Danilo Meneses - Teoria da Imputacao Objetiva

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Campanha Nacional de Escolas da Comunidade Instituto de Ensino Superior Cenecista

Direito

DANILO PEREIRA MENESES

TEORIA DA IMPUTAO OBJETIVA: relevncia e mbito de aplicao no direito penal moderno.

Una MG Novembro / 2010

Campanha Nacional de Escolas da Comunidade Instituto de Ensino Superior Cenecista Direito

TEORIA DA IMPUTAO OBJETIVA: relevncia e mbito de aplicao no direito penal moderno.

Monografia apresentada ao Instituto de Ensino Superior Cenecista como requisito parcial obteno do ttulo de Bacharel em Direito.

Professor Orientador: Especialista, Jos Carlos Pinto Ferreira Jnior

Una MG Novembro / 2010

Meneses, Danilo Pereira. Teoria da Imputao Objetiva: relevncia e mbito de aplicao no direito penal moderno / Danilo Pereira Meneses. Una MG, 2010. 102 f. : il. Monografia (bacharelado) Instituto de Ensino Superior Cenecista, 2010. Orientador: Prof. Especialista Jos Carlos Pinto Ferreira Jnior. 1. Responsabilidade Penal. 2. Direito Penal. I. Ttulo.

C.D.U.: 343.2

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Campanha Nacional de Escolas da Comunidade Instituto de Ensino Superior Cenecista Direito

TEORIA DA IMPUTAO OBJETIVA: relevncia e mbito de aplicao no direito penal moderno

A Comisso Examinadora, abaixo nominada, aprova o Trabalho de Concluso do Curso de Direito do aluno

Danilo Pereira Meneses

Especialista, Jos Carlos Pinto Ferreira JniorProfessor-Orientador

Mestre, Geraldo Donizete LucianoProfessor-Examinador

Mestre, Fernando Lopes FerrazProfessor-Examinador

Una MG, 26 de novembro de 2010

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Dedico este trabalho primeiramente aos meus pais como forma de recompensa aos anos de luta e carinho dispensados na busca da construo de minha sabedoria. Dedico ainda este trabalho ao professor, orientador e amigo, Jos Carlos, pelas eternas lies dirigidas a mim e aos demais andarilhos da estrada do conhecimento.

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Agradeo a Deus pelas oportunidades que tem me dado em ser o autor da minha prpria histria. Agradeo a todos os grandes professores que influenciaram no que fui, no que sou e no que um dia possa vir a ser. Agradeo ainda a colega de estudos e amiga Knia Sammour, por ter me ajudado a ver o Direito com olhos que jamais imaginaria ter. A todos aqueles que de algum modo me ensinaram os verdadeiros valores da vida, prometo, como forma de agradecimento s sbias lies que a mim proferiram, imortaliz-los em meu corao.

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Poucas punies h em um Estado bem regido, no por muito se perdoar, mas por haver poucos delinqentes. (ROUSSEAU, 2000, p. 43)

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RESUMOA teoria da imputao objetiva tem sido o tema mais controverso da doutrina penal moderna. Com origem na Alemanha e desenvolvida principalmente a partir da sistematizao realizada por Roxin dos estudos de Larenz e Honig, a teoria buscou trazer uma verdadeira correo aos equvocos gerados pela adoo de critrios puramente ontolgicos na busca da justa aferio da responsabilidade penal. As dificuldades e insuficincias metodolgicas das teorias limitadoras do nexo de causalidade calcadas em fatores puramente naturalsticos prepararam um terreno altamente frtil para o surgimento de uma teoria que buscasse como fundamento um contedo axiolgico e normativo hbil a aferir responsabilidade penal, com o parcial abandono da simples relao de causa-efeito de cunho eminentemente naturalista. Diante do vasto arcabouo terico e das vertentes cada vez mais complexas, uma razovel compreenso da teoria da imputao objetiva e o seu correto entendimento tm gerado profundos problemas no cenrio penal ptrio. O presente estudo bibliogrfico busca sistematizar com clareza os aspectos mais importantes de sua construo metodolgica, evidenciando suas mais aceitas vertentes de forma a alcanar a sua real relevncia e influncia exercida sobre o direito penal moderno. Para um verdadeiro crescimento intelectual na busca da justia penal, deve o intrprete da lei repressiva ter a clara concepo do real alcance da teoria e da sua verdadeira origem e significado, uma vez que clara se mostra as vantagens da adoo de critrios objetivos para a formulao do juzo de imputao, embora perigosas tenham se mostrado algumas orientaes hipertrficas em relao ao real alcance e utilidade do tema.

Palavras-chave: 1. imputao objetiva 4. realizao do risco 2. risco permitido 5. funcionalismo 3. risco proibido 6. nexo de causalidade

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SUMRIO1 INTRODUO ..................................................................................................... 9 1.1 1.2 1.3 1.4 2 2.1 2.2 Formulao do problema ......................................................................... 11 Objetivo Geral ........................................................................................... 13 Objetivos Especficos ............................................................................... 13 Justificativa ............................................................................................... 14 O crime e a relao de causalidade......................................................... 22 Teorias sobre o nexo causal .................................................................... 26 Teoria da conditio sine qua non ............................................................. 28 Teoria da causalidade adequada........................................................... 30

REFERENCIAL TERICO ................................................................................ 16

2.2.1 2.2.2

2.2.3 Teoria da causalidade relevante ............................................................ 32 2.3 Teoria da Imputao Objetiva .................................................................. 35 2.3.1 2.3.2 2.3.3 A imputao objetiva de Claus Roxin .................................................... 41 A imputao objetiva de Jakobs ............................................................ 49 A importncia do risco ........................................................................... 60

2.3.4 Crticas imputao objetiva ................................................................. 62 2.4 Questes polmicas sobre a Imputao Objetiva .................................. 64 2.4.1 2.4.2 2.4.3 2.4.4 Modernidade do tema ............................................................................ 65 Imputao Objetiva e supresso da relao de causalidade ................. 66 A necessidade de uma nova teoria do delito ......................................... 66 Ausncia de vantagens na adoo da Teoria da Imputao Objetiva ... 67

2.4.5 Imputao Objetiva e a segurana jurdica ............................................ 69 2.5 Alcance e aplicabilidade da Teoria da Imputao Objetiva ................... 71 3 MTODOS E TCNICAS DE PESQUISA ......................................................... 90 3.1 3.2 3.3 4 5 Tipo e descrio geral da pesquisa (tcnicas de pesquisa) ................. 90 Caracterizao da organizao, setor ou rea do objeto de estudo .... 90 Procedimentos de coleta e de anlise de dados .................................... 91

RESULTADOS E DISCUSSO ......................................................................... 92 CONCLUSES .................................................................................................. 94

REFERNCIAS ......................................................................................................... 97

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1 INTRODUO

A imputao objetiva tema que tem atrado a ateno dos mais renomados doutrinadores penais do cenrio mundial. O desenvolvimento da cincia penal e a mudana dos parmetros aferidores do nexo de causalidade tm gerado grandes polmicas na histria do direito repressivo1. O clssico conceito analtico de crime2 possui trs substratos que foram, por razes didticas, separados, de forma a configurar como criminoso todo fato tpico, antijurdico e culpvel. A subsuno de determinada situao em concreto aos preceitos normativos somente resultar em um resultado criminoso quando preenchidos todos os substratos do delito, sem prejuzo dos seus elementos. Na seara do fato tpico, mostra-se comum a sua subdiviso em conduta, resultado gerado pela conduta, o nexo de causalidade entre aquela e este acrescido da subsuno do fato norma (o que juridicamente denomina-se tipicidade). Nesse diapaso, somente pode ser considerado tpico determinado fato quando guardar uma relao ntima de causalidade entre a conduta e o resultado alcanado. A apurao desse nexo causal tem sido uma das maiores problemticas do direito penal moderno. Historicamente, muitas foram as teorias responsveis pela explicao da questo da causalidade no direito penal. Algumas mostraram-se importantes do ponto de vista histrico, outras apresentaram-se ineficazes e altamente inseguras. Muitos dos problemas enfrentados por tais teorias podem ser atribudos ao fato de terem se despido de carter axiolgico e normativo, considerando a causalidade como evento puramente natural, de contedo eminentemente ontolgico3.

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Direito repressivo no passa de mais uma das possveis nomenclaturas atribudas ao direito penal. A nomenclatura dada a essa cincia do direito pode variar de acordo com o pas e a influncia exercida sobre ele. A ttulo de exemplo, em Cuba utiliza-se a expresso Cdigo de Defesa Nacional, expresso essa tambm defendida pela Escola de Defesa Nacional de Marc Ancel, na Frana; na Itlia, os adeptos da Escola Tcnico-Jurdica Italiana adotam a nomenclatura Direito Repressivo; alguns defensores de concepes totalmente humanitrias aderem terminologia Direito Protetor dos Criminosos. Este trabalho far-se- uso dessas expresses citadas como sinnimas, desconsiderando a influncia ideolgica existente por trs de cada uma. 2 Considera o crime como fato tpico, antijurdico e culpvel uma parcela indiscutivelmente majoritria da doutrina brasileira. 3 Juzo ontolgico se refere ao estudo do ser em sua essncia, calcado em concepes naturalsticas despidas de valor e de carter normativo (REALE, 2002).

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As faculdades de Direito no pas costumam aprofundar o estudo da causalidade apenas analisando a teoria clssica, a teoria finalista e em alguns casos a teoria da adequao social, omitindo-se na devida ateno aos aspectos objetivos da imputao que confere elementos mais modernos para atribuio de

responsabilidade penal. Diante da problemtica ideolgica envolvendo o dogma causal, a teoria objeto deste estudo surge como uma possvel soluo para o problema: tal construo ideolgica no estaria presa unicamente ao nexo de causalidade, mas sim, configuraria uma problemtica de imputao. Restaria Jurisprudncia4 propor um critrio seguro para definir quando determinado fato penalmente relevante poderia ser imputado a um determinado agente: nesse contexto que surge a teoria da imputao objetiva com a delineao que modernamente tem se apresentado. Estudada de forma um tanto quanto tmida no plano jurdico nacional, tal doutrina busca resolver as questes do dogma causal j na seara objetiva, prescindindo de aspectos subjetivos (dolo e culpa) para limitar a cadeia causal de acontecimentos. Essa construo nos revela o quanto a doutrina ptria tem se mostrado atrasada em relaes s modernas vertentes do direito penal. preciso evoluir para que a responsabilidade penal no fique presa apenas a aspectos subjetivos, que normalmente se mostram de dificlima constatao e comprovao. O desenvolvimento da teoria em estudo gerou muitas polmicas e divergncias, principalmente no contexto do direito penal alemo, onde as bases funcionalistas5, em oposio ao finalismo, se dividiram em diferentes ideologias, o que gerou a falta de homogeneidade dos critrios adotados para auferir a imputabilidade objetiva de determinado resultado. A diferenciao criada no desenvolvimento da teoria fez com que duas vertentes distintas se sedimentassem: uma primeira, amparada nas idias de Roxin entende que o direito penal deve proteger os bens jurdicos; contraponto as idias do conterrneo, Jakobs constri toda sua teoria baseado na estabilizao normativa,

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A palavra Jurisprudncia, quando utilizada no sentido de Cincia do Direito, deve ser empregada com letra maiscula. 5 O funcionalismo no direito penal tem como premissa bsica o fato do Direito em geral, juntamente com o direito penal em particular, ser instrumento que se destina a garantir a funcionalidade e a eficcia do sistema social e dos seus subsistemas.

