em seu lugar de gnese e tradio (Diplomtica geral), seja em

    seu contexto institucional e funcional (unidade da ao, dossi, Diplo-

    mtica especial)1.

    2. O que aconteceu nos ltimos 20 anos?O fenmeno da digitalizao

    Nesta segunda parte, pretendo explicar brevemente que a di-

    gitalizao no se limita a um simples fenmeno tcnico de grande

    magnitude, mostrar suas consequncias em particular, antropol-

    gicas e, fi nalmente, indicar o que trouxe de mudana para os docu-

    mentos de arquivo.

    2.1 A digitalizao: um novo sistema tcnicoSem cair em grandiloquncia ou em banalidade, podemos dizer

    que sabemos hoje que mudamos de mundo. Entramos na chamada

    sociedade da informao, a sociedade do conhecimento. Por trs des-

    sas expresses, bastante comuns atualmente, esconde-se um fen-

    meno maior na histria da humanidade, anunciado h vrias dcadas.

    Acabamos de vivenciar a passagem de um sistema tcnico para outro.

    Houve outros em diferentes momentos da histria dos homens.

    O que que um sistema tcnico? uma teoria formulada por

    um francs, arquivista e historiador das cincias e das tcnicas, Ber-

    trand Gille, que explica que cada sociedade constri para si prpria

    um sistema tcnico que, por sua vez, a modifi ca. Ela o estende a sua

    cultura, seu direito, sua economia, e ele a transforma, numa interao

    contnua. Ele permite sociedade tirar o melhor partido dos seus re-

    cursos e, assim, crescer e se desenvolver. tambm, portanto, um mo-

    1 Ver em Lexique de terminologie archivistique e depois no Dictionnaire de terminologie archivistique, ambos on-line: Disponvel em: , e .

  • 42

    Bruno Delmas

    delo dinmico, adaptado a uma situao particular muito estruturante

    para uma sociedade; mas que tem seus limites, ao termo dos quais ou

    a sociedade desaparece ou ela muda drasticamente. De toda maneira,

    esta mudana, independentemente de suas formas, violenta.

    O ltimo sistema tcnico que conhecemos aquele da socie-

    dade industrial (fi m do sculo XVIII ao fi m do sculo XX). A mquina a

    vapor e o carvo constituram o sistema cujo auge se deu com a ele-

    tricidade e o petrleo. A mquina foi substituindo, cada vez mais, o

    homem em todas as reas de produo para fabricar bens materiais

    em massa a partir dos recursos naturais que eram descobertos. As ins-

    tituies e o direito, os modos de vida e de trabalho, os usos sociais

    foram profundamente transformados. As sociedades anteriormente

    agrrias com seus estilos de vida e relaes com a natureza foram

    abaladas e existem, ainda, na Europa em sua forma tradicional apenas

    residualmente. A indstria criou uma nova organizao territorial (con-

    centrao humana nos locais de explorao ou de produo), modos de

    produzir (organizao do trabalho), de trocar (lojas de departamento) e

    de consumir (consumismo), novos relacionamentos humanos (sindica-

    tos), modos de vida radicalmente diferentes e um relacionamento com

    a natureza (explorao, poluio) renovado (ecologia).

    Abandonamos a sociedade industrial em meados de 2000 e en-

    tramos em um novo sistema em processo de consolidao. Neste novo

    sistema, a produo de ideias e a pesquisa em todas as reas, a orga-

    nizao, a gesto dos recursos que permitem a economia de energia e

    a melhor utilizao, com menos esforo e menos matria, dos recursos

    esgotveis, substitudos por recursos imateriais inesgotveis.

    A evoluo foi gradual desde os anos 1970 quando o sistema

    mecanizado da sociedade industrial foi dominado aos poucos, de for-

    ma difusa e no incio imperceptvel, por mquinas de uma nova esp-

    cie: os computadores, os aparelhos eletrnicos, capazes de processar

    rapidamente dados em massa.

