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DALTON TREVISAN E MARCELINO FREIRE: O GÊNERO CONTO E SUA COMPLEXIDADE EPISTEMOLÓGICA1
OLIVEIRA, Silvanna Kelly Gomes de. (UEPB/PPGLI) 2 DUARTE, Giordana Vaz. (UEPB/PPGLI) 3
RESUMO
Lançada uma reflexão acerca da teoria do conto, o presente trabalho suscita problematizações a respeito das questões conceituais desenvolvidas pelo cânone literário em relação ao que se adota como estrutura do aludido gênero, propondo teses sobre sua suposta definição. Tomando como parâmetro uma análise de parte das obras O grande deflorador (Dalton Trevisan) e Contos Negreiros (Marcelino Freire), que travam um contato muito direto com outros gêneros textuais, objetivamos discutir em que aspectos contistas como Dalton Trevisan e Marcelino Freire, além de outros contemporâneos, principalmente, reproduzem a ideia clássica de conto e quais elementos de seus textos se distanciam, desvinculam ou revisam tal conceito. Seria essa intergenericidade das obras dos autores em questão o marco zero das lucubrações sobre o tema. Nesse sentido, fez-se necessário lançarmos mão de pressupostos teóricos como os de Galvão (1982), Piglia (2004), Telles (2002), Baldan (2011), Poe (1985), dentre outros, sejam críticos ou contistas, no intuito de embasar nossa pesquisa bibliográfica e, por conseguinte, atingir um diálogo com reflexões já consagradas pela crítica. As questões relativas à teoria do conto, portanto, servirão para expandir o debate acerca de sua indefinição, bem como para ampliar
1 Este trabalho foi desenvolvido na disciplina Tópicos Especiais em Teoria da Literatura, ministrada pelo Prof. Dr. Antonio de Pádua Dias da Silva, na turma de mestrado do Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI), no período de 2015.1. A discussão sobre a teoria do conto se deu através de aulas dialogadas e de ensaios produzidos pelos alunos, sob a orientação do professor. 2 Bolsista CAPES, graduada em Letras pela UFCG; mestranda no Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI), da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: <[email protected]>. 3 Graduada em Letras pela UFPE; mestranda no Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI), da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: <[email protected]>.
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possibilidades conceituais que ultrapassam a perspectiva tradicional de compreender o gênero quanto à sua estrutura, sua forma de apresentação, seu conteúdo como um todo. Além disso, perceber de que modo ele poderia ser abordado em sala de aula, com alunos do Ensino Médio, tendo em vista a indefinição que se configura desde o conto clássico até o contemporâneo. Palavras-chave: Teoria do conto. Cânone literário. Dalton Trevisan. Marcelino Freire.
Introdução
A indefinição do gênero conto pode ser compreendida como um desafio
lançado ao cânone literário, já que este é definidor de estruturas narrativas clássicas,
privilegiando umas em detrimento de outras – à margem da tradição. A contemplação
de temas e de univocidade estrutural deve ser questionada, sobretudo, quando
partimos para analisar produções literárias que tocam a contemporaneidade e
propõem novas perspectivas para a formulação de um gênero que se desvincula da
linearidade canônica. Nesse viés, o conto acaba por se expandir, agregando outros
gêneros literários à sua estrutura, materializando temáticas nunca vistas na tradição e
recorrendo às linguagens subalternas, ao se tomar por base um contexto histórico de
produção que desestabiliza elementos narrativos engessados.
Neste artigo, inicialmente, observaremos uma reflexão epistemológica que
envolve a teoria do conto, trazendo uma discussão envolta por problematizações
reforçadas pela literatura contemporânea, a respeito das questões conceituais
desenvolvidas pelo cânone literário em relação ao que se adota como estrutura do
aludido gênero. Para tanto, visamos necessária a proposição de teses sobre o que seja
conto, lançando mão de pressupostos teóricos como os de Galvão (1982), que aborda
a relação do conto com a indústria cultural e a tecnologização; de Piglia (2004), que
trata do desvelamento do conto, partindo dos subentendidos e conflitos, através de
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duas histórias (uma implícita e uma explícita) dentro do enredo; de Telles (2002), o
qual compara o conto a outros gêneros, como romance e novela; entre outros críticos.