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explicitando que no cabe ao direito penal proteger bens jurdicos, mas sim a prpria norma, sendo o principal objetivo deste a estabilizao do ordenamento. A insero do estudo do tema no cenrio tupiniquim tem gerado bastante dissidncia, no se restringindo a aspectos conceituais, mas abrangendo principalmente a real aplicao e utilidade da moderna teoria 6. Configura-se uma grande celeuma a delimitao do real alcance das influncias da teoria da imputao objetiva no direito ptrio, sem prejuzo da mesma ocorrncia no cenrio mundial. A incluso da ousada teoria em um cenrio de juristas conservadores e altamente influenciados pelas razes finalistas welzelianas7 tem sido feita de forma individual e no sistmica, gerando um conflito de opinies e digresses totalmente equivocadas do contedo e real contribuio da teoria para o direito penal brasileiro. A teoria da imputao, embora seja muito mais antiga do que se imagina, parece estar ainda em fase de amadurecimento, de forma que o exagerado casusmo na sua abordagem e a excessiva utilizao do mtodo tpico (partindo do caso concreto para a regra geral) tem retardado seu processo de homogeneizao. So as controvrsias e desentendimentos que contribuiro para a sedimentao do real objetivo da teoria em estudo, que por ora, parece ignorado por muitos doutrinadores brasileiros.

1.1 Formulao do problema

A impossibilidade de alcance da sistemtica do dogma causal despido de critrios normativos e axiolgicos tem gerado no direito penal moderno o que se pode denominar de crise do dogma causal. Em oposio a esse pensamento, surge a necessidade de criao de critrios objetivos para atribuio da responsabilidade penal e possvel imputao de fatos a seus autores.

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Alguns doutrinadores criticam a nomenclatura, sustentando que uma anlise profunda leva a crer que a teoria muito mais antiga do que a priori poderia se imaginar. Tal anlise ser feita de forma pormenorizada em momento oportuno. 7 Hans Welzel, penalista alemo que revolucionou o direito penal no mundo, contrapondo-se teoria clssica dominante poca, formulou a teoria finalista da ao. Dentre as novidades trazidas pela teoria, parece no haver dvida de que a que mais influenciou o direito penal foi do deslocamento do dolo e da culpa para a conduta, visto que at ento aquelas pertenciam ao terreno da culpabilidade.

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Nesse contexto, surge a teoria da imputao objetiva, com um contedo altamente confuso e complexo, causando inmeros problemas para sua efetiva adoo e utilizao pelos sistemas penais contemporneos. A insegurana de determinados critrios como o mbito de proteo da norma ou at mesmo a hipertrofia exagerada do seu real espectro de abrangncia tem causado vrios obstculos de ordem ideolgica. Muito se critica na doutrina ptria a adoo da teoria da imputao objetiva, apesar dos nada modestos elogios. A importao da teoria das vertentes alems parece no ter chegado ao cenrio nacional sem grandes abalos e contradies. Tais incoerncias e discrepncias ideolgicas, aliadas ao alto grau de instabilidade dos conceitos jurdicos por ela trazidos, alimentam a base crtica de seus opositores. Nesse diapaso, vrias so as vertentes que surgem com a proposta de realizar verdadeiras emendas casusticas teoria da imputao objetiva, propostas estas muitas vezes amparadas em critrios totalmente vulnerveis, que mais possuem o condo de confundir o intrprete do que realmente esclarecer a correta interpretao e aplicao da lei penal. No bastassem as crticas recebidas pela teoria da imputao objetiva por parte da doutrina conservadora, os prprios defensores advogam que alguns critrios da teoria ainda se encontram em fase de evoluo. Sustentam que a sua aplicao prtica ainda no se mostra segura e confivel. Nesse clima de dvidas, muitas perguntas se fazem: Quais so os reais benefcios da adoo da teoria da imputao objetiva? Deve-se analisar primeiro o aspecto subjetivo ou objetivo de um determinado fato para atribuir responsabilidade penal? Quais os critrios utilizados para imputar objetivamente determinado fato a algum? Diante do fato de que essas respostas mudam sensivelmente de acordo com a linha de pensamento adotada em relao imputao objetiva, somente com muito amadurecimento e estudos no sentido de definir o real alcance da teoria e a benesse de determinados pontos inovadores por ela trazidos, pode-se pensar em utiliz-la de forma a promover uma contribuio saudvel para a o alcance da to almejada justia penal.

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1.2 Objetivo Geral

Identificar minuciosamente os aspectos da teoria da imputao objetiva para facilitar a delimitao da sua real relevncia e aplicao no direito penal moderno, criando uma soluo saudvel do ponto de vista penal e justa do ponto de vista social para a questo da atribuio de responsabilidade penal no direito.

1.3 Objetivos Especficos

Descrever os elementos gerais das principais vertentes da teoria da imputao objetiva e suas mais coerentes formas de aplicao. Promover um efetivo esclarecimento da real abrangncia da teoria da imputao objetiva de forma a delimitar sua rea de atuao e sua real influncia nas teorias do delito, sem abandonar o dogma natural da causalidade, de forma a rechaar o nexo pautado em valores puramente ontolgicos, estabelecendo uma relao de complementaridade entre o nexo de causalidade e o nexo de imputao por meio da conjugao de fatores axiolgicos e ontolgicos, servindo aqueles, como espcies de filtros de imputao em relao a estes. Oferecer a forma mais segura da aplicao da teoria da imputao objetiva, esclarecendo conceitos de risco permitido, risco proibido, mbito de proteo da norma e delimitando os conceitos de acordo com o bem jurdico tutelado pela norma penal, sem prejuzo do apontamento dos critrios que realmente revelam relevncia prtica e merecem adoo. Alcanar uma coerente aplicao da teoria da imputao objetiva de forma a evitar a ingerncia do intrprete em fatores de ordem subjetiva em casos em que a atipicidade de condutas deve ser vista de plano sobre a tica puramente objetiva, uma vez que objetivamente falando, a atribuio de responsabilidade um problema de imputao, no um problema de causalidade.

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1.4 Justificativa

A imputao objetiva o tema mais controverso e nebuloso do direito penal moderno. A problemtica no se restringe ao cenrio nacional, sendo alvo de debate por vrios autores mundialmente conhecidos. medida que a discusso se alarga, mais elementos diferenciadores vo surgindo e menos homogeneidade vai ganhando a teoria. Por tratar-se de uma teoria que recentemente ganhou a ateno devida dos penalistas de todo mundo, ainda se mostra em fase de desenvolvimento, na qual a devida aplicao e compreenso s ser possvel aps rduos debates e estudos em relao sua verdadeira relevncia e mbito de aplicao. O tema ainda pouco tratado por juristas, principalmente no que tange ao cenrio brasileiro, mas tal fato no tem o condo de reduzir sua importncia. A teoria da imputao objetiva ainda carece de critrios seguros e precisos para sua devida implantao no sistema penal a ttulo definitivo, uma vez que seus elementos constituem verdadeiros fantasmas quando da anlise do fato tpico. Porm, devido falcia dos meios ontolgicos de anlise da causalidade, a imputao objetiva tem se mostrado cada vez mais precisa e aplicada no direito moderno, evidenciando a necessidade cada vez mais crescente de aplicao de critrios axiolgicos e normativos na tarefa de atribuio de responsabilidade penal. A limitao da relao de causalidade amparada em critrios de ordem puramente subjetivos tem se mostrado cada vez mais falha e ineficiente, dando lugar necessidade de um estudo mais aprofundado da aplicao de critrios normativos como complemento ao dogma causal. Em uma sociedade de perigos, o eixo principal no qual orbita o direito penal parece cada vez mais se sustentar no limite da permisso do risco, fator esse determinante da necessidade de observao dos critrios objetivos de imputao, dado que ao redor do risco que a imputao objetiva orbita. Diante do j exposto, o aprofundamento do tema se mostra essencial para o desenvolvimento da Jurisprudncia, uma vez que somente retirando a nebulosa fumaa que se interpe entre o fato e a sua possvel imputabilidade ao agente

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causador legitima-se a atribuio da responsabilidade penal, abstraindo da norma a sua correta compreenso.

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2 REFERENCIAL TERICO

A Cincia do Direito necessita de rduo trabalho interpretativo para alcanar os fins sociais para os quais fora desenvolvida. Modernamente, v-se como objetivo do Direito a consecuo da justia entre os homens, fato este que constitui elemento fundamental para o convvio social e a realizao do bem individual e comum (BITTAR, 2003). A teoria da imputao objetiva se apresenta como um dos temas mais relevantes do direito penal hodierno, no apenas no ponto de vista ptrio, que por sinal, ainda no se encontra maduro em relao ao assunto, mas principalmente no mbito da doutrina internacional. Gradativamente a teoria vem atraindo cada vez mais a ateno dos juristas brasileiros, embora sua utilizao prtica ainda prescinda de homogeneidade e unanimidade, tanto nos critrios, quanto na efetiva aplicao (PRAZAK, 2009). Muitas dvidas e discrepncias envolvem a apreciao do tema em anlise, que por sinal, fruto do desenvolvimento da sociedade, no estando unicamente atrelado questo jurdica, transcendendo tal plano em uma notria ingerncia sobre a dimenso social. Evidente o fato de que as teorias e o desenvolvimento destas esto atrelados a fatores culturais, ideolgicos e principalmente sociolgicos. O Direito s legtimo quando no d as costas sociedade, mas, pelo contrrio, consagra em forma de normas cogentes os preceitos que nela j se encontram. A teoria em anlise rompe com paradigmas j consagrados no plano jurdico, causando uma espcie de reviravolta no estudo da causalidade, tendo em vista que diante da teoria, ineficaz se mostra a adoo de critrios puramente naturais para auferir responsabilidade penal. A diferenciao entre conduta, resultado e ato mostra-se imprescindvel para compreenso do tema:

Conduta a simples manifestao de vontade. O resultado corresponde alterao do mundo exterior causado pela conduta. Conduta no se confunde com o ato. Este um momento daquela. Se um indivduo mata o outro com diversos golpes, h vrios atos, mas uma s conduta. (SILVA, 2002, p. 86)

