‘Dar de comer ao santo’: as festas religiosas afro-brasileiras sob o olhar de Nina Rodrigues

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Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano VII, n. 21, Janeiro de 2015 - ISSN 1983-2850 Dossiê: Devoções, festas e sociabilidades http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/index ‘Dar de comer ao santo’: as festas religiosas afro-brasileiras sob o olhar de Nina Rodrigues Vanda Fortuna Serafim 1 Resumo: A proposta inicial que guiou a construção da reflexão a ser apresentada consistiu em pensar os intelectuais e as crenças e devoções afro-brasileiras, por meio de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e da obra O animismo fetichista dos negros bahianos (1900). O intuito foi trabalhar noção de festa, mapeando e historicizando como a categoria é trabalhada na obra do autor em questão. Os aportes teóricos e metodológicos que possibilitaram pensar como as festas foram representadas por Nina Rodrigues consistiram no conceito de “festa” presente em Ruggiero Romano (1994) e nas noções de “representação” e “visão de mundo” presentes em Roger Chartier (1990,2002). Para a finalidade da compreensão histórica do discurso de Nina Rodrigues sobre festas religiosas afro-brasileiras em consonância com o contexto sociocultural baiano, será fundamental a noção de “formalidade das práticas” de Michel de Certeau (1982). Palavras-chave: Nina Rodrigues. Festa. Bahia. Século XIX. ‘Feed the saint’: the african-brazilian festivals on Nina Rodrigues’ perspective Abstract: The initial proposal that guided the construction of reflection to be presented was to think about the intellectuals and the beliefs and African -Brazilian devotions by means of Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e his book O animismo fetichista dos negros bahianos (1900). The intention was studying the concept of festivals, mapping and historicizing as this category was crafted in this author's book. The theoretical and methodological contributions that made it possible to think how the parties were represented by Nina Rodrigues consisted in the concept of "festivals" by Ruggiero Romano (1994) and the concepts of " representation " and " world view " present in Roger Chartier ( 1990, 2002 ). For purposes of the historical understanding of Nina Rodrigues 's speech about African-Brazilian religious festivals in accordance with the Bahia’s sociocultural context, it will be fundamental the concept of " formality of practices" by Michel de Certeau (1982 ). Keywords: Nina Rodrigues. Festival. Bahia. Nineteenth Century Recebido em 20/12/2014 - Aprovado em 22/01/2015 1 Possui Graduação em História (2007), Especialização em História das Religiões e Mestrado em História (2010) pela Universidade Estadual de Maringá e Doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É Professora Adjunta na Universidade Estadual de Maringá e docente do Programa de Pós-graduação em História (PPH-UEM). Atua como pesquisadora/docente do Núcleo de Pesquisa em História Religiosa e das Religiões (CNPQ), no Grupo de Trabalho em História das Religiões e das Religiosidades (ANPUH) e no Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades (UEM) e Laboratório de Estudos em Religiosidades e Cultura (UEM). Atualmente é a coordenadora do Núcleo Paraná do Grupo de Trabalho História das Religiões e das Religiosidades (ANPUH).

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: A proposta inicial que guiou a construção da reflexão a ser apresentada consistiu empensar os intelectuais e as crenças e devoções afro-brasileiras, por meio de Raimundo NinaRodrigues (1862-1906) e da obra O animismo fetichista dos negros bahianos (1900). O intuito foi trabalharnoção de festa, mapeando e historicizando como a categoria é trabalhada na obra do autor emquestão. Os aportes teóricos e metodológicos que possibilitaram pensar como as festas foramrepresentadas por Nina Rodrigues consistiram no conceito de “festa” presente em RuggieroRomano (1994) e nas noções de “representação” e “visão de mundo” presentes em Roger Chartier(1990,2002). Para a finalidade da compreensão histórica do discurso de Nina Rodrigues sobre festasreligiosas afro-brasileiras em consonância com o contexto sociocultural baiano, será fundamental anoção de “formalidade das práticas” de Michel de Certeau (1982).

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  • Revista Brasileira de Histria das Religies. ANPUH, Ano VII, n. 21, Janeiro de 2015 - ISSN 1983-2850 Dossi: Devoes, festas e sociabilidades

    http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/index

    Dar de comer ao santo: as festas religiosas afro-brasileiras sob o olhar

    de Nina Rodrigues

    Vanda Fortuna Serafim1

    Resumo: A proposta inicial que guiou a construo da reflexo a ser apresentada consistiu em pensar os intelectuais e as crenas e devoes afro-brasileiras, por meio de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e da obra O animismo fetichista dos negros bahianos (1900). O intuito foi trabalhar noo de festa, mapeando e historicizando como a categoria trabalhada na obra do autor em questo. Os aportes tericos e metodolgicos que possibilitaram pensar como as festas foram representadas por Nina Rodrigues consistiram no conceito de festa presente em Ruggiero Romano (1994) e nas noes de representao e viso de mundo presentes em Roger Chartier (1990,2002). Para a finalidade da compreenso histrica do discurso de Nina Rodrigues sobre festas religiosas afro-brasileiras em consonncia com o contexto sociocultural baiano, ser fundamental a noo de formalidade das prticas de Michel de Certeau (1982). Palavras-chave: Nina Rodrigues. Festa. Bahia. Sculo XIX.

