Daniel Belleza e o Albergue dos Músicos Falidos

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Reportagem de Junior Bellé sobre a cena independente de São Paulo no fim da primeira década de 2000.

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Cara, deu tudo errado, sem brincadeira, eu estava fodido e por isso interfonei no apartamento 13: “É do albergue dos músicos falidos?”.“Você tem a senha?”.“Não… mas tenho cerveja”.“Ah.. então entra aí”.

Era 22hrs e ventava um friozinho gostoso em São Paulo, daqueles que uma flanela e um copo de vinho tinto resolvem. Eu só tinha a flanela e doze latinhas de Brahma e, porra, eu ainda lembrava porque precisaria de cada uma delas: “Todas minhas pautas caíram, cara, eu preciso de uma história pra ontem e então me passaram seu número. Que tal uma reportagem?”, no dia anterior eu tentei minha última cartada e telefonei para o albergue dos músicos falidos, aquela era a primeira vez que conversava com o Belleza e ele disse: “Opa, claro que sim. Sobre o que?”.“Não faço idéia”.“Fechado, me liga amanhã e marcamos tudo”.

Eu não sei direito o motivo, o negócio é que eu liguei e então descobri porque os astros conspiravam e insistiam que o Belleza era o cara certo pra um momento desesperador como aquele. Não que ele seja algum tipo de terapeuta ou coisa

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parecida, nada disso, só que ele pode passar horas conversando com qualquer um com um mínimo de simpatia simplesmente porque não tem nada melhor pra fazer. Ou por que isso é o tipo de coisa que um cara legal faria. E ele é um cara legal, pra falar a verdade, é o mais gente fina dos músicos falidos e é por isso que o apartamento 13 se tornou uma espécie de albergue extra-oficial dos caras.

O lance é que aquela poderia ser uma boa pauta, porra, talvez uma boa história e de tanto pensar e pensa e pensar e pensar nisso de repente eu estava na frente de uma caveira de búfalo pendurada sem os chifres numa porta com o número 13 em cima, e, caralho, eu era um repórter falido e duas horas atrasado, mas com um alguma cerveja na mochila e um pouco de esperança naquela madrugada toda.

Um cara com uma peruca longa e negra entreabriu a porta logo que bati. “É você mesmo?”, perguntou se esgueirando entre a fresta com aquelas mexas dançando pelo pescoço. Sacudi a mochila, ele soltou a trava e perguntou: “Essa cerveja ta gelada?”, eu não entendia como um albergue dos músicos falidos sobrevive sem um estoque mínimo de álcool, mas de qualquer forma a cerveja estava quente e nos dirigimos para a cozinha. Então ele

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estendeu a mão para me cumprimentar e pegar o fardinho, e eu enruguei os olhos quando vi aquele coração vermelho sangue tatuado bem em cima da mão direita do cara e escrito Marcela, afinal, não é sempre que alguém te cumprimenta com um coração daqueles na mão. “É, cara, é essa moça de Cuiabá aí”, apontou para Marcela, que aparecera sorrateira na porta da cozinha.

Ela era morena e tinha os traços um pouco indígenas, e um sorriso meigo e tímido quando apareceu por ali enquanto Belleza terminava de colocar as cervejas pra gelar, “e foi pra ela que fiz minha última tatuagem, uns dois anos atrás, porque só comecei a fazer essas coisas depois de velho”. Era aquela moça, encostada ali na porta e que logo iria pro quarto dormir, com os cabelos negros caindo sobre os ombros e olhando para o Belleza com um carinho especial, “eu também uso peruca, mas hoje esqueci de colocar”, disse um pouco tímida e meiga, e piscou os olhos enquanto o Belleza sorria devolvendo aquele carinho especial.

Mas o mais importante é que a cerveja estava quente, “e esse freezer gela a coisa rápido, mas não podemos perder tempo”, então saímos pra comprar alguns litros gelados de Brahma numa padaria logo

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na esquina, e Marcela foi descansar. Ela recostaria a cabeça no travesseiro branco com os olhos fechados e tranqüilos, certa que o Belleza deitaria ali ao lado quando aquela noite terminasse, quando mais um falido despencasse no sofá ou simplesmente cambaleasse até a esquina com a última cerveja na mão acenando um adeus em direção ao apartamento 13. Pra falar a verdade, ela até gosta desse negócio de albergue porque isso de alguma forma é um pouco da sua história. Acontece que uns anos atrás a musica falida era Marcela, e o cara mais gente fina dos músicos falidos, o Belleza, descolou uns shows para a banda meio rock new wave de sua futura companheira e hospedou todos eles em seu albergue. O romance entre eles só aconteceu tempos depois, mas esse era o primeiro capítulo.

