Daniel de Mendoça- Noção de antagonismo na ciência política contemporânea

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O artigo tem por objetivo problematizar o emprego da noção filosófica de antagonismo no contexto da Ciência Política.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 20: 135-145 JUN. 2003

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 20, p. 135-145, jun. 2003

Daniel de MendonçaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

A NOÇÃO DE ANTAGONISMO NA

CIÊNCIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA:

UMA ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA

DA TEORIA DO DISCURSO1

L’avenir ne peut s’anticiper que dans la forme dudanger absolu. Il est ce qui rompt absolument avecla normalité constituée et ne peut donc s’annoncer,se présenter, que sous l’espèce de la monstruosité2

(DERRIDA, 1967, p. 14).

O artigo tem por objetivo problematizar o emprego da noção filosófica de antagonismo no contexto daCiência Política. O âmbito teórico-epistemológico é o da Teoria do Discurso, desenvolvida, sobretudo, porErnesto Laclau e Chantal Mouffe, a partir da já clássica obra Hegemony and Socialist Strategy – Towards aRadical Democratic Politics, publicada em 1985. A noção de antagonismo tem sido empregada por vezes demaneira genérica e imprecisa por esses autores, caso se considere, rigorosamente, seu sentido filosófico.Afirma-se que não somente o antagonismo é responsável pela impossibilidade do fechamento completo dossentidos de um discurso, mas que o próprio funcionamento auto-referencial de suas estruturas corroborapara uma constante “abertura” discursiva. Forma-se, conseqüentemente, o que se denominará de uma“dupla impossibilidade da constituição discursiva plena” – pela falta e pela abundância.

PALAVRAS-CHAVE: Ernesto Laclau; Chantal Mouffe; Teoria do Discurso; discurso; antagonismo; agonismo.

I. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo problemati-zar o emprego da noção filosófica de antagonismono contexto da Ciência Política. O âmbito teórico-epistemológico em que nos inscrevemos é o daTeoria do Discurso, desenvolvida sobretudo porErnesto Laclau e Chantal Mouffe, a partir da jáclássica obra Hegemony and Socialist Strategy –

Towards a Radical Democratic Politics publicadaem 1985. Em nosso entendimento, a noção de an-tagonismo tem sido empregada, por vezes, de ma-neira genérica e imprecisa, se considerarmos, comtodo o rigor analítico necessário, seu sentido filo-sófico. Para iniciarmos de imediato nossa proble-matização, tomemos a própria noção de antagonis-mo a partir das palavras de Laclau: “O pontofundamental é que o antagonismo é o limite detoda a objetividade. Isso deve ser entendido emseu sentido mais literal: como afirmação de que oantagonismo não tem um sentido objetivo, de modoque é aquilo que impede a constituição da objetivi-dade como tal” (LACLAU, 1993, p. 34)3.

1 O presente trabalho foi apresentado no 3° EncontroNacional da Associação Brasileira de Ciência Política,realizado em Niterói (RJ), de 28 a 31.jul.2002, na área deTeoria Política.

2 “O futuro não pode antecipar-se senão na forma de umperigo absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com anormalidade constituída e não se pode então anunciar,apresentar-se, senão como uma espécie de monstruosidade”.[Nota do Revisor]

3 Todas as citações oriundas de textos escritos em línguaestrangeira (inglês, espanhol e francês) foram traduzidaslivremente pelo autor para uso exclusivo neste artigo.

Recebido em 10 de novembro de /2002.Aprovado em 25 de março de 2003.

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A NOÇÃO DE ANTAGONISMO NA CIÊNCIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

A passagem acima apresenta a noção deantagonismo stricto sensu como “o limite de todaa objetividade”. Veremos ao longo deste trabalhoas características principais e as aplicações políti-cas que essa noção possui no interior da Teoriado Discurso. Por enquanto, basta dizermos quehá muito essa categoria desperta-nos singularinteresse, visto que entendemos ser o antagonismo– não em termos filosóficos, pois seu sentido ébem específico, como veremos a seguir – umacategoria ainda de dúbia aplicação pela Teoria doDiscurso. Para apoiar essa crítica inicial, vejamosdois empregos distintos da noção de antagonismo,ambos extraídos de Hegemony and SocialistStrategy. O primeiro exemplo está na oposição“povo-antigo regime”: “Com todo rigor, a oposiçãopovo-antigo regime foi o último momento no qualos limites antagônicos entre duas formas de socie-dade apresentaram-se eles mesmos – com notadaqualificação – na forma de claras e empiricamentedadas linhas de demarcação. Delas demarca-se alinha entre o interno e o externo, a linha divisóriana qual o antagonismo foi constituído na formade dois sistemas de equivalências opostos [...]”(LACLAU & MOUFFE, 1985, p. 151).

O segundo exemplo de antagonismo trata daemergência de “novos antagonismos”, a partir daconstituição de movimentos sociais: “Esses ‘novosantagonismos’ são expressões de formas de resis-tência à acomodação, à burocratização e à cres-cente homogeneização da vida social [...] eles [os“novos antagonismos”] devem freqüentemente semanifestar por meio da proliferação de particula-rismos e da cristalização de suas próprias demandasde autonomia. É também por essa razão que háuma tendência indefinível em direção à valorizaçãodas ‘diferenças’ e à criação de novas identidades,as quais tendem a privilegiar o critério ‘cultural’(roupas, música, língua, tradições regionais etc.)”(idem, p. 164).

