Daniel sampaio

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Voltei ao meu liceu Se eu hoje voltasse para o liceu não o reconheceria. Melhor: sei onde ele fica, já que continua a estar no mesmo sítio e conserva aquele ar deslavado do meu tempo. As suas paredes têm oscilado, ao longo dos tempos, entre um branco sujo e um amarelo desbotado. A porta conserva aquele ar antigo e descuidado e os muros mostram buracos semelhantes. Às vezes imagino que vou entrar e encontrar os empregados de sempre, a que chamávamos contínuos e que eram cúmplices ou carrascos das nossas brincadeiras. Subo a escada em frente, sou empurrado por colegas barulhentos e desemboco no pátio num vozear indescritível. Assisto do meu canto ao jogo de caricas em que o Martins era mestre, lançando-a a uma velocidade incrível, marcando golo no intervalo das colunas, apesar do salto dos outros. Mais tarde vejo desenhar-se um grande círculo de rapazes aos berros. Estou de certeza no princípio dos anos sessenta. Há um colega que comanda com gestos frenéticos, mas em breve já lá estão muitos. Há um grito que atravessa todo o pátio Porrada! Porrada! - e dezenas de alunos gritam-no sem cessar. No meio do círculo, há dois em luta, insultam-se e batem-se com ferocidade. Só acaba tudo quando o sangue escorre ou um dos contínuos, empurra, alguém para a Reitoria. Vou até lá e espreito o reitor, homem calvo, de frios olhos azuis, que puxa a manga do casaco como que conduz uma motocicleta. Mais tarde o ferido sai, pergunto o que aconteceu e recebo um sorriso e um palavrão. Tenho mesmo que ir para as aulas. Ouço uma professora a gritar "Esta é uma turma de loucos! Quando chego a esta turma vejo que cheguei a um manicómio! Loucos! Loucos!". Lembro algumas aulas de debate e confronto de ideias, testes copiados num sussurro, o Coelho a fechar os estores e o Balbino a trautear Beethoven. Conversas ciciadas sobre as miúdas do D. Leonor, os gritos do padre de Moral a imitar o arcanjo S. Gabriel: Joseeé! Onde vais tu, Joseeé para o pobre carpinteiro que fugira quando soube que Maria estava grávida... Acordo finalmente do meu sonho. Hoje o Pedro Nunes está no mesmo sítio mas diferente. Vejo rapazes e raparigas abraçados ou beijando-se sem complexos. Ninguém usa pasta e há alunos que nem caneta têm. Os cadernos diários, de um verde desmaiado, com um título a letras pirosas - "Liceu Normal de Pedro Nunes" -, são às vezes substituídos por dossiers descuidados, onde alternam nomes ou pedaços de canções. Já não há círculos de "porrada", mas locais afastados onde se procuram outras intimidades ou Se fazem combinações. Fumam-se cigarros à vontade (para quê fumar nas casas de banho, como outrora e às vezes passa-se um charro num local recatado. Ninguém sabe o nome dos professores e a escola é só boa para conviver, já que as aulas são uma seca e os exames um risco a que não se pode fugir. Alguns professores fogem à maioria e vale a pena falar com eles sobre a vida, mas o tempo é escasso e é preciso despejar a matéria. Procuro melhor. Tento ver por entre as pernas de ganga e os blusões descuidados, entro disfarçadamente na sala dos professores e vejo velhos e novos conversando pelos cantos. Parece-me ver sinais de mudança, muitos dizem-me que as coisas não podem continuar assim. Vou ao bar à procura das bolas-de-Berlim do meu tempo e recebo uma Coca-Cola e um croissant ressequido. Então começo de novo a sonhar. Sonho que o velho pardieiro se transforma num edifício mais pequeno e cheio de luz. O Conselho Directivo é formado por professores de ideias abertas que ouvem constantemente os representantes dos alunos sem medo do Ministério. O velho campo de futebol ganhou uma bela relva e tem alunos a jogar. O ginásio perdeu aquele gradeado lá de cima onde corríamos sem parar nas sessões solenes e é agora um local onde muita gente faz ginástica ou joga andebol. Quando os professores faltam não se foge para o café, porque há coisas a fazer: ver uma exposição, ir até à rádio da escola, trabalhar nos computadores ou pura e simplesmente conversar com algum professor num local recatado. Quando há problemas de indisciplina não se marcam faltas de castigo, porque os alunos são chamados a resolver o problema e cedo são co- responsabilizados por tudo o que acontece. Há reuniões mensais com os pais onde não se fala das faltas, mas se discutem estratégias comuns para resolver os problemas dos alunos com dificuldades. Uma vez por mês há uma festa, com uma parte só para os alunos, outra para pais e professores. Nas primeiras quintas-feiras de cada mês há debate com alguém que não é chato e a quem os alunos e professores fazem perguntas. Acordo outra vez. Será possível? A sério: se os professores e os alunos falassem sobre a escola, talvez… Daniel Sampaio, in Notícias Magazine

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Voltei ao meu liceu

Se eu hoje voltasse para o liceu não o reconheceria. Melhor: sei onde ele fica, já que continua a

estar no mesmo sítio e conserva aquele ar deslavado do meu tempo. As suas paredes têm oscilado, ao longo

dos tempos, entre um branco sujo e um amarelo desbotado. A porta conserva aquele ar antigo e descuidado e

os muros mostram buracos semelhantes. Às vezes imagino que vou entrar e encontrar os empregados de

sempre, a que chamávamos contínuos e que eram cúmplices ou carrascos das nossas brincadeiras. Subo a

escada em frente, sou empurrado por colegas barulhentos e desemboco no pátio num vozear indescritível.