Tomaremos como parâmetro de análise a referência aos contos das obras O
grande deflorador (Dalton Trevisan) e Contos Negreiros (Marcelino Freire), visto que
travam um contato muito direto com outros gêneros textuais e desconstroem algumas
definições adotadas pela tradição literária, ao passo que reforçam outras. Com isso,
objetivamos discutir em que aspectos contistas como Dalton Trevisan e Marcelino
Freire reproduzem a ideia clássica de conto e quais elementos de seus textos se
distanciam, desvinculam ou revisam tal conceito. Abordaremos essa intergenericidade
das obras dos autores em questão como concretização da principal proposta sobre o
tema discorrido no trabalho.
As questões relativas à teoria do conto, portanto, servirão para expandir o
debate acerca de sua indefinição, ampliando possibilidades conceituais que
ultrapassam a perspectiva tradicional de compreender o gênero quanto à sua
estrutura e conteúdo. Sendo assim, poderemos refletir também acerca o conto e suas
múltiplas faces seria abordado em sala de aula, tendo em vista o contexto do Ensino
Médio, discutindo uma suposta aplicação dos textos de Marcelino Freire e Dalton
Trevisan. Para tanto, nos debruçaremos sobre a maneira como o professor
retrabalharia um tipo de texto clássico, mas com novas configurações estruturais e
temáticas, já que continua sendo um gênero produzido na contemporaneidade,
demonstrando aos alunos uma produção literária passível de reformulação.
Problematização do conceito de conto no cânone literário
A problemática do gênero conto perpassa diversos contistas, brasileiros ou
estrangeiros, os quais trazem em sua produção uma acepção de conto implícita em
suas produções e diferenciada em seus conceitos. Parte daí a multiplicidade de
definições que circundam o conto, trazendo elucidações ora tradicionais, ora
modernas.
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O texto “Cinco teses sobre o conto”, de Galvão (1982), por exemplo, aborda de
maneira breve uma revisão de como o conto foi ganhando forma ao longo do tempo,
uma vez que está presente na memória da comunidade muito antes da literatura; traz
a relação do gênero com o jornal ganhou vigor, disputando território com a
informação jornalística; discute a constante transformação através do tempo e dos
veículos de comunicação com o popular fez com que o conto recebesse influências
várias da Semana de Arte Moderna, relacionando à indústria cultural a tecnologização
do conto, o qual se modernizou através de uma nova linguagem; entre outras ideias.
Desse ponto de vista, vale ressaltar que mesmo o conto tendo divergido para várias
nomenclaturas (conto de enredo, de atmosfera...), ainda mantém em sua(s)
definição(ões) uma estrutura comum presente nas produções dos contistas clássicos.
Já em Piglia (2004), segue uma série de teses sobre o conto ao trazer à baila
autores como Edgar Allan Poe, Jorge Luis Borges, Ernest Hemingway e Franz Kafka, nos
exemplos de produções literárias (referência a contos conhecidos dos contistas)
concernentes à ideia de um conceito que separa o conto clássico e o moderno. O
relato secreto, as duas histórias (uma explícita e uma implícita) do enredo envolto por
mistério, o fim fatal, a relação da literatura com a vida, o interlocutor implícito, a
enunciação, o segredo da trama revelado no final, são algumas das considerações
tecidas em meio aos contos citados repetidamente no texto de Piglia.
Nesse sentido, monta-se uma definição de conto, fechada em si mesma,
demarcada por uma estrutura repetitiva, previsível, didaticamente apreensível.
Conceito que indica uma brevidade, que o diferencia do romance e o aproxima do
relato4. Em Piglia (2004), é possível observar um maior foco do gênero em questão,
com o qual o teórico faz interligações interessantes e constrói a concepção de conto
trabalhada dentro do não-dito, do subentendido e da alusão. Tal estrutura varia
apenas em como se revela o conflito, em como os discursos se intercruzam, ou seja, na
maneira como o fio narrativa de desenrola para o desfecho “inesperado”, mas
“esperado” pela tradição que dita um fim triunfal. No entanto, o autor reconhece o
4 Palavra repetida como sinônimo de conto no texto “Teses sobre o conto” (PIGLIA, 2004).
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início indeciso do gênero, o plano incompreensível do ato de narrar, o “fim”
interminável, o que implica desde já na indefinição e maleabilidade do conto.