No primeiro exemplo, temos a noção de anta-gonismo empregada para demarcar duas formasde sociedades absolutamente distintas: a “socie-dade do antigo regime” em oposição à “sociedadedo povo”, em que um mundo impede a completaconstituição do outro, no sentido do primeiro em-prego da noção de antagonismo que apresentamos.Já no segundo exemplo temos a utilização damesma noção de antagonismo para caracterizaruma situação completamente diversa: movimentossociais são constituídos para reivindicar suasdemandas identitárias no contexto de um Estado

democrático que, em rigor, não nega suas exis-tências como movimentos sociais (ou não deve-ria!). Pelo contrário, tratando-se de um modelopluralista de democracia, ele (o Estado), ao menos,deveria tolerar a existência desses movimentos4.Afirmamos, portanto, que não estamos, no segun-do exemplo, rigorosamente diante de dois discur-sos antagônicos, mas tão-somente de identidades(por exemplo, de negros, mulheres, homossexuais)que reivindicam direitos específicos a um ente polí-tico universalizante por excelência: o Estado.

A diferença na utilização da noção filosófica deantagonismo nos dois exemplos acima é, em nossaanálise, radical – tão radical que o segundo exemplonão representa rigorosamente antagonismo, umavez que se insere em outra categoria filosófica, ade agonismo, introduzida posteriormente no âmbi-to da Teoria do Discurso, como veremos a seguir.

Outro problema ainda surge a partir dos exem-plos acima elencados. Em relação ao primeiro,temos historicamente que o fim da “sociedade doantigo regime” não representa a constituição com-pleta da sociedade que a substitui após seu final.Isso porque, apesar de concordarmos com Laclaue Mouffe que o antagonismo é o limite de toda aobjetividade, temos também claro, contudo, queeste não é o único limite. Se assim fosse, o finalda “sociedade do antigo regime” representaria ne-cessariamente a completa constituição da sua su-cessora e isso evidentemente não ocorreu, pois aimpossibilidade da constituição completa de qual-quer formação discursiva não se dá somente apartir do corte antagônico, externo ao sistema dis-cursivo, mas também no próprio interior de suasestruturas, a partir de suas articulações e rearranjosinternos.

Dessa forma, buscaremos demonstrar que essaimpossibilidade de constituição plena de qualquerformação discursiva é, na verdade, uma duplaimpossibilidade. De um lado, uma “impossibilidadepela falta”; de outro, uma “impossibilidade pela

4 Em nossa dissertação de mestrado enfatizamos a constitui-ção de movimentos sociais no contexto do Estado autoritáriobrasileiro no período da transição política entre 1974 a 1985.Sobre aquele momento autoritário consideramos que a emer-gência desses movimentos identitários tinha como corte anta-gônico o próprio regime militar, que não reconhecia suasdemandas como legítimas de serem acolhidas por um regimepolítico que conceitualmente entendia os “cidadãos” comoum conjunto de indivíduos com idênticas necessidades(MENDONÇA, 2001).

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abundância”. Veremos que a primeira impossibili-dade é dada pela presença do discurso antagônico.A segunda impossibilidade tem lugar na próprialógica da articulação discursiva, ou seja, a partirdas próprias estruturas e dos elementos constitu-tivos de uma formação discursiva. A busca daexpansão de conteúdos de um discurso tende auma contínua ressignificação do mesmo em tornoda sua relação com outros discursos dispersos nocampo da discursividade, impedindo, assim, suaplena constituição.

Para discutirmos a lógica da dupla impossi-bilidade da constituição plena de uma formaçãodiscursiva, pela falta e pela abundância, estetrabalho divide-se em três partes. Na primeira parte,discutiremos, respectivamente, as noções filosófi-cas de antagonismo e agonismo, bem como suasposteriores apropriações pela Teoria do Discurso.Na segunda parte, analisaremos o funcionamentode um sistema discursivo, a partir de suas estru-turas auto-referentes. Por fim, tendo presente asnoções de antagonismo, agonismo e do funciona-mento do sistema discursivo, analisaremos aocorrência da dupla impossibilidade de objetivaçãodo social.

II. O AGONISMO NÃO É UM TIPO DE ANTA-GONISMO

Como afirmamos acima, antagonismo e ago-nismo são noções filosóficas que foram incor-poradas pela Teoria do Discurso. Nesta seção,veremos o sentido filosófico de cada uma delas esuas posteriores utilizações por Laclau e Mouffe.Iniciaremos, portanto, pela noção de antagonismo.

A noção de antagonismo empregada pelaTeoria do Discurso guarda o mesmo sentido quefilosoficamente esse termo tem designado. NaEncyclopédie philosophique universelle é assimconceituado antagonismo: “Entre dois elementosA e B existe uma relação de antagonismo, por umlado no plano de suas essências quando eles nãopodem ser concebidos no mesmo sistema semtornar esse sistema incoerente e/ou, por outro lado,no plano de suas existências, quando eles nãopodem coexistir no mesmo sistema sem tornaresse sistema impossível. No quadro de uma lógicamecânica de tipo cartesiana, somente pode existirentre dois fenômenos antagônicos uma relação deexclusão. A e B sendo antagônicos, se A é, B nãoé e reciprocamente. No quadro de uma lógicadialética de tipo hegeliana, existe entre doisfenômenos antagônicos ao mesmo tempo uma

relação de exclusão e uma relação de comple-mentaridade. Com efeito, se todo o sistema éestruturado contraditoriamente por elementosantagônicos, cada um desses elementos é a nega-ção do outro e, ao mesmo tempo, são comple-mentares no sistema contraditório global consi-derado” (AUROUX, 1990, p. 103).