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O significado de conduta de suma importncia para compreenso dos temas que sero tratados pela teoria em estudo. Em funo do conceito acima mencionado fica claro que jamais poder haver confuso entre conduta e ato, tratando este de pressuposto existencial daquela, tendo em vista de que no h conduta sem atos. importante lembrar que a conduta humana requisito essencial do fato tpico, [...] como a norma um comando do dever ser, de nada adiantaria proibir um evento da natureza (JUNQUEIRA8, 2009, p. 54). Nesse contexto, h quem afirme que a imputao objetiva desorienta, porque ela pode ser entendida como uma manifestao, no plano do direito penal, de um dos fenmenos mais interessantes no s do Direito, mas do mundo em que vivemos atualmente: o pluralismo (GRECO, 2002, p.169 apud FERNANDES, 2007, p.1). Segundo Fernandes (2007), de fato, pode-se dizer que a imputao objetiva assusta, tendo em vista que ela remove um terreno que j parecia sedimentado, promovendo uma desconstruo de padres j consolidados, fenmeno este que ocorre em perfeita harmonia com o pluralismo epistemolgico9 caracterizador da poca contempornea. Na mesma linha de entendimento, mostram-se oportuna a seguinte lio:

Em pleno sculo XXI, o mundo enfrenta nova crise em seus paradigmas ideolgicos. Chegamos ao fim de uma era moderna com espritos desiludidos pelas profecias de exaurimento da capacidade explicativa das grandes narrativas ideolgicas. Pregou-se o fim do marxismo e at mesmo o fim da religio, o fim da cincia, o fim da evoluo, o fim da histria. A ps-modernidade, que a princpio poderia sugerir a superao dos esquemas explicativos dos grandes discursos, ainda no encontrou linhas interpretativas prprias para a melhor maneira de composio social. Ensaiando os primeiros movimentos, a nova era no foi capaz de estabelecer seus paradigmas ideolgicos. No obstante, a temporalidade ps-moderna parece exigir a reconciliao das construes tericas com a realidade social. A perspectiva concreta para as teorias, no contexto de ausncia de novos paradigmas, tem estimulado esforos para a reciclagem de antigas preposies tericas, de velhas solues polticas. (ROCHA, 2002, p.143 apud FERNANDES, 2007, p.2)

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Segundo o autor, o conceito de conduta para o funcionalismo varia de acordo com a corrente adotada, uma vez que no conceito de Jakobs esta seria o no evitamento de um resultado evitvel, enquanto para Roxin, compreenderia toda manifestao da personalidade (JUNQUEIRA, 2009, p. 54). 9 O pluralismo epistemolgico revela-se na temtica jurdica, fazendo com que surja uma nova hermenutica, onde mais do que a razo cartesiana do sim ou no, mostra-se presente a ponderao de interesses e a reelaborao terica, filosfica e prtica do estudo do Direito, como bem acentua Nogueira (2003).

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Jakobs (2003, p. 27), sustentando entendimento anlogo e exaltando a existncia de uma sociedade pluralista no mundo jurdico contemporneo, afirma com convico que o Direito da atualidade no garante tanto contedos fixos, mas, ao contrrio, condies de funcionamento de uma sociedade pluralista. Sobre a tica penalstica vivencia-se atualmente o paradoxo de uma sociedade psindustrial resultante de um sistemtico processo de modernizao, onde coexistem idias antagnicas capazes de causar uma crise na ideologia, tendo em vista que se sustenta o fortalecimento do direito penal e ao mesmo tempo advoga-se pela aplicao de um direito penal mnimo, atribuindo este a qualidade de ultima ratio10. A lei penal deve ser sria e capaz de tranqilizar a opinio pblica, gerando a conseqente ordem social, sob pena do direito penal obter carter puramente simblico, onde, do ponto de vista prtico, os riscos no se neutralizam, havendo uma espcie de promoo de tal ramo do direito, o que necessariamente no conduz justia penal, fazendo desta um mero difusor ideolgico (FERNANDES, 2007). Nesse diapaso, nota-se que a sociedade cada vez mais se mostra como uma sociedade de riscos. Partindo deste pressuposto, evidencia-se que as relaes sociais tendem cada vez mais a criar um grau de periculosidade ao direito alheio, revelando-se de extrema importncia a delimitao da tolerabilidade de tais riscos, para somente aps tal anlise se justificar a interferncia do direito repressivo. Portanto, no parece equivocada a concluso de que o moderno sistema penal orbita em torno do risco, sendo de suma importncia caracteriz-lo como proibido ou permitido para ento, e somente ento, legitimar a atuao estatal por meio do direito penal e punir os responsveis pela prtica dos atos contrrios ao ordenamento. A evoluo da sociedade carrega consigo a evoluo jurdica: muitas das inovaes jurdicas nascem, seno para exprimir, ao menos para colocar, no grande escaninho dos direitos, cada nova forma de atividade introduzida por quaisquer inovaes (TARDE, 2002). Os riscos da sociedade moderna so menos bvios do que os riscos gerados nas sociedades mais antigas, dessa forma, como bem salienta Filho (1982, p. 5) uma

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O direito penal agiria como uma espcie de soldado de reserva, somente agindo quando os demais ramos do Direito (administrativo, civil, etc.) no oferecessem meios eficazes de combate s condutas socialmente indesejveis.

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exata concepo do Direito no poder desprezar esses aspectos do processo histrico, ao enfatizar a necessidade do Direito acompanhar a evoluo histricosocial. Atualmente, os riscos costumam ser intocveis, apesar de estarmos todos expostos de alguma maneira a eles e suas conseqncias. A ttulo de exemplo, no podemos ver ou tocar as condies climticas que gradativamente esto se deteriorando, o mesmo acontecendo com os nveis de poluio, a diminuio da matria prima e o processo de globalizao sem controle poltico. nesse ponto que a sociedade tem um importante papel a desempenhar (GARCIA, 2003). Caracterizando os riscos modernos, oportuna a seguinte lio:

Os riscos modernos atingem justamente aqueles campos nos quais se executa a modernizao da nossa vida, campos que expandem e em uma boa parte ainda so desconhecidos: a globalizao da economia e da cultura, o meio ambiente, as drogas, o sistema monetrio, a migrao e integrao, o processamento de dados, a violncia por parte dos jovens. (SILVA, 2008, p. 2)

No plano ideolgico e cientfico j mencionado, o desenvolvimento da teoria do delito sofre grandes mutaes. Para que se considere determinado fato criminoso de forma a legitimar a atuao do direito repressivo, necessita-se de uma conduta humana geradora de um resultado jurdico desaprovado, sendo imprescindvel a adequao dessa conduta lei, sem prejuzo da presena do nexo de ligao entre a conduta e o resultado jurdico gerado. A relao que se estabelece entre a conduta humana e o resultado por ela produzido intitulada pela doutrina de nexo de causalidade e sua presena indispensvel para a aplicao da sano11 penal. O direito penal tem na relao de causalidade o campo de trabalho por excelncia da teoria do delito e [...] dita relao o fio condutor da compreenso do evento delituoso (FERNANDES, 2007, p.3). Nesse contexto, a causalidade est entre os conceitos que mais sofrem significativos efeitos da evoluo cientfica e seu estudo se apresenta como conditio sine qua non para a exata compreenso do direito penal. Essa a razo pela qual o direito penal se posta na mira de influncia de tantas mudanas no paradigma cientfico at ento dominante (FERNANDES, 2007, p.3). A questo da causalidade

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Sano todo e qualquer processo de garantia daquilo que se determina em uma regra (REALE, 2003, p.72).

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e a crise do dogma causal tem se mostrado um dos grandes problemas da histria do direito penal, principalmente porque a causalidade no se restringe a aspectos puramente jurdicos:

[...] a questo da causalidade no uma questo exclusivamente jurdica. Tanto a filosofia quanto as demais cincias sempre se ocuparam da causalidade. O declnio da hegemonia da legalidade concomitante do declnio da hegemonia da causalidade (TAVARES, 2002, p. 255 apud FERNANDES, 2007).

A causalidade tem se mostrado como um tema muito controvertido nas cincias da natureza e na filosofia. A fsica quntica, que se ocupa da compreenso dos fenmenos de ondas e partculas que ocorrem no plano atmico, concluiu que os processos dentro dos tomos no so causalmente determinados, mas seguem leis estatsticas, que s permitem enunciados calcados na probabilidade. Assim a fsica exerceu influncia direita na questo do dogma causal, uma vez que se identificou, com respaldo na teoria da relatividade, que os tomos no agem de forma prdeterminada, pelo contrrio, seus movimentos esto ligados probabilidade (FERNANDES, 2007). Nesse contexto ideolgico, pareceu difcil sustentar uma causalidade puramente natural, guiada nica e exclusivamente por fenmenos empricos12, uma vez que se mostrou evidente a necessidade de novos mecanismos para imputar determinado resultado a seu agente. Os estudos de Werner Heisenberg sobre o princpio da indeterminao do tomo do azo ao que se chama de verdadeira revoluo cientfica (FERNANDES, 2007, p. 4). Tal fato atingiu de forma direta as cincias sociais, concluindo-se de forma inequvoca que o Direito no uma cincia linear, devendo-se abandonar o trabalho com sistemas rgidos e estticos e adotar sistemas dinmicos de aferio da causalidade.

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O empirismo uma corrente filosfica que sustenta que o conhecimento nasce do prprio objeto, o qual se apresenta no mundo como realmente , devendo o sujeito apenas exercer papel de mero espectador dessa realidade posta, atuando como observador neutro, objetivo e exato. Desse modo, elemento decisivo no processo de compreenso do conhecimento a preocupao fundamental de que a verdade somente ser alcanada por meio da experincia, sendo imprescindvel ao ato de conhecer a demonstrao experimental no mundo sensvel de toda e qualquer proposio. A experincia se revela como o contato que os sentidos daquele que observa travam com o objeto real (BORGES, 2005).

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Como decorrncia lgica desse fenmeno ideolgico-cientfico, surge a teoria da imputao objetiva que, segundo Stivanello (2003), busca abandonar critrios puramente naturais na aferio da causalidade, optando por utilizar critrios de apoios, criando uma espcie de causalidade natural limitada pela causalidade normativa: assim, a causalidade material entra em crise. Somente a abertura do sistema penal propiciar o rompimento dos obstculos ao desenvolvimento social e jurdico de nova dogmtica. (PRAZAK, 2009, p. 5) O domnio do dogma causal e a conseqente concepo de tipicidade calcada no conceito causal de ao atriburam s teorias da causalidade (que posteriormente sero estudadas) a funo de delimitao do nexo causal. Uma anlise nos mostra que tais teorias no foram suficientes para limitao da cadeia de causalidade e aplicao justa e coerente da norma repressiva. Nesse contexto, a partir do surgimento do finalismo de Welzel e do conseqente desenvolvimento dos elementos subjetivos da tipicidade13, a causalidade perdeu o papel de centro de gravidade da teoria do delito, deixando de ser o nico critrio de limitao da tipicidade (PRAZAK, 2009). A partir do consagrado e revolucionrio finalismo de Welzel, a imputao tpica deixou de ser apenas objetiva (causal), para passar a ostentar tambm em seu teor um aspecto subjetivo, buscando a limitao das premissas radicais do naturalismo. Apesar da extrema importncia dos estudos realizados poca, a nova estrutura proposta pelo autor alemo no teve o condo de resolver uma srie de questes jurdico-penais daquele momento histrico (FILHO, 2007). O mtodo axiomtico-dedutivo calcado nas verdades ontolgicas tpicas do finalismo de Welzel no conseguiu resolver os problemas apresentados no mbito do nexo objetivo de causalidade entre ao e resultado. Assim, necessrio se mostrou o regresso ao mbito objetivo do tipo, transferindo-se a soluo para a esfera normativa, discutida atualmente dentro da Teoria da Imputao Objetiva. De forma bastante sinttica, pode-se dizer que a citada teoria utiliza-se de critrios capazes de atribuir um sentido social ao fato objetivamente tpico, buscando assim, conseguintemente, a delimitao do conceito de injusto tpico (PRAZAK, 2009).