Sendo Poe um expoente na crítica por escrever acerca da reflexão do gênero
conto e suas especificidades, debruçando-se sobre a unidade de efeito da narrativa,
torna-se imprescindível lançar mão de reflexões teóricas sobre o conto
contemporâneo que ele introduziu. Porto & Porto (2012) discorrem considerações que
fazem referência aos textos de Piglia (2004), Cortázar (1993) e, sobretudo, a Poe
(1985), traçando a valorização do conto enquanto gênero literário resultante de um
processo de planejamento (e não intuição). Ele também se refere à forma da narrativa
curta, a qual provoca um efeito de “elevação da alma” do leitor (POE, 1985). Trazendo
isso à discussão aqui proposta, Porto & Porto abordam a transição da forma mais
clássica de conto em direção à produção contemporânea, perguntando se “a literatura
brasileira contística produzida na contemporaneidade atende aos “requisitos” do bom
conto apontado até então pela teoria do conto?” (2012, p. 819).
Pelas evidências, subentendemos que a resposta seja negativa. Em seguida,
apontando para o foco da problematização do conto, elas afirmam:
A atenção menor dada a contistas e contos na historiografia literária brasileira deve-se à não-obediência dos autores aos pressupostos do gênero indicados na teoria? Ou é a teoria do conto que não está dando conta da produção contística? Ou ainda o conto é uma manifestação literária em tom menor quando comparado a outros gêneros? Ou são os críticos que não dão conta de analisar o conto? Qual a natureza interpretativa que subsidia a exclusão e inclusão de contos nas histórias literárias? Talvez seja o momento de reavaliar questões teóricas e críticas subjacentes à construção da historiografia literária e sua reprodução em manuais de história literária e de pensar na construção de histórias literárias, no plural, para afirmar a pluralidade e a diversidade da literatura de autores brasileiros, contistas ou não. (PORTO; PORTO, 2012, p. 823)
Por outro lado, Telles (2002) frisa o problema da contística enquanto aquele
gênero considerado por vários teóricos como “menor”, simplório, sempre comparado
às estruturas do romance e da novela, e nunca visto em sua forma unitária. Apesar de
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o autor traçar um viés histórico sobre o conto (arte de narrar antiga, ligada à
oralidade), ele se detém em expor diferentes formas de trabalhar o gênero em
diversos autores (contistas) e da crítica literária, averiguando a aproximação deste
gênero à fotografia e ao soneto (Osvaldo Orico), bem como ao jazz (Julio Cortázar), o
que amplia o horizonte de relações do conto com outras linguagens artísticas. Há
também Edgar Allan Poe reaparecendo, desta vez, para traçar o elo entre o poema e
conto.
Além disso, Telles (2002) traz uma visão de Mário de Andrade que avalia a
definição do gênero como aquilo que o autor batiza com o nome de conto. Ou seja,
percebem-se arrolamentos interligados a uma construção de elementos estruturais
demarcados, como num “esqueleto” invisível do gênero, demonstrando como nos dois
textos teóricos anteriores – Galvão (1982) e Piglia (2004) –, acepções que convergem
para uma tradição do conto, ainda que este último texto de Telles seja mais suscetível
a questionamentos. Vale ainda ressaltar que a posição de Mário de Andrade, ao dizer
que o conto é aquilo que o autor define como tal, surge uma problematização: o leitor
não poderá questionar o que o autor ditou como “conto”? Sendo um gênero aberto,
passível de experimentações novas, o conto não poderá suscitar uma discordância
quanto à sua formatação de acordo com aquele que o produziu? É possível que sim.