Da definição acima dois elementos principaisdevem ser destacados. O primeiro diz respeito ànoção filosófica de que elementos antagônicos nãopossuem conteúdos comuns, ou seja, não hápossibilidade de compartilharem sentidos ou deestabelecerem universais mínimos de convivência(em termos políticos), uma vez que A sendo A é acondição de B não ser. Dito por outras palavras,os sentidos de A são radicalmente negados por Be vice-versa5.

O segundo elemento que merece destaque éque, ao mesmo tempo em que ser A é necessaria-mente negar B e ser B é necessariamente negarA, a relação antagônica pressupõe uma comple-mentaridade entre A e B. Ao mesmo tempo queser A é não ser B e vice-versa, uma vez que apossibilidade da existência de A é a radical negaçãodos conteúdos de B, as presenças de A e B são ascondições mesmas da possibilidade de ambos oselementos antagônicos. A complementaridadeentre eles (baseada na negação recíproca) consisteparadoxalmente na possibilidade da existência deambos. A relação antagônica, portanto, guarda emsi o paradoxo da possibilidade e da impossibilidadedos elementos antagônicos tomados entre si. Emoutras palavras: num “sistema contraditório globalconsiderado” A só é A porque nega B; B só é Bporque nega A; contudo, ambos somente são, umavez que o outro se faz presente.

No desenvolvimento da Teoria do Discurso, anoção de antagonismo desempenha um papelcentral. Pode-se perceber tal centralidade no

5 Tendo em vista a noção de antagonismo relacionar-se adiscursos políticos inimigos, no sentido de um sempre buscara aniquilação completa do outro – é um momento de guerratotal, no sentido mais estrito do termo – não há qualquerpossibilidade de compartilharem elementos comuns. Sendomais enfático: a afirmação de um discurso dá-se na negaçãocompleta do outro (o discurso antagônico). Em termospolíticos, isso gera uma situação de completa negaçãorecíproca. É por isso que, politicamente, “não há possi-bilidade de compartilharem sentidos ou de estabeleceremuniversais mínimos de convivência”.

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A NOÇÃO DE ANTAGONISMO NA CIÊNCIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

conjunto das obras de Laclau e Mouffe,principalmente no que tange à constante referênciaa essa categoria em seus trabalhos. Em linhasgerais, conforme essa proposta teórica oantagonismo é a impossibilidade da constituiçãode um sentido objetivo, ou positivo, a todaformação discursiva. Sabemos, a partir dospressupostos da Teoria do Discurso, que aprodução de sentidos por um sistema discursivoé sempre precária, contingente e limitada pelo seucorte antagônico. Justifica-se o seu caráter pre-cário, pois os sentidos constituídos por umdeterminado sistema discursivo sempre tendem aser alterados na relação com os demais discursosdispostos no campo da discursividade, que é oespaço no qual os discursos disputam sentidoshegemônicos. Além de precária, a prática discur-siva é também contingente, uma vez que não hánecessariamente previsibilidade para produção dedeterminados sentidos no espaço social. Entre-tanto, tanto a precariedade como a contingen-cialidade discursivas estão limitadas por aquilo queestá além dos limites do próprio discurso e querepresenta a sua negação: o seu corte antagônico.Nas palavras de Laclau: “o exterior é, portanto,um exterior radical sem medida comum com ointerior” (LACLAU, 1993, p. 35). O antagonismo,tomado em seu sentido mais estrito, resulta naprópria impossibilidade da constituição objetiva enecessária de uma totalidade discursiva, em razãoda presença de um discurso antagônico que impe-de essa constituição plena. Enfatizamos, portanto,que o ponto fundamental para o entendimento darelação antagônica é que essa ocorre entre um“exterior constitutivo” que ameaça a existência deum “interior”. Em outras palavras: uma formaçãodiscursiva tem bloqueada sua expansão de sentidospela presença de seu corte antagônico.

Além desse bloqueio de expansão de sentidosde um discurso em relação ao discurso que oantagoniza (condição de impossibilidade), a Teoriado Discurso enfatiza que o antagonismo é tambéma condição de possibilidade da constituiçãodiscursiva. Paradoxalmente, segundo Laclau(1996) – e também no mesmo sentido da noçãofilosófica de antagonismo anteriormente apresen-tada – ao mesmo tempo que o exterior constitutivo(discurso antagônico) ameaça a constituição dointerior (discurso antagonizado), ele é também aprópria condição da existência do interior, namedida em que este último constituiu-se sob aameaça da presença do primeiro.

Enfatizamos, portanto, que a relação interior-exterior é antagônica, uma vez que a presençasempre constante de um impede a constituiçãocompleta do outro. Tratam-se, assim, de cons-tituições identitárias sempre incompletas e amea-çadas: “a presença do outro impede-me de sertotalmente eu mesmo. A relação não surge deidentidades plenas, mas da impossibilidade daconstituição das mesmas” (LACLAU & MOUFFE,2001, p. 125). Isso quer dizer que a produção desentidos pelo interior discursivo está limitada peloexterior antagônico, supondo-se assim que oprimeiro nunca poderá articular elementos dosegundo sem que isso altere radicalmente suasestruturas.