    Feed the saint: the african-brazilian festivals on Nina Rodrigues perspective

    Abstract: The initial proposal that guided the construction of reflection to be presented was to think about the intellectuals and the beliefs and African -Brazilian devotions by means of Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e his book O animismo fetichista dos negros bahianos (1900). The intention was studying the concept of festivals, mapping and historicizing as this category was crafted in this author's book. The theoretical and methodological contributions that made it possible to think how the parties were represented by Nina Rodrigues consisted in the concept of "festivals" by Ruggiero Romano (1994) and the concepts of " representation " and " world view " present in Roger Chartier ( 1990, 2002 ). For purposes of the historical understanding of Nina Rodrigues 's speech about African-Brazilian religious festivals in accordance with the Bahias sociocultural context, it will be fundamental the concept of " formality of practices" by Michel de Certeau (1982 ). Keywords: Nina Rodrigues. Festival. Bahia. Nineteenth Century

    Recebido em 20/12/2014 - Aprovado em 22/01/2015

    1 Possui Graduao em Histria (2007), Especializao em Histria das Religies e Mestrado em Histria (2010) pela Universidade Estadual de Maring e Doutorado em Histria pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Adjunta na Universidade Estadual de Maring e docente do Programa de Ps-graduao em Histria (PPH-UEM). Atua como pesquisadora/docente do Ncleo de Pesquisa em Histria Religiosa e das Religies (CNPQ), no Grupo de Trabalho em Histria das Religies e das Religiosidades (ANPUH) e no Laboratrio de Estudos em Religies e Religiosidades (UEM) e Laboratrio de Estudos em Religiosidades e Cultura (UEM). Atualmente a coordenadora do Ncleo Paran do Grupo de Trabalho Histria das Religies e das Religiosidades (ANPUH).

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    A proposta inicial que guiou a construo da reflexo a ser apresentada consistiu em pensar os intelectuais e as crenas e devoes afro-brasileiras.

    No que tange aos intelectuais, a opo se deu por Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), mdico maranhense de trajetria profissional na Bahia, que constituiu obras de referncias para o estudo da cultura afro-brasileira em finais do sculo XIX e incio do sculo XX, as quais me dediquei a estudar durante as pesquisas de mestrado e doutorado.

    No que diz respeito s crenas e devoes, buscando privilegiar a temtica do evento Devoes, festas e sociabilidades, optei por trabalhar com a noo de festa, mapeando e historicizando como a categoria trabalhada na obra do autor em questo.

    Duas seriam as possibilidades de fontes e que levariam a distintas constataes. A primeira delas, O animismo fetichista dos negros bahianos (1900), obra que apresenta as discusses iniciais de Nina Rodrigues sobre as religies em Salvador, por meio de um estudo realizado entre 1895 e 1900, e que traz a viso de festa associada s prticas devocionais. A segunda consiste em Os africanos no Brasil (1932), resultado de quinze anos de pesquisa e na qual assumiu um olhar mais antropolgico, sendo que a discusso levada ao mbito mais terico buscando a compreenso da noo de festa, a partir do conceito de totemismo.

    Para finalidade desta fala, optei por trabalhar com a primeira obra, por trazer interfaces mais diretas entre devoes, festas e sociabilidades, como a temtica do evento pressupe; e, tambm, por ter como recorte histrico, a cidade de Salvador-BA, na dcada final do sculo XIX, tratando de uma festa, ainda hoje, muito importante, que seria a Festa do Nosso Senhor do Bonfim e as lavagens da Igreja.

    Apresentada a fonte, o recorte, a problemtica e o objeto, ou seja, compreender a noo de festa em Nina Rodrigues, para pensar as crenas religiosas afro-brasileiras, em Salvador no final do sculo XIX, por meio da obra O animismo Fetichista dos negros bahianos; preciso estabelecer os aportes tericos e metodolgicos que guiaro a anlise.

    A fim de pensar como as festas foram representadas por Nina Rodrigues parte-se da discusso acerca do conceito de festa presente em Ruggiero Romano (1994) e das noes de representao e viso de mundo presente em Roger Chartier (1990,2002). Para a finalidade da compreenso histrica do discurso de Nina Rodrigues sobre festas religiosas afro-brasileiras em consonncia com o contexto sociocultural baiano, ser fundamental a noo de formalidade das prticas de Michel de Certeau (1982).

    1.Pensando a festa.

    Ao tratar das festas, o historiador italiano Ruggiero Romano (1994, p. 402), inicia com uma provocao. Afirma ele que as nossas festas esto reduzidas a uma sombra do que foram: cocktails, recepes fechadas como doenas contagiosas nos frreos limites de um tempo e de um espao medidos com avareza reenviam a sua imagem empobrecida, ressudam o enfado da excitao bem calculada, a que segue o clculo angustiado dos sucessos e dos falsos passos. Parecem assumir o contrrio das festas, sem distender ou dilatar os coraes, nos tornam mais ridos e contrados.

