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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Encontro de Internacionalização do CONPEDI (1. : 2015 : Barcelona, ES) I Encontro de Internacionalização do CONPEDI / organizadores: Raymundo

Juliano Feitosa, Daniel Vázquez Albert. – Barcelona : Ediciones Laborum, 2015. V. 13

Inclui bibliografia ISBN (Internacional): 978-84-92602-86-5 Depósito legal : MU 859-2015 Tema: Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito

do século XXI

1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Congressos. 2. Direito administrativo. 3. Direito tributário 4. Direito ambiental 5. Sustentabilidade. I. Feitosa, Raymundo Juliano. II. Albert, Daniel Vázquez. III. Título.

CDU: 34

Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

Todos os direitos reservados e protegidos.Nenhuma parte deste livro, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.

Produção Editorial: Equipe ConpediDiagramação: Marcos JundurianCapa: Elisa Medeiros e Marcos Jundurian

Impressão:Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.CNPJ. nº 83.061.234/0001-76

Editora: Ediciones Laborum, S.L – CIF B – 30585343Deposito legal de la colección: MU 859-2015

1º Impressão – 2015

EDICIONES LABORUM, S. L.CIF B-30585343

Avda. Gutiérrez Mellado, 9 - 3º -21- Edif. CentrofamaTeléfono 968 88 21 81 – Fax 968 88 70 40

e-mail: [email protected]

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

E56p

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Diretoria - Conpedi

Presidente

Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa - UFRN

Vice-presidente Sul

Prof. Dr. José Alcebiades de Oliveira Junior - UFRGS

Vice-presidente Sudeste

Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM

Vice-presidente Nordeste

Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR

Vice-presidente Norte/Centro

Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP

Secretário Executivo

Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC

Secretário Adjunto

Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto - Mackenzie

Conselho Fiscal

Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR

Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP

Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE

Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente)

Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente)

Representante Discente

Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular)

Secretarias

(Diretor de Informática)

Prof. Dr. Aires José Rover - UFSC

(Diretor de Relações com a Graduação)

Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs - UFU

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(Diretor de Relações Internacionais)

Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC

(Diretora de Apoio Institucional)

Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC

(Diretor de Educação Jurídica)

Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM

(Diretoras de Eventos)

Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen - UFES

Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA

(Diretor de Apoio Interinstitucional)

Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira - UNINOVE

Rua Desembargador Vitor Lima, 260, sala 508Cep.: 88040-400

Florianópolis – Santa Catarina - SCwww.conpedi.org.br

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Apresentação

Este livro condensa os artigos aprovados, apresentados e debatidos no Iº ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – CONPEDI, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014, em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona – Espanha. O evento teve como tema os “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI”. Para o evento foram submetidos e avaliados mais de quinhentos artigos de pesquisadores do Brasil e da Europa. Após as avaliações foram aprovados em torno de trezentos artigos para apresentação e publicação.

O principal objetivo do evento foi o de dar início ao processo de internacionalização e fundamentalmente, o de construir espaços para a inserção internacional e divulgação de pesquisas realizadas pelos Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito do Brasil, associados ao CONPEDI. A realização deste primeiro evento procurou estimular o debate e o diálogo sobre questões atuais do Direito envolvendo a realidade brasileira e espanhola.

Os artigos apresentados analisaram o papel dos “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI” praticamente em todas as áreas do Direito. Considerando a amplitude do tema, as diversas abordagens e buscando uma aproximação entre as áreas de conhecimento optou-se pela organização de seis grupos de trabalhos (GTs), que foram constituídos da seguinte forma: a) Derecho Constitucional, Derechos Humanos e Derecho Internacional; b) Derecho Mercantil, Derecho Civil, Derecho do Consumidor e Nuevas Tecnologías; c) Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; d) Derecho Administrativo, Derecho Tributario e Derecho Ambiental; e) Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho e História del Derecho; f) Derecho Penal, Criminología e Seguridad Pública.

Além da promoção do intercambio entre as Instituições e profissionais da área do Direito do Brasil e Europa, a possiblidade de ampliar e difundir a produção cientifica no âmbito internacional e a melhoria dos indicadores dos Programas de Pós-graduação brasileiros, com a realização do primeiro evento internacional

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a atual Diretoria do CONPEDI também cumpre com um de seus compromissos assumidos quando eleitos. A transcendência da realização deste primeiro evento internacional para os pesquisadores brasileiros da área do Direito se reflete no resultado final obtido. A publicação de 15 livros, através da Ediciones Laborum da Espanha em parceria com o CONPEDI, com todos os artigos apresentados e debatidos nos GTs representa uma expressiva conquista que trará importantes resultados para os programas de Pós-graduação brasileiros e, fundamentalmente, para a área do Direito.

Barcelona/Florianópolis, março de 2015.

Os Organizadores

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Sumário

Desenvolvimento e (De) Crescimento Através da Atividade Minerária no Peru: Sob um Estado Socioambiental?Ricardo Serrano Osorio e Oksandro Gonçalves ....................................... 9

Direito ao Próprio Corpo: Além da Proteção à Integridade FísicaDenis Franco Silva ............................................................................... 45

Direito Fundamental à Boa Administração: Transformações da Justiça AdministrativaLuis Carlos Cancellier de Olivo e Sabrina Nunes Iocken ......................... 61

Direito Fundamental ao Planejamento: Limite à Atuação do Estado em Momento de Crise Econômica, Política e SocialEdimur Ferreira de Faria e Juliano Ribeiro Santos Veloso ....................... 89

Em Busca do Desenvolvimento Sustentável por Meio de Políticas Públicas Socioambientais e seus Reflexos na América LatinaAntônio Carlos Efing e Silvio Alexandre Fazolli ..................................... 129

Legitimidade Ativa na Ação Popular Ambiental: Uma Análise Crítica do Conceito de Cidadão sob a Ótica do Acesso à JustiçaÂngela Issa Haonat e Vinicius Pinheiro Marques .................................... 153

O Contrassenso Político-Administrativo entre a Criação Jurídica de Novos Municípios e a Estagnação do Desenvolvimento Socioeconô-mico no Estado do Ceará/BrasilLaécio Noronha Xavier ......................................................................... 179

O Estudo de Impacto Ambiental: Um Instrumento de Proteção à Função Social da CidadeAdriana de Abreu Mascarenhas e Robson Antão de Medeiros .................. 213

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O Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR como Instrumento do Poder Público para o Desenvolvimento Agrário Sus-tentável: O ITR e as Áreas de Preservação Permanente e de Reserva LegalAlexandre Naoki Nishioka .................................................................... 249

O Novo Código Florestal e a Cota de Reserva Ambiental como Ins-trumento de Compensação da Reserva Legal: Os Principais Entraves para sua Efetiva Aplicação na Busca do Desenvolvimento SustentávelLucas de Souza Lehfeld ......................................................................... 271

Os Negócios Jurídicos Enquanto Instrumento para a Sustentabilidade: Uma Análise a Partir do Pensamento de Emílio BettiSergio Rodrigo Martinez ....................................................................... 293

Responsabilidade Civil por Danos Ambientais no Brasil e Espanha: Uma Análise Crítico-Comparativa na Busca da Melhor Doutrina Jurídica Capaz de Promover o Desenvolvimento SustentávelElcio Nacur Rezende e Kiwonghi Bizawu .............................................. 319

Sistema Constitucional Tributário Brasileiro: Inflexões Sobre Assime- trias Estruturais, Antinomias Normativas e Ambiguidade Herme-nêutica JurisprudencialAntônio Carlos Diniz Murta e Demetrius Nichele Macei ....................... 341

Transdisciplinaridade, Direito Ambiental e DemocraciaBruno Torquato de Oliveira Naves e Émilien Vilas Boas Reis ................. 371

A Tutela Ambiental e a Proteção aos Recursos Ambientais no Projeto do Novo Código Penal BrasileiroTarsis Barreto Oliveira e Suyene Monteiro da Rocha .............................. 391

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desenvolvimento e (de) crescimento através da atividade minerária no peru:

sob um estado socioambiental?

Ricardo Serrano Osorio1

Oksandro Gonçalves2

Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar o atual progresso do desenvolvimento econômico peruano através da mineração e suas relações com a ordem eco-nômica, dos recursos naturais e dos direitos fundamentais conforme um ideal de modelo sustentável do setor minerário. Primeiro, apresentamos a importância da mineração no desenvolvimento econômico como fonte de riqueza do país. Logo depois, questionamos o que é o desenvolvimento e delimitamos sobre a priorização do crescimento econômico e desenvolvimento ideal com alcances gerais. Concluímos que os recursos minerais foram, são e serão ainda os recursos naturais mais pesquisados pelos agentes econômicos do setor minerário no Peru, mas a objetividade socioambiental pela mineração ainda se encaixa sobre uma exploração insustentável pelo seu alto grau de degradação ambiental e geração de conflitos sociais. Nessa linha, as vantagens e os ganhos da renda minerária ainda não são visíveis pela sociedade, motivo pelo qual se questiona se os institutos jurídicos que conformam a ordem econômica peruana devem estar harmonizados conforme a institucionalidade de um Estado Socioambiental de Direito.

1 Doutorando em Direito, com ênfase em Direito Minerário Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, Brasil (Bolsista do PEC-PG, CAPES). Paralelamente cursa disciplinas no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais PGEEI na UFRGS. Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC/PR, Brasil (2014). Mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul UCS/RS, Brasil (2013). Especialista em Direito Corporativo e formado em Direito pela Universidad San Martín de Porres USMP, Lima - Peru. E-mail: [email protected]

2 Doutor em Direito pela PUC-SP. Mestre em Direito pela PUC-PR. Professor do Programa de Pós-Graduação  Stricto Sensu  (Mestrado/Doutorado) da PUC-PR. Advogado. E-mail: [email protected].

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Palavras-chave

Crescimento econômico; Conflitos sociais; Desenvolvimento; Estado Socio-ambiental de Direito; Mineração peruana.

Abstract

The objective of this work is to analyze the current progress of economic growth through the Peruvian mining and its relationship to the economic and natural resources as an ideal model of sustainable mining sector. First, we present the importance of mining in the Peruvian economic development as a source of wealth. Soon after, we question what is delimited on the development and prioritization of economic growth and optimal development with general scope. We conclude that mineral resources were, are and will be the natural resources most researched by economic agents of the mining sector in Peru, but the social objectivity by mining still fits on unsustainable exploitation of its high degree of environmental degradation and generation of social conflicts. It is considered that the benefits and earnings from mining are not visible by the society yet and wonders whether the legal institutions that make up the Peruvian liberal economic order should be harmonized according to the institutions of a Socio-environmental Rule of Law.

Key words

Economic growth; Social conflicts; Development; Socio-environmental Rule of Law; Peruvian mining.

1. introdução

A mineração existe há muitos séculos e sempre trouxe consigo debates inten-sos acerca dos seus limites e efeitos. No Peru, o povo inca apreciava e valorava o brilho do ouro pela sua semelhança com o Sol, considerado seu Deus supremo. Os espanhóis, contudo, buscaram conquistar os incas para apoderar-se do ouro e com ele aumentar e fortalecer seu poderio econômico e bélico num mundo que priorizara a expansão e conquista de novos territórios.

Hodiernamente, os recursos minerários foram, são e serão os recursos naturais de maior procura por parte das empresas transnacionais no Peru. Já no caso dos

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países latino-americanos, também possuem diversas riquezas naturais com um alto valor de susceptibilidade econômica no mercado internacional. Aliás, tais ativos contribuem consideravelmente para o seu desenvolvimento econômico. Não obs-tante, a parceria intrínseca entre a institucionalidade mineral e desenvolvimento com sustentabilidade econômica consciente e responsável vê-se ameaçada pelo alto grau de conflitos socioambientais que afeitam a maioria dos países pelo efeito boomerang que era riscos e perigo para os presentes e futuras gerações3.

Especificamente no setor minerário, embora tal atividade econômica seja uma importante fonte de receitas para o crescimento econômico em muitos países, ele vem acompanhado por graves impactos sociais e ambientais que gera custos não somente a população local onde se localiza o empreendimento, senão também para o desenvolvimento nacional e as futuras gerações.

Destacando a problemática ambiental global e local na seara minerária, Enrique Leff alenta que “o problema ambiental gerou mudanças globais em sis-temas socioambientais complexos que afetam as condições de sustentabilidade do planeta, propondo a necessidade de internalizar as bases ecológicas e os prin- cípios jurídicos e sociais de gestão democrática dos recursos naturais. Estes processos estão vinculados ao conhecimento das relações sociedade-natureza: não só estão associados a novos valores, mas a princípios epistemológicos e estratégias conceituais que orientam a construção de uma racionalidade produtiva sobre as bases de sustentabilidade ecológica e de equidade social” 4. Ou seja, a gestão, de exploração, produção e o cuidado dos recursos naturais são fundamentais num Estado Socioambiental de Direito para o fortalecimento da relação entre sociedade-natureza em base a uma sustentabilidade mineral eficiente.

Assim, a mineração traz consigo um paradoxo complexo. De um lado ela pode introduzir novas e poderosas energias no organismo da Nação e despertar

3 “Certos grupos sociais são mais afetados com os problemas ambientais, independentemente do lugar em que esses riscos são produzidos, porque geram um efeito boomerang, ou seja, em algum momento, todos podem ser atingidos pelo efeito global do risco”. Ver em: PERALTA, Carlos E. A justiça ecológica como novo paradigma da sociedade de risco contemporânea. Revista Direito Ambiental e Sociedade. Universidade de Caxias do Sul. Volume 1. Nro. 1. Jan./Junh. 2011. Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2011. p. 251.

4 LEFF, Enrique. Epistemologia Ambiental. Tradução: Sandra Valenzuela. Editora Cortez: São Paulo, 2001. p. 59.

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fundadas esperanças nas possibilidades do desenvolvimento do País e, do outro lado, gera uma série de consequências com externalidades sociais e ambientais positivas e negativas que na maioria dos casos tem como resultado a deterioração ou degradação do entorno social que naturalmente ocorre em razão do processo produtivo envolvido, além de afetar todas as estruturas institucionais do país.

Portanto, o presente trabalho tem como objetivo estruturar as bases de um arcabouço jurídico que possibilite uma exploração racional e eficiente das riquezas ambientais minerais, comprometidas com as prioridades de todos os elementos que conformam o conglomerado entre Estado e população local detentora do empreendimento minerário, com o intuito de garantir os direitos socioambientais em base a um modelo de sustentabilidade mineral eficiente no Peru.

2. a economia peruana e a atividade minerária como fonte de riqueza

Com o forte crescimento econômico registrado nos últimos anos, o Peru vem ganhando cada vez mais espaço no cenário econômico na América Latina. Desde o ano de 2005, o PIB peruano vem registrando crescimento superior a 6%. Em 2010, a taxa de crescimento foi de 8,8%5. O desafio é assegurar que ele continue crescendo a taxas sustentáveis acima de 6%, pelo menos durante os próximos quinze anos, segundo o relatório elaborado pelo Ministério da Economia e Finanças do Peru – MEF. Em 2015, o PIB pode chegar aos 260 bilhões de dólares e o PIB per capita poderá superar os 8.300 dólares americanos, o que representa um incremento de cerca de 40% em relação a 2011. O investimento privado atingirá 23% do PIB em 2015, enquanto o investimento total chegará a 29%6.

Uma das características deste importante processo de crescimento econômico é o maior dinamismo da demanda interna, associada à recuperação dos ingressos e ao crescimento do emprego7. O Peru continua sendo um dos países com o

5 PERU. Instituto Nacional de Estadística e Informática. Disponível em: http://www.inei.gob.pe/perucifrasHTM/infeco/cuadro.asp?cod=3842&name=pr01&ext=gif Aceso: 28 de julho do 2012.

6 PCM. O MMM 2013-2015, elaborado por técnicos do Ministério da Economia e Finanças MEF, pela Superintendência de Banco e Seguros SBS e do Congresso Nacional, foi aprovado ontem pelo Executivo em uma sessão do Conselho de Ministros PCM.

7 “La globalización en el Perú no ha sido un negocio sólo para unos cuantos ni ha consistido en un proceso excluyente de desnacionalización de la economía que haya puesto las principales

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índice de inflação mais baixo da região. Neste sentido, o processo de crescimento econômico tem sido favorecido pela estabilidade cambiária e de preços que o Peru registra por mais de dez anos. Entre as razões fundamentais desse fortalecimento econômico do Peru estão o aumento de acordos de livre comércio e a variação positiva dos preços das commodities minerais. Nos últimos anos foram celebrados acordos de livre comércio com a União Europeia, China, EUA, e outros países, com o objetivo de diminuir a dependência das exportações e promover a elevação dos investimentos estrangeiros8. Segundo o Banco Central do Peru (BCR) e a ProInversión (a Agência Governamental de Promoção de Investimentos Privados), o fluxo de investimento privado para a economia peruana tem aumentado rapidamente desde 19939.

Desse modo, pode-se observar que houve um aumento considerável do PIB peruano desde 1992 até 2013, pois tal incremento teve como principal fator a produção no setor minerário10. As perspectivas para 2013 indicam um crescimento do PIB em torno de 5,9% sustentado pelos investimentos nos setores da construção

decisiones económicas del Estado en manos de un nuevo mercantilismo transnacional, como afirman algunos intelectuales y políticos de izquierda. Fue la era estatista la que eliminó o debilitó a los grupos económicos nacionales, razón por la cual las empresas privatizadas en los noventa fueron adquiridas principalmente por el capital extranjero. Pero, simultáneamente, nuevos grupos económicos nacionales han surgido, incluso desde la base social como nunca antes había ocurrido –perforando la vieja sociedad estamental-, y se han internacionalizado conformando las primeras transnacionales peruanas de la historia del país. Empresas peruanas son hoy nacionalizadas en países vecinos”. Ver em: ALTHAUS, Jaime. La revolución capitalista en el Perú. Fondo de cultura económica: Lima, 2007. p. 100.

8 “Nos últimos anos, o Peru adotou diversos TLCs (17 Tratados de Livre Comércio com as economias mais poderosas) com os principais mercados do mundo, tais como os EUA, China, Japão, Coreia do Sul, Canadá e, os mais atuais, com os mercados de alto poder aquisitivo da União Europeia. Esse aumento de acordos comerciais internacionais tem por objetivo incrementar os incentivos para a captação dos investimentos estrangeiros no país, visto que a estratégia tomada é dinamizar a economia interna através da atração de capitais, assim como dinamizar e diversificar as exportações...”. Ver em: OSORIO, Ricardo Serrano. CASSI, Guilherme. Desenvolvimento, consumo e direitos fundamentais na América Latina frente à abertura comercial às potências tecnológicas. Rio de Janeiro: Revista de Direito, Estado e Sociedade, n. 43, p. 100-125, jul./dez, 2013.