13

Mezzomo (2005), em posicionamento pacfico na doutrina, afirma que Hans Welzel foi responsvel pela adoo de critrios subjetivos na seara do fato tpico, deslocando dolo e culpa para a conduta, esvaziando a culpabilidade.

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Ainda segundo Prazak (2009, p. 4)

semelhante

evoluo doutrinria e

paradigmtica, entretanto, ainda no se fez refletir, suficientemente, no direito penal brasileiro. A sistemtica penal ptria parece se encontrar arraigada de conceitos positivistas e tecnicistas que h muito tempo j esto ultrapassados pelos sistemas de vanguarda do direito penal no mbito internacional. Para que se possa obter a exata compreenso dos termos abarcados pela teoria em estudo, imprescindvel se mostra a anlise do conceito de crime e da sua influncia nas teorias explicativas do nexo de causalidade que mais ateno mereceu na doutrina ptria.

2.1 O crime e a relao de causalidade

Para que se compreenda os exatos termos e abrangncia da teoria em anlise, revela-se oportuno o estudo, mesmo que superficial, dos aspectos gerais da teoria do crime, com especial ateno causalidade como pressuposto de imputao. Primeiramente, resta mencionar a lio de Bitencourt (2009, p. 256, grifos do autor) de que o direito penal limita-se a regular a atividade humana (parte dela), uma vez que os demais processos naturais no podem ser objeto de regulao pelo Direito, porque so foras ou energias cegas. Assim, resta ao direito penal apenas regular a atividade do homem, que no se trata de energia cega, mas sim, energia altamente inteligente. Diferenciando conscincia e mundo objetivo, conclui-se:

H, assim, a esfera subjetiva, a conscincia e, de outro lado, o mundo objetivo. Este ltimo evolui movido por causas que lhe so prprias. Essa esfera puramente causal denominada, por Lukcs, causalidade, ou seja, algo que possui um princpio prprio de movimento. Sua evoluo acontece na absoluta ausncia de conscincia, ainda que a conscincia, por meio da objetivizao, possa interferir em sua evoluo. (LESSA; TONET, 2008, p. 31)

Dois so os critrios existentes para a conceituao do crime, sendo o primeiro formal e o segundo de ordem material. O primeiro compreende o elemento dogmtico do fato que qualificado como infrao por uma normal penal. J o segundo vai alm, levando em considerao as profundezas das quais o legislador

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extrai os elementos que do contedo e razo de ser ao esquema legal. Formalmente, conceitua-se o crime sob o aspecto da tcnica jurdica, do ponto de vista da lei (JESUS, 2007, p. 1). Ainda nas lies do mesmo autor:

O conceito material de crime de relevncia jurdica, uma vez que coloca em destaque o seu contedo teleolgico, a razo determinante de constituir um fato humano infrao penal e sujeito a uma resposta punitiva. Sob o ponto de vista material, o conceito de crime visa aos bens protegidos pela lei penal. Dessa maneira, nada mais que a violao de um bem penalmente protegido. Sob o aspecto formal, crime um fato tpico e antijurdico. (JESUS, 2007, p.1)

Em verdade o crime no possui elementos, sendo um todo indivisvel. Didaticamente se divide o crime para facilitar sua configurao e compreenso. Para que haja um crime, preciso em primeiro lugar que seja realizada uma conduta (seja comissiva em forma de ao, seja omissiva em forma de omisso), mas nem todos os comportamentos do homem so capazes de constituir um crime, s abrangendo este os comportamentos previstos em lei como reprovveis. Quando ocorre a subsuno (adequao) de um fato da vida real norma penal, surge o que se chama de fato tpico, representando o primeiro substrato do crime. No basta, porm, que tal fato seja tpico para que se configure o delito, sendo imprescindvel que tambm se apresente como contrrio ao Direito, portanto, alm de tpico, o fato deve ser antijurdico. Nesse contexto, mostra-se evidente que, excluda a antijuridicidade, no h crime. Verificada a ilicitude14 do comportamento, mostram-se presente os dois requisitos iniciais para o crime: tipicidade e a antijuridicidade (JESUS, 2007). Para aferio da correta tipicidade do fato, deve-se ter um cuidado especial e buscar a acertada interpretao da norma. Tal interpretao tem como objetivo:

[...] a explicitao do seu real contedo, que no o homem, como rotineiramente se conclui, mas sim o seu comportamento nela normado, resultando da a irrecusvel complexidade do fenmeno interpretativo normativo, e tambm a sua importncia, mais ainda quando atravs da interpretao que se apresenta o valor a ser prestigiado, tendente a mitigar a tenso desencadeada pela dvida no ordenamento, com a prtica finalidade de criar-se condies de uma deciso favorvel (NETO, 2006, p. 79).

14

O termo ilicitude foi aqui utilizado como sinnimo de antijuridicidade, no sendo objeto desse estudo a digresso terica acerca de qual dos termos seria terminologicamente mais adequado.

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No suficiente a tipicidade e a antijuridicidade para autorizar a condenao, sendo imprescindvel que esteja presente um juzo de reprovabilidade da conduta, traduzido pela culpabilidade. Ausente a culpabilidade (para os que adotam a teoria bipartida15), h crime, porm, no se pode aplicar a pena. J para os autores que adotam a teoria tripartida, a culpabilidade substrato do delito e sem ela no que se falar em crime. De acordo com a doutrina tradicional, o fato tpico nos crimes materiais composto de conduta humana dolosa ou culposa, resultado, nexo de causalidade material entre a conduta e o resultado e o enquadramento do fato material a uma norma penal incriminadora (tipicidade em sentido estrito). Diante desse conceito, observase que h crime sem resultado na doutrina clssica, onde no h que se falar em resultado naturalstico e nexo de causalidade material (JESUS, 2007). Como anteriormente mencionado, a conduta um dos elementos do fato tpico. Conduta ao ou omisso humana consciente e dirigida determinada finalidade16 (JESUS, 2007, p. 4). Da conclui-se que os elementos da conduta so um ato de vontade dirigido a uma finalidade acrescido da atuao positiva ou negativa dessa vontade no mundo exterior. A conduta a simples manifestao da vontade, j o resultado naturalstico representado pela alterao no mundo exterior causada pela ao. No que se refere ao comportamento, ele se apresenta tanto em forma de ao quanto em forma de omisso. Resta oportuno diferenciar resultado naturalstico de resultado normativo. Segundo Jesus (2007, p. 4) resultado naturalstico ou material a modificao no mundo exterior provocada pelo comportamento humano voluntrio positivo e resultado normativo se refere afetao de um interesse protegido pela norma penal. Essa afetao corresponde leso ou perigo de leso a um bem jurdico penalmente tutelado. Para a correta caracterizao de um fato como tpico, essencial se mostra a presena de um elo entre a conduta e resultado: nesse contexto que surge a imputao objetiva. A relao de causalidade entre a conduta e o resultado constitui15

Os defensores do finalismo bipartido no consideram a culpabilidade como substrato do crime, tratando-a como simples pressuposto de aplicao da pena. 16 Tal conceito no esconde as influncias exercidas pelo finalismo no direito penal ptrio.

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elemento objetivo do tipo (JESUS, 2007, p. 5). O nexo causal pode ser visto segundo Vieira (2006, p. 2), como um requisito para o fato tpico, sendo o elo necessrio que liga a conduta praticada pelo agente ao resultado por ela produzido. Segundo as sbias palavras de Bitencourt (2009, p. 257), em razo da integrao da descrio tpica de ao e resultado, surge a necessidade de identificar-se um terceiro elemento, que a relao causal entre aqueles dois. Buscando sintetizar os conceitos de nexo de causalidade j apresentados, Moraes (2010, p. 62) esclarece que a relao de causalidade a conexo estabelecida entre a conduta do agente e o resultado naturalstico produzido. Junqueira (2009, p. 57) diz ser o nexo de causalidade o liame entre a conduta e o resultado, necessrio (mas no suficiente) para que possa atribuir responsabilidade pelo resultado do agente. Apesar de parecer simples a identificao da relao de causalidade, uma anlise mais profunda nos leva a diversos problemas na aferio desse elemento. Segundo Jesus (2007, p. 5) nem sempre fcil o estabelecimento do nexo causal entre o comportamento e o resultado. Diante dessa dificuldade e da inquestionvel falha ao amparar a causalidade em critrios puramente ontolgicos e naturais, surge a necessidade de criao de novos parmetros para sua identificao, preparando um terreno frtil para a hipertrofia da teoria da imputao objetiva (o que no desejvel do ponto de vista terico e prtico). Afirma Capez (2009, p.1) que o nexo causal no pode ser concebido, exclusivamente, de acordo com a relao de causa e efeito, pois o direito penal no pode ser regido por uma lei da fsica. Portanto, nas palavras do festejado autor, a causalidade no pode amparar em fatores puramente objetivos, sob pena de reduzir uma cincia dotada de valores simplesmente relao fsica de causa e efeito, o que poderia levar a resultados desastrosos. A exata compreenso do tema requer a anlise das mais importantes teorias da causalidade e da sua respectiva influncia no nosso ordenamento.