    A racionalizao do trabalho, e da prpria religio, seria indicativa da percepo que passamos a ter sobre as festas. O trabalho vence o tempo livre e as festividades

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    tornam-se organizaes secundrias, de menor valor. Assim para a mentalidade racionalista, a festa uma atividade e uma forma de associao no motivada pela utilidade e, por isso, intrinsecamente subversiva (ROMANO, 1994, p. 402-403). A festa parece, dessa maneira, resumir tudo aquilo que se pretende combater: a preguia, o esbanjamento, a superstio, o vcio, a ignorncia, o fanatismo e o entusiasmo.

    Por outro lado, a pura racionalidade utilitria traz em si um paradoxo, medida que nega o vnculo social da festa enquanto impulsionador do trabalho. Recorrendo Rosseau, Romano (1994) indica que retirar as festas do povo, implicaria em retirar a sua prpria vontade de viver, eliminaria a motivao do trabalho.

    As teorias da festa tenderam a pens-la ora como transgresso, ora como produo espontnea da sociedade. No primeiro caso, Romano (1994) retoma Freud e a ideia de que a festa excesso permitido, ou melhor, oferecido, a infrao solene de um interdito. Dessa maneira, os homens no se entregam ao excesso para que sejam felizes por uma ordem recebida; o excesso estaria na prpria natureza de toda festa, e o humor festivo estaria na liberdade em fazer o que de outro modo proibido. A festa pensada, ento, como uma transgresso legtima das regras.

    Esse carter transgressor das festas percebido por Romano (1994) como unilateral, pois a liberdade para violar as regras de comportamento habitual nem sempre estaria vinculada a uma alegria festiva. O autor traz o exemplo das celebraes da morte de um Rei em frica, que seguida de excessos e violaes das normas habituais; mas sem acompanhadas de alegria ou festividades. Alm disso, as festas no so necessariamente transgressivas, podendo consistir na representao da hierarquia e dos valores sociais, os reafirmando solenemente (ROMANO, 1994).

    Ao tratar da festa como produo espontnea da sociedade, Romano (1994) recorre a Durkheim e Mauss e percepo de ambos da festa enquanto restaurao peridica das fontes que embasam o social. A festa seria um estado de efervescncia em que o grupo se torna visvel a si prprio enquanto tal. A comemorao festiva eficaz porque seria uma reproduo do real, e no apenas simblica, da gnese da ordem social. A festa deve ser definida como o paroxismo da sociedade que purifica e ao mesmo tempo renova (ROMANO, 1994, p. 406).

    Embora as duas teorias apresentem aspectos esclarecedores da festa, no oferecem definies que incluam todas as formas. As festas no so puramente transgressivas e to pouco recriam um estado nico de indiferenciao. As festas exigem organizao, trabalho e uma orientao complexa. Longe se serem o caos suposto por alguns tericos tendendo ao esbanjamento e a destruio so frequentemente o culminar de uma atividade organizada em muitas sociedades, e justificam a perpetuao de confrarias, corporaes, associaes de bairros e outras formas de agrupamento que tem uma durao permanente e uma influncia constante na sociedade global (ROMANO, 1994, p. 406).

    A opo por refletir sobre estas duas modalidades tericas para pensar a festa, oferecidas por Romano (1994), privilegiam o olhar do autor voltado a contemplar pensadores do incio do sculo XX e, portanto, prximos ao universo cultural e

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    intelectual de Nina Rodrigues. Exposto isto, atentemos a maneira como a festa surge como objeto de interesse em O animismo fetichista dos negros bahianos.

    2.Mapeando as festas.

    A obra O animismo fetichista dos negros bahianos discute a opo ou crena religiosa dos negros africanos e seus descendentes. De cunho mdico e etnogrfico, problematiza porque os negros africanos e seus mestios aderiram ao animismo fetichista e no religio predominante no Brasil, o Catolicismo. A explicao sugerida por Nina Rodrigues a de que, como as condies mentais influenciam na adoo da crena religiosa e os negros seriam uma raa psiquicamente inferior, no poderiam compreender as elevadas abstraes monotestas.

    Atentando ao tema das festas, em especfico, foi possvel mapear sete momentos em que Nina Rodrigues se refere a elas. O primeiro, ao tratar da preocupao dos senhores, ainda no Imprio, com a vadiagem e o trabalho.

    Rodrigues (1935) indica que, no Brasil, compartilhou-se por muito tempo, a convico de que a converso religiosa era uma simples questo de boa vontade. E, que nada seria mais fcil do que cancelar as crenas do negro a fora, por meio de castigos, para substitu-las pelas crenas do branco. Essas convices buscavam satisfazer os interesses do senhor, justificando como verdadeira, ao de mrito, todas as violncias empregadas contra os escravos para convert-los f crist. No era o ardor da catequese que instigavam as violncias dos senhores contra as ditas prticas fetichistas dos negros escravos, mesmo quando se concederam licenas para a realizao dos batuques, mas em primeiro lugar o medo do feitio como represlia pelos maus tratos e castigos infligidos, o temor supersticioso de prticas cabalista de carter misterioso e desconhecido; em segundo lugar, o receio de que as prticas e festas religiosas viessem atrapalhar a regularidade do trabalho e justificassem a vadiagem e; por fim, a coibio prepotente do senhor que no admitia no negro outra vontade que no fosse a sua. Como resultado desse processo, no qual os africanos foram obrigados a vida inteira, a dissimular e a ocultar a f e as suas prticas religiosas, Nina Rodrigues evidenciava que havia permanecido e permaneceria, por muito tempo, na memria do negro, a lembrana das perseguies das quais foram vtimas suas crenas, intimamente associada no seu esprito ao temor de confess-la e de dar explicaes a respeito.