9 CEPAL. Disponível em: http://www.eclac.cl/publicaciones/xml/3/29293/Peru.pdf Acesso, 22 de julho do 2012.

10 OSORIO, Ricardo Serrano. El sistema de extrafiscalidad minera en el Perú: Estimulando una explotación minera sostenible sin incentivos? In: GONÇALVES, Oksandro. FOLMANN, Melissa (Org.). Tributação, Concorrência e Desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2013. p. 104.

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e na mineração11 e pela contínua expansão do consumo interno. Como consequên-cia, o setor de mineração passou a ocupar uma posição central na economia do país como consequência da reestruturação das suas políticas econômicas12. Assim, o país é o terceiro produtor mundial de prata, cobre, zinco e estanho, quarto produtor de chumbo e molibdênio e sexto produtor de ouro, conforme os dados do MINEM13. Em suma: a mineração e as exportações de minérios são importantes propulsoras da economia peruana e dão uma contribuição significativa ao PIB.

Assim, os recursos minerais peruanos são considerados o principal incentivo para o interesse estrangeiro no país. Sob a ótica racional, as empresas estrangeiras buscam maximizar os ganhos da sua exploração, o que é incompatível com uma postura social que leve em consideração aspectos como distribuição de renda e respeito ao meio ambiente local.

Sobre uma perspectiva geral da importância dos investimentos para o de-senvolvimento dos países, se afirma que é crescente o fluxo de investimentos in-ternacionais, em teias de crescente complexidade que envolvem a presença das sociedades transnacionais. Com a desconstrução das cadeias produtivas, novos desafios se apresentam à regulação desses investimentos nos países hospedeiros14. Cria-se uma tensão entre os dois polos envolvidos, de um lado o Estado que denominamos hospedeiro e de outro a empresa investidora, num efeito pendular ao longo da história, com o retorno do tema das nacionalizações e expropriações15.

11 “Aunque la participación de los recursos naturales en la economía peruana ha tenido una cierta recuperación en los noventa con la nueva estrategia de desarrollo, el boom se concentra más en el sector minero. Ver em: TORRES- ZORRILLA, Jorge. Una estrategia de desarrollo basada en recursos naturales: análisis clúster del complejo de cobre de la Southern Perú. Serie Desarrollo productivo 70. Santiago de Chile: CEPAL, 2000.

12 “Para inicios de los 90, la actividad minera en el Perú se hallaba en crisis. Las empresas en manos del Estado y también las pertenecientes a medianos empresarios particulares, se vieron agobiadas por la hiperinflación, el conflicto armado interno y el agotamiento del modelo de sustitución de importaciones”. Ver em: DURAND, Anahí Guevara. De mineros a indígenas. Cambios en la relación minería-comunidad, organización social y revaloración étnica en Angaraes- Huancavelica. Programa Regional de Becas, Santiago de Chile, CLACSO. 2006.

13 Disponível em: http://www.minem.gob.pe/_estadistica.php?idSector=1&idEstadistica=7332 Acesso, 28 de novembro de 2013.

14 ZANELLA, Cristine Koehler. Energia e integração: oportunidade e potencialidades da integração gasífera na América do Sul. Ed. UNIJUÍ, 2009.

15 RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Alexandre Santos de Aragão (coord.). Direito do Petróleo e de outras fontes de energia. Artigo. Direito dos investimentos e o Petróleo. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2011. p.50

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Nessa linha, já Rudolf Dolzer e Christoph Schreuner ensinam que “regulamentar os investimentos estrangeiros são uma expressão da soberania do Estado, e que pensar o contrário não contribui para o desenvolvimento econômico e social”16.

No caso do Peru, apesar dos benefícios dos investimentos na mineração para a economia peruana desde as mudanças na sua política econômica a partir de 1993, as comunidades locais tiveram algumas melhorias de bem-estar social em decorrência da expansão da mineração. Isso causou conflitos entre as mineradoras, o governo e a população, todos com interesses significativos.

Aprofundando ainda mais essa relação de desenvolvimento e mineração, a ordem econômica constitucional no Peru destaca-se por atrair e incentivar os investimentos em capital para projetos empresariais, por isso a necessidade de garantir mais investimentos fez com que o Estado peruano refundasse as suas instituições e normas jurídicos do setor minerário nesse período 1993 - 201017.

No entanto, para alguns críticos do desenvolvimento econômico peruano baseado na mineração, consideram que “ainda que o momento econômico seja positivo, o Estado está em permanente turbulência causada pelo elevado per-centual de peruanos na faixa de pobreza extrema, a baixa qualidade no mercado de trabalho e da qualidade de vida e os conflitos socioambientais pela extração

16 DOLZER, Rudolf. SCHREUER, Christoph. Principles of Internacional Investment Law (Foundations of Public International Law). Oxford University Press, 2008. p. 7.

17 “El aumento del flujo de inversiones en exploraciones y explotación minera demandó que el Estado peruano iniciara un proceso de refundación de las instituciones y las normas del sector minero. Este proceso significó la transformación de las relaciones de poder entre los actores del desarrollo nacional, lo cual implicó un cambio en la lógica y contenidos, por ejemplo, de los derechos de las comunidades campesinas y nativas sobre la propiedad comunal de la tierra. La promulgación de la Constitución de 1993, por ejemplo, le otorgó la posibilidad a las comunidades nativas y campesinas de negociar con terceros la propiedad de las tierras comunales, produciendo entonces un doble efecto: por un lado, el Estado abrió la posibilidad para que las comunidades propietarias de este bien colectivo participaran del mercado de tierras y capitalizaran este recurso, pero del otro lado, estas no se encontraban preparadas para asumir los retos de esta incorporación a una lógica de relaciones capitalistas de libre mercado”. Ver em: ECKHARDT, Karen; GIRONDA, Aldo; LUGO, Jeannette; OYOLA, Walter. UZCÁTEGUI, Reina. Empresas mineras y población: estrategias de comunicación y relacionamiento. (Serie Gerencia para el Desarrollo; 11). Lima: Universidad ESAN, 2009. p. 180. Disponível em: http://www.esan.edu.pe/publicaciones/2011/02/25/mineria-y-poblacion.pdf - Acesso, 1 de abril de 2014.

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dos recursos minerários no país”18. Nesse sentido, destaca-se que historica-mente os baixos salários nas áreas pobres alimentaram o ódio aos altos lucros auferidos pela indústria mineira e acentuaram a percepção popular de que o bem-estar dos empregados e do desenvolvimento da população local é considerado secundário frente aos ganhos financeiros das mineradoras. Diante a esse quadro sugere um possível conflito social a partir de disputas relativas à mineração, com impacto danoso sobre o setor. Não obstante, é importante salientar que os conflitos socioambientais são comuns envolvendo a mineração em qualquer lugar do mundo19, ou seja, tal atividade econômica já gera uma serie de riscos e danos intrinsecamente por gerar uma ação de extração de recursos naturais com suscetibilidade econômica.

Não obstante, considera-se que esse processo de incentivo para a atração de investimentos ou capitais internacionais não considerou gradativamente os seus impactos sociais e ambientais da sociedade peruano, o que originou a reação das populações e organizações não governamentais preocupadas com uma adequada exploração dos recursos ambientais minerais do país, gerando, assim, considerá-veis conflitos socioambientais entre todos os agentes envolvidos20.

Já sobre a consequência da mineração na seara econômica do país, se por um lado o Peru se beneficia do comércio das commodities minerais, por outro lado se torna dependente dos preços estabelecidos internacionalmente, afetando desse modo seu crescimento econômico pela sua desproporção e desequilíbrio financeiro ao momento da distribuição da riqueza. Aliás, se há um quadro de recessão mundial, as commodities se desvalorizam, prejudicando os lucros das empresas e a arrecadação tributária minerária por parte do Estado, gerando mais

18 MONTALVO, Hilda Vanessa Zevallos. Política de desenvolvimento e o setor de mineração: análise de discursos do Governo do Peru no período de 1990 a 2009. Dissertação de Mestrado apresentada à Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas. 2010. p. 58.

19 BANERJEE, Subhabrata. Who Sustains Whose Development? Sustainable Development and the Reinvetion of Nature. Organization Studies, n. 24, p. 143-180, 2003.

20 No Peru podemos citar alguns conflitos sociais de grande envergaduras como o caso: La Oroya, Conga, entre otros. Quanto aos danos ambientais, citamos os níveis de contaminação dos rios Santa (Ancash); Chillón e Rímac (Lima); San Juan (Cerro de Pasco) e Mantaro (entre Pasco, Junín e Huancavelica); e a contaminação por mercúrio ocorrido em Choropampa, em Cajamarca.

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uma vez dependência econômica do país por ser apenas um mercado primário exportador de matéria-prima diante ao mundo. Somado a tudo isso, há que se destacar que os recursos minerais são recursos escassos, ou seja, é preciso promover o aproveitamento dos seus resultados sobre pena de acabarem por completo sem qualquer retorno para a sociedade peruana prejudicando assim não somente os presentes senão também as futuras gerações do país.

Na diferença entre o crescimento e desenvolvimento, embora sejam conceitos próximos, não se confundem. O crescimento econômico costuma desprezar os indicadores sociais ou de qualidade de vida, bem como aspectos ambientais21. Daí porque os órgãos internacionais especializados, entre eles a ONU, vêm estabelecendo uma série de indicadores de qualidade de vida, cujo baixo nível indica não ter ainda se completado o processo de desenvolvimento, mesmo quando o PIB se eleva visando a obtenção da sustentabilidade. Assim, o crescimento do PIB não é uma medida adequada para se chegar ao conceito de desenvolvimento, pois esse processo envolve outros aspectos sociais e econômicos. Nessa linha, já Heline Ferreira assinala que “embora essa concepção redutora tenha predominado por décadas, o conhecimento empírico evidencia que o crescimento econômico não é necessariamente sinônimo de desenvolvimento”22.

Dessa forma, o crescimento é necessário, mas não é suficiente para garantir o desenvolvimento. Em razão disso, surge a proposta de adoção do IDH – Índice de Desenvolvimento Humano que leva em consideração uma série de outros aspectos que não é apenas o PIB. Na perspectiva da ONU, destaca-se que “o IDH se difere da perspectiva do crescimento econômico, que vê o bem-estar de uma sociedade apenas pelos recursos ou pela renda que ela pode gerar, a abordagem de desenvolvimento humano procura olhar diretamente para as pessoas, suas oportunidades e capacidades. A renda é importante, mas como um dos meios do desenvolvimento e não como seu fim.

21 “A situação de países em desenvolvimento não se altera substancialmente pelo simples crescimento econômico, em outros termos, o aumento de valores decorrentes da exploração minerária não repercute, necessariamente, sobre o desenvolvimento, embora possa gerar algum crescimento econômico”. Ver em: NUSDEO, Fábio. Curso de economia: Introdução ao direito econômico. 3 ed. rev. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2001. p. 351.

22 FERREIRA, Heline Sivini. Desvendando os organismos transgênicos: As interferências da Sociedade de Risco no Estado de Direito Ambiental Brasileiro. Editora Forense Universitária, 1a edição: Rio de Janeiro, 2010. p. 200.

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É uma mudança de perspectiva: com o desenvolvimento humano, o foco é transferido do crescimento econômico, ou da renda, para o ser humano”23.

Voltando ao caso do desenvolvimento econômico peruano, o fato de a atividade minerária representar uma parcela substancial do PIB faz com que se priorize o crescimento estritamente econômico baseado sobre a mineração diante a um desenvolvimento com sustentabilidade geral nas searas sociais, ambientais, econômicas e, incluso, culturais. Em suma, é preciso analisar se esses incentivos sobre o crescimento econômico estão baseados sustentavelmente na extração e comercialização dos minérios numa sociedade no qual o Estado Socioambiental de Direito ainda não é aplicado eficazmente e nem faz parte da agenda dos grupos empresariais e da sociedade civil do país.

Já sobre os riscos socioambientais no setor minerário, estes são assumidos pelas pessoas que formam parte do conjunto da industrialização assim como pela comunidade local e o meio ambiente onde se realiza suas operações24. Com efeito, além de ser um recurso escasso, a mineração demanda riscos altos na sua produção, tanto para extração quanto para industrialização25, como é o caso do uso de mercúrio na exploração de ouro. Referente a este último ponto, além das substâncias químicas na atividade aurífera, também é utilizado grande quantidade de água com impacto sobre as reservas hídricas, que também sendo recursos na-turais escassos fundamentais para o desenvolvimento com sustentabilidade para

23 No caso do Peru, ele possui um IDH de 0,725 o que o coloca em 80O lugar no mundo. Disponível em: http://www.pnud.org.br/IDH/DH.aspx?indiceAccordion, Acessado, 2 de julho de 2013.

24 FREIRE, William. Código de Mineração Anotado. 5ta edição. Editora Mandamentos: Belo Horizonte, 2010. p. 60.

25 “Sin embargo la actividad minera es por naturaleza destructiva y agotadora de los recursos que explota. Y como consecuencia del proceso productivo de esta industria se produce alteraciones en el medio ambiente afectando la configuración del paisaje, produciendo efectos nocivos sobre los cultivos forestales y agrícolas, contaminando el aire, el agua y el suelo, de igual modo, los humos, desechos tóxicos y emanaciones provocan daño al ecosistema circundante, así como a la salud de las poblaciones ubicadas en las cercanías del área minera. Constituyen problemas ambientales de suma gravedad. Se desprender entonces, que la actividad minera y su relación con el medio ambiente no es harmoniosa, sino por el contrario agresiva. Lo que conlleva a la toma de consciencia y preocupación por revertir esta situación, conciliando los objetivos de desarrollo económico y social con un adecuado manejo del medio ambiente”. Ver em: MONTÚFAR, Guillermo García. FRANCISKOVIC, Militza Ingunza. Derecho minero: Doctrina, jurisprudencia e legislación actualizada. Editora Gráfica Horizonte. 2 edição. Lima, 2001. p. 25.

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o país, pelo que todos esse conglomerado de externalidades negativas também afeta diretamente a construção de um Estado Socioambiental de Direito.

Portanto, por todos os aspectos envolvidos, considera-se que a exploração das riquezas minerais deve estar intimamente vinculada aos interesses tanto da população local onde se leva a cabo o empreendimento minerário quanto tam-bém sobre um interesse de desenvolvimento nacional com o intuito de constituir uma base sólida do desenvolvimento com sustentabilidade mineral eficiente que garanta a eficácia da tutela jurídica tanto das presentes e futuras gerações das populações.

3. afinal, o que é desenvolvimento?

Basicamente são duas as correntes doutrinárias que debatem acerca do conteúdo do termo desenvolvimento. Na primeira o termo significa crescimento econômico, numa relação proporcional em que quanto maior este maior aquele. A segunda propõe uma noção muito mais ampla e quiçá complexa, ao sustentar que o desenvolvimento deve refletir-se na sociedade em geral com uma interface em relação a temas como proteção ao meio ambiente, direitos humanos, sustentabilidade e redistribuição da justiça.

Sob uma ótica um pouco diversa, Amartya Sen afirma que “o desenvolvi-mento é uma forma ou medida da expressão da liberdade. Ele crítica a corrente que coloca em relevo apenas o aspecto do crescimento econômico, por entender que ela representa uma visão curta da expressão que possui um significado maior, afirmando que o crescimento do PIB não é uma medida adequada, mas que devem ser considerados aspectos outros, tais como as disposições sociais e econômicas (por exemplo, os serviços de educação e saúde) e os direitos civis (por exemplo, a liberdade de participar de discussões e averiguações públicas), em razão disso criou-se outro indicado, denominado IDH – Índice de Desenvolvimento Humano”26.

Michael Van Bellen Hans afirma que “no processo de desenvolvimento os diferentes indicadores que são utilizados para formar o índice final devem ser ponderados. O peso ou a ponderação do PIB se refere ao valor monetário que é

26 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Tradução Laura Teixeira Motta, revisão técnica Ricardo Doninelli Mendes. p. 16.

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atribuído a cada produto. Entretanto, quando se consideram aspectos ambientais e sociais, essa monetarização ou ponderação não é muito simples. A crescente utilização de indicadores mistos que levem em consideração não apenas dados meramente econômicos mostra que eles são importantes ferramentas para a tomada de decisão e para melhor compreender e monitorar as tendências e, portanto, úteis na identificação dos dados mais relevantes e no estabelecimento de sistemas conceituais para a compilação e análise de dados”27.

Tal como destaca José Eli da Veiga “o desenvolvimento não se resume ao au-mento da renda per capita, e por isso é muito comum que imediatamente surja a ideia de que o problema fundamental é o da distribuição de renda”28. Já para Enrique Leff, na verdade, “o desenvolvimento real será viabilizado através da conformação entre eficiência econômica, igualdade social e prudência ambiental”29.

De fato, o desenvolvimento não pode sacrificar os valores sociais, pois não é possível promovê-lo à custa de danos ao meio ambiente ou ofensas aos direitos humanos. As correntes que tentam definir desenvolvimento precisam ser conjugadas, mas não podem se distanciar da premissa segundo a qual o crescimento econômico deve vir aliado ao respeito a um conjunto de novos direitos que não são monetizáveis e que devem ser simplesmente considerados no momento da tomada de decisão.

Nessa relação de desenvolvimento e instituições, a Nova Economia Institucional (NEI) considera o projeto e o funcionamento das instituições do setor público e das organizações do setor privado que interagem com essas instituições fatores determinantes essenciais das perspectivas de desenvolvimento dos países, por meio dos incentivos que criam para participar em atividades socialmente produtivas ou improdutivas30.

27 HANS, Michael Van Bellen. Indicadores de sustentabilidade: uma análise comparativa. 2. Ed., FGV: Rio de Janeiro, 2006. p. 49.

28 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Editora Garamod: São Paulo, 2005.

29 LEFF, Enrique. Epistemologia Ambiental. Tradução: Sandra Valenzuela. Editora Cortez: São Paulo, 2001. p. 59.

30 DAVIS, Kevin E.; TREBILCOCK, Michael J. A relação entre direito e desenvolvimento: otimistas versus céticos. Revista Direito GV, São Paulo, 5(1), p. 217-268, janeiro/junho de 2009. p. 223.