Articular o que se nega significa, no limite, ne-gar o que se é, e isso representaria a completadesestruturação do interior. Assim, numa relaçãoantagônica, uma diferença constitui-se na medidaidêntica de ser radicalmente exterior a outra, sendo,ao mesmo tempo e de modo paradoxal, o anta-gonismo a condição de possibilidade e de impos-sibilidade de uma formação discursiva. Essacondição de possibilidade e de impossibilidade entrediscursos antagônicos é o que impede a constitui-ção da objetividade como tal (o sentido completoe totalmente transparente de um discurso), quedeve ser entendida, como vimos, em seu sentidomais estrito: uma relação antagônica pressupõe aimpossibilidade de um discurso constituir-seplenamente. Laclau ainda afirma: “No caso doantagonismo o que ocorre é algo inteiramente dis-tinto: o que nele se expressa não é minha identidade,senão a impossibilidade de constituí-la; a força queme antagoniza nega minha identidade no sentidomais estrito do termo (LACLAU, 1993, p. 34).

Ser o antagonismo o limite de toda a objetivi-dade quer dizer que a força antagônica impede aconstituição completa de sentidos de um sistemadiscursivo que se constitui para dominar o campoda discursividade. Na verdade, um discurso cons-titui-se tendendo a preencher todos os sentidosque permitam sua completa universalização.Contudo essa total, eterna e requerida univer-salização discursiva é uma situação impossível,seja pela precariedade e contingencialidadediscursivas já referidas, seja pelo corte antagônico,que, como vimos, limita a expansão de seusconteúdos.

Da Encyclopédie philosophique universelleainda extraímos o sentido de agonismo, a partir

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do verbete agon (competição): “Depois de terdesignado sobretudo os jogos que marcam certasfestas, i. e., ao mesmo tempo reunir espectadorese a competição livre, por agon entende-se o debatejudiciário e, em geral, a competição oratória. Esseconjunto de conotações (competição submetida,diante de um público, a uma arbitragem segundouma regra) dá o contexto da aparição, a partir dasofística, do diálogo filosófico” (AUROUX, 1990,p. 52).

O ponto fundamental da noção filosófica deagonismo – que a diferencia radicalmente da deantagonismo – não é a competição, ou a disputa(que o antagonismo apropriado pela Teoria Políticatambém supõe), mas a existência de regras quefazem com que os adversários partam para sualuta de um ponto comum, de modo que a disputanão ocorra com o fim de destruir o oponente, maspela legitimidade de um discurso em detrimentode outro6. O “debate judiciário”, a “competiçãooratória”, diante de um público espectador, repre-sentam a competição agônica diante de regraspreviamente ajustadas e na presença de teste-munhas que lhe dão legitimidade.

Foi Chantal Mouffe (2000) quem introduziu anoção de agonismo no âmbito da Teoria do Discur-so. Tal apropriação foi, diga-se de passagem, real-mente esclarecedora a essa proposta teórica. Anoção de agonismo veio realmente preencher umvácuo deixado até então, no sentido de amenizar ainexatidão do emprego da noção de antagonismo.

Mouffe parte do princípio de que as relaçõesde poder são constituidoras do social e, portanto,estão sempre presentes nas disputas discursivas.Dessa forma, conforme a autora, todo consenso,no sentido proposto por teóricos deliberacionistascomo Rawls e Habermas, não passa de umresultado hegemônico sempre provisório. Mouffe

ainda afirma que a idéia de que se possa dissolvero poder por meio de um debate racional é umailusão, uma vez que estamos diante de umacorrente teórica que, além de tomar as relaçõesde poder como constituidoras do social, taisrelações e possíveis consensos estão sempre con-taminados pela precariedade e pela contingência.

Diante do exposto, duas diferenciações impor-tantes devem ser realizadas entre antagonismo eagonismo. No primeiro, como já vimos, não hámedida comum entre interior e exterior e os discur-sos antagônicos promovem uma luta entre inimi-gos. Já no caso do agonismo, apesar da disputaentre diferentes formações discursivas, existe umamedida comum entre elas, um universal mínimo,que é o reconhecimento da legitimidade da existên-cia do discurso concorrente7. Além disso, em ter-mos políticos, na relação agônica a categoria deinimigo é substituída pela de adversário, uma vezque o espaço comum entre adversários reside jus-tamente na aceitação da disputa política em umespaço discursivo democrático pluralista. Noexemplo dado no início deste artigo, o da constitui-ção de movimentos sociais demandando políticasespecíficas perante o Estado, temos a ocorrênciatípica de relações agônicas, uma vez que estápressuposto um campo de disputa com regras pré-concebidas e aceitas pelos adversários. Não há,portanto, porque se falar em relação antagônicaquando estamos diante de um Estado democráticode Direito, cujas regras são inicialmente partilhadaspelos grupos sociais8. Aliás, esse é o projeto polí-tico defendido por Chantal Mouffe: a trans-formação de relações antagônicas em agônicas ea superação da relação entre inimigos (anta-gonismo) para uma relação entre adversários

6 Em relação à noção de agonismo, é importante tomarmossobretudo a análise acerca da polis grega empreendida porHannah Arendt (1999). Segundo essa autora, o espaçoagonístico foi somente possibilitado porque existiahomogeneidade moral e igualdade política entre os membrosda polis. Nesse sentido, o reino do público representava umespaço de aparição e disputa em que grandeza moral e política,heroísmo e preeminência eram requeridos, exibidos edivididos entre os membros da comunidade política. Era umespaço competitivo, político, no qual se buscavareconhecimento e diferenciação da futilidade da esferaprivada.