  • 43

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    Os computadores intervieram em primeiro lugar, para substi-

    tuir em um dado momento e numa dada rea, processos que, feitos

    em papel e manualmente, eram morosos e falhos (anlise de pes-

    quisas estatsticas). Ao faz-lo, o computador substitua um ou mais

    documentos tradicionais por novos documentos (balancetes decon-

    tasmensais, por exemplo). Por trs dessas conquistas, novas ativida-

    des se desenvolveram, formaram-se documentos de um novo tipo.

    Ao contrrio de aparelhos que captam automaticamente, e

    criam novos tipos de documentos, utilizando ou no o suporte papel,

    alguns desses documentos dependem rigorosamente da tcnica que

    os produz: a fotografi a, da mquina fotogrfi ca; o registro sonoro, do

    gravador; o fi lme, da cmera etc. J o telegrama, produto do telgrafo,

    ou mesmo o programa de rdio ou de televiso transmitem uma men-

    sagem que no produzem, que tem existncia prvia. Da mesma forma,

    o computador processa dados que lhe preexistem. No incio, quando

    era apenas instrumento intermedirio, seus documentos pouco inte-

    ressavam aos arquivistas, j que mantinham o documento fi nal em su-

    porte-papel. Nas atividades cientfi cas, estatsticas e de contabilidade,

    o interesse j era maior, mas era um campo para especialistas. Assim,

    essas formas de documentos apenas visveis na tela ou impressas em

    papel faziam, ento, negligenciar o fato de que esses documentos

    existiam, em primeiro lugar, nos computadores; e que estes no eram

    meras mquinas de tratamento de documentos, como a mquina foto-

    grfi ca ou a mquina de xerox, mas tinham uma memria, e que esses

    documentos possuam uma forma legvel e utilizvel pela mquina.

    2.2 Os progressos incessantes da eletrnica mudaram a natureza do papel da informtica

    Desde os meados dos anos 1970, a informtica no cessou

    de fazer progressos prodigiosos tanto em termos de hardware

  • 44

    Bruno Delmas

    como de software: capacidade das memrias, sistemas operacio-

    nais, capacidade de processamento, multiplicidade de software

    com a queda dos preos. A informtica estabeleceu-se em todas as

    atividades humanas e tornou-se comum. Deixou a rea do simples

    tratamento de dados para dominar tambm o setor de criao de

    documentos por meio da captura de imagens, de sons ou de fen-

    menos naturais.

    A esse fenmeno juntou-se outro no decorrer dos anos 1990:

    as redes de comunicao entre computadores, tambm constitudas

    paralelamente aos avanos das telecomunicaes, levaram interco-

    nexo geral de todas essas mquinas por meio da rede Internet. Essa

    revoluo da transmisso de documentos e de dados possibilitou a

    instalao do sistema. Criado por uma poderosa inovao nos pro-

    cessos de informtica e telemtica, o novo sistema tcnico provocou

    um deslocamento da inovao. Passamos da inovao no procedi-

    mento (computador) para a inovao dos produtos (smartphones,

    tablets, aplicativos de software). O gigantismo das transformaes

    de empresas como a IBM e a Bull e, mais ainda, como a Apple, em-

    blemtico desta evoluo. Seguiram-se as adaptaes legais e insti-

    tucionais necessrias, j que o sistema tcnico no seria concludo

    sem a consagrao legal que completa o sistema e o instala na socie-

    dade. Da tcnica passa-se para a organizao social. Na Europa, uma

    diretriz de 2002 da Unio Europeia atribu ao documento eletrnico

    o mesmo valor do documento em papel. A globalizao atual no

    seria possvel sem este sistema tcnico. E no foi ele que a criou?