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Importante neste ponto fazer um recorte para tratar do modelo desen-volvimentista sugerido pelo Consenso de Washington. Em novembro de 1989 realizou-se uma reunião em Washington para debater políticas desenvolvi-mentistas para a América Latina, propondo-se um conjunto de medidas modelo a serem adotadas pelos países em desenvolvimento para chegarem ao mesmo grau de desenvolvimento dos países ditos de primeiro mundo. Não obstante, o objetivo do encontro, convocado pelo Institute for International Economics, sob o título “Latin American Adjustment: How Much Has Happened”, era proceder a uma avaliação das reformas econômicas empreendidas nos países da América Latina. Como foi de conhecimento público, as conclusões dessa reunião é que se daria, subsequentemente, a denominação informal de “Consenso de Washington”.

No caso do Peru, as reformas da década de 1990 tornaram ao país como uma das mais abertas economias liberais não só na América Latina, mas em todo o mundo31. Nessa linha, as premissas teóricas do consenso inspiraram uma série de medidas econômicas, especialmente com a Constituição de 1993, de caráter francamente liberal.

Sem dúvida, o PIB peruano atual indica que essa política contribuiu consideravelmente para um contínuo processo de crescimento econômico, mas não propriamente sobre um processo de desenvolvimento eficiente. Considera-se que este processo não levou em consideração os valores modernos notadamente o respeito ao meio ambiente, pelos altos índices de conflitos socioambientais, entre outros fatores.

As instituições estão se afirmando e tal processo de desenvolvimento eficiente é fundamental para atingir o desenvolvimento sustentável. Nessa linha de instituições jurídicas e medidas de desenvolvimento com sustentabilidade, Mary Shirley ressalta a importância das instituições para o desenvolvimento:

Cross-country regressions are poor tools to determine which particular institutions are necessary for a country to develop:

31 BURY, Jeffrey. Livelihoods, Mining and Peasant Protests in the Peruvian Andes. Department of Environmental Studies University of California, Santa Cruz. Journal of Latin American Geography 1 (1), California, 2002.

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we lack good aggregate measures of complex institutions or an understanding of how these institutions interact with specific country characteristics. Growth regressions have, nevertheless, suggested some important empirical regularities. First, whatever these institutional variables are measuring, they typically explain a sizeable fraction of economic growth. Second, institutions that increase political competition and civil liberties and promote cooperation have a statistically significant and positive association with per capita growth rates and income levels. This fits nicely with the finding of some of the historical studies reviewed earlier that high quality institutions today are rooted in greater equality, political competition and cooperative norms in the distant past32.

Assim sendo, também nesse processo de desenvolvimento do Peru devem ser enfrentados os problemas da desigualdade (pobreza) e dos bens públicos inalienáveis, como o meio ambiente que não somente está sujeito pura e simplesmente a regras de mercado:

A necessidade de ir além das regras de mercado tem sido muito discutida recentemente no contexto da proteção do meio ambiente. Tem havido algumas providências – e muitas propostas – para a regulamentação e provisão governamental de incentivos apropriados por meio de impostos e subsídios. Mas existe também a questão do comportamento ético, relacionada às normas que favorecem o meio ambiente (...). O desafio ambiental faz parte de um problema mais geral associado à alocação de recursos envolvendo “bens públicos”, nos quais o bem é desfrutado em comum em vez de separadamente por um consumidor. Para o fornecimento eficiente de bens públicos, precisamos não só levar em consideração a possibilidade da ação do estado e da provisão social, mas também examinar o papel que pode desempenhar o desenvolvimento de valores sociais e de um senso de responsabilidade que viessem a reduzir a necessidade da ação impositiva do Estado. Por exemplo, o desenvolvimento de uma ética ambiental pode fazer parte do trabalho que a regulamentação impositiva se propõe a fazer33.

32 SHIRLEY, Mary M. Institutions and development. In: MÉNARD, Claude and SHIRLEY, Mary M. Handbook of new institutional economics. Netherlands: Springer, 2008, p. 611-638. p. 627.

33 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Tradução Laura Teixeira Motta, revisão técnica Ricardo Doninelli Mendes. p. 342.

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Todavia, tal como afirma Mario Schapiro, “as reformas devem ser também institucionais que lhe garantirão o suporte adequado. As reformas econômicas sem instituições fortes são completamente inócuas ou ineficientes para atingir o desenvolvimento”34.

Dessa discussão surgiu o movimento denominado Direito e Desenvolvi-mento (rule of law). Nessa perspectiva. Michael J. Trebilcock e Kevin E. Davis destacam que “ele teve início nos séculos XVIII e que o pano de fundo intelectual desse movimento está no período do pós-guerra, que assistiu a um aumento no número de acadêmicos e formuladores de políticas interessados pelas nações pobres do mundo”35. Como consequência, esse pensamento deu origem à teoria da modernização:

Os teóricos da modernização afirmavam que o subdesenvolvimento de uma sociedade era causado pelas características ou estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais tradicionais (em oposição a modernas) e se refletia nelas. Para progredirem, as sociedades subdesenvolvidas teriam de passar pelo mesmo processo de evolução do tradicionalismo para a modernidade que as sociedades mais desenvolvidas haviam experimentado anteriormente. Porém, enquanto o ímpeto de modernização nos países agora desenvol-vidos resultara de mudanças endógenas, a transformação das nações em desenvolvimento resultaria principalmente de estímulos exógenos. Ou seja, a modernização do Terceiro Mundo seria realizada pela difusão do capital, das instituições e dos valores do Primeiro Mundo (...). Mais especificamente, isso implicaria a emergência de um sistema de livre mercado, do império do direito, de uma política multipartidária, da racionalização da autoridade e do crescimento da burocracia e da proteção dos direitos humanos e das liberdades básicas. (...). Influenciada por Weber, uma forma de concepção instrumentalista do direito estava na base dessa visão da relação entre direito e desenvolvimento. Tal como definida por Burg, essa concepção “considera o direito uma força que pode ser

34 SCHAPIRO, Mario Gomes. Amarrando as próprias botas do desenvolvimento: a nova economia global e a relevância de um desenho jurídico-institucional nacionalmente adequado. Revista Direito GV, São Paulo, 7(1), p. 341-352, janeiro/junho de 2011. p. 342.

35 DAVIS, Kevin E.; TREBILCOCK, Michael J. A relação entre direito e desenvolvimento: otimistas versus céticos. Revista Direito GV, São Paulo, 5(1), p. 217-268, janeiro/junho de 2009, p. 221.

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moldada e manipulada para alterar o comportamento humano e alcançar o desenvolvimento”36.

Dessa forma, Mario Schapiro aduz que “surge então um novo paradigma para o desenvolvimento, baseado em uma convergência entre ideias econômicas, noções de direito e estratégia política (...) baseado em transações privadas, mediadas pelas garantias jurídicas de proteção à propriedade privada e aos termos contratuais, e, ainda, é vinculado a um viés definido de políticas públicas, em que prevalece a relação Estado-economia comprometida com a preservação dos mercados como espaços de alocação de recursos”37.

O problema é que esse conjunto de soluções planificadas nem sempre leva em consideração o ambiente local que pode influenciar o resultado final e, com isso, tem desconsiderado um fato relevante: a existência de diferentes arranjos nacionais, forjados ao longo de trajetórias históricas e materializados em uma teia complementar de leis, instituições, valores e padrões culturais – elementos que figuram subjacentes aos regimes de organização social e econômica38.

Por isso, Michael J. Trebilcock e Kevin E. Davis afirmam que ”existem otimistas e céticos quanto a interação direito/desenvolvimento. Os otimistas acre- ditam que reformas jurídicas podem garantir o desenvolvimento, como se o operador do direito fosse uma espécie de “engenheiro social” capaz de, através do direito, promover objetivos desenvolvimentistas39.

No caso peruano, estas premissas se aplicam ao Estado e Sociedade deste país, que promoveu mudanças constitucionais em 1993 a pretexto de promover

36 DAVIS, Kevin E.; TREBILCOCK, Michael J. A relação entre direito e desenvolvimento: otimistas versus céticos. Revista Direito GV, São Paulo, 5(1), p. 217-268, janeiro/junho de 2009. p. 222.

37 SCHAPIRO, Mario Gomes. Repensando a relação entre Estado, Direito e desen-volvimento: os limites do paradigma rule of law e a relevância das alternativas institucionais. Revista Direito GV, São Paulo, 6(1), p. 213-251, janeiro/junho de 2010. p. 219.

38 SCHAPIRO, Mario Gomes. Repensando a relação entre Estado, Direito e desen-volvimento: os limites do paradigma rule of law e a relevância das alternativas institucionais. Revista Direito GV, São Paulo, 6(1), p. 213-251, janeiro/junho de 2010. p. 222.

39 DAVIS, Kevin E.; TREBILCOCK, Michael J. A relação entre direito e desenvolvimento: otimistas versus céticos. Revista Direito GV, São Paulo, 5(1), p. 217-268, janeiro/junho de 2009. pp. 221/235.

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o desenvolvimento. A principal crítica dos céticos é aplicável ao caso peruano, pois afirmam que “a implementação dessas reformas tratam da competência dos atores estrangeiros que patrocinam muitas delas e o grau em que suas atividades são prejudicadas por conflitos de interesse e preconceitos intelectuais ou ideológicos, pois essas alterações podem levar em consideração um interesse pessoal na promoção de reformas jurídicas sem levar em conta o impacto delas sobre a sociedade mais ampla”40.

Em suma, considera-se que a adoção de políticas econômicas desenvolvimen-tistas não pode ocorrer de forma isolada, mas juntamente com uma ampla reforma institucional na qual o Direito tem uma importância fundamental desde que considere os arranjos sociais específicos.

Portanto, no caso peruano, a atividade minerária não pode prescindir da relação entre direito e desenvolvimento, pelo qual se deve promover o desenvolvimento com sustentabilidade eficiente através da criação de estruturas institucionais sólidas capazes de fazer a passagem para o desenvolvimento sobre um ideal cético realista. Todavia, antes de manter uma posição final sobre ser o no ser otimista ou cético, considera-se fundamental analisar a ordem econômica da constituição peruana assim como a relação entre direito e desenvolvimento nessa nova economia institucional.

4. institucionalidade jurídica no peru: uma análise da ordem econômica constitucional e dos re-cursos naturais

Especificamente, na relação de crescimento e desenvolvimento, a análise da ordem econômica constitucional num Estado de Direito é fundamental para orientar a tomada de decisões diante aos consideráveis empreendimentos minerários. Nesse contexto, questiona-se: até que ponto a ordem econômica constitucional do Peru incentiva e harmoniza tal regime atrelado com a proteção dos recursos naturais? Vejamos.

As Constituições cumprem determinadas funções no contexto de cada ordem estatal, mas também e cada vez mais no plano das relações dos estados

40 DAVIS, Kevin E.; TREBILCOCK, Michael J. A relação entre direito e desenvolvimento: otimistas versus céticos. Revista Direito GV, São Paulo, 5(1), p. 217-268, janeiro/junho de 2009. P. 235.

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constitucionais entre si41. Nessa linha, a Constituição entre outros possíveis significados, é a norma suprema que, inspirada em valores superiores, determina a ordenação jurídica da sociedade. E dado o alcance e importância que tem a economia na vida social, é fundamental que a Constituição contenha os princípios jurídicos orientadores da ordem econômica42.

Parte-se que dignidade da pessoa humana é o valor-princípio que se encontra imerso em todo o sistema jurídico peruano como valor supremo43. Tem fundo constitucional e é peça-chave na estrutura das demais leis44. Na seara do Direito Minerário tal princípio também se encontra vigente ao longo da cadeia produtiva desde a pesquisa mineral até o fechamento das minas. Destarte, o regime jurídico da mineração peruana se fundamenta na Constituição Política e na Ley General de Minería, cujo texto único e ordenado (TUO) recai sobre o Decreto supremo Nº 014 92- EM45, aprovado em 199246.

No Peru, a Constituição de 1993 responde a uma orientação política oposta a que inspirou a Constituição de 1979. Diferente desta última, a Constituição vigente se baseia no indivíduo, no livre mercado e no princípio de subsidiariedade estatal47. O seu sistema econômico é o de uma Economia de Mercado do Estado

41 SARLET, Ingo Wolfgang. Teoria da Constituição e do Direito Constitucional. In: SARLET, Ingo Wolfgang. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 72.

42 CASTILLO, Manuel Calle. El Derecho Constitucional Económico. Lima, Revista de Derecho y Cambio Social, v. III. p. 2012.

43 O artigo 1° da CPP, indica que  “la defensa de la persona humana y el respeto de su dignidad son el fin supremo de la sociedad y del Estado”.

44 O artigo 43 da CPP indica que “la República del Perú es democrática, social, independiente y soberana. El Estado es uno e indivisible. Su gobierno es unitario, representativo y descentralizado, y se organiza según el principio de la separación de poderes”.

45 O artigo 1° da Ley General de Minería do Peru, indica que “la presente Ley comprende todo lo relativo al aprovechamiento de las sustancias minerales del suelo y del subsuelo del territorio nacional, así como del dominio marítimo. Se exceptúan del ámbito de aplicación de esta Ley, el petróleo e hidrocarburos análogos, los depósitos de guano, los recursos geotérmicos y las aguas mineromedicinales”.

46 OSORIO, Ricardo Serrano. Mineração, desenvolvimento e institucionalidade peruana/brasileira: Uma análise econômica do direito minerário ambiental. Dissertação apre-sentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Econômico e Socioambiental. Curitiba, PUCPR, 2014.

47 ESCOBAR, Freddy Rozas. CABIESES, Guillermo Crovetto. La libertad bajo ataque: Contratos, regulación y retroactividad. Revista Ius Et Veritas, Nro. 46, Julio 2013. Lima. pp. 114-139.

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Social, ou seja, é de uma economia social de mercado, com valores não tão somente econômicos, que proporcionam ampla margem de ação ao poder político para configurar um modelo econômico, resultado da combinação de elementos heterogêneos, procedentes das distintas formas de conceber a economia do mercado e inspirados tanto em postulados do neocapitalismo contemporâneo como o do socialismo democrático48.

O regime estabelecido como base da ordenação econômica é, de acordo com o artigo 58 da Constituição Política49, o de uma economia social de mercado50. Em suma: o Peru adota o modelo de Economia Social do Mercado que combina a livre iniciativa privada e o bem-estar social garantido pela força econômica. Através deste modelo econômico se procura incentivar o desenvolvimento eficiente tanto no mercado quanto o desenvolvimento socioeconômico do país51.

Nessa análise da ordem econômica constitucional, o artigo 58 da Constituição peruana ao tratar da livre iniciativa estabelece que se deve levar em consideração o desenvolvimento através da promoção do emprego, da saúde, da educação, da seguridade, dos serviços públicos e da infraestrutura. Não obstante, é possível ver do dispositivo legal, que a livre iniciativa levará em consideração outros aspectos, mas nada refere acerca de aspectos como a responsabilidade ambiental. Sobre uma

48 KRESALJA, Baldo. OCHOA, Cesar. Derecho Constitucional Económico. Capítulo VIII: Del Estado Social de Derecho el Estado de Justicia y Cultura. Lima: Fondo Editorial PUCP, 2009.

49 O artigo 58 da CPP, estabelece que “La iniciativa privada es libre.  Se ejerce en una economía social de mercado. Bajo este régimen, el Estado orienta el desarrollo del país, y actúa principalmente en las áreas de promoción de empleo, salud, educación, seguridad, servicios públicos e infraestructura”.

50 “(....) a economia social de mercado parte da premissa que o melhor sistema para a assinação e distribuição dos recursos é aquele que propicia a concertação livre entre oferta e demanda, posto que deste modo se promova a expansão das iniciativas dos seres humanos, se incentiva a competência criadora e se age as inovações tecnológicas. Ao Estado neste esquema o corresponde criar as condições para que as atividades econômicas privadas se desenvolvam de maneira livre e competitiva, procurando-lhes um marco para o desenvolvimento eficiente, que redunde em melhores produtos e a preços competitivos para os consumidores e usuários”. Ver em: PERU. Tribunal Constitucional Peruano. Exp. Nro. 0048-2004-AI. 1-04-05. Parágrafo, 12. Disponível em: http://www.tc.gob.pe/jurisprudencia/2005/00048-2004-AI.html Acesso, 14 de abril de 2013.

51 OSORIO, Ricardo Serrano. Mineração, desenvolvimento e institucionalidade peruana/brasileira: Uma análise econômica do direito minerário ambiental. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Econômico e Socioambiental. Curitiba, PUCPR, 2014.

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primeira apreciação pode-se considerar que o modelo econômico adotado no tex-to constitucional é incompatível com a adoção de um Estado Socioambiental de Direito comprometido com o desenvolvimento econômico com sustentabilidade.

Não obstante, é necessário que se estabeleça uma conexão constitucional entre a ordem econômica constitucional e a exploração de recursos naturais, permitida, em parte, pelo artigo 66 da constituição ao fixar que os minerais são propriedade da nação e, por isso, devem reverter em seu benefício, ainda que explorados por particulares52. Tal dispositivo constitucional é o único que está relacionado à atividade minerária no Peru, e não menciona aparentemente nenhum elo com o meio ambiente.

No direito comparado, a importância dessa conexão é fundamental num Estado Socioambiental de Direito. Como bem destaca Eros Roberto Grau, a ordem econômica constitui também a defesa do meio ambiente (art. 170, inciso VI, da Constituição Brasileira de 1988). Trata-se de princípio constitucional impositivo que cumpre dupla função ao garantir o desenvolvimento associado à sustentabilidade. Assume também a feição de uma norma-objetivo, dotada de caráter constitucional conformador, justificando a reivindicação pela realização de políticas públicas53.

Especificamente o artigo 2°,I, da CPP estabelece que “toda pessoa tem direito a vida e a seu livre desenvolvimento e bem-estar”, isto é, o objetivo do Estado é garantir os direitos fundamentais da pessoa, além de reconhecer o direito à vida e a seu desenvolvimento com bem-estar. De fato, o meio ambiente é direito correlato ao direito à vida, como destacam Antônio Benjamin54 e José Afonso da Silva55. Já o inciso XXII, do mesmo dispositivo constitucional, assinala que toda pessoa

52 “Los recursos naturales, renovables y no renovables, son patrimonio de la Nación.  El Estado es soberano en su aprovechamiento. Por ley orgánica se fijan las condiciones de su utilización y de su otorgamiento a particulares. La  concesión otorga a su titular un derecho real, sujeto a dicha norma legal”. Disponível em: Disponível em: http://www.tc.gob.pe/legconperu/constitucion.html. Acesso o 20 de julho de 2013. Acesso, 1 de abril de 2014.