Marcela já estava no quarto quando retornamos, quinze minutos depois, e agora bebíamos com os copos cheios de cerveja e o Belleza contava como o Ortinho, um dos hóspedes do albergue, botou fogo naquela mesa onde apoiávamos as garrafas e largávamos as latas. O negócio é que o cara era o vocalista do Querosene Jacaré, compositor de Caruaru e tudo mais, e ele pode beber duas grades sozinho e continua de pé, numa boa, mas se o cara pingar uns mLs de cana na garganta fica

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endoidecido, sem brincadeira. E daquela vez o Ortinho bebeu mesmo, só que o Belleza estava dormindo e acordou com um cheiro de fumaça e uma puta labareda em cima da mesa da cozinha. “Ele chegou de madrugada e ficou tentando me acordar pra eu ouvir a musica que ele estava fazendo com os ‘caboclo’, aí falei pra ele que ia ouvir depois e voltei pra cama. Mas um tempo depois ouvi uma movimentação na cozinha e fui ver o que era”, o Belleza sorria antes de cada frase, bem na hora que aquela lembrança brotava na cabeça e brilhava nos olhos, então dava uma tragada no cigarro e falava, “e era o Lula Côrtes, que também estava hospedado aqui em casa, fazendo ele apagar o fogo de cima da mesa, ele estava queimando os papéis com a letra de uma composição, dizendo que os caboclos tinham pedido pra ele queimar”. Mas o negócio é que eu não conseguia prestar muita atenção no que o Belleza falava, e ele falava com um brilho nos olhos que poderia cegar um maldito filha da puta sem esperança na raça humana. Ou num músico falido. Ou numa pauta falida. Ele falava e falava, mas eu só conseguia ficar imaginando como um cara que usa perucas dentro casa só pra foder a rotina antes que ela o foda primeiro seria no palco, porque, sem brincadeira, é lá em cima, quando aquele monte de luzes acende e

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a guitarra reverbera que ele bota a cara pra todo mundo esbofetear sem pena, é só lá em cima, cara, que aquele sujeito que tatuou R O C K S T A R letra por letra em cada dedo da mão se torna um músico, um músico de verdade, um músico falido de verdade, o mais gente fina dos músicos falidos de verdade. O que me deixa mais tranqüilo é que no dia seguinte isso ficaria claro pra mim, porque “Daniel Belleza e Os Corações Em Fúria” tocariam no Studio SP, ali na Rua Augusta, quintal de casa.

Só que ele continuava falando que o Ortinho acordou quase uma da tarde do dia seguinte ainda meio tonto de cana e o obrigou a ligar para o Arnaldo Antunes, que era meio fã e meio parceiro do cara, pra mandar a droga da composição que o Lula Côrtes tinha salvado do fogo. Acontece que, para um compositor, incendiar uma mesa não é o mais importante quando um poema brota disso tudo como a fênix em versos. Mesmo que os versos sejam ruins pra cacete e a fênix tão original quanto um pardal. E ele ficava excitado falando sobre todas aquelas histórias de todo aquele pessoal que fica no albergue, e ria sempre que os olhos castanhos apontavam para o teto buscando uma lembrança mais profunda, como vírgulas numa história longa e oral. E, cara, o negócio é que ele sempre pontua as

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frases com uma risada, um trago no Marlboro ou um grande gole em alguma coisa com álcool. E aquilo me deixava ainda mais intrigado e eu ficava imaginando se ele seria tão espontâneo e performático no palco como era ali, se embebedando e falando sobre fogo na mesa e poemas embriagados na cozinha de casa. Imaginava ele percorrendo o longo caminho que separa o camarim da pista, no Studio SP, caminhando com uma jaqueta vermelha de algodão e uma camisa preta rasgada à mão na gola e nas mangas, assim, meio glam de terceiro mundo e meio puta pobre, e sacudindo um bonezinho de pano preto cada vez que colocava o pé no chão e caminhava e sentia o álcool descendo pela garganta desacelerando as coisas e, porra, o público minguado ali, na pista, pagando cinco contos numa Boemia amarga debaixo de uma madrugada fria, fria demais e despencada bem no meio da semana.