Assim, as considerações feitas sobre o gênero conto se divergem em formas de
aplicação no texto literário, mas convergem para um ponto: a sua indefinição. Ainda
que seja preciso questioná-la, a perspectiva de Mário de Andrade pode ser válida no
sentido de que o conto torna-se insondável e “não obediente” a receitas ou fórmulas
que o limitem em uma estrutura fixa, o que já foi confirmado pelos textos
supracitados. No entanto, as características que permeiam os textos intitulados
“contos” podem não ser definidas, mas compreendidas dentro de um universo de
leituras que identifique um ponto aproximador do gênero em questão, fazendo-o
diferente dos demais.
Sob este prisma, é interessante, por fim, frisar que o conceito de conto,
submerso em diversas classificações reducionistas, outras um tanto abertas, é um
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desafio para o próprio cânone literário que o adota e o engessa ainda como gênero de
estrutura fixa. Dessas definições que enquadram o conto em formulações conceituais,
não há designação de uma limitação de elementos da narrativa, de previsibilidade
como artifício linguístico e de convenção de temas. Ao contrário, é o conto que está
em constante modificação, já que não se firma apenas naquilo que o autor adota como
sendo o gênero (visão andradiana), não sendo mais ele – o autor – o detentor do texto.
Essa discussão corrobora, então, um conceito sujeito a novos olhares quando tratamos
de cada conto pertencente à tradição e à contemporaneidade em sua paradoxal
singularidade e multiplicidade, levando em consideração também a leitura crítica dos
apreciadores e estudiosos da literatura.
Dalton Trevisan e Marcelino Freire: reprodução da ideia clássica de conto ou
desvinculação desse conceito?
Dalton Trevisan e Marcelino Freire, contistas brasileiros contemporâneos, ao
produzirem livros como O grande deflorador e Contos Negreiros, publicados nos anos
de 2000 e de 2005, respectivamente, fornecem um espaço fecundo de projeções e
debates sobre o que seja produzir contos nos dias de hoje. Nas duas obras, percebe-se
uma problematização posta diante do conceito de conto clássico. Para tanto, torna-se
necessário tomar como referências autores como Piglia (2004), Galvão (1982), no
intuito de retomar acepções estruturais do gênero conto já discutidas, além de outras
considerações tecidas por teóricos como Baldan (2011) e Porto & Porto (2012), os
quais também servirão para fundamentar a análise crítico-interpretativa.
Assim, ao lado de autores contemporâneos como Moacyr Scliar, Rubem
Fonseca, Rinaldo de Fernandes, Fernando Bonassi, Marçal Aquino, os contistas
Marcelino Freire e Dalton Trevisan pertencem ao amálgama de pluralidade que há nas
formas dos contos, trazendo aspectos do mundo contemporâneo, como o espaço
urbano e os conflitos nele existentes. Nesse sentido, a crítica se desmonta de uma
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estrutura engessada e salta para novas apreensões de contos, presentificadas
inicialmente nos Contos Negreiros, de Marcelino Freire.
O referido autor traz em sua obra declaradamente inspirada em autores como
Castro Alves e Cruz e Souza, como afirma Baldan (2011), em que os negros são os
protagonistas das histórias. Tais histórias se assemelham a uma obra poética por se
enquadrar em “cantos” e por possuírem uma rima e musicalidade evidentes. Isso fica
verificado em contos como “Solar dos príncipes” e “Esquece”, entre muitos outros. A
oralidade apresentada pela ausência de pontuação (em “Esquece” e “Curso superior”)
também indica a voz dada aos personagens, os quais, em grande parte dos contos,
denunciam um fator social degradante. A referência ao universo contemporâneo, à
cidade, à favela e aos elementos encontrados nela (miséria, prostituição, desemprego
e preconceito) desempenham uma quebra temática na estrutura do conto clássico,
que trazia narrativas pautadas numa ficcionalidade e mistério, como cita Piglia (2004),
em um enredo velado e outro explícito, carregados de subentendidos e gestos
obscuros.
O caráter vivencial e realista do conto contemporâneo de Freire se concretiza
também por meio da formatação ou estrutura que não corresponde à estrutura
adotada pelos clássicos. No conto “Yamami”, o protagonista descreve cruamente o
desejo pela menina de 13 anos, prostituta no Norte do país, que sugere para o
estrangeiro uma imagem de sublimação de seus desejos de espaço físico e simbólico.