    O segundo momento no qual Nina Rodrigues faz referncia as festa religiosas foi ao tratar do hibridismo entre as crenas africanas e islmicas, demonstrando como as festividades esbarravam nas premissas desta ltima. Uma das motivaes que, para Nina Rodrigues, fazia com que a crena dos mals, povo africano islamizado, tendesse a no ser seguida, consistia na imposio de uma vida severa, no tolerando festas, nem bebedeiras:

    Os mals ou mulsumis bahianos que professam um islamismo mais ou menos impregnados de prticas fetichistas, constituem hoje uma pequena minoria dos Africanos do Estado e no tm conseguido transmitir suas

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    crenas aos creoulos seus descendentes. Um velho africano, pequeno negociante e sacerdote da sua confisso religiosa, me explicava que a religio do negro de santo e mesmo a dos catholicos so muito mais fceis, divertidas e attraentes do que a dos musulmis, que se impem uma vida severa, adstricta observncia de princpios eligiosos que no toleram festas e bebedeiras. Por isso, dizia-me elle, mesmo os filhos dos mals tm pouca tendncia a seguir as crenas dos seus maiores e uma vez emancipados abraam facilmente ou a religio jorubana ou o catholicismo. (RODRIGUES, 1935, p.28-29).

    A terceira referncia s festas surge associada ao conceito de liturgia, buscando

    estabelecer os aspectos ritualsticos do culto. De carter fetichista, a organizao litrgica era muito importante, pois, influenciava a vida exterior e interior de seus adeptos, conquistando constantemente novos seguidores. Marcado pelas danas e as msicas, atraam muito mais o pblico mestio do que os preceitos islmicos. A festividade catlica baiana tornava, do mesmo modo, uma religio prefervel e mais assimilvel aos mestios. Acerca de onde, como e quando ocorriam os cultos e/ou festas fetichistas, Nina Rodrigues explica que:

    O culto fetichista jorubano dos negros e mestios tem na Bahia uma frma exterior complexa, brilhante e ruidosa, Possuem nas cidades, situados nos arrebaldes, templos especiaes (terreiros) para as grandes festa annuaes, e pequenos oratrios e capellas, para as festas ordinrias e as oraes durante o anno. Na capital existe um nmero crescido de terreiros que, num mnimo exagerado, calclo de quinze a vinte entre grandes e pequenos. (RODRIGUES, 1935, p.61).

    Ao tratar da organizao do terreiro, e das funes do og e dos pais de santo,

    vemos a noo de festa se destacar pela quarta vez na obra de Nina Rodrigues, ao esclarecer que A palavra terreiro tem evidentemente duas significaes distintas: noma o sitio, lugar ou casa onde reside o chefe e celebram as festas religiosas, e qualifica a jurisdio de um pontfice fetichista que della toma o titulo de pai ou mi de terreiro (1935, p.69). Em seguida, esclarece que uma das funes do og seria, alm da proteo dispensada, a de vir trazer ao seu santo, presentes e animais para as festas e sacrifcios. O pai ou mai de terreiro, por sua vez, enquanto sacerdote teria de presidir e dirigir as festas do culto exterior (RODRIGUES, 1935, p.71-72).

    A quinta referncia s festas ocorre ao descrever uma festa de iniciao, a de Olympia, onde explica que a iniciao das confrarias complicada e longa. A feitura do santo compreende duas operaes diferentes e complementares: a preparao do fetiche

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    e a iniciao do seu possuidor. Na primeira o pai de terreiro pe sua experincia e percia para preparar o fetiche do santo, depois o iniciado prepara o enxoval do santo e reserva suas economias para a grande festa de iniciao. Como a festividade envolve custos materiais, Rodrigues (1935) indica que alguns negros ficaram velhos e no conseguiram obter dinheiro para a iniciao de seu santo.

    Ao falar do Pad de Exu, o termo festas surge novamente, j que na interpretao de Nina Rodrigues, o primeiro passo da festa despachar Exu para que no haja incomodo:

    Este sacrifcio propiciatrio precede todas as festas de santo, pois sua preterio traria conseqncia infallivel a perturbao da festa. A noite, a inicianda tem de tomar um banho mysthico, a verdadeira purificao lustral, em que troca por vestes novas as que trazia, as quaes so abandonadas, em sinbolo, supponho eu, de completa renuncia vida anterior. (RODRIGUES, 1935, p.77).