Era assim que eu imaginava a noite de amanhã, porque o Belleza cansou de se trajar de glam pra fazer shows, ele diz que o visual só atraía homo-falidos chatos e bandas ruins. Mas as apresentações diminuíram depois disso, esse era o charme deles segundo os produtores do underground, e agora eles voltaram a ser mais um amontoado de músicos

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alternativos, performáticos e normais. Mas o Belleza não liga muito pra esse blábláblá marketeiro, sem brincadeira, ele é o cara mais sossegado do planeta dos músicos falidos. Pra falar a verdade, enquanto ele esquecia um pouco a história do Ortinho e me chamava pra sala a fim de escolher algum LP pra tocar como trilha sonora do nosso papo, contou que já tinha dois discos solo prontos há mais de um ano, mas estava com preguiça de lançar porque se isso acontecesse ele precisaria investir na divulgação, fazer shows, ensaiar e tudo mais, e nos últimos doze meses ele não estava nem um pouco interessando nesse tipo de coisas. Pra falar a verdade, ele nem sabe quando estará interessando. “São trinta musicas nesses dois discos solo, queria lançar eles separados, mas já percebi que são discos amaldiçoados”, ele estava concentrado movendo os dedos entre os discos enquanto falava e puxava um ou outro e então os devolvia, “são amaldiçoados porque eu terminei de gravar e eles ficaram no estúdio pra mixar, só tinha uma pré-mix bem chula e então um belo dia eu encontro o Jef, que é um cara que tocava comigo e trampava no estúdio, e encontro o cara no Bahia, um boteco da Augusta, às quatro e meia da manhã e aí ele diz: ‘po, cara, tenho uma notícia péssima pra te dar, é que queimou o HD do estúdio e perdemos

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seu disco inteiro”. Ele não parecia muito incomodado com aquilo naquele momento, até sorria lembrando da história e passando os dedos pelos discos, mas não foi bem assim naquele dia as quatro e meia da madrugada, “eu quase comecei a chorar, não sabia se batia nele ou sei lá o que. E pra piorar o cara formatou o HD e aí perdi qualquer esperança”. No final ele ficou só com um mísero CDR com a pré-mixagem ,“e vai ser masterizado e lançado desse jeito, isso quando eu for lançar. E toda a bateria foi eletrônica, feita com um tecladinho, e então entram aqui em casa e roubam o meu teclado, é foda”, e sorri novamente contemplando a conjunção do azar, um herdeiro heróico de suas malandragens, e continua concentrado e percorrendo com os dedos alguns álbuns até finalmente puxar uma coletânea de Jacques Brell, “esse cara é o Roberto Carlos da Bélgica, velho, você vai gostar. Você curte Roberto Carlos, certo?”. Mas é claro que eu curto Roberto Carlos, prefiro o Erasmo e tudo mais, sacumé, “mas eu curto Del Rey, cara, curto pra caralho, e a gente precisa gostar muito de Roberto Carlos pra curtir Del Rey desse jeito”. Ele balançou a cabeça e sorriu pra pontuar a frase daquele jeito particular enquanto colocava a agulha no disco e as notas começavam a sair. Ele deve ter um milhão de LPs pra colocar

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naquela vitrola moderna, com equalizador e mixer, porque, cara, é sério, em baixo dela tem fileiras e mais fileiras com discos e mais discos, um colado no outro, organizados e sem poeira alguma em duas estantes horizontais na parede da sala. E, precisa ver, é em uma destas fileiras que ele guarda umas raridades, como o Molhado de Suor, o primeiro disco do Alceu Valença, “ah, tem também uma caixa com cinco EPs do Stooges e um duplo ao vivo do Bowie, com vinil transparente, edição limitada de 500 cópias e numerado. A caixa do Stooges também é numerada, mas a edição é de mil cópias. A do Stooges comprei por 500 dólares e o cara que me vendeu quis comprar de volta por dois mil dólares”.

Mas ele não topou, nada disso, ninguém o passaria pra trás daquele jeito, era um disco do Stooges com edição limitada, porra, e aquele som empolgaria qualquer músico falido e, sem brincadeira, quando eu via o Belleza pegando aquele disco com tanto cuidado e mostrando o bolachão transparente eu tinha certeza, caralho, como eu tinha certeza que na madrugada de amanhã ele subiria no palco e diria “um, dois, Daniel Belleza testando o microfone com sua linda voz aveludada” porque ele sempre fala isso na passagem de som, e depois ele

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reclamaria da altura da guitarra no retorno e diria sorrindo na frente daquele público mínimo mas animado: “Senhoras e senhores, estão querendo me boicotar”. E então ele soltaria o primeiro acorde de U-hu na na na naquela guitarra toda dourada e brilhante, como se tivesse sido pintada com toda a purpurina daquele coração preguiçoso e alegre, e as pessoas começariam a dançar e sorrir e flertar e beber e curtir aqueles acordes intensos e extravagantes e aquele vocal intenso e extravagante de repente espancaria os tímpanos, cortante e divertido, besta e sincero. E aí, porra, aí começaria o show, mas não qualquer show, um desses meia-boca, sem muito esforço e nem tanta performance, só pros gatos pingados mais vadios e fanáticos, uma amostra do que os Corações em Fúria podem fazer.