O desfecho do conto, “O meu corpo vazio”, nada de surpreendente apresenta, uma
vez que o “enredo explícito” está demarcado e subentende o “vazio” que ele sente ao
se distanciar da menina. Há, na obra de Freire, uma crítica ao Brasil implícita que é
carregada por histórias de marginalidade (“Solar dos príncipes”, “Linha do tiro” e
“Polícia e ladrão”), falta de acesso à educação e às políticas públicas de inclusão
(“Curso superior” e “Totonha”), homossexualidade (“Coração”, “Meu negro de
estimação” e “Meus amigos coloridos”), prostituição (“Alemães vão à guerra” e
“Vaniclélia”), pobreza (“Nossa rainha”, “Nação Zumbi” e “Caderno de Turismo”).
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Tais temáticas remetem a uma estrutura de conto adaptada às vozes
subalternas que falam, que denunciam, as mesmas que se expressam por meio do
palavrão, da linguagem “seca”, objetiva – fora dos padrões da gramática tradicional
dos contos clássicos – sem mistérios e muita realidade. Por exemplo, a ideia de um
narrador que conta a história ou participa dela “cai por terra” no conto “Coração”, em
que o protagonista ora fala por si, ora se distancia de si mesmo, como alguém que
conta a história de outra pessoa. Nesse caso, revela-se uma certa confluência de vozes
narrativas, a qual desconstrói a unicidade do narrador (só personagem ou observador)
adotada pelo cânone. Outro aspecto a ser averiguado é o contraste da forma poética
“canto”, erudita e de linguagem polida, para a linguagem escrachada presente nos
contos.
Em contos como “Alemães vão à guerra” e “Yamami” retomam a própria
colonização do Brasil, processo pelo qual a marginalidade ganhou seu não-espaço
(menina índia Yamami, prostituída e caso do estrangeiro; Vaniclélia, mulher que se
prostituiu e depois se casou com um gringo; e a figura da mulher negra em regiões do
Brasil sob a perspectiva também de um gringo - alemão). As figuras marginalizadas
aparecem como representação do Brasil colonizado pelos estrangeiros, terra da
sexualidade explícita, da ignorância e do Carnaval. “A gente acaba dando educação a
esse povo (...)” (p. 37) no conto “Alemães vão à guerra” confirma a ideia
anteriormente abordada. A questão do negro está presente na maioria dos contos,
sobretudo, em “Meu negro de estimação” que revela o negro que “se liberta da
escravidão” e tem sua ascensão social, no entanto, faz seu parceiro de escravo, como
que “invertendo os papéis” ditados pela sua origem e história. O conto “Nação Zumbi”
também faz referência ao negro associado à miséria e ao tráfico de órgãos, na África.
Então, esses contos mais uma vez vêm a problematizar o conceito clássico do
gênero, já que lança um olhar sobre a realidade não mais da perspectiva do narrador
observador, mas sim do narrador que experimenta cada história relatada, sem
necessitar de se valer de todos os elementos da narrativa, mas sim de diálogos, em
que um personagem “invisível” lança perguntas ao protagonista. Assim, desmistifica-se
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uma ideia cristalizada de conto que trabalha em cima de um mistério e um
desvelamento deste, e principalmente do desfecho surpreendente trazido pelo cânone
como indissociável. Percebe-se aqui um conto mais “livre” de normas e mais
“apegado” à fluidez do mundo contemporâneo. Por outro lado, percebe-se através da
obra de Freire um conto que ainda retoma elementos da tradição, tal como a
brevidade do texto e a presença de poucas ações e personagens.
Sob outro viés, aparece a obra de Dalton Trevisan dentro de uma temática
relativa à de Freire, uma vez que traz questões sociais como a prostituição, a violência,
a religião, o adultério, a constituição familiar, entre outros. Em relação a Contos
Negreiros, O grande deflorador possui uma maior assimetria no que diz respeito à
clareza da diegese, pois os contos são, por vezes, confusos pelo intercruzamento de
vozes pouco demarcadas. A releitura torna-se essencial para a compreensão de um
estilo de escrita, própria do Trevisan, a fim de que se apreenda os subentendidos
muito constantes. Por exemplo, em “O baile do colibri nu” trata-se de um caso de
justiça e adultério, em que o desfecho fala de um “gigante dos colibris” (p. 19)
contrasta com o início do conto, quando o narrador fala de uma “carinha enrugada no
corpo do menino de oito anos”. (p. 13).