53 GRAU, Eros Grau. A ordem econômica na constituição de 1988. Malheiros Editores. 14a edição. São Paulo, 2010. p. 250.

54 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens. (Orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 73.

55 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 70.

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tem direito a um meio ambiente equilibrado e adequado para o desenvolvimen- to da vida56. Em linhas gerais, o Estado reconhece o direito ao desenvolvimento e um direito ao meio ambiente não necessariamente “ecologicamente” equilibrado, mas de formas mais abrangente, um meio ambiente favorável a todas as esferas de desenvolvimento da vida. Em razão dessa abrangência, tem-se uma série de interpretações sobre a delimitação da tutela de proteção do desenvolvimento e bem-estar dos indivíduos57.

Sobre a configuração do direito ao desenvolvimento sustentável, o artigo 69 da CPP indica que “el Estado promueve el desarrollo sostenible de la Amazonía con una legislación adecuada”. Sobre a análise do artigo 69°, ressalta-se que é obrigação do Estado promover estritamente o desenvolvimento sustentável da Amazônia, sugerindo que a sustentabilidade no sistema constitucional deve estar presente apenas no desenvolvimento daquela região, desconsiderando, assim, o restante do território nacional. Tal insuficiência constitucional não abrange o desenvolvimento nacional mas apenas da Amazônia, pelo qual apresenta uma incompatibilidade na ordem jurídica do país. Aliás, o artigo 69 do texto constitucional somente faz referência ao desenvolvimento sustentável como um princípio e não como um direito fundamental que garanta os interesses e direitos das presentes e futuras gerações na integridade de todo o ordenamento jurídico nacional.

Em uma análise infraconstitucional do desenvolvimento com sustentabili-dade nacional, apresenta-se a Lei 26821 - Ley Orgánica para el Aprovechamiento Sostenibles de los Recursos Naturales, na qual se procura promover e regular o aproveitamento sustentável dos recursos naturais, renováveis e não renováveis58,

56 “O reconhecimento do direito ao meio ambiente adequado provem da compreensão da vinculação vital que existe entre os seres humanos e seu meio ambiente. Todos nós somos ao igual que os demais seres vivos, componentes do sistema ambiental e interatuamos permanentemente com ele. Nessa medida, nossa qualidade de vida, saúde, bem-estar e até a funcionalidade dos nossos sistemas sociais, culturais e econômicos dependem do equilíbrio ecossistêmico”. Ver em: VERNA, Vito Coronado. Tres áreas en la evolución de la regulación del impacto ambiental. Revista de la Facultad de Derecho de la PUCP. Nro. 70. p. 63-81. Lima: PUCP, 2013.

57 OSORIO, Ricardo Serrano. MORETTINI, Felipe Ribeiro. La relación entre la minería y la (in) sostenibilidad ambiental urbana en los andes peruanos: un análisis sobre el caso de La Oroya. Caxias do Sul: Revista Internacional de Direito Ambiental, v. 3, n. 6. p. 259-280, jul./dez, 2013.

58 Foi por isso que através da Lei n. 28611/2005, também conhecida por Lei Geral do Ambiente, procura ordenar o marco normativo para a gestão ambiental no Peru. No ano de 2008, a Lei de Criação, Organização e Funções do Ministério do Ambiente é aprovada. Através do Decreto Legislativo Nº 1055, Decreto Legislativo modifica-se a Lei Nº 28611, Ley General del

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estabelecendo um marco adequado para o fomento dos investimentos, procu-rando estabelecer um equilíbrio dinâmico entre o crescimento econômico, a conservação dos recursos naturais e do meio ambiente e o desenvolvimento integral da pessoa humana59.

Em suma, os instrumentos legais Nacionais e Internacionais são os principais mecanismos para efetivar tal eficiência econômica sobre a proteção do meio ambiente no setor minerário. Vê-se os custos de transação reduzidos com a otimização de uma Constituição Econômica e Ecológica, assim como de uma Política Nacional do Ambiente que aperfeiçoa a eficiência não somente no âmbito econômico, senão também sobre todas as áreas que configuram uma sustentabilidade forte, ou ainda aquela capaz de criar incentivos no mercado para que os agentes econômicos captem os ativos minerários-ambientais como vantagens e não mais como custos de transação pelas externalidades que se originaram ao longo do processo produtivo60.

Portanto, considera-se que a ordem econômica constitucional deve equilibrar a proteção à livre iniciativa na exploração dos recursos naturais com a proteção do meio ambiente, razão pela qual as políticas públicas na atividade minerária devem ser compatíveis com um Estado Socioambiental de Direito. Dessa forma, o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental que deve estar em harmonia com a ordem econômica do sistema constitucional peruano.

5. crescimento econômico, custos de transação e desenvolvimento

Numerosos países da região trataram de introduzir elementos de ortodoxia em suas políticas econômicas, mas o fizeram de diferentes formas e graus de

Ambiente. Em comum, todos estes dispositivos legais tem como função projetar, estabelecer, executar e supervisionar a Política Nacional e Ambiental

59 ALVARADO, Omar Escobar; VENTURA, Alberto Rivas plata. A tajo abierto: explorando la intervención estatal en la actividad minera. Trabajo de investigación del grupo Ius Et veritas. Nro 35. Lima: IUS, La revista, p. 486-521, 2009.

60 OSORIO, Ricardo Serrano. Mineração, desenvolvimento e institucionalidade peruana/brasileira: Uma análise econômica do direito minerário ambiental. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Econômico e Socioambiental. Curitiba, PUCPR, 2014.

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intensidade. No entanto, quase todas colocaram como objetivos comuns: a) au- mentar o grau de abertura da economia para o exterior a fim de lograr um maior grau de competitividade de suas atividades produtivas. b) racionalizar a participação do Estado na economia, liberalizar os mercados, os preços e as atividades produtivas. c) estabilizar o comportamento dos preços e de outras variáveis macroeconômicos em economias que tem estado submetidas a fortes processos inflacionários61.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CEPAL, durante o trigésimo quarto período de sessões, em El Salvador, sugere uma mudança estrutural que garanta a igualdade, uma espécie de visão integrada para o desenvolvimento62. No documento denominado “Mudança estrutural para a igualdade”, a CEPAL propõe que a questão ambiental modifique o próprio estilo do desenvolvimento:

Outra dimensão central da trajetória da mudança estrutural, convocada a cumprir um papel determinante nos próximos anos, é a sustentabilidade do meio ambiente. As sociedades percebem e valorizam cada vez mais este tema, à medida que se acumulam evidências sobre a mudança climática e a degradação do meio ambiente (com significativas consequências na qualidade de vida da população mais pobre). Embora a implementação de políticas esteja defasada frente à gravidade dos problemas ambientais, não há dúvida que qualquer estratégia de mudança estrutural de longo prazo deve incluir uma transição a tecnologias e sistemas de produção muito menos contaminantes do que os atuais63.

Nessa linha, Amarty Sen aduz que “na América Latina, a desigualdade socioeconômica gera um perigoso ciclo de perpetuação da pobreza e leva a números cada vez mais discrepantes entre as condições de vida em países desenvolvidos e em desenvolvimento”. Por ser uma região dependente dos recursos naturais,

61 SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Ajuste neoliberal e desajuste social na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 27.

62 “Essa mudança estrutura implica alcançar transformações qualitativas na estrutura produtiva dos países da região. O propósito é: impulsionar e fortalecer – com sustentabilidade ambiental – atividades intensivas em conhecimento e de rápido crescimento da demanda interna e externa para assim gerar mais e melhores empregos”.

63 CEPAL. Mudança estrutural para a igualdade: uma visão integrada do desenvolvimento. Trigésimo quarto período de sessões. San Salvador: CEPAL, 2012.

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suscetível a grandes desigualdades socioeconômicas, o crescimento econômico acelerado torna-se incompatível com temas como inclusão social, serviços públi-cos adequados e eficientes, respeito ao meio ambiente, dentre outros aspectos que compõe o chamado desenvolvimento econômico sustentável64.

Un estudo da Michigan University, denominado “Harmonizing Growth & Environmentalism in the Peruvian Mining” (2000), abordando o desequilíbrio socioeconômico da atividade aurífera nas minas de Yanacocha no Peru, destacou-se que:

(...) In addition, local communities resent the fact that while private companies are generating billions of dollars in profits through their operation of local mines, very little of that wealth has had a tangible effect on local livelihoods and development. In some mining towns, the majority of the population remains without electricity, without access to markets for locally produced goods, and without adequate facilities to address education, healthcare and other basic needs. Such starkly inequitable distribution of profit naturally spawns anger in communities where foreign corporations are turning exceptional profits by exploiting minerals from land the communities consider their own – if not by legal right, than by virtue of tradition and their dependence on that land65.

Nesse contexto de desigualdade e desenvolvimento pela economia mineral na região, considera-se que alguns dos maiores conflitos socioambientais derivados da exploração de minérios na América Latina se desenvolvem no Peru. Por citar um exemplo, especificamente, o projeto aurífero Conga, localizado no Estado de Cajamarca, é um desses projetos com um alto interesse na exploração pela sua susceptibilidade econômica, pois se trata da extração de ouro de umas das maiores jazidas no mundo. Em suma: o projeto Conga, do grupo empresarial Yanacocha, está enfrentando a resistência social dos custos que se irão assumir pela exploração insustentável deste minério.

64 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta, revisão técnica Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

65 BARRETTO, Robert; HEYMAN, Amanda; SCHRERO, Lauren; WEISS, David. Harmonizing Growth & Environmentalism in the Peruvian Mining Sector: Lessons from Yanacocha. Michigan University Press, 2000. p. 6. Disponível em: http://www.umich.edu/~ipolicy/IEDP/2007peru/4)%20Harmonizing%20Growth%20&%20Environmentalism%20in%20the%20Peruvian%20Min.pdf Acesso, 1 de abril de 2014.

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Referente aos os custos de transação deste projeto aurífero, é impossível de ser monetizado, pois a exploração levara à secagem de quatro lagoas localizadas no território das jazidas, ameaçando assim esse espaço de biodiversidade e o risco da falta de água da população por causa da utilização para processamento do ouro. O governo peruano levou o caso a um peritagem internacional para analisar se é viável ou não tal projeto. A resposta técnica opinou pela viabilidade do projeto aurífero, mas com a condição de se garantir o abastecimento e a qualidade da água para a população local. Com esse resultado técnico, pergunta-se se: Agora será possível a exploração do ouro em Conga? O governo peruano e a transnacional já tem um argumento para proteger e garantir a programação desse projeto aurí-fero? O tema, sem dúvida, é muito discutido no Peru.

Referente aos custos de transação na área socioambiental, José Luis Ser- rano assevera que:

En este cambio de enfoque hay algo ecológico: mirar hacia el pasado significa en cierta medida reconocer que todo sucede como tiene que suceder y que por tanto la ley lo único que debe hacer es restaurar ese orden del acontecer cuando sea violado: sin embargo mirar hacia el futuro significa pensar que todo sucederá de acuerdo con lo que nosotros mismos hagamos, que todo está interrelacionado, y que en consecuencia lo mejor es actuar mediante la evaluación del futuro. Desde el enfoque ecoliberal para la internalización de la contaminación, una de las funciones principales que debe realizar el sistema jurídico consistirá en favorecer al máximo el libre flujo de decisiones individuales conducentes al acuerdo, disminuyendo también al máximo los costes de transacción necesario para alcanzar el acuerdo y removiendo los obstáculos institucionales. O sea, removiéndose a sí mismo66.

Sobre este último ponto, para uma análise dos direitos sob a ótima econô-mica, deve-se pensar primeiro nas suas consequências sociais, porque aquele cus-to de transação pode trazer benefícios no futuro, mas não sem antes analisar os custos de transação impostos em razão de experiência havidas no passado, com decrescimento social e ambiental.

66 SERRANO, José Luis. Principios de Derecho Ambiental y ecologia jurídica. Editorial Trotta: Madrid, 2007. p. 50.

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Distinguem-se, portanto, desenvolvimento econômico sustentável e cres- cimento econômico que é apenas quantitativo e não qualitativo. O desen-volvimento supõe mutações sociais mais amplas, com um processo de mobilidade social contínuo e intermitente. O desenvolvimento deve levar a um salto, de uma estrutura social para outra, acompanhado da elevação do nível econômico e cultural-intelectual comunitário. Daí a importância da consumação de mudanças de ordem não apenas quantitativa, mas também qualitativa. O crescimento meramente quantitativo compreende apenas uma parcela da noção mais ampla de desenvolvimento67.

Entretanto, o grande problema está na definição do que é sustentável. A partir disso, é possível começar a investigação dos princípios operacionais de sustentabilidade e de macroeconomia ambiental: (i) o princípio fundamental é limitar a escala humana (fluxos de matérias, energia, etc.) a um nível tal que, se não ótimo, esteja no mínimo dentro da capacidade de suporte e, portanto, seja sus-tentável; (ii) o progresso tecnológico para atingir o desenvolvimento sustentável deveria dar preferência ao aumento da eficiência (e.g. produtividade) ao invés do aumento nos fluxos; (iii) recursos renováveis, tanto como fontes quanto como repositórios, deveriam ser explorados em bases de máximo aproveitamento para a produção sustentada, não direcionada para o esgotamento (i.e., desconsiderando a ditadura da maximização do valor presente), ainda que eles se tornem mais importantes como não-renováveis; (iv) recursos não-renováveis deveriam ser explorados a uma taxa igual a criação de substitutos renováveis. Assim, uma sociedade somente será desenvolvida se ela poupar parte de suas rendas para a reposição do capital desgastado na produção e fazê-lo crescer como investimento de parte da parcela poupada. A sociedade estacionária é aquela que poupa o suficiente para repor o capital desgastado (cobertura da depreciação), e a regressiva é aquela cuja poupança é insuficiente até mesmo para repor o que se desgastou com a produção68.

67 GRAU, Eros Grau. A ordem econômica na constituição de 1988. Malheiros Editores. 14a edição. São Paulo, 2010. p. 213.

68 BIDENO, Edison Dausacker. CASTILHOS, Zuleica Carmem. GUERRA, Teresinha. Carvão e meio ambiente. Capítulo 10. Integração dos estudos através de uma abordagem (sócio) econômico-ambiental. Centro de Ecologia/UFRGS. Porto Alegre: Editora Uni-versidade/UFRGS, 2000. p. 298.

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Nesse panorama, na Constituição de 1993 existem atores sociais e políticos que demandam a exploração e execução desse projeto para assegurar o crescimento econômico do País e melhorar o indicador econômico do PIB pelos próximos anos, mas outro setor da sociedade questiona o fato de admitir a exploração dos minérios numa zona onde o desenvolvimento sustentável nunca se deu ao longo da história, pois a atividade mineira sempre esteve naquela área e não necessariamente repercute positivamente nos indicadores sociais, tanto que, por exemplo, Cajamarca possui um dos menores índices de crescimento do PIB e de IDH no período de 2001 a 2012.

De tal forma, considera-se que o Peru deve aproveitar essas vantagens da produção mineira na distribuição da riqueza equitativa e proporcional para as necessidades sociais. Além disso, como ponto de partida fundamental nas futuras políticas públicas de um Estado sustentável, com os ganhos da indústria mineira atual deve-se criar, incentivar e garantir novos mecanismos e fontes de riquezas para o futuro69.

Portanto, na linha do que foi exposto, conclui-se neste tópico que o cresci-mento econômico deve vir acompanhado do desenvolvimento sustentável. Ainda que seja necessário promover a exploração minerária na região, é preciso conjugar esse interesse com outros de grande importância, como é o caso da proteção do meio ambiente como direito universal. Assim, propõe-se que sejam incluídos dados como meio ambiente, proteção ao emprego, proteção ao patrimônio histórico-cultural e o nível de conflitos sociais gerados para compor os indicadores sobre um modelo de desenvolvimento com sustentabilidade mineral eficiente.

69 “Se reconoce que pueden haber grandes disparidades en la región en cuanto a stocks de recursos naturales y el grado de su desarrollo. Algunos países pueden estar limitados a las fases de extracción, mientras que en otros países la estrategia de desarrollo puede estar más avanzada. En este último caso, se potencia no sólo la extracción y procesamiento de los recursos naturales, sino que se acelera el desarrollo de los eslabonamientos “hacia atrás” (insumos, equipo, ingeniería) y “hacia adelante” (actividades procesadoras). Aunque la participación de los recursos naturales en la economía peruana ha tenido una cierta recuperación en los noventa con la nueva estrategia de desarrollo, el boom se concentra más en el sector minero. El país ha escuchado la promesa de que habrá recuperación, como un resultado esperado del viraje de estrategia y política económica, pero no ha visto la realidad de una recuperación de todos los sectores de recursos naturales”. Disponível em: CEPAL. Disponível em: http://www.eclac.cl/publicaciones/xml/9/4639/lcl1317e.pdf CEPAL. Acesso, 20 de julho do 2012.

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6. a passagem para um estado socioambiental no peru

Parte-se que em um Estado puramente liberal questões ambientais são relega- das a um segundo plano. Assim, para José Luis Serrano “falar em políticas ambien-tais no Estado neoliberal é proibido, todavia, essa premissa deve ser superada e o desenvolvimento sustentável deve representar um princípio fundamental” 70.

Mas, qual é o papel do direito nas externalidades negativas sobre as políticas ambientais insustentáveis? Na visão de Ronald Coase71, “a norma é capaz de produzir efeitos indesejados, repercutindo sobre esferas alheias causando, com isso, custos de transação. A racionalidade que orienta a tomada de decisões é limitada pela assimetria informacional”. Sob a perspectiva socioambiental o Di-reito pode atuar através de normas que incentivem condutas sustentáveis como, e.g., a desoneração tributária ou o apoio a projetos que garantam a inserção social das comunidades atingidas pelo extrativismo.

Na seara ambiental, torna-se muito importante promover a defesa do meio ambiente porque ele é um direito fundamental de terceira dimensão, ou seja, o seu destinatário é a comunidade mundial, pois não pertence apenas uma pessoa ou certa coletividade como a peruana. Em verdade, a sua proteção transcende qualquer limite porque se preocupa com as gerações futuras.