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2.2 Teorias sobre o nexo causal

Vrias foram as teorias explicativas do nexo de causalidade. Algumas delas cheias de falhas, outras ainda adotadas pelo nosso ordenamento. Tendo em visto a grande quantidade de teorias e a pouca representatividade de algumas delas na histrica tarefa de explicar o nexo de causalidade do ponto de vista penal, este trabalho se restringir a apresentar os aspectos gerais das principais teorias limitadoras da causalidade na histria do direito penal. Praticamente todos os princpios sistemticos que se encontram presentes no nosso moderno direito penal possuem seu surgimento em decorrncia de um longo processo histrico, no qual pode ser distinguido com base em critrios filosficos e concepes sistemticas que sustentam cinco pocas distintas: naturalismo, neokantismo, totalitarismo ou irracionalismo, finalismo e funcionalismo. O marco inicial de todo esse processo evolutivo se encontra na Escola Clssica, surgida simultaneamente com a obra de Beccaria, ocasio na qual se observou a primeira tentativa de sistematizar o direito penal. Essa sistematizao se deu como forma de oferecer um contraponto arbitrariedade e discricionariedade at ento existentes no que diz respeito ao papel do Estado no controle social (PRAZAK, 2009, p.7). Imortais so as lies de Beccaria:

Seria esse, talvez, o momento de examinar e distinguir as diferentes espcies de delitos e a maneira de puni-los; mas, o nmero de variedade dos crimes, segundo as diversas circunstncias de tempo e de lugar nos lanariam num atalho imenso e fatigante. Contentar-me-ei, pois, com indicar os princpios mais gerais, as faltas mais comuns e os erros mais funestos, evitando igualmente os excessos dos que, por um amor mal entendido da liberdade, procuram introduzir a desordem, e dos que desejariam submeter os homens regularidade, dos claustros. [...] sentir-me-ia feliz se no tivesse outro mrito alm de ter sido o primeiro que apresentou na Itlia, com maior clareza, o que outras naes ousaram escrever a comearam a praticar. Mas, se, sustentar os direitos do gnero humano e da verdade invencvel, contribu para salvar da morte atroz algumas das trmulas vtimas da tirania ou da ignorncia igualmente funesta, as bnos e as lgrimas de um nico inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da felicidade consolar-me-iam do desprezo do resto dos homens (BECCARIA, 2004, p. 5).

Sob forte influncia do pensamento iluminista e do contratualismo de Rousseau, Beccaria sustentava que o fundamento do direito de punir estaria no depsito,

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realizado por cada indivduo, de parte de sua liberdade, em prol do bem comum (PRAZAK, 2009). Na esteira desse raciocnio, o contratatualismo de Rousseau sustentava que cada um, enfim, dando-se a todos, a ningum se d; e como em todo scio adquiro o mesmo direito que em mim cedi, ganho o equivalente de tudo e perco e mais foras para conservar o que tenho (ROUSSEAU, 2000, p. 30). Em apertada sntese, Beccaria, apoiado nas idias de Rousseau, sustentava os primrdios do que viria a configurar o carter subsidirio de um direito penal entendido como ultima ratio (PRAZAK, 2009, p. 8). Para a Escola Clssica, os elementos do crime estavam adstritos ao conceito de antijuridicidade e culpabilidade, e nesta ltima encontravam-se os elementos subjetivos do crime. Nesse contexto, no caberia ao juiz a apreciao da lei, mas apenas a realizao de um silogismo perfeito, consistente to somente no dever de constatao do fato. Posteriormente, j com o objetivo de superao de um direito penal de cunho individualista e diretamente ligada intensidade do dano, J. Birmbaum prope uma substituio do conceito de direitos individuais, com o objetivo de colocar o direito penal orbitando ao redor dos bens jurdicos. Partindo de tal contexto doutrinrio, a anlise do nexo causal no configurava questo central na anlise. Neste conceito, de embasamento metafsico, a simples verificao de existncia de uma ao intencional geradora de um resultado tpico j bastava caracterizao como crime. (PRAZAK, 2009, p. 12) Em meados do sculo XIX surge um novo paradigma embasado no Empirismo britnico e no Positivismo europeu, em uma fase que optou por chamar de Naturalismo. Esta dogmtica foi introduzida no Direito por L. Duguit e considerava a realidade como algo mensurvel e empiricamente observvel. Aps as lies de Liszt, a doutrina penal evoluiu da mentalidade clssica para o perodo penal que ficou conhecido como Positivismo Cientfico ou Positivismo Naturalista. Para esse sistema, a tipicidade de uma ao se resumia a seu aspecto objetivo, uma vez que os aspectos subjetivos se encontravam na seara da culpabilidade. Segundo o autor, portanto, a antijuridicidade, nesse contexto, teria natureza normativa, traduzida na incompatibilidade entre a ao tpica e o direito positivo, admitida a verificao de possveis causas de justificao apenas em situaes excepcionais que afastaria a antijuridicidade das condutas presentes no direito positivo (PRAZAK, 2009, p. 1415).

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Diante das formulaes tericas j apresentadas, uma questo ainda pendia de soluo: posteriormente delimitao feita pelo legislador das aes tpicas, ainda faltava identificar quais fatos concretos se subsumiriam queles tipos. Como conseqncia da influncia naturalista e do prprio dogma causal, tal papel ficou atribudo s teorias da causalidade. Assim, o conceito de crime resta vinculado a um nexo material entre uma determinada ao e seu correspondente resultado lesivo (PRAZAK, 2009). Segundo Bitencourt (2009, p. 257), muitas foram as teorias que buscaram identificar, demarcar e explicar a natureza, o contedo e limites dessa relao de causalidade. Para melhor compreenso do tema, iniciaremos os estudos com a apresentao das principais teorias a respeito da causalidade para, somente depois, realizarmos a incurso na teoria da imputao objetiva. Por questes didticas, sero estudadas as trs teorias da causalidade que mais influncia exerceu no direito penal moderno: teoria da equivalncia dos antecedentes; teoria da causalidade adequada; teoria da relevncia causal.

2.2.1 Teoria da conditio sine qua nonTambm chamada de teoria da equivalncia dos antecedentes, possui natureza eminentemente mecanicista, reputando-se causa de um resultado toda e qualquer condio necessria para a sua produo. A aferio da qualidade de causa de um comportamento em relao a um evento realizada mediante o mtodo ou processo hipottico de eliminao. (FILHO, 2007, p. 13) A teoria da equivalncia dos antecedentes se ope s teorias diferenciadoras por considerar como causa qualquer evento cuja ausncia no nexo da cadeia causal impediria a produo do resultado. Tal teoria foi desenvolvida no sculo XIX por Julius Glaser no direito austraco, e, posteriormente, aprimorado por M. V. Buri, e baseava-se na teoria da condio, previamente concebida, no mbito das cincias naturais, por Stuart Mill (PRAZAK, 2009, p. 17). Essa teoria, segundo o autor, prev o nexo de causalidade entre ao e resultado a partir de um processo de eliminao hipottica. Em outras palavras: causa do resultado toda condio, seja ela positiva ou negativa, sem a qual o resultado no teria ocorrido. Tal vertente terica considera como causa de um determinado

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resultado cada uma das condies necessrias sua ocorrncia e no a soma de todas as condies. Objeo que normalmente colocada em relao teoria da equivalncia dos antecedentes a de no resolver a questo dos cursos causais hipotticos, como salienta Filho (2007). Outra crtica que comumente dirigida a tal teoria refere-se possibilidade do regresso causal at o infinito, podendo considerar-se como causa toda contribuio para o resultado, gerando assim um resultado um tanto quanto injusto na aferio da causalidade (VIEIRA, 2006)17. O uso do mtodo hipottico de eliminao do professor sueco Thyrn, que consiste na supresso mental da condio verificada para aferio da causalidade, pode fazer com que os pais dem causa ao homicdio cometido pelo filho pelo simples fatos de que o no nascimento do filho homicida evitaria o homicdio (BUSATO, 2008). Ainda nas palavras do citado autor, a teoria da equivalncia dos antecedentes causais, embora muito criticada e portadora de muitas falhas graves, a teoria, em regra, adotada por nosso atual estatuto repressivo. Os defensores da citada teoria rebatem a crtica de possibilidade de regresso ao infinito por meio dos argumentos de Welzel, no sentido de que a cadeia de causalidade fica limitada pelos elementos subjetivos, ou seja, dolo e culpa. Somente pode ser considerado causa (segundo eles) o evento que tenha sido realizado culposamente ou dolosamente pelo agente. Em apertada sntese, segundo Busato (2008, p. 20) a limitao da relao de causalidade objetiva se d atravs dos elementos subjetivos relacionados com o mesmo fato. Mesmo levando em considerao tal soluo, a doutrina moderna tem citado outros problemas na adoo da teoria, uma vez que a causalidade na verdade presumida, e no apreendida: somente o conhecimento emprico da causalidade pode levar concluso a respeito dos efeitos de sua supresso. Para Jakobs (2000, p. 227 apud Busato, 2008, p. 21) o problema do exerccio da supresso mental s pode ser determinado, se sabido, de antemo, se a condio causal, assim, a frmula no passaria de uma espcie de crculo vicioso, uma vez que o conceito que se deve definir aparece de forma oculta no material com o qual17

Corrente o exemplo na literatura ptria de que a aplicao pura e simples de tal teoria, sem a delimitao subjetiva, conduziria constatao de que as atitudes de Ado e Eva seriam causas de qualquer resultado produzido.

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se define. Dessa forma, dizer que causa toda ao sem a qual o resultado no teria ocorrido de todo intil, uma vez que em verdade a frmula de excluso mental pressupe aquilo que ela deveria descobrir (BUSATO, 2008, p. 20-21). Outra crtica bastante presente na doutrina refere-se demasiada ampliao do campo de responsabilizao criminal proposto pela teoria da equivalncia dos antecedentes, uma vez que se baseia em uma cadeia causal de proporo quase infinita (FILHO, 2007). Diante das crticas e da insuficincia da citada teoria na tarefa de resolver todas as questes envolvendo a causalidade, mostra-se oportuno o seguinte comentrio:

[...] por fora das deficincias desta teoria, e com o intuito de super-las, passou a doutrina a formular outras teorias de imputao do resultado e de limitao do nexo causal: a da causalidade adequada, a da condio prxima, da causa eficiente, da causa tpica. A que ganhou maior eco no alcance destes objetivos, contudo, sem dvida, foi a da causalidade adequada (FILHO, 2007, p. 16).

A teoria da causalidade adequada foi uma das que mais influncia exerceu no tema da causalidade como um todo no direito penal. Em razo da importncia do esclarecimento do contedo de seus requisitos e da forma como foi feita toda sua construo dogmtica, ser analisada de forma mais profunda.