    Tal o sistema no qual vivemos doravante, no qual o docu-

    mento digital se afi rma como ferramenta indispensvel para criar,

    trabalhar, intercambiar. Ele veio acompanhado de uma segunda ex-

    ploso documental, bem maior do que a que tivemos nos anos 1960,

    devido maior facilidade de capturar, analisar, calcular, modelar e,

    portanto, de produzir documentos e difundi-los. No somente a

    massa desses documentos digitais produzidos considervel, no

  • 45

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    somente eles esto presentes em nossas vidas dirias, mas vo se

    diversifi cando cada vez mais graas aos novos usos que a tcnica

    permite (Facebook, chats, tweets, blogs etc.) e so a nica forma de

    muitos documentos.

    2.3 As consequncias polticas, culturais, econmicas e sociais desse fenmeno

    Os documentos em formato digital apresentam preciso aqui

    lembrar vantagens considerveis: eles so acessveis instantanea-

    mente, de modo simultneo e, geralmente, de maneira gratuita para

    qualquer pessoa, em todos os lugares da Terra, e seu uso repetido no

    os destri, compartilhando-os infi ndavelmente.

    Para a humanidade, as consequncias so inumerveis: tanto

    para as pessoas, com a globalizao da educao (cursos de auto-

    formao de todos os nveis, acadmicos ou profissionais, de livre

    acesso on-line) e da cultura (bibliotecas, museus, arquivos etc.),

    quanto para a democratizao do acesso ao conhecimento e, ain-

    da, para o cidado e o empresrio, para polticas e aes em fa-

    vor dos open data e a reutilizao dos dados pblicos. possvel

    trabalhar conjunta e simultaneamente em toda parte do mundo,

    alm de compartilhar (os Wiki e outros programas de colaborao).

    Com isso pode ser alcanada a igualdade de oportunidades e de

    possibilidades de cada homem e de cada Estado. No h mais pa-

    ses desenvolvidos e pases em desenvolvimento. As convulses

    atuais da economia mundial mostram claramente que s h pases

    em desenvolvimento. Tudo isso baseado em documentos digitais

    ou digitalizados. Eles tornaram-se objetos centrais da sociedade da

    informao. Cabe, desde j, ao arquivista, a todos, interessar-se

    profundamente por esses documentos.

  • 46

    Bruno Delmas

    3. O documento digital e os arquivistas precisam da Diplomtica?

    Esta pergunta suscita mais trs: quais so as questes coloca-

    das Diplomticapelapreservaodedocumentosdigitais? Queres-

    postaselapodedar? A Diplomtica digital vai eliminar a Diplomtica

    contempornea?

    3.1 A Diplomtica digital vai eliminar a Diplomtica contempornea?

    O papel e permanecer ainda por muito tempo o objeto da

    Diplomtica contempornea, e isto por vrias razes. Existe uma

    massa considervel de documentos em papel (3.500 km de arquivos

    pblicos na Frana) e apenas uma pequena parte deles ser copiada

    e convertida em documentos digitais. A operao cara e limitada.

    Ser feita para categorias escolhidas, de acordo com as necessidades

    do momento. Atualmente, por exemplo, o estado civil, o recruta-

    mento, o cadastro e alguns programas de pesquisa que so objeto

    de digitalizaes sistemticas. Por outro lado, bem provvel, ainda,

    que continuemos por muito tempo a converter documentos digitais

    em suporte-papel (impresso), pela boa razo de que sua conserva-

    oalongo prazomaisseguraemaisbarata.Maspor quanto tempo?

    Todos os documentos digitais no sero convertidos em documentos

    em papel. Sem dvida, vamos continuar por algum tempo com esse

    vai-e-vem entre as duas formas de documentos. preciso considerar o

    desenvolvimento de duas Diplomticas contemporneas: a Diplom-

    tica analgica do papel e dos documentos tradicionais e a Diplomtica

    digital dos dados. No h ruptura entre esses dois mundos, pois mui-

    tos documentos administrativos em papel vo sendo substitudos por

    documentos digitais que conservam o mesmo nome, a forma e ouso.