7 Chantal Mouffe enfatiza a necessidade de se entender quea relação agônica representa a disputa entre adversários, naqual, ao contrário do antagonismo, não se discute apertinência da existência dos mesmos: “O que caracteriza ademocracia pluralista [...] é a instauração da distinção entreas categorias de ‘inimigo’ e de ‘adversário’. Isso significa queno interior da comunidade política não se verá no oponenteum inimigo a abater, mas um adversário de legítima existênciaao qual se deve tolerar. Combatem com vigor suas idéias,contudo jamais se questionará o direito de defendê-las”(MOUFFE, 2002, p. 01).

8 Acerca da disputa de movimentos sociais por maiorreconhecimento de suas demandas específicas num EstadoDemocrático de Direito tendo por base a noção de agonismocomo princípio de atuação identitária, ver Mendonça (2002).

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(agonismo), já que as relações de poder são ine-rentes e constituidoras da política. Nas palavrasde Mouffe: “Introduzir a categoria de ‘adversário’requer complexificar a noção de antagonismo edistinguir duas diferentes formas nas quais ele podeemergir: antagonismo propriamente dito e ago-nismo. Antagonismo é a luta entre inimigos, en-quanto que o agonismo é a luta entre adversários.Podemos, portanto, reformular nosso problema,pensando a partir de uma perspectiva de ‘plura-lismo agonístico’, que o objetivo das políticas de-mocráticas é transformar antagonismo em ago-nismo” (idem, p. 102-103).

Como já mencionamos, Chantal Mouffe, aointroduzir a categoria de agonismo na Teoria doDiscurso, resolveu o problema que indicamos noinício deste artigo em relação aos dois exemplosde antagonismo, dos quais, afirmávamos que osegundo tratava-se, na verdade, de uma relaçãoagônica e não antagônica. Resolveu, portanto, oproblema de uma utilização polissêmica e indiscri-minada da noção de antagonismo que tendia a umesvaziamento de seu conteúdo específico por umuso filosoficamente não autorizado. Nesse sentido,queremos ressaltar que não há medida comumentre antagonismo e agonismo. O segundo não érigorosamente um subtipo do primeiro, nem emtermos filosóficos. Não se trata, pois, de comple-xificar a noção de antagonismo, como parece tersugerido Mouffe na citação acima, mas de utilizá-la agora de modo mais rigoroso na presença e nasua distinção em relação à noção de agonismo.

III. A ARTICULAÇÃO DISCURSIVA

O projeto pós-estruturalista da Teoria doDiscurso de Ernesto Laclau e Chantal Moufferejeita qualquer prescritibilidade ou normatividadeteórico-social, uma vez que tentativas de fecha-mento completo de sentidos sociais – a busca ra-cionalista de uma verdade indiscutível e trans-parente é um exemplo dessas tentativas – são, paraesses autores, empreitadas sempre incompletas eprecárias. Mais: são, além de empreitadas incom-pletas e precárias, contingentes, uma vez que nadapode garantir que determinadas explicações ouefeitos de sentido possam ser capazes de seremuniversalizados necessariamente. Em outras pala-vras, para Laclau e Mouffe não há sentidos sociaispreviamente constituídos, nem sentidos a seremdesenhados com o pincel da necessidade. Todosos sentidos, portanto, devem ser entendidos emseus contextos e a partir de suas condições de

emergência específicas.

Nesse contexto de sentidos sempre mal fecha-dos e incompletos é que a noção de discurso possuisua centralidade. Contudo, para que possamosavançar em nosso argumento com relativa segu-rança, é preciso afastarmos qualquer possibilidadeinterpretativa de que uma operação discursiva éuma operação mental. Laclau e Mouffe argu-mentam justamente o oposto: um discurso possuium caráter material e não mental, de forma queuma usual dicotomia entre “discurso versus prá-tica”, sendo o primeiro mental e a segunda mate-rial, é aqui terminantemente refutada. Portanto,não se põe em prática um determinado discurso,uma vez que toda prática e sua correspondentematerialidade, já são, em si, discursos. Um dis-curso é, dessa forma, uma prática social signi-ficativa. Nas palavras de Laclau: “Um espaço socialdeve ser considerado como um espaço discursivose por discurso não se designar somente a palavrae a escritura, mas todo o tipo de ligação entrepalavras e ações, formando assim totalidadessignificativas” (LACLAU, 2000, p. 10).

Outra observação deve ser aqui apontada paraum entendimento dos pressupostos da Teoria doDiscurso. Um discurso não possui um caráterteleológico, uma vez que não passa da articulaçãoprecária e contingente de sentidos numa cadeiade equivalências e, portanto, nenhum projeto polí-tico apresenta-se como acabado ou objetivamentecoerente, como podemos perceber nesta passa-gem: “Poderia argumentar-se que [...] a unidadediscursiva é a unidade teleológica de um projeto,mas isso não é assim. O mundo objetivo estáestruturado em seqüências relacionais as quais nãopossuem necessariamente um sentido finalísticoe que, em muitos casos, na realidade não requeremqualquer sentido. É suficiente que certas regula-ridades estabeleçam posições diferenciais paraestarmos aptos para falar de uma formação dis-cursiva” (LACLAU & MOUFFE, 1985, p. 109).