70 “En un modelo clásico de Estado Liberal no cabe hablar de políticas ambientales, en el sentido de planificación públicas del crecimiento económico, la ordenación del territorio y la conservación y restauración del ambiente: el papel del estado debe limitarse aquí a garantizar los presupuestos de funcionamiento del mercado, es decir, la libertad contractual y la propiedad, y a hacerlo mediante su no intervención (salvo para la tutela de los principios básicos del Laissez faire, de la autonomía de la voluntad y de la sacralidad de la propiedad) y mediante su propina previsibilidad (mediante los principios de sometimiento de los poderes públicos a la ley y de equidades y seguridad jurídica en la decisión judicial”. Ver em: SERRANO, José Luis. Principios de Derecho Ambiental y ecologia jurídica. Editorial Trotta: Madrid, 2007.

71 “Ronal Coase es precursor de toda una política legislativa y judicial contemporánea que propugna la orientación de la decisión jurídica en sus dos dimensiones (legal y judicial) no hacia las exigencias internas de autoregulación del sistema jurídico, es decir, no hacia los principios de validez, jerarquía normativa y soluciones análogas para casos análogos (interdicción de la arbitrariedad o justicia): sino hacia las consequencias económicas de la decisión en el exterior del sistema”. In: SERRANO, José Luis. Principios de Derecho Ambiental y ecologia jurídica. Editorial Trotta: Madrid, 2007.

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Nesse contexto, a sustentabilidade, para Thomas L. Friedmann72, “trata da dis- posição, da mentalidade e dos comportamentos que moldam e sustentam os relacionamentos com a família, os amigos, os clientes, os investidores, os funcionários, os tomadores de empréstimo, os concidadãos, a comunidade, o ambiente e a natureza. O modo de pensar e agir em qualquer situação deve ser apto a sustentar as relações pessoais, a comunidade, as relações de negócios, o planeta e suas relações com seus netos e com as gerações seguintes”.

Sobre a conexão de bens ambientais minerários e negócios de extração de recursos naturais, considera-se que essas variáveis devem ser os pilares de conexão entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento humano com vistas à preservação da vida do homem e do ambiente social.

(...). O BM (1996) considerou importante que o boom da exploração se converta em desenvolvimento da mineração sustentável, exigindo o acompanhamento através da formulação e implementação de políticas para que a mineração seja uma atividade sustentável em longo prazo. Como está bem definido no trabalho de Warhust, Sustainability Indicators and Sustainability Performance Management (2002), “a fim de compreender a criação do passado e o futuro dos Indicadores de Sustentabilidade, e seu papel na gestão e elaboração de relatórios de desenvolvimento sustentável dirigida aos stakeholders da indústria de mineração, é importante que uma linguagem comum seja definida e aceita”. A definição apontada pelo BM, no relatório A Mining Strategy for Latin America and the Caribbean, para o conceito de indústria da mineração sustentável pode parecer paradoxal, porque se está falando sobre a exploração de um recurso finito. Não obstante, encerra o conceito de sustentabilidade à possibilidade de considerar a substituição de antigas minas por outras dentro do mesmo distrito minero, além de destacar a criação de vilas e cidades, em que a atividade de mineração dá origem ao desenvolvimento sustentável para os habitantes. Além disso, ressalta que é necessário completar o ciclo de exploração até o encerramento da mina, considerando as questões ambientais e as atividades de acompanhamento determinadas numa fase precoce73.

72 FRIEDMAN, Thomas L. Quente, plano e lotado: Os desafios e oportunidades de um novo mundo. Tradução Paulo Afonso. Editora Objetiva: Rio de Janeiro, 2010. p. 355.

73 MONTALVO, Hilda Vanessa Zevallos. Política de desenvolvimento e o setor de mineração: análise de discursos do Governo do Peru no período de 1990 a 2009.

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Dessa forma, o princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando substancialmente as políticas públicas adotadas para promover o desenvolvimento sustentável porque todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, um bem de uso comum do povo74. Além disso, tal princípio caracteriza-se como um direito fundamental de terceira dimensão que precisa ser protegido, e o desenvolvimento não pode ocorrer sem o estrito respeito a esse limite insuperável porque afeto a todo gênero humano.

Portanto, admitir o exercício da atividade minerária sem respeitar o meio ambiente implica violar uma regra superior àquela que estimula e pretende o desenvolvimento. Daí a necessidade de a mineração obrigatoriamente desenvolver-se a partir do respeito ao meio ambiente para atingir um desenvolvimento com sustentabilidade eficiente com o intuito de salvaguardar e tutelar os direitos tanto das presentes quanto das futuras gerações da população local e nacional.

7. conclusões

O crescimento econômico não pode estar dissociado da inclusão socio-ambiental, de uma equânime distribuição da riqueza e de uma adequada agenda da sustentabilidade para promover um Estado Socioambiental. O PIB não deve ser considerado como um fator vital isolado no estabelecimento dos índices de desenvolvimento social, visto que outros critérios também devem orientar essa medição, dentre os quais o respeito ao meio ambiente e sua sustentabilidade. Assim é possível falar em sustentabilidade socioeconômica.

Os conflitos socioambientais gerados atualmente pela exploração de minérios na América do Sul são alarmantes pelo seu alto grau de enfrentamento do Estado, a empresa privada e a população que deseja reivindicar e salvaguardar seus direitos, trazendo, em desfavor do Peru, instabilidade política e insegurança jurídica. Por isso a necessidade da busca a um desenvolvimento sustentável em que os conflitos socioambientais sejam reduzidos sistematicamente na busca da grande paz social. Em síntese, analisar os conflitos socioambientais no Peru é de suma importância

Dissertação de Mestrado apresentada à Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas. 2010. p. 49.

74 GRAU, Eros Grau. A ordem econômica na constituição de 1988. Malheiros Editores. 14a edição. São Paulo, 2010. p. 251.

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antes de qualquer empreitada minerária, visto que as consequências da extração insustentável já foram verificadas no passado e não devem ser repetidas.

A eficiência na extração de recursos naturais num marco de desenvolvimento nacional deve estar à frente do simples aumento nos fluxos de extração. O aumento da extração deve ser compatível com a escala de desenvolvimento humano, pois as consequências dessa desproporcionalidade trarão consigo conflitos sociais. O Peru será uma sociedade progressiva se poupar as rendas da exploração de minérios e em seguida realizar uma reposição do capital na produção de alternativas para a criação de fontes de riqueza, pois os recursos naturais são finitos e o país terá que estar preparado para não cair na desproporcionalidade entre crescimento e desenvolvimento.

Os juízes e os operadores do direito possuem um papel muito importante na consolidação desse Estado Socioambiental de Direito. A tutela jurisdicional ambiental deve ser um tema presente na agenda do Poder Judiciário peruano, ante a percepção de que os conflitos socioambientais são produtos da exploração de minérios insustentáveis. Considera-se que o papel do Judiciário é apaziguar os conflitos oriundos da exploração tanto formal-legal como informal-ilegal dos recursos ambientais minerários. Assim, é relevante o comprometimento do Poder Judiciário nas causas de desenvolvimento socioeconômico, de modo a levar em consideração certos aspectos na tomada de decisões que demandem baixos custos de transação tanto na índole socioambiental e econômica.

Portanto, a mudança de mentalidade para um Estado Sustentável de Direito é fundamental numa sociedade moderna. A Constituição peruana de 1993 nasceu numa época em que era preciso abrir-se ao mercado para a captação dos investimentos, mas também se considera que essa ordem econômica pode sofrer mutações em razão de uma nova realidade social. No presente caso, destaca-se a necessidade de estruturar-se uma nova ordem econômica socio-ambiental que oriente a atividade minerária no Peru conforme aos moldes do direito e desenvolvimento equilibrado. Nesse panorama, após 20 anos de Constituição peruana, se argumenta acerca da necessidade de refundar o mo-delo desenvolvimentista a partir da inclusão de um novo pilar que é a promoção de um Estado Socioambiental de Direito que garanta efetivamente o direito fundamental ao desenvolvimento com sustentabilidade eficiente.

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8. referências

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direito ao próprio corpo: além da proteção à integridade física

Denis Franco Silva1

Resumo

O presente artigo busca identificar problemas relacionados ao reconheci-mento de um direito ao próprio corpo como um direito de personalidade. Busca, ainda, criticar os atuais modelos teóricos relativos à estrutura de tal direito com o intuito de propor um novo modelo de direito ao próprio corpo baseado no paradoxo da soberania conforme enunciado por Giorgio Agamben. Isto implica um modelo de proteção onde a autonomia do sujeito titular de um direito ao próprio corpo deve ser preservada ao máximo no processo de construção de sua identidade pessoal e corpórea, superando a ideia de mera proteção à integridade física e em consonância com um princípio de proteção à dignidade da pessoa.

Palavras-chave

Corpo; Direitos de personalidade; Identidade pessoal; Soberania; Autonomia.

Abstract

The present article identifies problems related to the recognition of a right to one’s own body as a personality right. It criticizes the current theoretical models concerning the structure of such a right in order to propose a new model based on the paradox of sovereignty as enunciated by Giorgio Agamben. This theoretical shift implies a protection model in which the agent’s sphere of autonomy must be preserved as far as possible when it comes to the construction of his or her personal identity in order to overcome the idea of simple protection to body integrity and to concretize a principle of human dignity.

Key words

Body; Personality rights; Personal identity; Sovereignty; Autonomy.

1 Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, Minas Gerais - Brasil.

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1. introdução

A temática de um direito subjetivo ao próprio corpo, que de certa maneira traduz a idéia de livre uso do corpo e direitos de personalidade não se apresenta de maneira trivial. Isto mesmo no contexto de um ordenamento comprometido com a idéia de dignidade da pessoa e que conta com previsão legislativa expressa de uma categoria de direitos subjetivos não-patrimoniais que se convencionou chamar de direitos de personalidade.

De fato, a problemática da corporeidade e dos usos do corpo pode ter sua gênese reconduzida aos estudos de Michael Foucault (estes de natureza crítica e viés emancipatório), notadamente a seu conceito de “microfísica do poder”(FOUCAULT, 1979). Todavia, mesmo a partir daí a ideia de um direito ao próprio corpo foi sempre discutida através do prisma epistemológico do controle ou da adequação a determinados ideais de concretização de um corpo ideal ou um corpo “dócil” – intimamente ligados a uma concepção objetiva de dignidade da pessoa. Ideais como os de beleza, de saúde, ou mesmo de moralidade, devendo-se ressaltar que atualmente, como no séc. XIX (REIS, 1997), se vê novamente uma aproximação cada vez maior entre a idéia de “saúde física” e “moralidade”2.

Alguns exemplos, mesmo que não referentes ao ordenamento jurídico brasileiro, ilustram bem tal problemática relativa à regulação do corpo e, por extensão, da pessoa.

Um bom exemplo, um pouco mais antigo, é o das chamadas “ugly laws” em cidades dos Estados Unidos, como a de Chigago, que tratava da questão no Chicago Municipal Code, Section 36.034 revogado apenas em 1974, e que dispunha que:

Nenhuma pessoa que seja doente, mutilada ou de alguma maneira deformada a ponto de ser feia, objeto de repulsa ou pessoa imprópria, será admitida em ou sobre vias públicas ou outros lugares públicos nesta cidade, ou poderá expor a si mesma à exibição pública naqueles ou nestes lugares, sob a pena de não menos que um dólar e não mais que cinqüenta dólares por cada ofensa.

2 Neste sentido, interessante ver METZL, KIRKLAND, 2010.

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Resta claro que a norma acima transcrita implicava, ao mesmo tempo em que sancionava, a marginalização de modelos de identidade divergentes, como mutilados, tatuados, pertencentes a outra etnia ou mesmo qualquer um que ostentasse uma identidade corpórea não convergente com os padrões estéticos aceitos de maneira compartilhada pela maioria da comunidade.

Outro exemplo, agora do Reino Unido, também se revela bastante elucidativo. Julian Savulesco relata e analisa o interessante caso, mais recente, de 1994, em que, por puro acaso, a polícia de Londres descobriu um ambiente no qual funcionava um clube homossexual sadomasoquista, onde por reiteradas vezes, de forma entusiasmada e voluntária, se praticaram lesões corporais recíprocas, sempre com o consentimento dos envolvidos, nunca tendo sido feita qualquer tipo de queixa ou reclamação pelas partes. Neste caso, a Câmara dos Lordes concluiu que tais práticas sadomasoquistas constituíam crime (SAVULESCU, 2007), tendo sido todos os envolvidos na prática identificados condenados por crimes de lesão corporal.

O mais conhecido caso exemplificativo, contudo, é sem dúvida o festejado caso de “arremesso de anões” como entretenimento em bares na Commune de Morsang-Sur-Orge, Ville d’ Aix-em-Provence, França. A prática, depois de decisões administrativas locais, terminou em juízo sendo proibida por decisão do Conselho de Estado (Cf. GROS & FROMENT, 1996). Note-se que neste caso o fundamento maior da decisão proferida foi, justamente, a dignidade da pessoa.

Os três exemplos, de países e mesmo épocas diferentes, parecem, contudo, possuir algo em comum, qual seja, uma articulação de juízos práticos ou argumentos jurídicos a partir de bases morais pré-constituídas com relação a uma prática ou a uma figura corporal socialmente desvalorizada.

Isto porque todo o discurso acerca do corpo e de suas relações com o sujeito encontra-se influenciado por um amplo espectro de compreensões, conflitantes entre si e, ao mesmo tempo, complementares.

Conflitantes porque, como tradicionalmente retratadas e diante de uma abordagem analítica, são auto-excludentes.

Complementares porque, quando da articulação de juízos práticos, costuma-se valer da mais adequada, instrumentalmente, à racionalização de intuições

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experimentadas diante de um problema isolado, de forma que comumente se reduz a pessoa ao corpo ou se destaca completamente esta daquele conforme uma pré-compreensão (ou mesmo um pré-conceito) acerca da situação concreta analisada.

Uma visão puramente racionalista do conceito de pessoa, por exemplo, desvincula pessoa e corpo, ou seja, pessoa e imersão empírica no tempo e no espaço, e fundamenta concepções altamente liberais no campo contratual bem como legitima práticas que seriam também instrumentalizantes, mas que não contam com a reprovação social ou de cunho moral que incide sobre, por exemplo, o arremesso de anões ou a prática do sadomasoquismo.

Assim, modelos de passarela também, pode-se dizer, não passam de ins-trumentos e são, da mesma maneira, coisificados, bem como trabalhadores braçais de uma mina de carvão, mas destacando-se pessoa e corpo admitem-se e se legitimam tais práticas.

No caso do anão ou dos sadomasoquistas, por sua vez, identifica-se pessoa e corpo, reduzindo o primeiro conceito ao segundo, proibindo-se a prática da atividade por uma suposta ofensa a uma dignidade humana de conteúdo objetivo (padrões de beleza, de conduta moral ou mesmo de saúde) desvinculada da subjetividade dos principais interessados: o anão ou os sadomasoquistas.

A questão da instrumentalização da pessoa através do corpo é levantada, portanto, não a partir de uma compreensão da exploração do corpo em si, ou das relações corpo-pessoa, mas acerca do juízo apriorístico de se impedir a publicidade de um modelo divergente de identidade corporal ou mesmo um comporta- mento, ou uso do próprio corpo, socialmente desvalorizado.

Por óbvio, o reconhecimento de um direito subjetivo ao próprio corpo, dentro da estrutura dos direitos de personalidade, não pode traduzir tal abordagem.

2. o direito ao próprio corpo como um direito de personalidade

O conceito de pessoa normalmente é definido a partir das características de racionalidade autônoma, de alteridade (encontrar-se em relação, uma postura

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de abertura ao outro e ao mundo) e de individualidade. A presença de tais características em conjunto geraria o ente qualificado como pessoa.

Note-se que tal descrição pressupõe ainda certa estabilidade ao longo do tempo, caso se pretenda avançar além de um mero conceito formal e apreender, ao menos em certa medida, a substância do ente qualificado como pessoa. Esta estabilidade ao longo do tempo constitui, propriamente, a identidade pessoal, comumente definida em termos de continuidade de estados psicológicos e autoconsciência reflexiva3. Esta identidade pessoal, que se encontra constituída basicamente pela associação entre a mente e um repertório de condutas – interiores ou exteriores – é o que permite, através de um corpo, a inserção da pessoa no tempo e no espaço.

Supõe-se, ainda, que a identidade de uma pessoa não muda com seus interesses ou desejos. Esta separação entre a pessoa e seus fins, interesses ou desejos é o que permite retirá-la da cadeia causal de eventos em que o passado, como um fenômeno empírico, encontra-se imerso. Desta maneira, a capacidade de eleger fins ou de possuir desejos não é determinada – apesar de influenciável – pela cadeia causal de eventos, de modo que o fim eleito ou o interesse pode ser normativamente atribuído à pessoa, e não à mera cadeia causal de eventos.

Assim, uma pessoa é dotada de dignidade intrínseca em virtude de ser capaz de, em relação com outros, constituir por si própria uma identidade e ser capaz de perseguir os fins ou objetivos eleitos e avaliados a partir de tal identidade.

Tais seres, que possuem tais características em qualquer momento de sua existência, são fins em si mesmos e, portanto, dotados de dignidade intrínseca. São pessoas. A proteção aos chamados direitos de personalidade traduz, portanto, uma proteção à livre construção de uma identidade pessoal e à busca pelos fins por si eleitos.

Neste processo, a presença de um recorte psicofísico individualizado (um corpo) é essencial para a compreensão de que seus fins, desejos, crenças ou interesses eleitos são diferentes e separáveis, dos fins, desejos, crenças ou interesses de outros e fornece, desta maneira, uma plataforma estável no tempo e no espaço para a construção de uma identidade.

3 Para uma discussão acerca dos efeitos normativos da projeção temporal da identidade pessoal veja-se WRIGLEY, 2007.

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Sendo “pessoa” um conceito descrito a partir da idéia de autonomia, inter-subjetividade e individualidade e sendo a identidade pessoal algo essencialmente dinâmico, dificilmente se poderia compatibilizar tal descrição com uma percepção estática acerca dos direitos de personalidade, que articule a proteção à pessoa, ou à personalidade, a partir de paradigmas teórico-dogmáticos típicos de relações patrimoniais como o direito de propriedade, o que se revelaria insuficiente não apenas pelo aprisionamento em fattispecies fechadas – que traduzem a falsa idéia de que se poderia acomodar uma realidade multifacetada e complexa como a pessoa em um conjunto de enunciados independentes e não comunicáveis entre si – mas principalmente porque pressupõe uma determinação prévia do que é objeto de tutela, bem como dos limites desta tutela e seus mecanismos (BODIN DE MORAES, 2008).