2.2.2 Teoria da causalidade adequadaEm contraposio teoria unitria da equivalncia dos antecedentes, surgem as teorias diferenciadoras, que buscam atribuir valores distintos aos eventos que desencadearam ou no no resultado. Dentre essas espcies, importante se mostra a teoria da causalidade adequada, cuja paternidade atribuda pela doutrina ao mdico e estudioso de lgica Johannes Von Kries e que, mesmo estando em verdadeiro declnio, conta com muitos defensores, como Francisco Muoz Conde e Mercedes Garcia Arn. Tais defensores, em sua maioria, no se furtam a acrescentar-lhe a teoria da imputao objetiva como requisito fundamental para o reconhecimento da tipicidade (BUSATO, 2008, p. 24). Segundo a teoria da causalidade adequada, um resultado somente poder ser considerado causado por um comportamento humano quando este tiver sido idneo sua produo. A ao, segundo o mesmo autor, apenas ter a qualidade de

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causa quando for adequada produo do evento, devendo esta aferio de adequao se dar por meio de um juzo ex ante pstumo, o denominado prognstico objetivo posterior (FILHO, 2007, p. 17). Nas lies de Filho (2007, p. 17), o juiz, terceiro imparcial, adotando a teoria da causalidade adequada, aps conhecer o evento concreto no processo, deve elaborar um juzo de adequao, objetivo, observando o fato como se estivesse presente no momento anterior sua realizao. Em apertada sntese, a teoria da causalidade adequada considera causa do evento apenas a ao ou omisso do agente apta e idnea a gerar o resultado (MARZAGO, 2004, p. 1). Embora merecedora tambm de elogios por diferenciar as causas de determinado resultado, a teoria da causalidade no resta imune a ataques. Muito a critica por valer-se em muitas oportunidades do elemento subjetivo do agente para limitar a cadeia causal, e por no oferecer, sob o ponto de vista normativo, critrio seguros para a fixao do adequado e do inadequado (FILHO, 2007, p. 18). Portanto, embora seja coerente considerar como causa aquela condio adequada para a produo do resultado, carece tal teoria de um critrio seguro para aferio do real significado e alcance do termo adequao e da sua capacidade e idoneidade da conduta para gerar o resultado. Com efeito, segundo Filho (2007, p. 18) ao desconsiderar como causa as condies no-adequadas, nega esta teoria um dado da realidade que pode ser verificado por simples percepo sensorial, confundindo portanto, o axiolgico e o ontolgico. O que o nobre autor pretende esclarecer com a afirmativa que a ao humana do ponto de vista jurdico penal poder no possuir o atributo de valor, mas nem por isso deixar de ser. Algo que no atua de forma idnea para produo de determinado resultado por ser tida como sem valor para a produo deste, mas nem por isso deixar de ser uma ao que de alguma forma interferiu no mundo exterior. Embora coerente seja a dogmtica ideolgica sustentada pela teoria em anlise, parece sustentvel a aceitao de crticas a tal teoria, uma vez que no possui ela o condo de resolver definitivamente o problema da causalidade no direito penal. Surge ento uma nova teoria com tal objetivo, que, segundo Filho (2007, p. 18) o problema, todavia, convenientemente resolvido pela teoria da causalidade relevante que preferimos denominar de causalidade tipicamente relevante que

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segue em linhas gerais os postulados da causalidade adequada. Em relao a causalidade relevante, alguns comentrios sero oportunamente transcritos. A teoria da causalidade adequada, na verdade, preparou o terreno para o surgimento de uma teoria geral da imputao, tendo em vista que ela valorou a relao de causalidade. No que se refere ao juzo de imputao realizado pela teoria da causalidade adequada, oportuna se mostra o seguinte excerto:

[...] a teoria da causalidade adequada alm de estabelecer a relao de causalidade, estabelece uma base mais adequada para a imputao, ainda que no possa converter-se, simplesmente nela. que, embora a teoria da adequao tenha razo em seus postulados, ela no uma teoria da causalidade, mas sim uma teoria da imputao, j que no maneja simplesmente os elementos causa-efeito, e sim os valora, j que ela no se limita a analisar se h ou no relao de causalidade, mas procura determinar se esta relao ou no relevante para o direito (BUSATO, 2008, p. 25).

A leitura do texto mostra a clara influncia exercida pela teoria da causalidade adequada na preparao do terreno para o surgimento da teoria da imputao objetiva, ou, pelo menos, para o surgimento de critrios objetivos de imputao, independente do nome que lhe seja dado. Como forma de correo aos erros originados pela teoria da causalidade adequada, surgiu a teoria da causalidade relevante, ou simplesmente teoria da relevncia, sobre a qual merece uma ateno especfica.

2.2.3 Teoria da causalidade relevanteA problemtica do nexo causal consiste justamente no estabelecimento de um liame entre a ao e o resultado. A causalidade jurdica no pode ser confundida com a mera causalidade fsica, devendo esta, para configurar aquela, se apresentar como causalidade juridicamente relevante (FILHO, 2007). Nesse sentido, o que importa, portanto, na questo do nexo causal, saber se possui relevncia jurdico-penal e no apenas relevncia fsico-mecanicista, o que somente pode ser aferido no campo da tipicidade. A tarefa acima mencionada no pretende apartar causalidade jurdica de causalidade fsica, conforme pretendia a teoria da causalidade adequada, mas sim acrescentar a esta, para fins de imputao tpica, dados normativos que traduzem a relevncia jurdico-penal sob a perspectiva do bem jurdico lesionado. Nas lies de

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Filho (2007, p. 20) a s presena, entretanto, da causa no sentido naturalstico, no suficiente sua relevncia para efeito de imputao tpica do resultado. Assim, se a causao do resultado est posta ao azar, fora do domnio do autor, no existir, desde ento, uma ao dirigida a um resultado. Segundo Filho (2007, p. 20) esta parece ser a teoria mais adequada proposio tomada pelo legislador da Parte Geral de 1984. Diante do exposto, no se nega que a teoria da relevncia, concebida por Beling e amplamente desenvolvida por Mezger no incio da dcada de 20 representa um passo importante no processo histrico evolutivo da aferio de causalidade (PRAZAK, 2009). nesse sentido as lies do citado autor:

[...] reconhecido como um dos penalistas de maior expresso no direito alemo sob o influxo do neokantismo, E. Mezger pretendeu solucionar as mazelas da teoria da adequao atravs da superao dos conceitos empricos, prprios de uma viso naturalista da realidade social, trazendo para a dogmtica jurdico-penal critrios valorativos de interpretao da tipicidade. O Direito deixa ento de ser entendido como uma cincia exata e comea a ser entendido como uma cincia humana, de valores, de significao, uma cincia cultural (PRAZAK, 2009, p. 36-37).

A teoria da relevncia adota em sua formulao postulados da teoria da equivalncia dos antecedentes, sem prejuzo da adoo tambm de postulados da teoria da causalidade adequada no que diz respeito aos critrios de relevncia tpica. Historicamente, a teoria de Mezger considerada a precursora da Teoria da Imputao Objetiva, uma vez que distingue, acertadamente, os dois planos em que a discusso se envolve: o plano da causalidade e o plano da imputao (PRAZAK, 2009, p. 37). No que se refere ao plano da causalidade, a teoria da imputao objetiva adota em todos os seus termos a teoria da equivalncia dos antecedentes. Em relao ao plano de imputao, verificada a relao de causalidade, busca-se averiguar quais as condies, dentre todas as que influram no resultado tpico, so relevantes ao direito penal. Segundo Prazak (2009, p. 38, grifos do autor) essa delimitao da relevncia ou no das condies realizada de acordo com uma anlise minuciosa do sentido do tipo penal. Portanto, para se averiguar a relevncia, deve-se amparar em critrios jurdico-penais. Na esteira desse raciocnio:

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[...] E. Mezger logrou compatibilizar os conceitos de causalidade natural e causalidade jurdica, sem que, para isso, tivesse de afastar do mundo jurdico os ditados prprios das cincias naturais. Para a anlise dos tipos penais dentro da esfera da imputao o autor adota os critrios da teoria da causalidade adequada, entretanto, no nega, como nessa teoria, a relao de causalidade das condutas irrelevantes, mas sim sua tipicidade (PRAZAK, 2009, p. 38, grifos do autor).

H quem sustente entendimento no sentido da suficincia da teoria em apreo para resolver todas as problemticas da causalidade no nosso ordenamento atual. Crticos da teoria da imputao objetiva, consideram desnecessria e incoerente a sua adoo, optando por entenderem que a teoria da causalidade tpica relevante possui critrios mais seguros e bem aceitos pela doutrina ptria. Nesse diapaso, so as palavras do nobre juiz de direito de So Paulo:

[...] podemos afirmar que a teoria da causalidade tpica relevante, ainda que eventualmente sujeita a crticas, apta a resolver, no plano concreto e com fundamento na legislao penal brasileira, os problemas de imputao do resultado ao, sem incorrer por um lado, nos excessos da teoria da equivalncia dos antecedentes e, por outro, como veremos, respeitando as dimenses subjetivas e antinormativas da tipicidade penal, que devem sujeitar-se a juzos distintos da mera imputao objetiva (FILHO, 2007, p. 23).

A principal contribuio do trabalho de Mezger, segundo Busato (2008), a constatao de que a averiguao de relevncia dos nexos causais no se limita aos princpios de adequao, sendo necessria a adoo de uma interpretao conforme o sentido dos tipos legais, de onde surge a exigncia de formulao de uma anlise autnoma e subseqente causalidade, para a configurao do tipo objetivo. Embora no seja o objetivo deste trabalho aprofundar demasiadamente nas mincias da teoria da relevncia, algumas crticas que a ela so formuladas merecem ser mencionadas. Pode-se criticar tal teoria pelos seguintes motivos: falta de definio de critrios sobre os quais se identifica a relevncia dos cursos causais; problema na determinao do sentido do tipo penal. Ainda, segundo o mesmo autor, apesar das crticas supramencionadas, a teoria da relevncia tem o mrito de ter percorrido

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metade do caminho em direo a uma teoria da imputao por postular que as aes devem ser eliminadas no mbito do tipo penal, no mais no mbito da causalidade, embora no tenha alcanado o mesmo xito em explicar o fundamento de suas concluses (PRAZAK, 2009, p. 40). Diante da insuficincia de todas as teorias em estudo, o cenrio mostrou-se cada vez mais suscetvel de acolher novos paradigmas, ocasio na qual mostrou-se oportuna a adoo de critrios objetivos de imputao, por meio da teoria da imputao objetiva.

2.3 Teoria da Imputao Objetiva

A teoria da adequao e a teoria da relevncia, apesar de estabelecerem as bases para o desenvolvimento de uma teoria da imputao, formularam-se como teorias causais somente devido fora exercida pela dogmtica causal que considerava a causalidade como centro da teoria do delito (PRAZAK, 2009). Mesmo antes do surgimento do positivismo naturalista, a clssica busca pela distino sistemtica entre causa e condio orientava no sentido do surgimento de uma concepo normativa da imputao do resultado. Nesse contexto, surge um novo paradigma, uma nova teoria, capaz de oferecer uma possvel soluo para todos os problemas at ento apresentados pelo dogma causal: eis a Teoria da Imputao Objetiva. Nas pedaggicas lies de Vieira:

O interesse primordial dessa teoria identificar as hipteses em que algum pode ser considerado responsvel por determinado resultado jurdico, no sob a tica meramente causal (relao causa-efeito), mas sob o aspecto valorativo, vale dizer, quando justo considerar algum como verdadeiro responsvel por determinada leso a algum bem jurdico. Afirma a doutrina que a relao de imputao objetiva constitui elemento normativo implcito do fato tpico, cuja funo essencial a de servir como critrio restritivo do dogma causal material. (VIEIRA, 2006, p. 5, grifos do autor)

A Teoria da Imputao Objetiva teve como finalidade a superao dos defeitos atribudos s diversas teorias da causalidade. A doutrina, especialmente a alem, a partir da dcada de setenta do sculo passado, retomou as antigas posies de