    Mas por quanto tempo ainda? Vir, sem dvida, o momento, talvez

  • 47

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    no to distante, em que a Diplomtica dos documentos dos sculos

    XIX e XX ir se juntar Diplomtica medieval.

    3.2 Quais questes os documentos digitais levantam para a Diplomtica?

    Os documentos digitais ensejam dois tipos de perguntas para

    o arquivista: as relativas preservao fsica, perenidade da pro-

    va por longo prazo; e aquelas colocadas pelos novos documen-

    toscomofonte depesquisa.

    A questo da perenidade dos documentos uma preocupao

    antiga dos arquivistas. Na Frana, por exemplo, j faz 30 anos que en-

    genheiros e arquivistas se preocupam com este problema (ver o pro-

    jeto Constance, nos Arquivos Nacionais da Frana, em 1983, para o

    arquivamento de dados do censo de estatsticas agrcolas). Eles tm

    trabalhado sobre as especifi caes gerais funcionais e tcnicas dos

    documentos eletrnicos para sua conservao duradoura. A experi-

    ncia foi enriquecida ao longo do tempo, da evoluo da tecnologia

    e dos fundos recebidos. Desde essa poca, procedimentos tanto de

    software como de hardware foram elaborados para a conservao

    dos dados. A partir de 2001, a preocupao aumentou levando cons-

    tituio de grupos de trabalho multidisciplinares, com profi ssionais

    vindos de reas diferentes, essencialmente, engenheiros e arquivistas

    (Grupo PIN [Prennisation de l Information Numrique] Perenizao

    da Informao Digital na Frana).

    A perenizao deve resolver trs contradies irredutveis, de

    importncia vital para o futuro: como conciliar com o digital a autenti-

    cidade e a confi abilidade dos dados? Como garantir a perenidade dos

    documentos digitais com a desmaterializao? Como dar acesso de

    tudo a todos e garantir a proteo dos dados da vida privada? O caso

    atual de espionagem da NSA [National Security Agency] ilustra a gravi-

    dade dessas questes.

  • 48

    Bruno Delmas

    Voltemos ao documentodigital, sua condio formal.Se odo-

    cumentoescritoougravadopodeserconsiderado umaunidadedocu-

    mental,odocumentodigitalpodeserconsideradoinformaoestru-

    turada elemento de conhecimento que deve ser codifi cado para ser

    conservado, tratado ou acessado. Os documentos digitais so codifi ca-

    dos de acordo com o cdigo binrio, que usado para alimentar e con-

    trolar a mquina eletrnica. por isso que o documento digital precisa

    de uma mquina complexa para dar acesso ao seu contedo. Todas as

    mquinas utilizam a mesma codifi cao eletrnica binria, que permite

    representar os mais diversos documentos, trat-los com uma grande

    variedade de softwares, em muitas mquinas diferentes, e de comuni-

    c-los em todas as redes, por todos os provedores de acesso. Assim,

    noo de documento acrescenta-se uma nova, a de dado, que uma

    representao formalizada da informao, adaptada comunicao,

    interpretao ou ao tratamento por um computador.

    O procedimento digital converteu o documento e seu suporte

    em dados digitais, em um objeto imaterial. Os dados no so mais liga-

    dos fi sicamente a um suporte material. Essa imaterialidade apresenta

    grandes vantagens bem conhecidas: ela libera a gesto dos documen-

    tos do volume e do peso do papel; ela os converte em dados e, as-

    sim, facilita o tratamento e o acesso instantneo. Face aos benefcios

    prticos dessa converso, a imaterialidade apresenta tambm cons-

    trangimentos no menos conhecidos, especialmente a dependncia

    do usurio de uma mquina para acessar o documento. Alm disso,

    prisioneiro das mquinas, dos sistemas operacionais e dos aplicativos

    que envelhecem rapidamente (menos de 10 anos), o documento di-

    gital obrigado a evoluir constantemente para poder continuar a ser

    utilizado pelas mquinas e softwares mais atuais.