Apesar disso, é possível identificar na obra de Trevisan uma relação maior com
o a tradição literária do conto no que diz respeito ao desfecho imprevisível (em “Olha,
Maria”, “Ser mão no paraíso” e “Diálogo entre Sócrates e Alcibíades”), sendo seu ápice
em “Chora, maldito”. No entanto, a crueza do relato também aparece em alguns
contos do referido autor, desmistificando a ideia do “surpreendente” no final do
conto, como em “Uma negrinha acenando”, texto muito similar aos de Freire pelo seu
caráter de realidade áspera (relativa à temática da prostituição). O tom confessional
também é outro aspecto relevante a ser observado, havendo uma aproximação com o
Obsceno Abandono (2002), de Marilene Felinto, em “Tudo bem, querido”, conto em
que se aborda o conflito amoroso, sendo, desta vez, mais denso pelo toque de
violência e pelo fluxo de consciência.
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A repetição de nomes como “Maria”, “João”, “José”, “Carlito” e “André” (alguns
nomes relacionados às religiões predominantes?), além de expressões no diminutivo
(“hominho”, “bigodinho”, “Mariinha”) revelam um traço comum entre os contos de
Trevisan, marcando seu arranjo linguístico unido à oralidade (diferente do cânone que
adota um português padrão). O mundo da criminalidade, psicopatia, prostituição,
adultério e insatisfação gira em torno do mundo contemporâneo refletido pelo autor
de modo singular, perpassando um discurso direto como a própria realidade se
apresenta. As vozes dos personagens que vivem as ações são mais postas do que a
narrativa tradicional, em que se prioriza a voz de um narrador que conta a história e
descreve-a ao seu modo. Por exemplo, em “Aula de anatomia” há um intercruzamento
de discursos em que o teor sexual aparece na fala de João, promovendo uma “quebra”
na história e intercalando sua vontade por meio de frases curtas como “Quer dar um
beijinho?” (p. 34) e “Veja como é quentinho” (p. 35).
Em “O cigarro aceso” há uma descrição explícita de estupro, trazendo uma
narrativa curta e “seca” como o próprio ato, em que não existe, como “Uma negrinha
acenando”, um desfecho que quebre a expectativa da ação principal. Em “Querida
amiga”, tem-se uma narrativa que se assemelha à forma de poema pela sua estrutura
posta em versos, o que implica numa relação com o que Edgar Allan Poe apresenta em
sua teoria do conto. Portanto, através destas análises breves sobre O grande
deflorador (título homônimo ao último conto da série, sobre o qual se debruça uma
crítica ao aspecto religioso, bem como em “Testemunho”, o que fica verificado no
início de “O grande deflorador”: “-Maria é o meu nome. O mesmo da mãe de Nosso
Senhor” (p. 94)), percebe-se aproximações e distanciamentos da ideia clássica de
conto.
No que concerne à estrutura, apesar de haver textos com quebras narrativas,
diálogos intercalados, confusão de vozes, existe uma relação ainda aparente com a
definição de conto adotada, por exemplo, por Piglia (2004) ao se observar o
desvendamento das entrelinhas de modo constante. A crítica implícita e inerente aos
textos de Trevisan revela uma forma de narrar que se aproxima ao mistério de “duas
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histórias” (uma explícita e outra implícita), além de haver alguns textos com desfecho
revelador, tal como se adota no cânone. O que diferencia essa obra das clássicas é
tanto a linguagem trabalhada, do ponto de vista tradicional, para atender à
“demanda” das vozes subalternas; e as temáticas sociais e urbanas abordadas, assim
como em Contos Negreiros.