    Por fim, a ltima meno, tambm a mais profunda e demorada ao termo festa,

    surge ao falar dos candombls, tratados como sinnimos de festa, enquanto as cerimnias dos ditos cultos fetichistas. Nina Rodrigues explica que o candombl a denominao dada as grandes festas pblicas do culto yorubano. Todo iniciado deve comemorar a feitura de seu santo anualmente, essas festas so chamadas de dar de comer ao santo:

    Quando a festa de algum pai ou mi de terreiro, o candombl toma grandes propores, j porque o pai de terreiro em geral tem ou festeja muitos santos, j porque, sendo estas pocas as datas preferidas para estas iniciaes, acontece que diversos anniversrios acabam por coincidir com aquelles dias e num mesmo candombl se fundem muitas festas distinctas, para concorrerem outros tantos iniciados ou crentes. (RODRIGUES, 1935, p.141-142).

    Essas festas consistem na prtica de sacrifcios. O sangue como elemento essencial da vida tem um grande estima para os santos negros:

    Entre os negros bahianos, como entre os ascendentes de Guin, o sacrifcio chegou a essa phase do seu aperfeioamento ou evoluo em que, instigado pelo desejo de fazer economias, o crente substitui o todo pela parte. Isto , destina-se ao santo o sangue ou uma parte das vsceras dos animaes, sendo o corpo servido aos donos da festa e seus convidados. Nos candombls bahianos, o sacrifcio varia segundo os recursos do crente e as

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    exigncias do ritual, desde um boi, uma cabra, um carneiro at uma gallinha ou pombo. Como em todos os sacrifcios, o sangue, na sua qualidade de vehiculo ou elemento essencial da vida, tem para os santos negros particular estima e preferncia. (RODRIGUES, 1935, p.142-143).

    Para mostrar a assimilao existente entre as crenas dos negros e dos brancos, Nina Rodrigues apresenta como as festividades fazem parte do cotidiano de ambos. Nas festas de Nosso Senhor do Bonfim, por exemplo, indicava haver um grande fluxo de negros nas cidades:

    Ora, j vimos que a sexta-feira o dia da semana consagrado Obatal, aquelle em que os iniciados deste oris so obrigados a andar de branco, trazer contas brancas, lavar as quartinhas e mudar a gua de santo. E para provar que no o sentimento da adorao christan que ali leva a grande massa da populao todas as sextas-feiras, basta saber que quer na ida quer na volta, mesmo dentro dos bondes, as negras entoam samba, esboam dansas que destoam completamente das prticas chistans. As coisas chegam ao ponto de a imprensa diria reclamar providencias da policia em termos duros e por demais severos. (RODRIGUES, 1935, p.179).

    Alm disso, h tambm a lavagem da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, que

    ocorre na quinta-feira da semana da festa e uma pratica copiada das lavagens de santo do culto fetichista e executada de accordo com os preceitos desse culto. (RODRIGUES, 1935, p.180).

    Expostos os sete momentos em que se mapeou a meno a festa em O animismo fetichista dos negros bahianos pode-se agora proceder anlise de como esta prtica foi representada na obra de Nina Rodrigues.

    3.Interpretando as festas.

    Os sete momentos em que as festas aparecem nos escritos de Nina Rodrigues, se por lado representam prticas ritualsticas integradoras. Como as reunies dos africanos e mestios nos momentos de descanso para cultuar as divindades ancestrais, ou as maneiras que diferentes etnias africanas organizam suas formas de culto no Brasil, sejam os mals ou yorubs; ou a importncia de determinadas funes para a manuteno das festas (como o pai de santo e o og) e para a prpria renovao da festa (como o caso dos novos iniciados); e a prpria simbologia da festa enquanto conectora de mundos, Brasil e frica, Ay e Orum por meio de Exu, culminando nos candombls, entendidos por Nina Rodrigues como chave de leitura para compreenso das prticas, costumes e crenas africanas.

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    Por outro lado, o olhar de Nina Rodrigues denuncia outras representaes depreciativas da festa, compartilhadas pelas vises de mundo do contexto histrico em que se insere. A primeira, o medo de que as festividades atrapalhassem o trabalho e a produo. Mais que isto, que os escravos se utilizassem destes espaos para ameaar a integridade de seus senhores por meio do feitio, medo este que permanece na Repblica. O temor para com os mals no Brasil tambm merece ateno, alm das insurreies, Nina Rodrigues indicavam serem conhecidos como grandes feiticeiros. Paralelo a isto, h o catolicismo sendo colocado em questo, se para as prticas islmicas no perdia adeptos pela severidade das normas, quando entravam em contato com as ditas crenas fetichistas, se misturava, hibridizava e descaracterizava. Da surge a polmica do interesse de Nina Rodrigues pelas festas. Elas eram o maior indicador da forma que a religio havia assumido no Brasil. Se durante boa parte do XIX, o Catolicismo foi pensado com agente de civilizao, Nina Rodrigues constatava, por meio das festas, que ao invs de civilizar, incivilizou-se por meio do que denominou "iluso da catequese.

    Nesse sentido, alerta Romano (1994), entre as regras da festa e as regras da vida cotidiana h sempre uma diferena, mas no necessariamente uma situao de inverso. A festa pode opor-se a sociedade normal ou represent-la de forma mais sinttica e ideal em que se torna facilmente perceptvel como uma totalidade. Em ambos os casos, a festa uma experincia de transparncia, um acrscimo de sentido, cujos efeitos se prolongam na sociedade normal. Se, com efeito, o sentido consiste na percepo de relaes, uma diminuio dos obstculos que impedem de perceb-las constitui um acrscimo de sentido.