Assisto do meu canto ao jogo de caricas em que o Martins era mestre, lançando-a a uma velocidade incrível,

marcando golo no intervalo das colunas, apesar do salto dos outros. Mais tarde vejo desenhar-se um grande

círculo de rapazes aos berros. Estou de certeza no princípio dos anos sessenta. Há um colega que comanda

com gestos frenéticos, mas em breve já lá estão muitos. Há um grito que atravessa todo o pátio – “Porrada!

Porrada! - e dezenas de alunos gritam-no sem cessar. No meio do círculo, há dois em luta, insultam-se e

batem-se com ferocidade. Só acaba tudo quando o sangue escorre ou um dos contínuos, empurra, alguém

para a Reitoria.

Vou até lá e espreito o reitor, homem calvo, de frios olhos azuis, que puxa a manga do casaco como

que conduz uma motocicleta. Mais tarde o ferido sai, pergunto o que aconteceu e recebo um sorriso e um

palavrão. Tenho mesmo que ir para as aulas. Ouço uma professora a gritar "Esta é uma turma de loucos!

Quando chego a esta turma vejo que cheguei a um manicómio! Loucos! Loucos!". Lembro algumas aulas de

debate e confronto de ideias, testes copiados num sussurro, o Coelho a fechar os estores e o Balbino a

trautear Beethoven. Conversas ciciadas sobre as miúdas do D. Leonor, os gritos do padre de Moral a imitar o

arcanjo S. Gabriel: Joseeé! Onde vais tu, Joseeé para o pobre carpinteiro que fugira quando soube que Maria

estava grávida...

Acordo finalmente do meu sonho. Hoje o Pedro Nunes está no mesmo sítio mas diferente. Vejo

rapazes e raparigas abraçados ou beijando-se sem complexos. Ninguém usa pasta e há alunos que nem caneta

têm. Os cadernos diários, de um verde desmaiado, com um título a letras pirosas - "Liceu Normal de Pedro

Nunes" -, são às vezes substituídos por dossiers descuidados, onde alternam nomes ou pedaços de canções.

Já não há círculos de "porrada", mas locais afastados onde se procuram outras intimidades ou Se fazem

combinações. Fumam-se cigarros à vontade (para quê fumar nas casas de banho, como outrora e às vezes

passa-se um charro num local recatado. Ninguém sabe o nome dos professores e a escola é só boa para

conviver, já que as aulas são uma seca e os exames um risco a que não se pode fugir. Alguns professores

fogem à maioria e vale a pena falar com eles sobre a vida, mas o tempo é escasso e é preciso despejar a

matéria.

Procuro melhor. Tento ver por entre as pernas de ganga e os blusões descuidados, entro

disfarçadamente na sala dos professores e vejo velhos e novos conversando pelos cantos. Parece-me ver

sinais de mudança, muitos dizem-me que as coisas não podem continuar assim. Vou ao bar à procura das

bolas-de-Berlim do meu tempo e recebo uma Coca-Cola e um croissant ressequido. Então começo de novo a

sonhar.

Sonho que o velho pardieiro se transforma num edifício mais pequeno e cheio de luz. O Conselho

Directivo é formado por professores de ideias abertas que ouvem constantemente os representantes dos

alunos sem medo do Ministério. O velho campo de futebol ganhou uma bela relva e tem alunos a jogar. O

ginásio perdeu aquele gradeado lá de cima onde corríamos sem parar nas sessões solenes e é agora um local

onde muita gente faz ginástica ou joga andebol. Quando os professores faltam não se foge para o café,

porque há coisas a fazer: ver uma exposição, ir até à rádio da escola, trabalhar nos computadores ou pura e

simplesmente conversar com algum professor num local recatado. Quando há problemas de indisciplina não

se marcam faltas de castigo, porque os alunos são chamados a resolver o problema e cedo são co-

responsabilizados por tudo o que acontece. Há reuniões mensais com os pais onde não se fala das faltas, mas

se discutem estratégias comuns para resolver os problemas dos alunos com dificuldades. Uma vez por mês

há uma festa, com uma parte só para os alunos, outra para pais e professores. Nas primeiras quintas-feiras de

cada mês há debate com alguém que não é chato e a quem os alunos e professores fazem perguntas.

Acordo outra vez. Será possível? A sério: se os professores e os alunos falassem sobre a escola,

talvez…

Daniel Sampaio, in Notícias Magazine