E o Belleza me disse que o show de amanhã seria assim quando terminamos a sexta lata de Brahma. Ele não foi tão específico nem nada, mas disse “eu acho que não vai ter ninguém, vai tá frio, tem jogo, ingresso caro pra cacete pra um show de rock independente”, e então foi mijar e logo depois da descarga ele completou: “Já passou da meia-noite, velho, não quer dormir aqui?”. Esse é o código, a pergunta que diz como tudo começou e como aquele se tornou o albergue dos músicos falidos.

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Sempre que passa da meia noite na casa do Belleza ele solta essa frase e isso é uma das coisas que transformaram o sujeito no mais gente fina dos músicos falidos. “Ah, cara, é que eu sou o cara mais gente boa do mundo, é inevitável”, e sorri enquanto pega mais um cigarro, “é assim, eu tento ajudar, faço questão de ajudar os amigos músicos falidos, mesmo que alguns deles sejam malas, e é porque eu sei como é difícil uma banda viajar e tocar e tal, e ainda ter que arrumar lugar pra ficar, sei lá, é muito difícil neguinho abrir a porta de casa pra uma banda inteira, entende?! Aí a galera acaba ficando no sufoco, e é aí que eu entro”. Ele já estava meio bêbado quando disse isso, mas é sério, sem brincadeira, eu entornava mais um copo de cerveja e contava os quatro, cinco colchões e sacos de dormir encostados no canto da sala, fora o sofá cama dessas lojas de crediário e o quarto extra, do Fábio – um amigo que divide o apartamento com ele e que já dormia há mais de duas horas – que sempre vira alojamento de músico falidos, especialmente quando eles chegam em bando. E esses caras adoram chegar em bando. Porque, cara, não é qualquer um que pode simplesmente esticar as pernas naquele lugar, porra, a coisa não funciona assim. Você precisa ser um músico falido, ou pelo menos um sujeito falido e isso não tem nada a ver

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com porra nenhuma de grana, status ou toda essa baboseira. O Macaco Bong tem um disco que chama “Artista igual Pedreiro” e é isso que um músico falido é no apagar das luzes, é isso que é um sujeito falido, cara, um Repórter igual Pedreiro, um acorde de argamassa e uma pauta de tijolo, um Pedreiro sendo sincero quando acende um cigarro, bebendo com a dignidade no copo, na ponta dos dedos ou no plástico da palheta. Um cara falido tem dignidade demais e talvez isso seja o grande ponto da questão.

E muita gente assim já dividiu esses colchões: Cascadura, Nevilton, Mombojó, Ortinho, Família Palin, Charme Chulo, Suxx and the Fucking Boys, Lula Côrtez, Revoltz, China e uma cacetada de outros músicos falidos com dignidade demais. E eles se encontram nos festivais, cada um no seu quarto de hotel e todos no quarto do Belleza até altas horas bebendo e conversando e caindo de cansaço pelas beiradas da cama, naquele albergue improvisado dos músicos falidos de algumas poucas estrelas, porque o albergue está onde o Belleza está. O negócio é que o albergue não é aquele apartamento organizado e bem decorado com brinquedos ainda nas caixas colados por todos os lados, com aqueles pôsteres enormes do Iggy Pop e

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da Mila Jovovich no Resident Evil grudados na parede em frente à porta de entrada, ou os cartazes de “beba leite” da Prefeitura de Guaranhus decorando a cozinha, ou mesmo os grandes flayers do Daniel Belleza e Os Corações em Fúria pregados na geladeira. Nada disso, cara. Não que essas coisas sejam insignificantes, sem essa, muita gente que conhece o cara mais gente fina dos músicos falidos e precisa do albergue pela primeira vez tem certeza que vai dormir num muquifo safado. “Estava contando pro cara quando você veio aqui pela primeira vez”, o Belleza estava com o telefone na mão porque ele falava e falava sobre as histórias daquele albergue e então se deu conta que não conversava com o China há semanas. E era por isso que à 1h30m da madrugada o Belleza ria e fazia um sotaque pernambucano enquanto conversava essas coisas pelo telefone com China. Quando ele teve que ficar no albergue pela primeira vez achou que dormiria em cima de um jornal velho num pardieiro fodido e sujo na puta que pariu, mas terminou jogando Playstation com uma cerveja gelada, naquele apartamento limpo e sem pó, todo decorado e com comida na geladeira. “E amanhã vai ter menos público do que no seu último show, que já não tinha ninguém, vou ensinar como faz e bater seu recorde de público mínimo”, então ele riu, se