Por fim, é imprescindível observar que o gênero conto está em constante
transformação, dado que não se chegou a um conceito ímpar, mas sim abriu espaço
para a pluralidade, sobretudo, com os autores contemporâneos como Dalton Trevisan
e Marcelino Freire. Como aponta Galvão (1982), o conto está em uma espécie de
“adaptação” à tecnologização que o mundo oferece, sendo na contemporaneidade
uma forma de expressar o mundo urbano em seus aspectos diversificados. Vale
ressaltar que para isso os autores ainda “bebem” da fonte da ideia clássica de conto
como forma de amarrar uma estrutura que, mesmo modificada, não perde a sua
essência tradicional.
Considerações Finais
Com isso, é interessante frisar que a contística de Marcelino Freire e de Dalton
Trevisan faz com que as problematizações do conto prevaleçam e desconstruam
acepções, uma vez que os autores possuem uma gama de textos dissemelhantes aos
clássicos apontados (Poe, Borges, Kafka). Diante do cenário literário desses autores –
Marcelino Freire e de Dalton Trevisan –, é possível compreender sim que no que se
refere às rupturas com as propostas teóricas clássicas do que seja um conto, as obras
resguardam uma relação ainda íntima com a essência do subgênero. Desse modo,
lançam o olhar do leitor para a perspectiva de que o fazer literário sempre
transcenderá os modelos tradicionais de leitura, pois os textos partem de um contexto
de produção particular às intenções e necessidades do escritor.
Não restam dúvidas de que elaborar e sugerir uma tese sobre o que, ou como
seja um conto, propondo um paradigma a ser considerado, consequentemente, levaria
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qualquer entusiasta da área das Letras a provocar e mergulhar numa celeuma
infindável, ainda mais, quando voltamos nosso olhar para a quantidade imensa de
produções contemporâneas em suas tão plurais formas de apresentação e
representação. Sendo assim, qualquer planeamento que se mostre conciliador no
universo dos estudos literários pode parecer válido para solucionar o conflito
insurgente com a pergunta “O que é um conto?”, principalmente, se consideramos o
proselitismo acadêmico sempre esse espaço fecundo de conflitos, contradições e
problematizações com encaminhamentos diversos quando observados os
pressupostos da tradição.
Essa linha de pensamento parece interessante por não se afastar da ideia de
que a literatura, seja lá qual for sua forma de apresentação, mostrando-se sempre
como um organismo vivo, e, viva como é, dificilmente, se sujeitará às categorias
conceituais compostas ao longo da história com a complacência que se espera pela
crítica muitas vezes. Ainda mais, nesses tempos em que a (des)preocupação de tantos
que produzem literatura parece consistir apenas em produzir (um desligamento de
qualquer intenção do ponto de vista estético por parte de alguns autores), e quiçá
transgredir o que os estudiosos se ocuparam em construir.
Evidentemente, a maior parte dessa produção literária contemplada com o
título categórico de conto hoje ainda resguarda alguma relação com o que pensadores
ou estudiosos da Literatura propuseram como textos do gênero. A ideia de que o
conto tem uma estrutura unitária, unidades de ação, tempo e lugar definidas pela
função oral. A ideia de que o texto não deve se estender, deve ser curto, além de não
apresentar muitas ações e personagens. Mas, sem dúvida, foram os próprios autores
em discussão e seus textos díspares dos moldes pré-determinados pela tradição da
Poética, como os contos de Marcelino Freire, por exemplo, que aos poucos foram e
vão fazendo eclodir uma série de teses e teorias sobre os elementos que deveriam ser
encontrados no corpus desses ditos contos.
Como assinala o próprio Gilberto Mendonça Telles (2002), o estudo da
Literatura dependerá muito da forma, do rigor com que se utilizam certas
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terminologias, que, tantas vezes, parecem querer convergir para uma univocidade,
entretanto, não a atingem. É exatamente o que acontece com as discussões em torno
dos conceitos canônicos sobre os estudos dos gêneros textuais, como pôde ser
percebido, no presente artigo, com o gênero conto.