    Uma questo crucial: podemos confi ar da mesma maneira na

    tela de um tablet e no papel que seguramos em nossa mo? Livre

    das restries do suporte fsico, pode-se temer que o documento,

    submetido a tantos riscos tcnicos, possa ser facilmente manipula-

  • 49

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    do e processado. UmanovaDiplomticase impe, e de modoradi-

    cal:nodeveramosfalar agora de uma Diplomtica do documento

    digitale,paraosoutrosdocumentos, de uma Diplomtica do docu-

    mento analgico? Essa nova Diplomtica seria caracterizada por um

    certo nmero de traos essenciais.

    4. A vulnerabilidade do documento digitalA primeira observao que acompanha a passagem para o di-

    gital a extraordinria vulnerabilidade do documento digital na sua

    durao. Independente de qualquer suporte fixo,sua base um con-

    junto complexo que engloba um meio de armazenamento, um dis-

    positivoparaa leituradessemeio,umcomputador,umsistemaope-

    racional e um ou mais programas. Esta simples enumerao, que

    poderiaserbem maior,mostraacomplexidadeeafragilidadedosiste-

    ma e de suaeficcia.A perenidade do sistema depende, como em uma

    cadeia, da fraqueza ou obsolescncia do elo mais frgil. Cada um dos

    elementos do dispositivo de leitura deve ser substitudo regularmente.

    Alguns elementos no tm incidncia sobre a representao dos dados,

    outros sim. a fragilidade do sistema. A mquina e tudo o que a acom-

    panha envelhecem mais rapidamente do que os suportes tradicionais.

    A manuteno do sistema em estado de funcionamento para

    os documentos antigos no depende apenas de fatores tcnicos; indi-

    retamente, necessrio contar com uma organizao slida e fortes

    competncias em tcnica e em arquivos para gerenciar essa comple-

    xidade ao longo do tempo; com meios fi nanceiros diferentes daque-

    les do armazenamento anterior em prdios de arquivos, tambm

    necessrio reduzir a complexidade do sistema por elementos norma-

    tivos que unifi quem e, assim, facilitem os procedimentos. preciso,

    tambm, um quadro legislativo e regulamentar para dar ao documen-

    to digital o mesmo valor probatrio do documento em papel, mas

    com obrigaes tcnicas adicionais, para garantir a integridade e a

  • 50

    Bruno Delmas

    autenticidade dos documentos. Estas restries no so novas, elas j

    existem para documentos em papel, e a Diplomtica contempornea

    j valorizou sua crescente importncia. Mas, com a digitalizao, elas

    adquirem um carter de absoluta necessidade. Para realizar tudo isso,

    precisamos de pessoas competentes.

    5. O estudo do documento comeana sua concepo

    O segundo ponto o deslocamento completo do estudo do

    documento. A Diplomtica analgica interessa-se pelo documen-

    toexistenteetemporobjetivo,nocasodenecessidadede prova,re-

    montarsuatradioatchegar aodocumentooriginalparaverificar

    suaautenticidade;ou,porexemplo,remontaratagneseparaana-

    lisar os processos de deciso. Mas ela no se interessa pela Diplo-

    mtica prtica que, entretanto, existe nos servios administrati-

    vos e nos cursos de secretariado. A Diplomtica digital no pode

    se limitaraoreconhecimentodaautenticidade.Paraesta,oproces-

    so digital deve, como para os arquivistas responsveis pela conser-

    vao perene dos dados, situar-se no ponto de origem, no mo-

    mento de criao do documento. O diplomatista no pode tratar

    um documento digital produzido sem a sua interveno; ou melhor,

    no se pode criar um documento digital sem a interveno de um

    arquivista diplomatista. Alm de intervir na concepo, ele deve

    usardispositivosadequadosparaacompanharo documento aolon-

    godesuagneseedifuso.Paradocumentosjurdicos, eledevega-

    rantir a rastreabilidade de seu andamento. Em tal situao, a Di-

    plomtica est mais do que nunca ligada Arquivologia, que tem

    asmesmaspreocupaesdeperenizaocom osdadosinformticos.