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Richar Honig e Karl Larenz para formular uma nova teoria da imputao objetiva do resultado. Atualmente tal teoria dominante, alm da Alemanha, tambm na Espanha, sendo tomada como auxiliar delimitador, e no como substituta do nexo causal (FILHO, 2007). Os postulados modernos da imputao objetiva devem ser vinculados, segundo Filho (2009), a figura de Claus Roxin, penalista germnico, que a partir de hipteses casuisticamente enumeradas, criou situaes onde as demais teorias no teriam o condo de atribuir resultados juridicamente aceitveis. Em linhas gerais o resultado, segundo Roxin, somente pode ser imputado objetivamente ao agente quando tiver incrementado, indevidamente, um risco para um bem jurdico tutelado pelo tipo penal (FILHO, 2007, p. 34-35). Alm disso, para que haja imputao, tal risco deve implicar na alta probabilidade de se converter no resultado tpico abstratamente previsto e rejeitado ela norma incriminadora. O eixo central da moderna teoria da imputao objetiva se deslocou da possibilidade de denominao da causalidade e tambm da separao entre feitos que possam ser considerados prprios de elementos acidentais, para, ao final, fixar se houve a realizao de uma ao criadora de um risco proibido e se este risco se converteu no resultado repugnado pela norma (PRAZAK, 2009). Ainda nas lies de Prazak:

Inmeros so os sistemas que atualmente esto relacionados s estruturas da imputao objetiva. As principais dissonncias, entretanto, encontram-se to somente na fundamentao adotada por cada um desses sistemas no desenvolvimento de suas teorias. J no que diz respeito aos aspectos mais centrais e substanciais desta teoria, existe consenso quase que absoluto. (PRAZAK, 2009, p. 75)

No sentido do entendimento acima exposto, ainda afirma Prazak (2009) que modernamente pacfico o entendimento doutrinrio de que somente pode se imputar uma conduta a um sujeito quando este cria um risco juridicamente desaprovado que se converta na produo do resultado que a norma busca impedir:

A teoria em estudo, na verdade, deixa de analisar, quanto ao tipo objetivo, uma relao de causalidade puramente material. Esta considerada apenas como condio mnima, devendo ser agregada a uma condio de natureza jurdica que consiste em observar se o resultado previsto pode ou no ser imputado ao autor. No basta portanto apenas que o resultado

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tenha sido praticado pelo agente para autorizar a incidncia da relao de causalidade: necessrio tambm se mostra a imputao jurdica de tal resultado. (STIVANELLO, 2003, p. 71)

Diante do exposto, nota-se que o que na verdade se imputa objetivamente o resultado, uma vez que este o mais importante, j que a causalidade, de acordo com a teoria, age apenas como uma condio mnima, devendo necessariamente a ela ser agregada a relevncia jurdica da relao causal entre sujeito atuante e resultado jurdico produzido (STIVANELLO, 2003). Em linhas gerais, ainda segundo Stivanello (2003), a teoria finalista considera necessria a presena do tipo subjetivo para a tipicidade penal, j a imputao objetiva busca agregar a esse requisito tambm a imputao objetiva para a caracterizao da tipicidade penal. Cunha (2009, p. 49), ao tratar do nexo de causalidade em sua obra, afirma:

Para os adeptos da teoria da imputao objetiva, a equivalncia dos antecedentes como adotada pelo Cdigo Penal severa e inadequada. Propem, ento, uma seleo das causas juridicamente relevantes, utilizando-se de critrios de carter normativo extrados da prpria natureza do direito penal que permitam, num plano objetivo, delimitar a parte da causalidade natural. Assim, sem precisar recorrer anlise do dolo ou culpa, limitam o nexo causal objetivo, outorgando-lhe um contedo jurdico e no meramente naturalstico. A verificao da causalidade natural seria apenas uma condio mnima, mas insuficiente para a atribuio de um resultado (determinada a causalidade natural, surge o tema da imputao objetiva).

A imputao objetiva se apresenta como um complemento corretivo e, em certas ocasies, de superao das diversas teorias causais. Seus antecedentes radicam, sobretudo, nos estudos desenvolvidos por Karl Larenz e Richard Honig. Nessa linha de raciocnio, o mesmo autor adverte que pressuposto inafastvel da imputao a existncia de um homem livre, pois s essa liberdade o torna verdadeiramente responsvel por seus atos. Assim, todas as propostas que visam definir o juzo de imputao como um mero juzo causal (como queriam, a ttulo de exemplo, os defensores da teoria da equivalncia dos antecedentes) esto destinados ao fracasso. Isso se d porque o fato no uma simples sucesso de causas e efeitos, mas sim um todo, cuja configurao est a cargo do agente, e, portanto, pode lhe ser imputado (PRADO, 2006, p. 217 e 317).

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Dessa forma, segundo Prado (2006), deve-se atribuir a imputao a natureza teleolgica, e no simplesmente causal, uma vez que o fato a realizao da vontade e a imputao o juzo que relaciona o fato com a vontade. Assim, a imputao chamada de objetiva porque essa possibilidade de previso no auferida com base na capacidade e conhecimentos do autor concreto, mas de acordo com um critrio geral e objetivo (PRADO, 2006, p. 217), dessa forma, o critrio que busca imputar ao sujeito determinado fato e diferenci-lo dos acontecimentos vinculados ao acaso a finalidade objetiva, no a finalidade subjetiva, devendo ser examinadas as capacidades potenciais, no o real conhecimento do autor. A teoria da imputao objetiva parte do preceito de que a vida em sociedade naturalmente criadora de riscos, assim, o direito penal como ultima ratio no pode agir quando a conduta geradora do resultado no for criadora de um risco proibido juridicamente relevante e esse risco no tiver se convertido no resultado indesejado pela norma. Nas lies de tal teoria, segundo Capez (2009), toda vez que o agente realizar um comportamento socialmente padronizado, gerador de risco permitido, portanto adequado e esperado, cumprindo seu papel social, estar criando um risco socialmente permitido, no podendo ser considerado causador de nenhum resultado proibido. Nessa mesma linha de raciocnio, nota-se que

[...] o Superior Tribunal de Justia, em um julgado, admitiu a incidncia no direito penal ptrio, de modo a afastar a tipicidade do fato, pois ainda que fosse reconhecido o nexo causal entre a conduta dos acusados e a morte da vtima, luz da teoria da imputao objetiva, necessria a demonstrao da criao pelos agentes de uma situao de risco no permitido, no ocorrendo na hiptese STJ, 5 Turma, HC 46525/MT, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 21/03/2006, DJ 10/04/2006, p. 245 (CAPEZ, 2009, p. 2).

A teoria em tela busca substituir o dogma causal, em posio bastante radical, tentando sustentar que a teoria da imputao objetiva prescinde da anlise da causalidade, enquanto na verdade, vem se consolidando o entendimento, conforme j afirmado, que a teoria da imputao objetiva mais vem se apresentando como um corretivo s injustias provocadas pelas teorias da causalidade do que como um

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sistema geral de imputao substituto da causalidade em si. O mesmo autor, em posio praticamente isolada, afirma que deve-se a Gimbernat Ordeig a introduo da teoria da imputao objetiva na Alemanha depois da Segunda Grande Guerra Mundial (JESUS, 2007, p. 24). Importante se mostra frisar que a imputao objetiva no deve ser confundida com a responsabilidade penal objetiva, uma vez que esta corresponde responsabilizao do agente pelo resultado mesmo que este no tenha agido por dolo ou culpa, orientao esta totalmente rejeitada pelos modernos sistemas penais. A imputao objetiva se relaciona com o nexo normativo entre a conduta criadora de relevante risco proibido e o resultado jurdico (afetao do bem jurdico) conforme leciona Jesus (2007, p. 33). Assim, parece claro que a imputao objetiva busca atribuir a algum a realizao de uma conduta criadora de um risco relevante juridicamente proibido e a produo de um resultado jurdico, ligando a finalidade do agente ao resultado. Em posio minoritria, Jesus (2007, p. 34) afirma que a teoria da imputao objetiva trata-se de uma teoria autnoma, independente da doutrina da causalidade objetiva ou material. No se encontra no plano dos fatos, mas no plano dos valores que o direito penal busca proteger. Nota-se, por um estudo mais profundo, que essa orientao parece ir contra aos ditames mais sedimentados da teoria, uma vez que ntida a tendncia de considerar o nexo normativo como um elemento reparador do nexo causal ontolgico. Inquestionvel se mostra a afirmao de que o mago da questo, pois nos encontramos no plano jurdico e no na rea das cincia fsicas, reside em estabelecer o critrio de imputao do resultado em face de uma conduta no plano normativo, valorativo (JESUS, 2007, p. 34). A moderna sistemtica penal tem seguido os ditames do funcionalismo, conforme afirma Busato (2008). Segundo o mesmo autor, tal corrente pode ser entendida como a tendncia de orientar os elementos da teoria do delito de acordo com a funo do direito penal. Nesse diapaso, as tendncias funcionalistas se dividiram em dois grandes grupos: a proposta funcionalista teleolgica de Roxin e a funcionalista-sistmica de Jakobs:

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Uma das principais diferenas entre as perspectivas de sistemas de imputao defendidas por Roxin e Jakobs reside justamente no nvel de relevncia da realidade. Roxin parte da idia de que se a orientao poltico-criminal visa soluo de problemas reais da sociedade, a referncia funcional principal deve ser a proteo seletiva de bens jurdicos. Por isso, imprescindvel organizar os aspectos normativos, sem perder de vista a realidade. Enquanto isso, Jakobs, por desprezar expressamente qualquer referncia aos bens jurdicos, centra sua ateno completamente na estabilizao da norma, desconsiderando os dados derivados da realidade e os efeitos nela produzidos pela interveno do sistema. (BUSATO, 2008, p. 76)

O funcionalismo sustentado por Jakobs parte da premissa de que no constitui funo do direito penal a proteo de bens jurdicos, mas apenas a proteo do prprio sistema. O autor alemo formula sua teoria da imputao objetiva desprezando completamente os bens jurdicos e consequentemente sua tutela como objetiva primordial do direito repressivo (ROXIN, 2008). No que se refere desnecessidade dos conhecimentos especiais do sujeito em relao ao fato criminoso e sua antijuridicidade, Jakobs, refutando o subjetivismo, parte da premissa de que os padres normativos da imputao objetiva no se referem s capacidades dos submetidos norma, mas interpretao das normas; esta se padroniza (2003, p. 40). Na contramo de Jakobs, Roxin sustenta um funcionalismo teleolgico consistente no ideal de proteo de bens jurdicos. So sbias as palavras do autor nesse sentido ao mencionar o sistema adotado em seu pas:

Na Alemanha, a finalidade do direito penal aqui exposta, da qual j derivam na maior parte dos casos os seus limites, caracterizada como proteo subsidiria de bens jurdicos. So chamados bens jurdicos todos os dados que so pressupostos de um convvio pacfico entre os homens, fundado na liberdade e na igualdade. [...] proteo de bens jurdicos, significa, assim, impedir danos sociais (ROXIN, 2008, p. 35)

Diante do j mencionado, nota-se que elemento indispensvel para compreenso das teorias que sero profundamente estudadas a percepo da grande diferena entre elas. Somente tendo em vista o conceito de que partem ambas de pontos diferentes, atribuindo diferentes funes ao direito penal, que se mostra possvel o entendimento das diferentes concluses que chegam.