    O aspecto transgressivo da festa visto, como um reflexo de sua caracterstica fundamental, que a criao de uma totalidade transparente de relaes. A festa integra o que no cotidiano recusado como desordem. A festa unifica as representaes que geralmente se mantem separadas. A festa possui, assim, uma dimenso cognitiva e no apenas transgressiva.

    Essa dimenso cognitiva, muito interessante a medida que o queria transgresso na viso de mundo de Nina Rodrigues, ou seja, a festa como entrave ao ideal de civilizao republicano; ela possibilita ao mesmo tempo, uma melhor compreenso da sua realidade social, evidencia a cultura hbrida, nos gestos, nas danas, nas crenas, nas pessoas. E justamente ai que se torna relevante a formalidade das prticas discutidas por Michel de Certeau (1982), que refere-se ao reemprego de determinadas estruturas em funo de uma ordem que elas no mais determinam.

    interessante pensar como as festas afro-brasileiras so representadas por Nina Rodrigues em contraposio a um ideal catlico civilizador, ainda que institucional e politicamente a Igreja j no mais desempenhe esta funo. Mesmos intactas nelas mesmas, as condutas se inscrevem em outras trajetrias sociais, obedecem a critrios, classificam-se segundo categorias, visam objetivos que mudam. Esta formalidade est mais ou menos de acordo com os discursos oficiais ou tericos; ela os questiona j que organiza tambm uma prtica da leitura ou da audio, isto , uma prtica destes discursos, sem falar das prticas que eles esquecem ou exilam. Uma das tarefas da histria consiste em medir a distncia, ou as relaes, entre a formalidade das prticas e a das

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    representaes; por a se pode analisar, com as tenses que trabalham uma sociedade na sua espessura, a natureza e as formas de sua mobilidade. (CERTEAU, 1982).

    Atentemos ao carter transgressor que as festas assumem no discurso de Nina Rodrigues. Ao tratar em especial do culto ao Senhor do Bonfim, ele se utiliza da descrio de notcias de jornais, a fim de expressar, em seu entendimento, de modo insuspeito a viso que a sociedade baiana teria sobre este festejo, praticado especialmente pelas classes inferiores e impregnado de prticas fetichistas. (RODRIGUES, 1935, p. 17).

    Inicia com uma reportagem de A Renascena, de 24 de janeiro de 1895, que traz a seguinte notcia:

    O mais milagroso e festejado dos santos que temos nesta cidade sem contestao o senhor do Bonfim, cuja rica igreja est colocada no aprazvel arrabalde que tem o seu nome. Toda sexta-feira, dia que lhe consagrado, uma romaria de povo a bonde, a carro ou a p descalo dirige-se logo pela madrugada igreja do miraculoso santo para ouvir pomposas missas que so ditas neste dia, levando garrafas de azeite, velas ou milagres que consistem em quadros e peas de cras representando molstias e desgraas sucedidas aos seus portadores e dos quaes se livraram com vida graas milagrosa interveno do bondoso Senhor (APUD. RODRIGUES, 1935, pp 178-179).

    Diante desta reportagem, Nina Rodrigues explica que sexta-feira o dia de Obatal e que os iniciados neste orix devem usar branco, trazer as contas, lavar as quartinhas e mudar a gua do santo. Nina Rodrigues denuncia que esta festa no seria de modo algum um sentimento de adorao crist, prova disto seriam os bondes carregados de negras que entoavam sambas, esboavam danas e destoariam completamente das prticas crist, ou das que Nina Rodrigues imaginava, pelo menos. Alm de deporem contra a sociedade baiana. Em outro trecho da matria temos a seguinte descrio:

    A lavagem na quinta-feira era uma verdadeira bacchanal um templo christo! Negros aguadeiros e mulheres com potes dagua e vassouras em grande alarido de sambas e vivas entravam pela igreja com o fim de lavai-a e os cantos obscenos, os lunds e a bebedeira reinavam sem respeito ao lugar, sendo toda a scena representada por homens e mulheres semi-fluas e embriagadas! Terminavam sempre com disturbios, pancadaria, ciumadas, ferimentos e at, quando esquentavam-se os animos, davam-se casos de morte. Felizmente o poder competente tem prohibido similhante festa. (RODRIGUES, 1935, p.181).

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    Se por um lado evidenciamos a viso de Rodrigues quanto ao carter

    transgressor da festa para os ideais de civilidade que se pretende instaurar. Por outro lado, a reflexo o leva a constatao de que proibio se limitou festa do Bomfim e no abrangeu a lavagem no dois de fevereiro de Santo Amaro, na festa de N. Senhora das Candeias, onde o smile africano se mantm inaltervel. Alerta ainda que, menos constantes e claras so as equivalncias das diversas invocaes da Virgem Maria. Algumas mes de terreiro diziam corresponder a Oxum e outras a Iemanj. Rodrigues indicava, ainda, no ter identificado a o porqu da correspondncia entre Ogum e Santo Antnio.