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despediu e desligou o telefone, aquele não é um bom horário pra ligar pra alguém com filhos pequenos e ficar conversando sobre velhas histórias e novos shows.

Mas o Belleza estava certo, o público cantaria com os olhos fechados e muito espaço pra rodar os braços e poucas luzes sobre a distorção da guitarra do Johnny Monster e aquelas poses de rock star aposentado e aqueles solos deitados em cima da caixa de som e o chapeuzinho de feltro e a jaqueta de couro limpa voando cada vez que ele pulava e passava a palheta num acorde mais intenso; e das pauladas de Jeff Molina no bulbo e no prato e seu chapéu cinza e com uma fitinha preta e balançando com as baquetas e o suor escorrendo pelo cavanhaque e pela pança de cerveja debaixo daquela camisa vermelha; e dos escarros e dos cuspes e dedilhados de Joe e aquele baixo com sotaque chileno que já cuspiu e escarrou e tocou e cruzou a Bolívia e o Uruguai e a Argentina e agora cruza aqueles gatos pingados na parte pobre e verdadeira da Augusta, e então, cara, então o Belleza arrancaria aquela blusa vermelha e beberia gargarejando uma cerveja que Marcela teria largado na beirada do palco encharcando aquela camisa rasgada e meio marrom porque um dia já foi preta e

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a cerveja e a saliva despencando da boca no refrão e deslizando pelo peito que infla e respira gritando como um ganso rouco e deixando aquele grande coração de Maria tatuado bem no meio do seu peito amostra e pulsando, e pulsando, e pulsando aquele fogo subindo pelo pescoço e pulsando, pulsando e pulsando e balançando junto com aqueles piercings cravados nas tetas a cada respiração o grande coração de Maria que cobre e protege e abastece e pulsa e marca o maior dos corações dos músicos falidos.

Mas era naquele apartamento que ele estava naquela madrugada e agora a gente bebia água porque nenhum de nós queria vomitar com tanta cerveja e nenhum quitute. Para falar a verdade eu esperava que ele oferecesse um beck pra fechar a noite, “mas eu não fumo maconha,” e riu, “acho que sou o único de todos os meus amigos que não fuma”, e então acendeu décimo terceiro Marlboro e tragou fundo, “porra, é verdade, acho que sou o único que não fuma maconha, preciso dar um jeito nisso”. Mas na noite seguinte ele não daria jeito naquilo, e no camarim, quando as luzes definitivamente se apagassem, Belleza ficaria sorrindo como sempre, e esparramado no sofá do camarim e fumando como sempre, porque, cara, ele

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pode ficar meses sem fumar quando sente que isso é importante, poderia parar de fumar naquele momento se realmente quisesse ou se simplesmente estivesse afim, já fez isso algumas vezes, mas ele não estava afim, cara, e fumava naquele momento com a mesma tranqüilidade que tragava a fumaça na cozinha de sua casa, e ouvia Marcela falar que “o show foi meia-boca, já vi melhores” no camarim e Belleza balançaria a cabeça concordando. E depois que Johnny e Joe levantassem para ir embora e a moça do Studio SP aparecesse e avisasse que “a casa está fechando, não tem mais ninguém na pista, vocês precisam sair”, Belleza somente sorriria como um músico falido e todos nós acabaríamos na calçada da Augusta sem qualquer maldita cerveja na mão.

E quando o sol começou a escorregar no horizonte eu me despedi de Belleza e desci os quatro andares do apartamento 13 até o térreo ainda um pouco bêbado, e ainda um pouco bêbado no dia seguinte Belleza se despediu de mim com um abraço e outro sorriso sincero e caminhou abraçado com Marcela pela Augusta fria e cheirosa da madrugada. Pela madrugada fria e sonolenta de cerveja e uma flanela cambaleei para fora do albergue dos músicos falidos. Mas a porta ficou aberta.

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