    Pode-se dizer que o documento analgico se conserva sozinho

    se estiver fi sicamente bem protegido. Numerosos documentos muito

    antigos sobreviveram atravs dos milnios apesar de desastres natu-

  • 51

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    rais ou humanos. Mas os dados digitais no se conservam por si s.

    Acabamos de discutir sua extrema fragilidade: a mquina no permite

    amadorismo, negligncia ou abandono. Ela impe regras ainda mais

    rigorosas do que os procedimentos administrativos de documentos

    analgicos. tanto uma necessidade benfi ca, dada a facilidade de

    manipulao do documento digital, quanto um fator unifi cador numa

    rea de grande abundncia de hardwareesoftwareproprietrios,que

    tornam cativos seus usurios. Haveria ainda mil formatos de docu-

    mentosdiferentes,almdesuasversessucessivas.

    Adefiniodenormasparatodosos aspectos do documen-

    to digital representa um fator de estabilidade e perenidade. As

    normas so regras funcionais ou tcnicas relativas a um produ-

    to, a atividades ou aos seus resultados estabelecidas por con-

    senso entre especialistas e registradas em documento produzi-

    doporumaorganizao, nacional ou internacional,reconhecidano

    campo da normalizao. As normas so, hoje, o prolongamen-

    to mais preciso de regulamentaes administrativas (formulrios

    etc.) que facilitam a padronizao e a uniformidade da produ-

    o de documentos administrativos em suporte analgico, levan-

    doosdiversosatoresdodigitalaproduzirelementosquecontri-

    buemparaasuaperenizao. Da mesma forma, existem no campo

    privado padres criados por empresas que se impem de facto e

    so adotados por outros produtores (ISO, por exemplo). H gru-

    pos de normalizao em muitas reas, o que podemos considerar

    como equivalente ao que existe na Diplomtica dos documentos

    analgicos.

    No domnio dos dados digitais, os interesses e objetivos da Di-

    plomtica se confundem com os objetivos da Arquivstica. Os exem-

    plos abundam com uma srie de normas.

    Normas gerais de organizao arquivstica: modelo OAIS

    [Open Archival Information System], que abrange a questo da orga-

    nizao arquivstica no seu conjunto.

  • 52

    Bruno Delmas

    Normas para reas especficas:

    normas relativas ao armazenamento e aos suportes (Diplom-

    tica material);

    normas de representao dos dados, quer se trate de texto,

    imagens, grficos, documentos multimdia, udio, vdeo, dados tc-

    nicos, dados cientficos e todos os tipos de informao digital em

    formatos abertos ou proprietrios. O PDF, por exemplo, pode ter um

    equivalente nos elementos grficos dos documentos analgicos da

    Diplomtica clssica;

    metadados: a rea mais prxima da Diplomtica tradicional.

    De fato, as caractersticas externas da Diplomtica dos documentos

    analgicos se multiplicaram durante os sculos XIX e XX, com o mes-

    mo objetivo de encontrar de maneira rpida e segura um documento

    pesquisado (selo,objeto, data tpica e crnica, documentos anexados,

    destinatrios etc.). Com o digital, novas caractersticas foram adiciona-

    das a isso. So os metadados tcnicos que garantem a capacidade de

    restaurar a informao de forma compreensvel. A generalizao digital

    provocou a criao de muitos formatos de metadados genricos (Du-

    blin Core, ISO 15836) ou especializados, que o diplomatista reconhece.