    Nina Rodrigues comea, portanto, a estabelecer um quadro da formao religiosa no Brasil, de carter hbrido, perceptvel na equivalncia dos deuses, por meio dos santos e orixs:

    Mas o ponto capital deste estudo que a esta equivalencia das divindades corresponde a mais completa harmonia de sentimentos religiosos, na adorao prestada aos deuses dos dois cultos. E precisamente este facto que d a il da con verso catholica dos negros. Sem renunciar aos eus deuses ou Oriss, o negro bahiano tem, pelos santos catholicos, profunda devoo levada at ao sacrificio e ao fanatismo. Mas esse sacrificio e esse fanatismo no podem ser sino essencialmente fetichistas; os santos catholicos e at mesmo as invocaes do filho de Deus constituem para os negros outras tantos oriss. (RODRIGUES, 1935, p.182).

    Nina Rodrigues frequentemente relata encontrar misturados smbolos cristos e

    fetichistas:

    Juntamente com os outros gris-gris ou talismans fetichistas se encontram por toda a parte pequenas cruzes de madeira, que ao lado das figas, bzios, etc., figuram nas cestas das compradeiras, nos taboleiros das vendedeiras ambulantes, nas vendas, etc., h mesmo uma figa muito curiosa que se encontra em toda a parte e em que esta associao ainda mais completa. O index da mo fechada prolonga-se bastante para terminar em uma pequena cruz. (RODRIGUES, 1935, p.185).

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    O elemento chave da compreenso de Nina Rodrigues seja, talvez, perceber que, tais prticas no se limitam apenas aos negros boais e ignorantes, mas eram compartilhadas por toda a sociedade baiana.

    O numero de brancos, mulatos e individuos de todas as cores e matizes que vo consultar os negros feiticeiros nas suas aflies, nas suas desgraas, nos que crem publicamente no poder sobrenatural dos talismans e feitios, dos que em muito maior numero, zombam deles em publico, mas occultamente os ouvem, os consultam, esse numero seria incalculvel se no fosse mais simples dizer de um modo geral que a populao em massa, a excepo de uma pequena minoria de espritos superiores e esclarecidos que tem a noo verdadeira do valor exacto dessas manifestaes psycologicas. E que no Brazil o mestiamento no s physico e intellectual, ainda affectivo ou dos sentimentos, religioso igualmente portanto.(RODRIGUES, 1935, p.186).

    Rodrigues explica que no apenas o catolicismo que recebe influencias

    fetichistas, remetendo-se aa prticas espritas e a cartomancia:

    Existe nesta cidade, no Bom Gosto da Calada do Bomfim, uma mulher que dirige sesses espiritas muito afamadas e concorridas. Em companhia dos distinctos collegas, Drs. Alfredo Britto, Aurelio Vianna e Juliano Moreira que ali iam em commisso da Sociedade de Medicina Legal da Bahia, tive occasio de assistir uma destas sesses onde devia colher notas curiosas para o presente estudo. A directora da casa, mulher mestia, quasi branca, que se diz cabocla (mestia de indio) ao mesmo tempo directora da troupe espirita e mi dc terreiro, alternando de tempos a tempos as sesses espiritas com os candombls. A historia da revelao da sua vocao esprita ou medianimica no pouco curiosa e expressiva. Vivia em serias difficuldades financeiras com o amante que um italiano, antigo mercador ambulante de livros velhos, quando, tendo ido um dia assistir um candombl africano, caiu de repente em estado de santo e toda vestida e calada como se achava lanou-se a dansar por muitas horas at tombar extenuada. Aquella visita foi uma revelao, a sua fortuna estava feita, era s abrir uma casa de consultas

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    espiritas. Aberta a casa, a fortuna fez-se rapidamente com lucrativa clientela. Ainda no me foi possivel ir assistir o candombl para que alis j estou convidado, mas no tem pequeno alcance a sesso espirita de que fui testemunha. Na casa de um s pavimento, em que funcciona a troupe alm da sala de espera para os consultantes e de alguns aposentos particulares da familia, existem duas peas capitaes. A sala das sesses, installada onde devia ter sido a sala de jantar e a capella armada num quarto vizinho. (RODRIGUES, 1935, p. 194-197).

    A partir desta reflexo elaborada por meio dos candombls, das festas de dar de comer aos santos que resulta uma publicao na Revista Brasileira, que posteriormente torna-se o captulo final de O animismo fetichista dos negros bahianos, intitulado A converso dos frico-bahianos ao catolicismo, sendo que Nina Rodrigues havia anteriormente denominado Iluses da catequese no Brazil, justificando-o sob a argumentao de que:

    Continuar a affirmar em face de todos os documentos, que os negros bahianos so catholicos e que tem xito no Brazil a tentativa de converso portanto, alimentar uma illuso que pde ser cara aos bons intuitos de quem tinha interesse de que as coisas tivessem passado assim, mas que certamente no est conforme a realidade dos factos. (RODRIGUES, 1935, p.199).