Feita essa breve introdução acerca da com-plexidade teórico-social em que está inserida anoção de discurso, trataremos de caracterizá-loem termos analíticos mais precisos. Dessa forma,para Laclau e Mouffe, um discurso, ou umatotalidade estruturada relacional, é uma práticaarticulatória que constitui e organiza relaçõessociais. Uma prática articulatória, por sua vez,consiste na “construção de pontos nodais que fixamparcialmente sentido; o caráter parcial dessa

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fixação procede da abertura do social, resultante,por sua vez, de um constante transbordamentode todo discurso pela infinitude do campo dadiscursividade” (idem, 1985, p. 113).

É importante destacarmos que qualquer possi-bilidade de fixação de sentidos – sempre parciais– depende inexoravelmente de um sistema discur-sivo. Tal sistema representa o estabelecimento deuma ordem frente a uma situação prévia de desor-dem, ou seja, um discurso articula elementos dife-rentes, constituindo-os em elementos equivalentes(momentos). Isso quer dizer que um discurso or-ganiza identidades que anteriormente não estavamorganizadas entre si.

Tendo em vista que o discurso é a únicapossibilidade de significação; que este é, ao mesmotempo, o estabelecimento de uma ordem frente auma situação prévia de desordem (em relação aesse discurso), e que tem um caráter material,verificaremos como, a partir da perspectiva deLaclau e Mouffe, articula-se uma cadeia discursiva:“No contexto desta discussão, chamaremosarticulação qualquer prática que estabeleça umarelação entre elementos tais que suas identidadessejam modificadas como um resultado da práticaarticulatória. A totalidade estruturada resultante daprática articulatória chamaremos de discurso. Asposições diferenciais, na medida em que elas apare-çam articuladas num discurso, nós chamaremosmomentos. Por contraste, chamaremos elementoqualquer diferença que não esteja discursivamentearticulada” (idem, p. 105).

De acordo com a passagem acima, articulaçãoé uma prática que se estabelece entre elementosque, num primeiro momento, não estão articuladosentre si. Podemos dizer, portanto, que no momentoanterior ao da articulação os elementos estãoimersos numa lógica complexa9, ou seja, estãodispersos, um em relação ao outro, de modo alea-tório, no campo da discursividade. A prática arti-culatória agrega esses elementos transformando-os em momentos. Portanto, um elemento, quandoingressa na articulação e em relação a esta, deixa

seu status de elemento e assume a condição demomento diferencial. A articulação entre essesmomentos diferenciais resulta inexoravelmente namodificação de suas identidades, ou melhor, numaalteração semântica de seus conteúdos particularesanteriores ao ingresso na prática articulatória. Oresultado da prática articulatória é o discurso.Vejamos, então, as conseqüências resultantes dasnoções de articulação e de discurso.

A primeira conseqüência refere-se à produçãode sentido. Para Laclau e Mouffe, como vimos, aprodução de sentido ocorre obrigatoriamente apartir da articulação de momentos no interior deum sistema discursivo, ou seja, a prática arti-culatória é uma prática auto-referenciada porquetodos os momentos da construção discursiva sãointernos à própria totalidade estruturada (dis-curso)10. Isso quer dizer, por óbvio, que o queestá além dos limites do sistema discursivo nãopode produzir qualquer sentido nesse sistema11.O que está além dos limites do discurso, na de-signação de Laclau e Mouffe, é elemento, ou seja,uma diferença que não está discursivamentearticulada.

Outra conseqüência fundamental da práticaarticulatória é a possibilidade de, e a partir dela,especificarmos separadamente a identidade de cadamomento articulado discursivamente. A compre-ensão desse ponto é decisiva para o entendimento

9 A lógica complexa é chamada por Laclau e Mouffe delógica da diferença. Essa lógica é complexa em relaçãoexclusiva ao discurso analisado, uma vez que os elementosde fora não estão sendo significados por essa cadeia discursiva.Entretanto, a lógica complexa não quer dizer a existência do“não discursivo”, uma vez que tais elementos encontram-sedispostos no campo da discursividade.

10 Acerca da auto-referência discursiva, vale a penadestacarmos a posição de Ernesto Laclau: “uma consideraçãoinicial e puramente formal pode ajudar a esclarecer o ponto.Sabemos, a partir de Saussure, que a língua é um sistema dediferenças; que as identidades lingüísticas – os valores – sãopuramente relacionais; e que, por conseqüência, a totalidadeda língua está implicada em cada ato individual de significação.Pois bem, nesse caso está claro que essa totalidade é umrequerimento essencial da significação – se as diferenças nãoconstituíssem um sistema, nenhum ato de significação seriapossível. O problema é, contudo, que se a possibilidademesma da significação é o sistema, a possibilidade do sistemaé equivalente à possibilidade de seus limites” (LACLAU,1996a, p. 71).

11 Nesse ponto, é interessante o exercício comparativorealizado por Urs Stähaeli acerca da figura da auto-referência,tanto no âmbito da Teoria do Discurso de Laclau como naTeoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Nas palavrasde Stähaeli: “Sistemas e discursos não dispõem de nenhumnível extra-sistêmico como fundamento último (como, porexemplo, a racionalidade comunicativa, ou Deus) e, dessaforma, podem fundamentar apenas a si próprios”(STÄHAELI, no prelo, p. 134).

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da riqueza e da complexidade da categoria daarticulação. Afirmar que podemos discernir ele-mentos/momentos em uma articulação é supormosprimeiramente que a prática articulatória não é umcomplexo dado e necessário, nem a simples somade elementos que articulados entre si tornam-semomentos. Se admitirmos que a prática articu-latória é um complexo dado e necessário e o re-sultado da simples soma dos seus elementos/mo-mentos constituintes, ela simplesmente torna-seimpossível.