    integridade e autenticidade: trata-se de normas que permi-

    tem chegar a provar a integridade e a autenticidade dos documen-

    tos. Sabemos que esse um dos pontos sensveis dos documentos di-

    gitais. Eles tambm deram lugar a desenvolvimentos especfi cos que

    o diplomatista conhece: a criptografi a, os algoritmos de clculo de im-

    presses digitais, os protocolos de comunicao segura, os processos

    de assinatura eletrnica (normas ISO endossadas pela Comisso Eu-

    ropeia NESSIE [New European Schemes for Signatures, Integrity and

    Encryption] e a [agncia regulatria] norte-americana NIST [National

    Institute of Standards and Technology].

    normas de encapsulamento, que permitem associar os obje-

    tos digitais a uma estrutura global consistente e porttil. Estes podem

  • 53

    Por uma Diplomtica contempornea: novas aproximaes

    ser compostos por um ou mais arquivos (isto , documentos) com os

    metadados que os caracterizam, ligaes existentes entre os prprios

    arquivos ou entre os componentes do objeto e os metadados. Todos

    os dados e as normas de acompanhamento podem ser considerados

    como uma extenso das unidades de arquivamento e dos arquivos em

    papel tratados pela Diplomtica clssica.

    normas de identificao: permitem o reconhecimento de um

    objeto digital de maneira nica no mbito de um ou mais arquivos ou,

    com mais frequncia, hoje, dentro de conjuntos muito maiores. Essa

    necessidade foi resolvida, por exemplo, com o uso do ISBN [Interna-

    cional Serial Bibliographical Number] para livros ou pelo ISSN [Inter-

    national Standard Serial Number] para os peridicos. Os servios de

    arquivos tambm trabalham nesse sentido.

    validao e certificao de arquivos digitais: um novo aspec-

    to, porm indispensvel, introduzido pela perenidade dos arquivos di-

    gitais. Ele apresenta uma srie de novos problemas e, em particular, a

    confiana posta nos repositrios terceirizados aos quais entregamos

    nossos dados. Hoje, a via de certificao ISO 9001 uma norma bas-

    tante difundida, que pode ser utilizada pelas organizaes de cust-

    dia. Melhor ainda a norma AFNOR NF Z 42-013: Especifi caes rela-

    tivas concepo e ao aproveitamento de sistemas informticos para

    assegurar a conservao e a integridade dos documentos armazena-

    dos nestes sistemas, maro de 2009. Outras normas mais completas

    esto em elaborao.

    normas para os sistemas de gesto da segurana da informa-

    o (incluindo privacidade, proteo de informaes delicadas, planos

    de continuidade de negcios).

    normas relativas terceirizao de servios de guarda de ar-

    quivos etc.

    ver tambm o projeto Inter PARES 3 [International Research

    on Permanent Authentic Records in Electronic Systems] que, expli-

  • 54

    Bruno Delmas

    cita normas e padres potencialmente teis (omisses, ausncia de

    classifi cao).

    Na Frana, o Ministrio das Finanas que dirige a poltica de in-

    formatizao da administrao e o desenvolvimento da e-administra-

    o. Motivado pela experincia adquirida pelos Arquivos Nacionais da

    Frana, associou-se a eles para a conservao e segurana de grandes

    quantidades de dados.

    Esto em andamento programas nacionais e internacionais so-

    bre os principais desafios da informtica na dcada de 2010-2020:

    o Big Data, que prev um volume de dados demasiado grande para

    ser tratado com as ferramentas convencionais de gesto; e o Cloud

    Computing (nuvem informtica), que permitiria a conservao on-line

    de forma perene. Tais programas so, atualmente, objeto de reunies

    constantes. Fala-se tambm de Family Cloud Computing ou famlia de

    sistemas integrados.

    A rea est em plena evoluo. Mas o que certo que os ar-

    quivos digitais j constituem um desafio percebido pela sociedade

    inteira como crucial para o futuro. Arquivistas e diplomatistas no se

    desqualificam pelo