    Tornava-se cada vez mais evidente, urgente e necessrio para Nina Rodrigues

    pensar o Brasil em termos prprios e que constituam a sua realidade social, hbrida em todos os aspectos de sua formao, inclusive nas crenas, cujas festas seriam exemplo mximo disto. Consideraes finais

    Para Romano (1994) dois seriam os traos distintivos das festas. Em primeiro lugar a festa qualquer atividade ritual correlata a organizao social do tempo; em segundo lugar a festa uma atividade social agradvel. E estas duas caractersticas so interdependentes; Sendo agradvel, a festa recordada na memria e antecipada na imaginao: tende, pois, a repetir-se no tempo. Tempo cclico e tempo irreversvel, estrutura e histria encontram, pois, o seu equilbrio na festa, que reduz a ordem ao caos, o mundo contraditrio e sem sentido dos eventos.

    O incomodo narrado por Nina Rodrigues em relao a festa compreensvel do ponto de vista de um governo Imperial, e em seguida, Republicano, que buscava criar uma identidade nacional nos moldes de civilizao europeu para apresentar o Brasil ao mundo. Atentando-nos a Festa do Senhor do Bonfim, o olhar estrangeiro dos que

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    vinham pra c ainda no sculo XIX, em nada corroboravam a imagem que se pretendia criar, mas ao contrrio, como demonstram os relatos do viajante austraco, Maximiliano de Habsburgo,

    Pelo vestbulo emanava uma atmosfera alegre e festiva. Em longa fila, estavam sentadas, junto a uma das paredes, moas negras, aleres - sua graa bronzeada no estava escondida, mas envolta em gazes transparentes e lenos de cores berrantes - em meio a uma falatrio estridente, nas posies mais confortveis, sensuais e desleixadas, vendendo, parte em cestos, parte em caixas de vidro, toda espcies de bugigangas religiosas, amuletos, velas e comestveis. Para um catlico respeitvel, todo esse alvoroo deve parecer blasfmia, pois nessa festa popular dos negros, misturavam-se, mais do que o permitido, resqucios do paganismo na assim chamada romaria (1982 [1860], p. 129).

    A mesma insatisfao era compartilhada pelas autoridades eclesisticas catlicas, uma vez que a Festa ficava a encargo da Irmandade do Nosso Senhor do Bonfim, um movimento leigo. Ficou a encardo de Dom Antnio Lus dos Santos reformar os costumes religiosos baianos. Foi ele que, com apoio da polcia, conseguiu proibir a Lavagem do Bonfim, em 1889, por meio da publicao de uma portaria que proibia as lavagens das igrejas e capelas, e pedia apoio sociedade civil. As determinaes da portaria deveriam ser obedecidas em todas as Igrejas, mas como destacou Nina Rodrigues, a preocupao maior foi com a Lavagem da Igreja do Bonfim2. Exposto isto, salutar indicar que no h dvida de que a festa seja qual for a forma que assume est ligada a fruio de certo prazer. Mas quem afirma que este prazer deriva da transgresso das regras normais de comportamento, isola arbitrariamente um aspecto da festa que nunca pode ser de todo dominante. Uma festa totalmente transgressiva, na qual a nica lei fosse a suspenso de toda a lei, mas estaria associada ao prazer, mas a angustia. trgica, e no festiva, pois implica a suspenso de todo o vnculo social; implicando na ausncia de toda a previsibilidade do comportamento do prximo, e por isso uma forte tenso. A festa, pelo contrrio, caracterizada pela maior previsibilidade do comportamento do prximo, por uma solidariedade social mais intensa, que se manifesta em atividades reguladas, de que no pode dar conta um simples estado emotivo (ROMANO, 1994).

    To evidente no caso da festa em questo, que as proibies e crticas Lavagem do Bonfim, durante o sculo XIX, no foram suficiente para que os fiis deixassem de realizar este ato de f. Se em 1889, as portas foram fechadas, as baianas continuaram lavando o adro e prestando suas homenagens at 2009, primeira vez desde o

    2 IPHAN. Festa do Bonfim: a maior manifestao religiosa popular da Bahia. Disponvel em: http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=4224. Acesso: 25/11/2014.

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    sculo XIX, em que as portas da Igreja permaneceram abertas durante a lavagem da escadaria. Em 1938, a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim j havia sido tombada pelo Instituto do Patrimnio Histrico Artstico e Cultural (IPHAN) e, no incio deste ano, a festa recebeu o ttulo de patrimnio imaterial de Salvador. A festa, nesse sentido, justamente um acrscimo da percepo de relaes, dado que une na experincia o que est totalmente separado: as diferentes culturas e as diferentes crenas que formam o povo brasileiro. REFERNCIAS CERTEAU, Michel de. A Escrita da histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1982. CHARTIER, Roger. beira da falsia: a histria entre incertezas e inquietudes. Trad.

    Patrcia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. Trad. Maria

    Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. HABSBURGO, Maximiliano de. Bahia, 1860: esboos de uma viagem. Rio de Janeiro:

    Tempo Brasileiro; Salvador: Fundao Cultural do Estado da Bahia, 1982. ROMANO, Ruggiero. Festa. In: Enciclopedia Einaudi. Ruggiero Romano (org). Lisboa:

    Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1994. Pp. 402-414. RODRIGUES, Nina. O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de Janeiro: Civilizao

    Brasileira, 1935. RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6.ed. So Paulo: Ed.Nacional; [Braslia]: Ed.

    Universidade de Braslia, 1982.