Para tornarmos mais claro esse ponto, tome-mos a afirmação categórica de Laclau e Mouffe:numa prática articulatória “a transformação deelementos em momentos nunca é completa”(idem, p. 121). Se a transformação de elementosem momentos nunca se completa, logo se podedizer logicamente que a articulação também nuncapreenche um sentido último. Se a articulação entreos momentos diferenciais não alcança um sentidoúltimo, logo a estrutura discursiva somente fixasentidos parciais, o que possibilita a flutuação dediferenças. As identidades, quando assumem acondição de momentos diferenciais na relaçãoarticulatória, anulam completamente seus sentidosparticulares. Entretanto, isso não quer dizerabsolutamente que as identidades deixam de existircomo elementos diferentes entre si e diferentestambém da própria articulação. Dizer que umelemento não se transforma completamente emmomento presume a conclusão de que a práticaarticulatória dá-se a partir de diferenças que, emum determinado momento, uniram-se a um pontonodal, que expressa um sentido comum entre elas.Contudo, se esses elementos não forem diferentes,não haverá uma articulação, mas tão-somente umasimples igualdade.

III. A DUPLA IMPOSSIBILIDADE DE OBJE-TIVAÇÃO DO SOCIAL: A ABUNDÂNCIA EA FALTA

Em termos filosóficos, conforme Abbagnano(2000), objetivação é a transformação de algosubjetivo em objetivo. Em outras palavras, algoque anteriormente não era dado por conhecido emsua plenitude passa a ser conhecido verda-deiramente. Essa noção de objetivação está inti-mamente ligada à de objetividade. Objetividade,por seu turno, representa a “visão do objeto comoele é, não levando em conta as preferências ouinteresses de quem o considera, mas apenasprocedimentos intersubjetivos de averiguação e

aferição” (idem, p. 720).

Conceitos como os de objetivação e objetivi-dade estão inseridos numa tradição filosófica fun-dacionalista, ou seja, aquela que considera que oconhecimento de todos os objetos está relacionadoà possibilidade de se alcançar uma verdade comple-tamente transparente sobre todas as coisas. O fun-damento, ou a causa, no sentido da razão de serdos objetos, contém uma explicação racional quetraduz a transparência de conhecer verdadeira-mente as coisas e suas origens. Nas palavras deAristóteles, citado por Abbagnano: “Acreditamosconhecer um objeto de maneira absoluta – nãoacidentalmente ou de modo sofístico – quandoacreditamos conhecer a causa por que a coisa é eacreditamos conhecer o que ela é causa da coisae que esta não pode ser de outra maneira” (idem,p. 474).

Essa tradição fundacionalista, originária dafilosofia clássica e seguida pela própria noção deconhecimento e de produção de verdade ilumi-nistas e fortemente presente ainda hoje no fazercientífico, tem sofrido duras críticas de correntesteóricas inscritas numa perspectiva pós-funda-cionalista. Tais teorias argumentam que o funda-mento não representa uma explicação desprovidade aspectos sócio-históricos, válidos a qualquertempo. Toda e qualquer explicação do social sofreinfluências sociais. Toda verdade é discursiva-mente construída, com sentido e legitimação histó-ricos, precários e contingentes. Nas palavras deLaclau: “uma das mudanças básicas nos últimosduzentos anos é a crescente compreensão de quea verdade é construída mais do que descoberta”(LACLAU, 1998, p. 126).

A presença dos paradoxos também não éevitada pelo pós-fundacionalismo. Tampouco sebusca solucioná-los a partir de remédios ilumi-nistas, negando-se a validade de um de seus pontoscontraditórios para a validação de outro numadesesperada busca da produção de verdades trans-parentes. Aporias existem, paradoxos não são ne-gados. A própria noção de constituição discursiva,a partir de seu corte antagônico, já é em si umparadoxo: como vimos, o antagonismo é ao mes-mo tempo a condição de possibilidade e de impos-sibilidade de uma formação discursiva.

A dupla impossibilidade de objetivação do socialreside justamente na aceitação de que é teórica esocialmente impossível a constituição de discursos

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que preencham completamente sentidos, ou quesejam perfeitamente transparentes e objetivados.É necessário, também, aceitarmos que discursosnão têm necessariamente de resolver seus para-doxos: podem, ao contrário, conviver com eles.

Chegamos agora ao ponto nodal de nossoargumento. Se a possibilidade do sistema discur-sivo é equivalente à possibilidade de seus limites,isso quer dizer que toda e qualquer produção desentido ocorre obrigatoriamente no interior daspráticas articulatórias, como já demonstramos.Esse é o princípio da auto-referência discursiva.Ao afirmarmos isso, somos remetidos a algumasconsiderações acerca do funcionamento da cadeiade equivalências discursivas. Como sabemos, umdiscurso é o resultado de uma prática articulatóriaestabelecida entre momentos diferenciais, organi-zados a partir da constituição de um ponto nodal.Sabemos que o discurso, portanto, é o resultadoda organização de elementos que não estavamanteriormente articulados entre si e que, no mo-mento da articulação, e em relação a ela, deixaramsuas condições de elementos para assumiremstatus de momentos diferenciais. Dito de outraforma: elementos que representavam a puradiferença numa lógica complexa (lógica dadiferença) articularam-se e tornaram-se elementosequivalentes (lógica da equivalência). É importanteainda destacarmos que a transformação de ele-mentos em momentos nunca é completa e, seassim fosse, na sua forma essencialista, estaría-mos diante de uma simples igualdade e não dianteda articulação de diferenças. Neste sentido, resta-nos agora destacar o paradoxo constituído a partirde duas lógicas contraditórias que, às avessas,impedem o completo preenchimento de sentidodo sistema discursivo: a “lógica da falta” (antago-nismo) e a “lógica da abundância” (pela incom-pletude da transformação de elementos em mo-mentos).