Aceita-se como premissa teórica, portanto, a idéia de uma cláusula geral de tutela da pessoa ou de um direito geral de personalidade, identificando-se a proteção da personalidade com a proteção à identidade pessoal e seu livre desenvolvimento4.

Neste ponto, convém observar que nem todas as tradicionais características atribuídas aos direitos de personalidade como traços distintivos de uma categoria específica de direitos subjetivos são propriamente aplicáveis em sua integralidade ao tratar-se de um direito subjetivo ao próprio corpo. Notadamente, as chamadas características de indisponibilidade e irrenunciabilidade, decorrentes da idéia de inalienabilidade, não se podem revelar presentes como normalmente se pressupõe5.

Isto porque a proteção aos chamados direitos de personalidade corresponde, propriamente, à proteção da chamada identidade pessoal em suas mais diversas manifestações, seja a liberdade religiosa, seja a sexual, seja o reconhecimento de um direito subjetivo sobre o próprio corpo, já que este traduz uma das formas de concretização espaço-temporal desta identidade que não se pode pré-determinar, que se constitui de maneira autônoma e que se caracteriza pela mutabilidade.

4 Neste sentido, veja-se CAPELO DE SOUZA, 1995. No Brasil, por todos, TEPEDINO, 2001.

5 Sobre a questão da renúncia ao exercício de direitos de personalidade, bem como da prática de atos de disposição, veja-se STANCIOLI, 2010.

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Não existem, assim, conceitos pré-estabelecidos de vida boa ou ideais de bem objetivamente considerados a partir dos quais se materializa a proteção dos direitos de personalidade. Esta proteção é conferida, na verdade, à identidade pessoal que cada um apresenta como materialização de um conjunto de hiperbens, ou seja, o conjunto de valores, ideais e aspirações que orienta a pessoa e permite a atribuição ou reconhecimento de uma identidade pessoal específica (TAYLOR, 1997). Tais hiperbens, como afirma Charles Taylor, são valores produto de uma avaliação forte, produto de desejos e escolhas que envolvem discriminações acer-ca do certo ou errado, pior ou melhor (TAYLOR, 1985).

É este conjunto de hiperbens que oferece orientações a partir das quais a pessoa se afirma perante si e perante outros, através de ações carregadas de significado pelos hiperbens cultivados, que são não apenas projeção, mas constitutivos da personalidade no sentido substancial em que é protegida através da estrutura dos direitos de personalidade, buscando-se justamente evitar a sujeição de um conjunto de identidades pessoais minoritárias aos desígnios de uma maioria – algo intrinsecamente ligado, portanto, à própria idéia de democracia.

Sendo o corpo, a maneira pela qual ele se apresenta e o repertório de condutas a ele relacionado, inegavelmente, traços estáveis da identidade pessoal cultivada por alguém, falar-se em um direito ao próprio corpo é, portanto, falar-se em dignidade subjetiva, em proteção a um direito de personalidade e a uma personalidade específica, bem como em sua inserção dentro de uma esfera de administração e disposição privada de interesses juridicamente protegidos no âmbito de uma cláusula geral de tutela e proteção da pessoa em nosso ordenamento presente através do disposto no art. 1°, III, da CF/88.

3. como se subjetiva o direito ao próprio corpo?

O direito ao próprio corpo é freqüentemente citado pela doutrina como um dos direitos de personalidade, pelo que possuiria a estrutura de um direito subjetivo. De fato, freqüentemente as Codificações, ao tratar de direitos de personalidade, prevêem ou pressupõem, através de dispositivo específico, um direito ao corpo6. Entretanto, cabe indagar de que forma se subjetiva tal direito

6 Veja-se, como exemplo, além do CC brasileiro, o Código Civil Italiano (art. 5°) e o Código Civil Português (art. 70°, 1).

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ao corpo, tema que muitas vezes não é explorado pela maioria dos autores, visto que, normalmente, a atenção legislativa ou doutrinária a ele destinada se refere, exclusivamente, aos limites a esse direito subjetivo, sempre estabelecidos a partir de um conceito objetivo do bem jurídico a ser tutelado7.

Esta preocupação com o estabelecimento de limites, traçados a partir de uma perspectiva objetiva de proteção à pessoa, no entanto, não se coaduna com a visão dos direitos de personalidade acima exposta, de modo que se deve abordar a questão do direito sobre o próprio corpo em uma perspectiva dinâmica.

Neste sentido, cabe observar que a pouca atenção destinada à maneira como se subjetiva o direito ao próprio corpo se deve à admissão, explícita ou implícita, de que este se estrutura da mesma maneira que outros direitos subjetivos, notadamente, o direito de propriedade.

Na doutrina anglo-saxônica, tal perspectiva é amplamente disseminada de forma explícita, reconhecendo-se um direito de self-ownership (propriedade de si) no que se refere à proteção ao corpo, claramente construído em analogia ao direito de propriedade (ARCHARD, 2008). A proteção à integridade física se daria, portanto, da mesma maneira que a proteção à propriedade de determi-nada área. Como algo externo à pessoa (no que se identifica uma postura dualista racionalista, que desvincula o corpo da pessoa e o vê como objeto sobre o qual ela exerce poderes ou controle).

Isto significa que, garantidas certas prerrogativas quanto à não violação dos limites espaciais sobre o qual incide tal direito, a questão acerca da forma pela qual se admite a disposição do próprio corpo assume a mesma perspectiva daquela relativa ao direito de propriedade no que se refere à disposição desta: uma ponderação no que tange à utilidade ou instrumentalidade do bem, seu valor de uso e valor de troca, valor individual e social, onde o legislador submete ou não determinados bens a um regime de disposição diferenciada8.

Desta maneira, o proprietário (sujeito), possuindo uma garantia de não violação por trespasse de determinadas fronteiras de um espaço exterior

7 Vide, como exemplo e por todos, no Brasil, PEREIRA, 2004.; em Portugal, NETO,2004 e, na Itália, D’ARRIGO, 1999.

8 Por exemplo, o bem de família, previsto nos arts. 1.711 e seg. do CC 2002 ou a idéia de Patrimônio mínimo, conforme exposta por Luiz Edson Fachin (FACHIN, 2006).

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a si (o corpo), frui e dispõe do bem dentro dos limites estabelecidos pela comunidade.

Tal modelo, claramente, pode ser identificado como predominante no que se refere à proteção ao corpo na doutrina brasileira (neste caso, de maneira implícita), muito embora profundas críticas já tenham sido feitas quanto à utilização de um modelo de proteção preocupado com objetos externos ao sujeito e de caráter patrimonial para a compreensão, como um todo, da categoria dos direitos de personalidade9. Se confere tradicionalmente, portanto, ênfase a ter um corpo, e não a ser um corpo.

Uma alternativa a este modelo de compreensão do direito ao próprio corpo não pode, todavia, voltar-se exclusivamente à idéia de ser um corpo, reduzindo-se a pessoa ao corpo. A relação que se possui com o corpo, protegida juridicamente, não é simplesmente uma relação de possessão, mas tampouco de identidade.

Acredita-se que uma melhor compreensão, portanto, da maneira pela qual se subjetiva o direito ao próprio corpo pode ser alcançada através de uma analogia com o paradoxal conceito de soberania10.

De acordo com Giorgio Agamben, o paradoxo da soberania se enuncia da seguinte forma:

[...] o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. Se o soberano é, de fato, aquele no qual o ordenamento reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender, deste modo, a validade do ordenamento, então “ele permanece fora do ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este (AGAMBEM, 2002, p. 23).

9 Veja-se, por todos, BODIN DE MORAES, 2008 e TEPEDINO, 2001.10 Um paralelo entre os direitos de personalidade e a noção de soberania já foi sugerido por

João Baptista Villela (VILLELA, 2004). Da mesma maneira, a visão do right of self-ownership do Direito Anglo-Saxão encontra, além de formulações a partir da idéia de propriedade, também opiniões que o justificam com base na idéia de soberania como expõe David Archard (ARCHARD, 2008), bem como a opinião de Stuart Mill, que utilizava a mesma expressão no que se refere ao direito sobre o próprio corpo (MILL, 1974). Cabe observar, no entanto, que tais paralelos à idéia de soberania baseavam-se exclusivamente na analogia com a relação entre um soberano e a área territorial sobre a qual exerce poderes para justificar a vedação ao trespasse do limiar entre o dentro e o fora como ato ilícito, de forma muito próxima, senão análoga, ao chamado right of self-ownership.

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A especificação “ao mesmo tempo” não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei está fora dela mesma”, ou então: “eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei (AGAMBEM, 2002, p. 23).

Neste aspecto, é certo que o ordenamento regula o chamado direito ao próprio corpo, todavia, ao titular deste direito, ao se conferir a posição de soberano (que, como ocorre com os modernos estados nacionais é constituído por e possuidor de um território, ou uma delimitação espaço-temporal) permite-se que este se coloque em estado de exceção quanto à regra, decidindo quanto à inclusão ou exclusão da ação perpetrada sobre o corpo nos limites do direito vigente.

Obviamente, o reconhecimento de tal soberania sobre si e, consequentemente, sobre sua extensão espacial-temporal (o corpo) somente produz efeitos dentro de estritos limites que são estabelecidos, justamente, pelos espaços de soberania adjacentes e, ainda, por um espaço sobre qual o indivíduo ou qualquer outro não é reconhecido como detentor de poderes de soberania de forma individual, mas somente coletiva, através do estado, qual seja, o que se poderia chamar de espaço relacional.

Ao legislador, portanto, cabe a tarefa de regular, justamente, este espaço relacional existente entre núcleos de soberania distintos no que se refere ao direito ao próprio corpo. Assim, todo e qualquer comportamento de um agente que invada o espaço de soberania de outro sem consentimento é considerado uma ofensa. Da mesma forma, toda e qualquer ação que produza conseqüências no espaço relacional entre os núcleos de soberania constituídos por pessoas individualmente consideradas se encontra sob o império do direito estabelecido. Por sua vez, toda e qualquer ação ou comportamento que não ultrapasse os limites espaço-temporais da soberania exercida pela pessoa sobre o próprio corpo será incluído ou excluído na norma em conformidade com a vontade do soberano, neste caso, a própria pessoa.

Uma análise do art. 13 do CC2002 à luz deste raciocínio certamente poderá melhor elucidar o que aqui se propõe. Eis seu texto:

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes.

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Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

Sob o prisma da concepção acima expressada, ter-se-ia que atos de disposição acerca do próprio corpo devem ser analisados quanto a seu enquadramento na norma em três hipóteses distintas, quais sejam:

a) o ato de disposição não transcende os limites de exercício do poder soberano da pessoa;

b) o ato de disposição transcende os limites de exercício do poder sobera-no da pessoa e invade a esfera de soberania pessoal de outra;

c) o ato de disposição transcende os limites de exercício do poder sobera-no da pessoa, inserindo-se, ainda que mediante autorização, na esfera de soberania de outro e produz conseqüências relevantes na esfera pú-blica relacional.

Quanto à primeira hipótese apresentada, o ato de disposição não poderia, ceteris paribus, ser tido como ilícito ou contrário ao Direito, visto que se incluindo o soberano, ou seja, a própria pessoa, no ordenamento pela situação de exceção em relação à norma estabelecida para os demais, cabe a ele a decisão acerca do ato a ser praticado sobre o próprio corpo. Cite-se, como exemplo, uma cirurgia de retirada dos seios em indivíduo transexual secundário do sexo feminino. Embora permanente e, na visão de muitos, contrária aos “bons costumes”, não se pode objetar ao procedimento com base na suposta indisponibilidade do corpo.

Na segunda hipótese apresentada, o ato de disposição, ao transcender a esfera de soberania do agente e penetrar na de outro, somente seria admissível a depender da forma pela qual for recepcionado pelo outro agente soberano, em uma espécie de “abertura recíproca de fronteiras”.

É o que deveria ter ocorrido no caso dos supracitados sadomasoquistas de Londres, onde a Câmara dos Lordes decidiu que a prática de sadomasoquismo constituía crime, apesar do consentimento das partes envolvidas, por tratar-se de uma questão de interesse público. Obviamente, o “interesse público” supostamente presente na preservação da saúde e prevenção das lesões recíprocas nada mais seria que um mero preconceito com relação a um modelo de vida sexual discrepante

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daquele imposto pelos chamados “bons costumes”, notadamente por ter ocorrido a condenação em um país onde o Boxe é esporte extremamente popular.

Certamente, não é a causação recíproca e consensual de lesões à integridade física o que se encontra por trás do animus decidendi. Em situações como esta, somente poderia haver intervenções à autonomia das partes envolvidas em caso de invasão da esfera pública com a produção de conseqüências negativas a terceiros, o que não ocorreu.

Tendo as vítimas “aberto as fronteiras de seu corpo” através do consentimento e não apenas permitido, como desejado a violência em nome de um bem por eles tido como mais importante que a integridade física, qual seja, o prazer sexual, não se poderia falar em ofensa ou abuso de um direito ao corpo.

Já na terceira hipótese, ainda que o ato de disposição seja recepcionado por outra pessoa, pelo fato de produzir graves conseqüências no espaço relacional intersubjetivo, se submete ele ao direito vigente, somente sendo autorizado se presentes as condições previstas no art. 13.

Cite-se, como exemplo, a venda de um rim. Embora ambos os agentes (vendedor e comprador) estejam a princípio de acordo com o ato de disposição, a admissão de tal prática desvirtuaria de forma completa os objetivos de um sistema igualitário e altruístico de distribuição de recursos biomédicos, essencial talvez para que o direito à saúde, objetivamente considerado, seja uma prerrogativa não dependente (ou menos dependente) da situação econômica do paciente. Deve ser reputado inválido o ato de disposição do corpo por ser ele uma diminuição permanente da integridade física contrária aos bons costumes (no caso, a ofensa concretiza-se na contraprestação pela “doação” do órgão, que frustra as políticas públicas orientadas à universalização do acesso à saúde independentemente de classe social).

Tal ato seria proibido mesmo na eventual ausência de vedação expressa pela atual lei brasileira de transplantes de órgãos e tecidos11.

Fundamenta-se o acima exposto no fato de que o que se pode denominar amplamente de pensamento moral contemporâneo, projetando-se para o âmbito

11 Lei n° 9.434 de 04 de fevereiro de 1997.

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de toda razão prática – acatando-se aqui a tese do discurso jurídico como um caso especial da razão prática (ALEXY,1997) – concretiza-se a partir de três eixos distintos, quais sejam, os direitos e obrigações perante outros, o conceito de vida plena ou vida boa e a idéia de respeito atitudinal – o motivo pelo qual cada um se sente digno de respeito por si e por outros (TAYLOR, 1997).

É interessante observar que é justamente o primeiro eixo que se desenvolveu de forma mais explícita em nossa sociedade, através do mecanismo de atribuição de direitos e deveres jurídicos, ou seja, através da idéia de direitos subjetivos conferidos aos cidadãos, sendo destinados, por sua vez, diretamente à esfera de autonomia moral individual os outros dois eixos restantes: a concepção de vida boa e de respeito atitudinal, intimamente relacionados à identidade pessoal que se pretende construir.

Tal se deve, simplesmente, ao fato de que as concepções de vida plena a serem adotadas ou os juízos de valor individuais acerca daquilo que me confere valor ou dignidade intrínseca encontram-se, justamente, no centro da esfera de soberania individual. Somente poderiam, assim, sofrer interferências ou restrições quando de seu “transbordamento” para a esfera pública na hipótese de um ordenamento jurídico efetivamente comprometido com um princípio basilar de proteção à dignidade da pessoa.

4. conclusões

Este modelo de analogia entre o direito ao corpo e a idéia de soberania con-forme exposta por Agambem se diferencia das tradicionais concepções citadas e se assemelha mais adequado basicamente por duas razões:

a) não pressupõe que o corpo seja um objeto externo ao sujeito sobre o qual detém ele poderes conferidos pelo ordenamento, da mesma forma que na estrutura do direito de propriedade, de modo que poderiam ser também limitados tais poderes pela coletividade;

b) não se tratando a autonomia de um direito, mas de um pressuposto ou capacidade implícita ao status de pessoa (NINO, 1992; HABERMAS, 2005) , que se exterioriza e se concretiza em maior ou menor grau atra-

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vés de estruturas conhecidas como direitos subjetivos, oferece-se uma estrutura dentro da qual este pressuposto pode encontrar a maior am-plitude possível.

É o que se espera de um ordenamento jurídico comprometido com a digni-dade da pessoa.

5. referências

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direito fundamental à boa administração: transformações da

justiça administrativa

Luis Carlos Cancellier de Olivo1

Sabrina Nunes Iocken2

Resumo

O estudo se propõe a refletir sobre o direito fundamental à boa administração e sua relação com a justiça administrativa. O modelo de resolução de controvérsias envolvendo a Administração Pública deve estar em consonância com as diretrizes constitucionais impulsionadoras do exercício das funções estatais, alinhadas ao dever-poder de promoção da ordem democrática substantiva através de escolhas públicas legítimas. O objetivo central é conferir importância ao direito fundamental à boa administração como parâmetro valorativo na concretização de um Estado Pós-Moderno, cuja ordem constitucional encontra-se, ainda que de forma implícita, permeada por uma carga de valores de observância cogente a todos os Poderes do Estado.

Palavras-chave

Direito fundamental à boa administração; Justiça Administrativa. Poderes do Estado.

Abstract

The study proposes to debate about the fundamental right to good administration and its relation to administrative justice. The disputes resolution model involving the public administration should be associated with the driving

1 Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Associado I nos programas de graduação e pós-graduação em Direito da UFSC.

2 Conselheira substituta do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina. Orientanda no doutorado do Profº Drº Luis Carlos Cancellier de Olivo e Co-orientanda do Prof. Drº Juarez Freitas. Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharela em Direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF, com especialização em Direito da Administração Pública -UFF.

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constitutional guidelines for the exercise of state functions, aligned to duty-power to promote substantive democratic order through legitimate public choices. The central purpose is to give importance to the fundamental right to good administration as valorative parameter in achieving a Post-Modern State, whose constitutional order is, although implicit, permeated by cogent observance values to all State Powers.

Key words

Fundamental right to good administration; Administrative justice; State Powers.