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Claro deve ficar que Roxin no pretende com o funcionalismo e at mesmo com a prpria teoria em apreo repudiar o empirismo do mundo jurdico como faz Jakobs. Muito pelo contrrio: pretende o autor estabelecer uma relao intermediria entre empirismo e normativismo, de forma a se observar realidades da vida de modo muito mais cuidadoso que o prprio finalismo de Welzel, visto que este se baseia excessivamente em estruturas lgico-reais altamente abstratas (ROXIN, 2008). Diante das discrepncias e diferentes concluses que a imputao objetiva chega em relao aos dois sistemas, mostra-se imprescindvel para a compreenso do tema a anlise em apartado dessas duas principais e mais conhecidas vertentes da imputao objetiva.

2.3.1 A imputao objetiva de Claus RoxinProcurando fugir do dogma causal, Roxin fundamenta sua teoria no chamado princpio do risco, criando uma teoria geral da imputao para os crimes de resultado, com quatro ntidas vertentes: diminuio do risco; criao de um risco juridicamente relevante; aumento do risco permitido; esfera de proteo da norma como critrio de imputao (GRECO, 2006). Sustenta Roxin, segundo Prado (2006), com lastro na doutrina elaborada por Honig, que somente imputvel aquele resultado que pode ser finalmente previsto e dirigido pela vontade, assim, os resultados que no forem previsveis ou dirigveis pela vontade no so tpicos. Ainda segundo o mesmo autor, figura, portanto, como princpio geral de imputao objetiva a criao pela ao humana de um risco juridicamente desvalorado, consubstanciado em um resultado tpico (PRADO, 2006, p. 319, grifos do autor). Nesse sentido, para que haja a criao de um risco no tolerado, necessrio se mostra o domnio do resultado por meio da vontade do agente. O mtodo de Roxin parte da premissa de que todas as categorias do sistema penal devem se basear em princpios reitores normativos poltico-criminais, uma vez que estes princpios, aplicados a dados empricos, possibilitaro o surgimento de diferentes solues adequadas realidade social. O direito penal para Roxin deve ser visto como uma forma por meio da qual as finalidades poltico-criminais podem ser transferidas para o modo da vigncia jurdica (PRAZAK, 2009).

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Nota-se que parte Roxin da premissa de que a concepo poltico-criminal do direito penal reside justamente na necessidade de proteo de bens jurdicos, afirmando o autor que:

nesse ponto que a concepo poltico-criminal se mostra til. Parte ela da finalidade do direito penal, de proteger os bens jurdicos do indivduo e da coletividade contra riscos socialmente intolerveis. A teoria da imputao objetiva compreende a ao tpica de modo conseqente como a realizao de um risco no permitido, delimitando os diversos mbitos de responsabilidade. (ROXIN, 2008, p. 71)

Segundo Roxin, a nica soluo para compatibilizar os riscos criados pela sociedade com a atuao do direito penal seria a delimitao do mbito de perigo que seria permitido e aceitvel, sendo que este perigo socialmente aceitvel receberia o nome de risco permitido (PRAZAK, 2009). Assim, Roxin passa a sustentar a misso do direito penal como a defesa do indivduo e da sociedade contra riscos sciopoliticamente intolerveis. Roxin considera a imputao objetiva como uma espcie de espinha dorsal do injusto jurdico penal, calcado em uma poltica criminal que se traduz em conceitos jurdicos fundados em uma base emprica responsvel pela ponderao de interesses de liberdade e de segurana (ROXIN, 2008). A linha de argumentao dessa doutrina traz o conceito de risco permitido e risco proibido. Segundo Prazak (2009, p. 79, grifos do autor), verificada a existncia de uma conduta causadora de uma leso ou ameaa de leso a um determinado bem jurdico, o primeiro ponto a ser analisado se a conduta criou um risco juridicamente proibido. Nesse sentido, o princpio da confiana18 age como um critrio legitimador da criao de risco, mas a idia de riscos permitidos abrange uma srie de outros casos, de forma que sempre que o risco no suplantar o permitido, no ocorrer a imputao objetiva (PRAZAK, 2009). No que se refere ao aumento do risco permitido, surge o princpio do incremento do risco. Nesse ponto, de grande importncia observar at que ponto o risco aumentou: o risco somente ser considerado permitido quando estiver aumentado18

Segundo o princpio da confiana, bastante conhecido do direito penal de trnsito, pode-se confiar que as demais pessoas se comportaro conforme as premissas jurdicas, enquanto no existirem fatos objetivamente observveis que conduzam a uma concluso contrria. (ROXIN, 2008)

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ao ponto de no suplantar o padro socialmente aceito, assim, a partir do momento em que se suplanta esse padro, o risco deixa de ser permitido e passa a ser considerado um risco proibido, autorizador da imputao objetiva do resultado. Nesse sentido, segundo o mesmo autor, toda conduta geradora de perigos que ultrapassem o limite estabelecido como permitido implica a imputao do resultado ao autor (PRAZAK, 2009, p. 81). Nas pedaggicas lies de Jesus (2007), vivemos em uma sociedade de riscos, uma vez que h condutas humanas criadoras de riscos perfeitamente aceitveis perante a sociedade, citando como exemplo a corrida de automveis, o rodeio, dentre outras atividades perigosas por natureza. Assim, claro fica que h determinadas condutas arriscadas cujo empreendimento permitido e at muitas vezes incentivado pela sociedade, assumindo-se eventuais danos como funcionalmente tolerveis (CABETTE, 2006). Nos exemplos j citados, claro fica que o risco criado um risco permitido, no interessando ao direito penal para fins de imputao. Ainda continua o renomado autor:

possvel que o sujeito, realizando uma conduta acobertada pelo risco permitido, venha objetivamente dar causa a um resultado naturalstico danoso que integre a descrio de um crime. Exemplo: dirigindo normalmente no trnsito, envolve-se num acidente automobilstico com vtima pessoal. Nesse caso, o comportamento deve ser considerado atpico. Falta a imputao objetiva da conduta, ainda que o evento jurdico seja relevante. Tratando-se de risco permitido, a conduta tambm o . (JESUS, 2007, p. 40)

O que o grande autor pretende expor que o risco permitido se d em decorrncia do avano da sociedade, principalmente no que se refere s novas invenes e descobertas, devendo o conceito de risco permitido e risco proibido se projetar sobre todas as atividades humanas. Claus Roxin chega concluso de que as condutas que diminuam os riscos j existentes a determinados bens jurdicos no podem ser imputveis ao agente ainda que tenham sido, naturalisticamente, causa do resultado. Nesse ponto, h um grupo de casos que dificilmente poderiam ser solucionados com base em outras teorias, principalmente quando apoiado unicamente nas teorias da causalidade. Isso se d,

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segundo Prazak (2009, p. 82) porque nem o sentido nem o fim das normas penais podem estar direcionados proibio de aes que mitiguem eventos danosos. A sistemtica acima representada pode ser ilustrada de forma cristalina por meio de um exemplo encontrado em Prazak (2009): se um transeunte A, ao perceber que um determinado tijolo se desprendeu de um edifcio em construo e se dirige em direo cabea de B, empurra-o para desvi-lo do curso do objeto cedente, A no pode ser imputado por eventuais leses corporais que venham a ser causadas a B, uma vez que a conduta que visa a reduzir a probabilidade de uma leso no pode ser orientada com a finalidade de causar uma leso integridade corporal. Apesar de interessante e genrica a aplicao do critrio da diminuio de riscos, deve-se observar alguns requisitos, que segundo a doutrina, so imprescindveis para sua utilizao. Em primeiro lugar, necessrio que se trate de um mesmo bem jurdico, de titularidade de um mesmo sujeito. Em segundo lugar, necesrio que se trate de uma mesma relao de risco, e finalmente, no suficiente o requisito quantitativo de diminuio do risco nas ocasies em que o autor est obrigado a reduzi-lo integralmente e pode faz-lo, ou seja, quando houver a posio de garante (PRAZAK, 2009). O segundo passo para a verificao da imputao analisar se o risco criado possui ou no relevncia jurdica. Essa anlise se d calcada em um juzo ex ante da previsibilidade de ocorrncia do resultado essa previsibilidade objetiva, e no subjetiva. Esse requisito se mostra muito importante para a soluo dos processos causais anmalos, como por exemplo, no caso em que o indivduo, jogando um jarro de gua na represa, ocasiona o rompimento do dique e a inundao das regies vizinhas. Nesse contexto, mostra-se importante o seguinte excerto:

Interessante observar que alguns doutrinadores procuram dar soluo aos casos supramencionados pautando-se na ausncia de dolo por parte dos referidos autores. Entretanto, C. Roxin salienta que em tais casos a imputao excluda com base na alta improbabilidade do curso causal analisada com base em um juzo objetivo pouco importando os aspectos subjetivos do autor. Sendo assim, a imputao do resultado excluda ainda que se verifique dolo do autor no sentido da ocorrncia do resultado lesivo, como o caso j citado do indivduo que envia outrem para o campo com a inteno de que este morra atingido por um raio. (PRAZAK, 2009, p. 84)

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Na vertente de Roxin ainda h meno aos cursos causais hipotticos, dificilmente resolvidos pelas teorias da causalidade. Questiona-se se vlido para a excluso da imputao o argumento de que se o autor no tivesse produzido o resultado este teria ocorrido de qualquer maneira, advindo de distinta cadeia causal. Nas palavras de Prazak (2009, p. 85) se bem verdade que tais condutas no podem ser consideradas irrelevantes do ponto de vista da causalidade, o mesmo no ocorre no que diz respeito imputao. Nesse sentido, deve-se desconsiderar os cursos causais hipotticos no processo de imputao tendo em vista que o fim do direito penal no se traduz em evitar leses a bens jurdicos, mas sim em limitar a ocorrncia de comportamento destinado a lesionar bens jurdicos. Aps a criao de um risco proibido deve-se verificar, no processo de imputao, se tal risco se materializou no resultado ou se decorreu de uma relao fortuita com relao quele. Portanto, nas palavras de Prazak (2009, p. 85) verifica-se a real realizao do risco proibido. Antes da adoo da teoria da imputao objetiva, tais questes eram resolvidas com base no elemento subjetivo (dolo e culpa), o que se mostrava ineficiente. O autor, ao mencionar a teoria de Roxin, sustenta que a considerao de que esse problema relativo ao dolo apresenta uma soluo apenas aparente, pois o decisivo justamente se existe ou no um desvio essencial, e esse desvio deve ser constatado com a adoo de critrios objetivos. No que se refere materializao do risco no resultado, Jesus (2007, p. 86) bem observa que depende do caso concreto a considerao de haver o agente realizado um comportamento gerador de um perigo juridicamente desaprovado que tenha ou no se efetivado em resultado adequado co