Sobre a “lógica da falta”, insistimos, trata-seda relação antagônica que impede a constituiçãocompleta de um sistema discursivo a partir danegação realizada por seu corte antagônico. Ao“nós” sempre incompleto carece a possibilidadeda plena sistematicidade em razão do “eles” que éjustamente o que o “nós” não pode ser; esse nãoser é, ao mesmo tempo, a falta da estrutura, bemcomo a possibilidade de sua constituição: “a forçaque me antagoniza nega minha identidade nosentido mais estrito do termo” (LACLAU, 1993,p. 34). Isso quer dizer que não há qualquer possi-

bilidade de incorporação de elementos de umdiscurso antagônico no interior do discurso antago-nizado, pois, se isso ocorrer, é o fim do própriosistema como sistema, constituído a partir danegatividade do exterior antagônico.

Já a “lógica da abundância” funciona de mododiametralmente oposto. Um sistema discursivo nãoalcança sua literalidade última tendo em vista suapossibilidade de constantemente incorporar novoselementos e seus sentidos, e, dessa forma, tendema indecidivelmente se alterarem.

Assim, no interior do sistema discursivo, aimpossibilidade de constituição de um sentidofinalístico ocorre pela abundância de sentidos quepodem ser incorporados, constituídos ou perdidospor um discurso. No caso dos significantesvazios12, por exemplo, quanto mais estendida fora cadeia de equivalências, mais os conteúdosparticulares irão se universalizar. E essa univer-salização dos conteúdos incorporados por umsignificante vazio tende a provocar uma situaçãode maior reconhecimento de diferenças num es-pectro democrático tendente à universalização.

Uma questão importante surge dessa últimaafirmação. Como vimos, o conteúdo de um discur-so tende à universalização. A cada elemento arti-culado numa cadeia de equivalências, mais o dis-curso universaliza seus conteúdos. Ocorre que oparadoxo universal-particular surge nesse pontocom extrema força se considerarmos que não sóos conteúdos da cadeia discursiva como um todouniversalizam-se, mas os conteúdos das própriasparticularidades podem tornar-se cada vez maisuniversalizados, de modo que, no limite, o parti-cular pode ceder todo o seu conteúdo e tornar-seuniversal.

Mesmo considerando a natureza da categoria“antagonismo”, que provoca uma constante in-completude num sistema discursivo – pela falta –as reliteralizações de um discurso e de seus ele-mentos constituintes ocorrem no interior de seuspróprios limites, que são constantemente sutu-rados. Um discurso, dessa forma, operacionalizaa impossibilidade de uma literalidade última a partirda auto-referência de seu funcionamento estru-tural. Quando visualizada a prática articulatória,

12 Acerca da noção de significante vazio, ver o artigo “Porqué los significantes vacíos son importantes para la política?”(LACLAU, 1996b).

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percebemos que não somente o antagonismo é olimite de toda a objetividade, mas que o própriomecanismo discursivo leva-nos a concluir que aliteralidade última é impossível também pela possi-bilidade indecidível da cadeia discursiva de articularmais e mais momentos diferenciais. Isso, pois, seo corte antagônico permite-nos afirmar o que umdiscurso não pode ser (a sua negação exterior), aarticulação somente nos permite afirmar parcial-mente o que um discurso é, uma vez que umaestrutura discursiva não é uma totalidade cujosentido possa ser determinado a priori. A articu-lação entre seus momentos constituintes faz comque esses próprios momentos tenham suas identi-dades suturadas continuamente, uma vez que ospróprios conteúdos de um sistema discursivo sãosempre precários e contingentes. Se os sentidosde um sistema discursivo possuem essa naturezaincompleta, seus momentos individualmenteconsiderados também os possuem.

Dessa forma, não basta somente admitirmos aimpossibilidade da constituição completa de sentidoem função do corte antagônico. Aliás, esta é

exterior à formação discursiva. O que queremosdeixar claro é que, uma vez sabido o que um sis-tema discursivo não pode ser, isso, de per si, nãopode significar a possibilidade de sabermos defi-nitivamente o que o discurso é ou virá a ser, umavez que afirmar isso é supor uma essencialidadeimpossível diante de um quadro epistemológicocomplexo estabelecido pela Teoria do Discurso.Insistimos: o corte antagônico somente infere umanatureza constitutiva ao discurso e uma das possibi-lidades de sua impossibilidade. Contudo, o funcio-namento interno não possui medida comum como corte antagônico, de modo que todos os seussentidos serão independentes em relação a ele.

Assim, a dupla impossibilidade de objetivaçãode um discurso ocorre em sentidos diametralmenteopostos: na negatividade de um sistema discursivoem relação ao seu corte antagônico e na articulaçãode sentidos dos momentos diferenciais no interiorda prática articulatória. Isso quer dizer que todaimpossibilidade de um sistema discursivo é, naverdade, uma dupla impossibilidade: pela falta, mastambém pela abundância.

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