1. introdução

O artigo se debruça sobre as relações recíprocas entre duas categorias centrais e distintas, o direito fundamental à boa administração e a justiça administrativa, ambas nascidas no direito europeu, mas que acabam influenciando de modo distinto a doutrina e jurisprudência brasileiras.

Desde a sua criação jurídica, no seio da Revolução Francesa, a justiça administrativa vem passando por modificações significativas que permitiram a sua consolidação como instrumento de consecução do Estado de Direito. As recentes transformações inauguraram uma nova fase atrelada à conquista de sua plenitude jurisdicional.

A par da rigidez de um instrumento concebido inicialmente como garantia do primado da lei enquanto forma de governo, encontra-se na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia a fluidez do direito fundamental à boa administração, como exigência subjacente à ordem democrática substantiva.

Tais referenciais teóricos, ao serem introduzidos na doutrina brasileira, so-frem um processo de releitura3, adequando-se ao sistema jurídico vigente. Desse modo, as inovações na forma, pela qual se deve operacionalizar a resolução de controvérsias envolvendo a Administração, não devem estar dissociadas do modelo de Administração fundado no vetor democrático em sentido mais amplo.

3 V. MEDINA, Diego Eduardo López. Teoría impura del derecho: la transformación de la cultura jurídica latino americana. Colombia, 2013.

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O problema que ora se impõe diz respeito à forma pela qual o direito à boa administração é incorporado pelo ordenamento brasileiro. Incide apenas no âmbito do direito administrativo e na jurisdição administrativa? Ou seus efeitos transcendem tal esfera?

Por certo que o Estado Constitucional de Direito em funcionamento (CARBONELL, 2003, p. 12) revela-se como um instrumento propício para o desenvolvimento do texto constitucional, não só pelo atendimento de sua diretriz material, mas como também pelos mecanismos que o asseguram. O modelo do Estado Constitucional é, sem dúvida, a mola propulsora do desempenho das atividades administrativas que devem se adequar à nova visão incorporada pelo neoconstitucionalismo.4

Nesse cenário, aduz Valle (2007) acerca do desenvolvimento de uma co-munidade internacional de princípios comuns em matéria de direitos, as proclamações da Carta das Nações Unidas e da Declaração Universal de Direitos, bem como a celebração de vários outros pactos internacionais e regionais, tornam-se modelos de referência que, se não condicionam, ao menos orientam os demais ordenamentos. Assim, cabe trazer como referencial valorativo a ser observado pela Administração o direito à boa administração pública.

Na lição de Freitas, o Estado da “escolha administrativa legítima deve ser, escrupulosamente, o Estado da proporcionalidade, em lugar de aparato propício a excessos ou tendentes às omissões” (FREITAS, 2007, p. 17). No mesmo sentido, acentua Mallén (2004, p. 27) que o desempenho de um poder discricionário é legitimado em face das razões subjacentes aos critérios de decisão, cuja racionalidade importa em uma boa administração.5

Essa carga valorativa do Estado de Direito Constitucional incorpora o princípio da boa administração como orientação finalística da Administração

4 V. SANCHÍS, 2003, p. 158. “[...] aquí se desprende que el neoconstitucionalismo requiere una nueva teoría de las fuentes alejada del legalismo, una nueva teoría de la norma que dé entrada al problema de los principios, y una reforzada teoría de la interpretación, ni puramente mecanicista ni puramente discrecional, donde los riesgos que comporta la interpretación constitucional puedan ser conjurados por un esquema plausible de argumentación jurídica.”

5 Sobre o tema, ainda, esclarece a autora: “En concreto, el punto de arranque a partir del cual se apunta la reforma administrativa de la Administración General del Estado viene constituido por el artículo 41 (derecho a una buena administración) de la Carta de los derechos fundamentales de la Unión Europea o Carta de Niza”. (MALLÉN, 2004, p. 27).

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Pública, sobretudo, em razão dos compromissos assumidos pelo Estado, que vão além dos resultados concretos, para alcançar, de igual modo, a formulação, implementação e avaliação das escolhas públicas.

A concepção de direito fundamental à boa administração aproxima-se, assim, da promoção de políticas públicas.

O objetivo é estabelecer uma interface entre a jurisdição administrativa e o direito à boa administração como parâmetro valorativo na aferição da antijuridicidade. Sua incidência, ao contrário do que se possa pensar, não estaria adstrita à aferição da execução da atividade administrativa, pois recairia também sobre as demais funções estatais de forma a vedar, por exemplo, a obstrução legislativa ou mesmo o excesso nos limites da judicialização da política capaz de esvaziar o campo de escolhas legítimas do administrador. A identificação de tais disfuncionalidades põe em destaque a relevância do tema.

Desse modo, se propõe uma reflexão crítica que transcende a mera promoção da legalidade. O que se busca é compreender a importância do direito fundamental à boa administração como instrumento de concretização de um Direito Adminis-trativo Pós-Moderno, cuja espinha dorsal encontra-se permeada por uma carga de valores que impõe deveres de observância cogente a todos os Poderes do Estado.

2. a justiça administrativa e os desafios de um olhar transformador

Com a Revolução Francesa, em 1789, adveio a criação jurídica da justiça administrativa. Como adverte García de Enterría (2010, p. 6-7), a justiça administrativa apresenta algo inteiramente novo, tornando real uma das ideias centrais de Rousseau, qual seja a de instituir uma forma de governo, na qual a figura do governante seja um órgão da lei e não do homem.

Assim, sob o dogma do direito público moderno, o contencioso administra- tivo elege o princípio da legalidade como condicionante da atividade administra-tiva, responsável por definir sua estrutura, determinar suas competências, atribuir suas finalidades, além de inserir limites na sua atuação.

Sob a inspiração revolucionária francesa, o art. 15 da Declaração de Direitos de 1789 proclama o direito da sociedade em exigir a prestação de contas por

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parte de todo agente público integrante da sua administração. É esse princípio da responsabilidade que, no século XVIII, alinha-se à vinculação da Administração à lei, organizando assim um sistema de controle, que foi capaz de assegurar que os administradores se submetessem ao “reino da lei”.6

A justificação dos atos passa a ter como fonte única de legitimidade o comando legal. Como adverte García de Enterría, não se tratavam, contudo, de meros enunciados abstratos. Ao contrário, derivavam deles de forma direta todo um sistema de controle dos atos, com vistas a verificar, efetivamente, se a atuação dos governantes estava adequada ou não à lei. (GARCÍA DE ENTERRÍA, 2010, p.18).

A tutela da legalidade objetiva, realizada pelo excès de pouvoir7, impedia a postulação de qualquer direito subjetivo, restringindo sua atuação à garantia abstrata e geral da legalidade da Administração. Qualquer benefício pessoal ao recorrente não poderia estar contemplado na decisão judicial.

As modificações legislativas promovidas em 19808 e, posteriormente, em 19959 transformaram o recurso administrativo em uma verdadeira ação proces-sual capaz de compelir a Administração através do uso de medidas coercitivas. Os poderes de execução são, desse modo, introduzidos ao juiz contencioso.

Trata-se de uma mudança sem precedentes, responsável por consolidar um sistema de plena jurisdição em sede administrativa, que influenciou as reformas legislativas ocorridas nos países europeus, conforme deixa assente García de Enterría:

O novo recurso contencioso administrativo, atualmente em vigor, abandonou, de maneira absoluta, o substrato básico

6 As primeiras moedas revolucionárias continham a expressão règne de la loi. Vide García de Enterría, La lengua de lós derechos. La formación del Derecho Público europeo tras la Revolución Francesa. (1994, p. 125).

7 O recurso do excesso de poder foi concebido como instrumento a ser utilizado pelos cidadãos para apresentar denúncias quanto a graves irregularidades existentes na atuação da Administração.

8 Lei francesa n.80-539 de 16 de julho de 1980, Lei n º 80-539, de 16 de Julho de 1980, relativa às penalidades impostas em matéria administrativa e à execução de decisões por pessoas coletivas de direito público.

9 Lei francesa n. 95-125, de 8 de Fevereiro de 1995, que dispõe sobre a organização dos tribunais cívil, criminal e administrativo

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da denominada “objetividade”, e tendo sido produzido pela iniciativa do próprio legislador, findou por refletir uma novidade com a qual os europeus vinham convivendo sem que tivessem consciência do seu significado, a saber, a proclamação de um verdadeiro direito fundamental do “direito à tutela judicial efetiva” de qualquer direito colocado à disposição do cidadão. Simplesmente dito, o excès de pouvoir deixou de ser um recurso “objetivo”, configurando-se, inequívoca e manifestamente, em um recurso adequado à tutela de um direito subjetivo efetivo, como sói ser aquele que todo recorrente exercita, atualmente, nesse processo. (2010, p. 94-95).

Essa transformação da justiça administrativa desloca o eixo de proteção para os direitos subjetivos, permitindo que cada cidadão possa recorrer ao contencioso quando a infração da legalidade por parte da Administração acarrete prejuízo individual, ou mesmo coletivo. E mais, que as decisões tomadas em sede de contencioso sejam por ele próprio executadas.

Dessa forma ocorre o reconhecimento do legislativo, conferindo, a partir de então, normatividade ao sistema executório da justiça administrativa. O preenchimento dessa parcela faltante de jurisdicidade atribuiu um novo peso às decisões tomadas em sede administrativa. Afigurava-se, nas palavras de García de Enterría, como “uma ambição efetiva e indiscutível de justiça”. (GARCÍA DE ENTERRÍA, 2010, p.64).

Este é o ponto central: o reconhecimento da plenitude jurisdicional ao contencioso administrativo, que passa a ir além do pronunciamento abstrato de nulidade e, de modo inovador, passa a deter competência para executar seus próprios julgados.

Seguindo o modelo francês, outros Estados europeus levaram a efeito importantes reconfigurações institucionais para a promoção de uma justiça administrativa. Na Espanha, por exemplo, a Constituição de 1978 situa a jurisdição contenciosa dentro do Poder Judiciário, conferindo estabilidade ao sistema da justiça administrativa. Esses avanços também ocorreram por conta da Lei Reguladora da Jurisdição Contenciosa Administrativa, Lei n. 29 de 13 de julho de 1998, que, ao esmiuçar as diretrizes constitucionais, conferiu maior solidez ao sistema.

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A importância dessa transformação torna-se mais relevante face ao fenômeno elencado por Cassese (2004), como da “europeização e internacionalização do direito administrativo”. Como afirma Cassese, o critério da nacionalidade submete-se, antes de mais nada, às normas da União Europeia, que adquirem uma posição dominante inclusive no direito administrativo.

Com efeito, a superação de um modelo de jurisdição parcial, desprovido de caráter coercitivo, rompe com os paradigmas anteriores, estabelecendo novos instrumentos relacionados à forma de atuar do juízo contencioso. Somam-se a isso novos referenciais do direito administrativo pós-moderno, que orbitam o direito fundamental à boa administração.

2.1. justiça administrativa no ordenamento brasileiro

A ordem constitucional brasileira, sob o império da jurisdição una, confere a cada ente federativo autonomia legislativa para disciplinar o procedimento administrativo.10

Em 1999, a Lei Federal nº 9.784 disciplinou o procedimento administrativo no âmbito da União, tornando-se uma referência normativa aos Estados e Municípios. Conforme a exposição de motivos do anteprojeto que resultou na Lei nº 9.784/99, tem-se que:

[...] o projeto procura enunciar os critérios básicos a que devem se submeter os processos administrativos, em função dos indicados princípios, cuidando de definir direitos e deveres dos administrados, assim como o dever da Administração de decidir sobre as pretensões dos interessados.

A sistemática adotada pelo procedimento administrativo exige a demonstração de algum tipo de interesse, de modo que os procedimentos interna corporis destinados a atos ou decisões de organização administrativa ou de controle, en-quanto comportamentos internos, não geram direitos ou deveres a interessados

10 Há posicionamentos em sentido contrário, que atribuindo a natureza de “processo” e não de “procedimento” administrativo, cuja competência legislativa seria unicamente da União. (LIMA, 2010, p. 53-77).

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estranhos à Administração. Por esta razão, tais procedimentos não compreendem pretensões propriamente ditas e, consequentemente, não reclamam as garantias processuais fundamentais.

A Lei 9.784/99 avançou no sentido de reunir num mesmo diploma normativo os princípios relativos à justiça administrativa. No entanto, seguiu o sistema constitucional de jurisdição una, diversamente do modelo europeu, até porque não poderia deixar de fazê-lo, pois suas decisões são desprovidas de definitividade.

Sobre os efeitos da jurisdição una no ordenamento brasileiro, cabe destacar a conclusão de Perlingeiro (2011):

Devido a uma ruptura repentina, no século passado, do sistema dualista em favor do sistema monista de jurisdição, bem como aos poucos estudos e pesquisas sobre o assunto, que apenas recente e timidamente fora abordado por alguns juristas, o direito brasileiro necessita superar alguns dogmas e admitir que a tutela judicial efetiva dos direitos subjetivos em face da atuação administrativa requer uma atuação jurisdicional e regras processuais especializadas, em separado do direito processual civil, e adequadas a uma jurisdição de qualidade, capaz de solucionar com eficácia os conflitos entre interesses privados e públicos, independentemente da existência de um modelo dualista/monista de jurisdição ou de um código/lei geral específica sobre a matéria.

Destaca-se, ainda, que a busca pela tutela judicial efetiva dos direitos subjeti-vos em face da atuação administrativa demanda uma atuação jurisdicional, ainda que restrita, além de regras processuais especializadas. Em face dessas necessida- des e influenciado pelos sistemas nacionais ibero-americanos e europeus, foi elaborado um Código Modelo de Processos Administrativos, judicial e ex-trajudicial, para a Ibero-America, aprovado pela Assembleia Geral do Instituto Ibero-americano de Direito Processual.11

Na proposta do Código Modelo, considera-se procedimento administrativo, submetido às garantias do contraditório e da ampla defesa, todo e qualquer

11 A aprovação do Código Modelo de Processos Administrativos ocorreu na XXIII Jornadas Ibero-americana, ocorrida em Buenos Aires, em junho de 2012. Na comissão participaram doutrinadores brasileiros, Ada Pellegrine Grinover, Ricardo Perlingeiro e Odete Medauar.

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procedimento destinado a preparar decisões administrativas que possam incidir sobre interesses ou direitos dos interessados, assim como todo e qualquer procedimento em que se configure uma controvérsia entre a Administração e o interessado, ou entre pessoas físicas ou pessoas jurídicas de direito público ou privado, cuja solução possa advir da Administração.

O Código Modelo utiliza a nomenclatura de “jurisdição administrativa” e “justiça administrativa”, para designar, respectivamene, a prestação jurisdicional especializada e os órgãos estatais responsáveis por essa atuação. Mas, como advertem Grinover, Perlingeiro e Madauar (2013, p.2) evitou-se o uso da expressão contencioso administrativo para que as sugestões apresentadas possam servir como modelo tanto para os países de jurisdição una, como para os de jurisdição dúplice.

Trata-se de um avanço na concepção do procedimento administrativo, sobretudo, em face da simetria entre os princípios fundamentais e as regras gerais do processo administrativo extrajudicial e do processo administrativo jurisdicional. Tais inovações representam a transformação na forma pela qual deve ser observada para a resolução de controvérsias envolvendo a Administração.

Mas, o Código Modelo vai além de disciplinar o modus procedendi, ao prever em seu art. 2º os princípios aplicáveis à Administração, conferindo assim mate-rialidade aos deveres impostos à atuação estatal. Nesse sentido, prevê:

Art. 2º (Princípios aplicáveis à Administração Pública)

A Administração observará, dentre outros, os princípios da constitucionalidade, legalidade, moralidade, boa-fé, impessoalidade, publicidade, eficiência, motivação, proporcionalidade, razoabilidade, segurança jurídica e confiança legítima.

Tem-se, portanto, que o direito fundamental à boa administração, em que pese não estar incluído de modo explícito, é resguardado pela incidência de outros princípios como os da eficiência, da proporcionalidade e da razoabilidade. Torna-se, portanto, imperioso estabelecer a aproximação dos institutos de promoção da justiça administrativa com um modelo de administração fundado no vetor democrático em sentido mais amplo.

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3. o direito fundamental à boa administração: a im- posição de novos paradigmas sobre o agir do es-tado

Em um único texto, pela primeira vez na história da União Europeia, consolida-se o conjunto de direitos cívicos, políticos, econômicos e sociais dos cidadãos europeus, assim como de todas as pessoas residentes em território da União.12

No rol dos direitos da cidadania, insere-se, mais precisamente no art. 41 da Declaração de Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em dezembro de 2000, o direito à boa administração, alcançando o status de fundamentalidade. A Carta de Direitos foi além da enumeração dos valores relacionados à liberdade, à igualdade e à solidariedade, pois criou um espaço de segurança e justiça capaz de projetar o ser humano como elemento central de sua ação.

Observa-se que nos termos da Declaração de Laeken, de 15 de dezembro de 2001, estabelece-se uma diretriz de resultados para a Administração:

Por outras palavras, o que se entende por “boa governação” é a criação de novas oportunidades e não de novos factores de rigidez. O que importa é produzir mais resultados, melhores respostas a questões concretas e não criar um super- Estado nem instituições europeias que se ocupem de tudo e mais alguma coisa.

Resumindo, o cidadão pretende uma abordagem comunitária clara, transparente, eficaz e conduzida de forma democrática. Uma abordagem que transforme a Europa num farol que indique o rumo para o futuro do mundo. Uma abordagem que dê resultados concretos traduzidos em mais emprego, melhor qualidade de vida, menos criminalidade, um ensino de qualidade e melhores cuidados de saúde. Não há dúvida de que, para tanto, a Europa se deve renovar e reformar.13

12 A decisão de sistematizar os direitos fundamentais num diploma único da União Europeia, conferindo maior homogeneidade dentre os países-membros, foi tomada na reunião do Conselho Europeu de Colônia, realizada em junho de 2009.

13 Declaração de Laeken, disponível em: http://www.fd.uc.pt/CI/CEE/pm/LegCE/Conselho %20Europeu%20Laeken%20-15-12-2001.htm. Acesso em 10 jun. 2014.

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Na clareza de Mallén, constata-se que o estudo do direito à boa administração tem influenciado a sistemática da Constituição espanhola como um todo, destacando a inter-relação entre a parte dogmática das normas constitucionais, reconhecedoras de direitos, e a parte orgânica, que contém os princípios de ação, organização e funcionamento dos diversos órgãos constitucionais. (MALLÉN, 2004, p.319).