Quanto à aplicação em sala de aula do Ensino Médio dessa problematização
proposta, trazemos a formação do professor como fator essencial para a discussão no
âmbito escolar, tendo em vista que ele é o principal mediador, responsável por
transmitir a literatura contemporânea para os alunos, através de uma bagagem de
leitura ampla acerca desse material. Afinal, os contrapontos, os questionamentos e
novas possibilidades de produção só poderão ser descritas se o educador possuir um
arsenal de leitura de contos pertencentes a diversos autores e contextos históricos.
Além disso, é importante que o professor consiga traçar paralelos de produções
consideradas marginalizadas com as estruturas clássicas do conto, apresentando a
multiplicidade temática, a intergenericidade e a flexibilidade dos elementos básicos da
narrativa.
Só assim, poderemos ampliar o estudo da literatura contemporânea,
contemplada aqui em Marcelino Freire e Dalton Trevisan, tirando-a apenas do âmbito
acadêmico, para discuti-la também no Ensino Médio, de modo crítico, com alunos que
estão nos últimos anos escolares e possuem um grau de maturidade que permite a
reflexão acerca de temas que estão à margem da dita “boa literatura”. Eles
necessitam, também, explorar novas experimentações de leitura, as quais
correspondam ao mundo compartilhado por eles hoje, e não mais (apenas) àquele do
romantismo ou do arcadismo. Talvez, dessa forma, eles consigam perceber de modo
mais esclarecedor a escolha temática (urbanidade, violência, marginalização, políticas
públicas, miséria...) e o que observam nos noticiários; a maleabilidade diegética em
concomitância com o hibridismo das tecnologias vivenciado por eles; a visibilidade do
cânone em relação a algumas escritas e outras não, e o porquê disso, sugerindo uma
“alta cultura” implícita e subalternizando outras culturas (e literaturas).
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Universidade Federal de Campina Grande
Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino 15
ANAIS ELETRÔNICOS ISSN 235709765
Mais do que isso, lançar questionamentos voltados à denúncia social, à
desconstrução de rigidez estrutural, à incorporação por outras formas literárias dentro
de um mesmo gênero, (re)conhecendo uma literatura “saída do forno”. Enfim,
debruçar o olhar, principalmente, sobre o que diz respeito às produções de autores
que estão vivos, em pleno exercício de escrita, promovendo, se possível, entrevistas ou
conversas de escritores acessíveis com o público jovem, além de trabalhos que façam o
aluno produzir outras linguagens (jornal, cinema, teatro etc) a partir dos contos.
Aspectos como estes são instigantes para trabalhar no Ensino Médio, a fim de gerar
uma discussão inédita e proveitosa do ponto de vista literário, não desconsiderando o
fato de que a abordagem de textos não-canônicos no âmbito escolar é ainda uma
lacuna no ensino de literatura do nosso atual panorama educacional.
Referências
BALDAN, Maria de Lourdes Ortiz Gandini de. A escrita dramática da marginalidade em Marcelino Freire. 2011. Disponível em: <www.ufjf.br/revistaipotesi/2011/05/10-A-escrita.pdf>. Acessado em: 06 de Abril de 2015. CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993. FELINTO, Marilene. Obsceno abandono: amor e perda. Rio de Janeiro: Record, 2002 FREIRE, Marcelino. Contos Negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005. GALVÃO, Walnice Nogueira. Cinco teses sobre o conto. In: O Livro do Seminário (ensaios). São Paulo: L R Editores Ltda., 1982, p. 167 – 172. PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Rio de Janeiro: Globo, 1985. PORTO, Luana Teixeira; PORTO, Ana Paula. O lugar do conto brasileiro contemporâneo na história brasileiro. 2012. Disponível em: <ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Web/978-85-397-0198-8/Trabalhos/55.pdf>. Acessado em: 06 de Abril de 2015. TELLES, Gilberto Mendonça. Para uma poética do conto brasileiro. Revista de Filologia Românica, v. 19, 2002, p. 161 – 182. Disponível em: <http://revistas.ucm.es/index.php/RFRM/article/viewFile/RFRM0202110161A/10791>. Acessado em: 01 de Outubro de 2015. TREVISAN, Dalton. O grande deflorador. Porto Alegre: Editora L&PM, 2000.