Com relação ao conteúdo do direito fundamental à boa administração, esclarece Lanza (2010, p. 5), esse direito difere dos direitos fundamentais “clássicos”, tais como a dignidade humana ou a liberdade de pensamento, consciência e religião, pelo fato de que defende o interesse não apenas reconhecendo a sua existência, mas também estabelecendo formas e procedimentos que devem ser respeitados pelas instituições públicas.

Ao abordar o tema, Mendes (2010) enfatiza a complexidade na definição do conteúdo normativo decorrente de tal direito. Há que se onsiderar, por exemplo, a hipótese de a violação a tal direito não se constituir em vício de legalidade, ou mesmo, a hipótese de as regras voltadas a garantir a boa administração não constituírem necessariamente garantias processuais em decorrência das quais os particulares possam invocar.

Ao traçar o alcance do conceito “boa administração”, Mendes identifica três diferentes camadas interconectadas entre si. Num primeiro plano, têm-se as garantias procedimentais que são, primariamente, dirigidas a proteger os direitos substantivos daqueles que lidam com a administração europeia. A violação destas regras daria ensejo a uma ação judicial de reparação dos prejuízos causados ou, quiçá, a própria anulação do ato violador.

Em segundo lugar, de acordo com a autora, boa administração engloba nor-mas legais que estruturam o exercício da função administrativa, principalmente em função dos interesses objetivos de uma correta aplicação das regras do Tratado e da definição do interesse público. Tais regras tem por função estruturar o exercício do poder discricionário, de acordo com a prossecução correta do interesse público em cada caso.

Por fim, na terceira camada, estão dispostas as normas não legais que definem padrões de conduta, dirigidos a garantir o funcionamento apropriado dos serviços

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administrativos disponíveis ao público. Tais normas buscam garantir, de forma precípua, a eficiência e a qualidade destes serviços.

Como aponta Mendes (2010), a sistematização reflete a distinção entre as funções subjetiva e objetiva das regras procedimentais. Ou seja, a diferença entre a proteção dos direitos substantivos subjetivos e a perseguição ao interesse público. A dificuldade na definição do conteúdo é um indicativo quanto à necessidade de desdobramentos legais de uma boa administração capaz de identificar os direitos específicos e os deveres correlatos impostos à Administração.

3.1. o direito à boa administração nas cortes judi-ciárias

Não se pode olvidar, portanto, que a incidência dessa pauta de valores recaia, de igual modo, na atividade jurisdicional, responsável por garantir o cumprimento dos deveres explícitos e implícitos impostos para o atendimento dos compromissos constitucionais.

Sob este enfoque, elucida Freitas que “a primazia efetiva dos princípios constitucionais na mente dos controladores e dos administradores é um em-preendimento cultural premente, que requer nova disciplina, capaz de desfazer, vez por todas o auto-engano” (FREITAS, 2007, p.14). O auto-engano, como bem observado, não está direcionado apenas à atividade administrativa, mas também à sindicabilidade, que de igual modo deve estar amparada por standards como o da boa administração, da razoabilidade e da eficiência.

Assim, os critérios de julgamento das ações do Estado devem superar as barreiras da legalidade, permitindo a inserção de valores que condicionam o administrador.

O Supremo Tribunal Federal começa a apontar para essa direção, como se extrai do trecho do voto do Ministro Luiz Fux, no qual deixa explícito que o controle da Administração Pública deve primar pela verificação do cumprimento não só com o dever de legalidade, mas também com o dever de boa gestão dos recursos públicos:

Vislumbro, na espécie, tema impregnado de índole constitucional, na medida em que contrapõe, de um lado, o valor segurança jurí-

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dica, materializado na limitação do prazo temporal para ajuizamento da ação rescisória; e de outro lado, há princípios re-publicanos e democráticos sensíveis como moralidade, eficiência na gestão dos recursos coletivos, amplo acesso a Justiça e devido processo legal, os quais apontam para a necessidade de instrumentos jurídicos que não embaracem a efetividade do controle estatal direcionados à boa gestão dos recursos coletivos. (Brasil, 2013).

Todavia, a invocação do direito à boa administração começa a suscitar, no campo jurisprudencial, debates sobre a categorização enquanto direito fundamental, como se observa no voto da Desembargadora Carmelita Brasil14, em sede de mandado de injunção impetrado pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios em face do Governador do Distrito Federal. Questionou-se a ausência do processo legislativo com vistas a regulamentar o artigo 19, inciso V, da Lei Orgânica do Distrito Federal, que dispõe que, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) dos cargos em comissão do funcionalismo distrital devam ser ocupados por servidores concursados. O impetrante sustentou, em suma, que a alegada mora legislativa inviabiliza o exercício do que nomeia “direito fundamental à boa administração pública.”

No voto da Relatora, Des. Carmelita Brasil:

Esse alegado direito, em verdade, tem origem, segundo consta na própria petição inicial, na necessidade de obediência aos princípios da Administração Pública previstos no artigo 37 da Carta de 1988, qual sejam, princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

[...]

Temos, portanto, que o direito à boa administração pública nada mais é do que o direito de o cidadão, ou quem o fizer às vezes, exigir da Administração o cumprimento dos princípios administrativos consagrados na Carta Constitucional.

É certo que dúvidas não podem haver acerca do direito cor-respondente à obrigação administrativa prevista no artigo 37,

14 Tal decisão foi objeto de recurso extraordinário perante o STF, que não conheceu do recurso, a teor dos Enunciados nº 279 e nº 280, por se tratar de reexame de norma infraconstitucional local. (BRASIL, 2013)

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tenha ele o nome de “direito à boa administração” ou qualquer outro que o valha, eis que o direito invocado tem por fundamento a máxima “ jus et obligatio sunt correlata”, ou seja, a todo o direito corresponde uma obrigação correlata e vice-versa.

Assim, se a norma constitucional prevê obrigações para a Administração, incontroverso que do outro lado existe o direito correspondente.

A pergunta fundamental para o caso, todavia, é se o referido direito pode ser elevado à categoria de fundamental e, caso afirmativo, se é apto a justificar o mandado de injunção?

No meu entender, a resposta para ambas as questões é negativa. (BRASIL, 2009, sem grifos no original).

A decisão levou em consideração que os princípios insculpidos no artigo 37 da Constituição visam assegurar não os direitos humanos, mas sim o interesse público, fundamentando o agir da Administração Pública. Segundo a desem-bargadora, não se consagra qualquer direito fundamental, mas somente regras principiológicas que devem ser seguidas pela Administração no seu agir. E, conclui, ainda, que em se tratando do direito à boa administração, o campo de incidência recairia sobre ações ou omissões decorrentes das atividades administrativas, de modo que a omissão do legislativo não teria o condão de violar tal direito. (BRASIL, 2009).

Em outra decisão, sem ingressar no mérito, a ministra Carmém Lúcia negou seguimento ao agravo pela impossibilidade de reexame do conjunto fático-probatório. O recurso extraordinário havia sido interposto em face do julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reconhecia o direito fundamental à boa administração e como corolário o princípio da eficiência.

Violação do direito fundamental à boa Administração Pública caracterizada, pois a Administração Municipal olvidou o princípio da eficiência (art. 37, ‘caput’, CF), ao deixar de adotar um eficiente dever de diligência na correta identificação do dever do tributo municipal. (BRASIL, 2012, grifos no original).

No entanto, em decisão monocrática o Min. Ricardo Lewandowiski assentou:

O descumprimento de todos esses deveres por parte dos reclamados não deixa dúvida de que não se trata de mera inexecução de encargos

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trabalhistas, tal como previsto no § 1º, do art. 71 da Lei 8.666/93, mas de celebração e execução irregular (nula) de contrato público, a determinar a responsabilidade da administração nos termos do art. 59 da Lei 8.666/93 e mesmo do art. 927 do Código Civil, face ao cometimento de ação ou omissão que viola direito e causa dano a outrem. Inviável, portanto, o reconhecimento de limitação de responsabilidade que deturpe a natureza da relação de emprego, de forma a impor ao trabalhador o risco decorrente da contratação de empresas inidôneas ou sem capacidade de honrar os direitos decorrentes da Lei, justamente por quem deveria ser a primeira a zelar pelo cumprimento da Constituição, a própria administração pública!

Observo que Juarez Freitas leciona com precisão haver, em nosso ordenamento jurídico, o direito fundamental à boa administração pública, do que decorre o princípio da prevenção, que qualifica como a obrigação da administração pública, ou de quem faça as suas vezes, de evitar o dano, bem como ‘o dever incontornável de agir preventivamente, não podendo invocar juízos de conveniência ou de oportunidade, nos termos das concepções de outrora acerca da discricionariedade administrativa’, porque ‘não se admite a inércia administrativa perante o dano previsível’. (FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 97). […].” (BRASIL, 2013, grifos no original).

Tal dissintonia entre os entendimentos do Judiciário põe em evidência a necessidade de averiguar com profundidade o reconhecimento ainda que implícito de um direito fundamental à boa administração, de forma a conferir-lhe eficácia direta e imediata. Cabem, portanto, as seguintes indagações: o direito à boa administração é um direito fundamental? Há o reconhecimento de tal direito pela Constituição brasileira? Qual seria propriamente o seu conteúdo e o seu campo de incidência?

3.2. o viés brasileiro do direito fundamental à boa ad-ministração

O ponto central a se debruçar decorre da necessidade de verificar a existência ou não de fundamentalidade a esse direito europeu que vem sendo invocado pela doutrina brasileira.

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Por certo, a trajetória evolutiva dos direitos fundamentais, em seu movimento dinâmico, anuncia as diversas transformações pelas quais passaram desde o seu reconhecimento constitucional. Essas mudanças recaem não só no seu conteúdo, mas também na titularidade e eficácia de tais direitos, como deixa evidente Pérez Luño (1991), ao correlacionar o aparecimento de sucessivas dimensões de direitos fundamentais à mutação histórica dos mesmos.

Com precisão Sarlet, (2013, p.278) acentua que “os direitos fundamentais – como categoria histórica e materialmente aberta – são, acima de tudo, fruto de reivindicações concretas, geradas por situações de injustiça e/ou de agressão a bens fundamentais e elementares do ser humano”.

O trabalho hermenêutico, para conceituar os direitos fundamentais, proposto por Sarlet desdobra-se em dois aspectos: o formal e o material. A conceituação de fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito positivo, no sentido de um regime jurídico definido a partir da própria constituição, seja de forma expressa, seja de forma implícita. Por outro lado, a fundamentalidade material, relacionada à análise do conteúdo do direito, se dá não só pela relevância do bem jurídico considerado em si mesmo (por mais importante que seja), mas especialmente pela relevância daquele bem na perspectiva das opções do constituinte. (SARLET, 2013, p. 279-280).

Com efeito, uma boa administração, nos dizeres de Sarlet ([s.d], p. 1-2), só pode ser “uma administração que promova a dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes, devendo, para tanto, ser uma administração pautada pela probidade e moralidade, impessoalidade, eficiência e proporcionalidade”.

No ordenamento jurídico brasileiro, pode-se considerar que uma das facetas do direito à boa administração foi incorporada expressamente pelo constituinte reformador com a introdução da eficiência no elenco principiológico que rege a Administração Pública.15

Mas esse direito fundamental irradia efeitos que ultrapassam os limites da eficiência, como aponta, com precisão, Freitas (2007, p. 20), ao conceituá-lo

15 A alteração constitucional foi promovida pela Emenda Constitucional n.19/1995.

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como sendo o “direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, im- parcialidade e respeito à moralidade, à participação social16 e à plena respon-sabilidade por suas condutas omissivas e comissivas”.17

Ao traçar o standard mínimo do direito à boa administração, Freitas (2007, p. 20-21) enumera os seguintes sub-direitos dele decorrente: i) o direito à administração pública transparente; ii) o direito à administração pública dialógica; iii) o direito à administração pública imparcial; iv) o direito à administração pública proba; v) o direito à administração pública respeitadora da legalidade temperada; e por fim, vi) o direito à administração pública eficiente e eficaz, além de econômica e teleologicamente responsável.

A dinâmica imposta pelo Direito Constitucional permite que o direito a uma boa administração incida sobre a atuação administrativa, em todas as suas facetas. Sob esta premissa, deve-se erguer o arcabouço normativo que autoriza o fazer administrativo, buscando na carga valorativa dos princípios os fundamentos de razoabilidade e de eficiência de sua atividade. Não há mais espaço para a discricionariedade excessiva, abusiva ou insuficiente.18

A vertente constitucionalista do Estado pós-moderno19 propõe, nos dizeres de Moreira Neto, uma qualificação jurídica atual da ação administrativa do Estado, harmonizada com os novos valores introduzidos no Direito Público, alinhada aos quatro paradigmas essenciais: legitimidade, finalidade, eficiência e resultado. Tal direcionamento, acentua Moreira Neto, “[...] imprime à atividade administrativa pública elevados níveis de eticidade e praticidade que, por si sós, já vão relegando ao passado a velha gestão burocrática [...]”. (MOREIRA NETO, 2008, p. 29).

16 Sobre a importância da participação cidadã, Valle admite que “a outra estratégia de persecução de um modelo adequado de administração pública envolve a experiência originária da Carta de Nice, de preceituação de um direito fundamental, voltado diretamente à garantia de uma participação democrática no desenvolvimento da função administrativa, notadamente pela desobstrução de canais de diálogo entre cidadania e a estrutura da União Européia.” (VALLE, 2011, p. 83).

17 O autor ainda adverte que o princípio da boa administração exige do sistema fiscalizatório uma sindicabilidade aprofundada em vez de simplesmente alargada. Ao revés, não se preconiza o controle disfuncional e extremado ou violador da independência dos Poderes. (FREITAS, 2007, p. 07).

18 Sobre os vícios no exercício da discricionariedade conferir FREITAS. (2007, p. 24-25).19 V. CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

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A afirmação de boa administração como direito fundamental, na lição de Valle (2011, p.81), implica a ampliação da esfera de proteção desses mesmos direitos, que passam a alcançar não só os resultados concretos do agir estatal, mas, preventivamente, a função administrativa como um todo.

Sarlet, ao identificar a materialidade de direitos fundamentais que irradiam da própria dignidade da pessoa humana, reconhece o direito fundamental à boa administração constante na Carta de 1988, muito antes, segundo o autor, do que na Carta dos Direitos Humanos da União Europeia.

Não se trata, como pondera Valle (2011, p. 81), de inovação no elenco dos direitos fundamentais, mas da explicitação de que o Estado, do século XXI, assume compromissos não só em relação aos resultados concretos de sua atuação, mas igualmente tendo em conta todo o espectro de formulação, implementação e avaliação das escolhas públicas que lhe são cometidas a empreender.

A doutrina brasileira incorpora, portanto, tal direito aproximando-o do campo das políticas públicas, das escolhas administrativas legítimas e do próprio conceito de governança.20

Nesse sentido, tal direito irradia normatividade não só ao Poder Executivo, mas a todos os Poderes do Estado, que no exercício de suas funções devem observar o direito fundamental à boa administração. Restringir o campo de incidência à mera execução da atividade administrativa implica em ser permissivo com a violação desse direito por parte do Legislativo ou Judiciário.

A democratização das funções estatais impõe um dever a todo o Estado, responsável pela proteção típica dos direitos fundamentais. A interlocução da boa administração não está adstrita às tarefas executórias da atividade estatal, mas também se consolida no campo da produção legislativa e das decisões judiciais. Assim, por exemplo, a inação parlamentar atentatória do primado da boa administração também merece reparos pelos remédios constitucionais disponíveis.

20 Conforme o próprio título da obra “Direito fundamental à boa administração e governança”, VALLE, 2011.

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3.3. jurisdição administrativa e o direito fundamental à boa administração, uma interface necessária

A evolução europeia do modelo de justiça administrativa conduz a duas questões centrais: a primeira, de ordem formal, ou estrutural, e a segunda, de ordem material. A primeira, tratada anteriormente, está atrelada a existência ou não de um modelo de jurisdição administrativa.

A segunda diz respeito à inserção do direito à boa administração como parâmetro valorativo na aferição da antijuridicidade. Nesse sentido, Tornaría (2014) aponta para a existência de violação seja das regras de direito, seja do direito à boa administração.21

A busca pela máxima eficiência tem promovido novas reflexões sobre o arca-bouço jurídico político cuja normatividade recai sobre o agir administrativo. Nesse cenário, a adoção do direito fundamental à boa administração como de-ver finalístico do Estado ganha especial relevo. É este o ponto sobre o qual é necessário um repensar dos operadores do Direito.

A concepção de Estado-providência e de seus compromissos modifica o caráter genérico e abstrato das normas de direito, redirecionando a atividade legislativa para a regulação de aspectos cada vez mais específicos. Soma-se a isso um crescente papel do judiciário, ainda que questionável, na promoção de uma justiça distributiva. O denominado fenômeno da judicialização da política22, atrelado ao papel ativo do Judiciário, no atendimento das demandas sociais.

Assim, o controle das funções administrativas no Estado-providência trans-fere, nas hipóteses de situações litigiosas entre a Administração e os cidadãos ou mesmo a fiscalização das atividades estatais, ao Judiciário a eleição de escolhas

21 De acordo com o autor: El Tribunal ha seguido la línea de declarar los efectos generales de la anulación en virtud de la regla de derecho o de la buena administración, teniendo em cuenta –en la primera oportunidad – que se trataba de un reglamento de ejecución que debe subordinarse enteramente a la letra y al espíritu de la ley, reseñando la doctrina existente. [...] y que en la base del concepto de ‘buena administración’ “se halla también el acatamiento de la regla de derecho”, por lo cual la sentencia, com estos efectos, cumple “una finalidad purgativa del ordenamiento” (TORNARÍA, 2014, p. 90).

22 V. VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

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públicas, principalmente, nas áreas mais afeitas aos programas e às políticas típi-cas do Estado do bem-estar social.

Tal controle não pode estar amarrado por uma concepção legalista, de mera confrontação documental ou contabilista, mas deve primar pela boa gestão dos recursos públicos. Assim o direito fundamental à boa administração constitui parâmetro para a verificação de violação, ainda que implícita, da ordem constitucional, impondo-se também ao Poder Judiciário, sobretudo, porque esse, muitas vezes, acaba por substituir o administrador na implementação de suas políticas públicas.

Observa-se que a crescente tutela de direitos individuais descompromissada com ações e programas gerais acaba por violar o direito fundamental à boa administração23. O aumento das decisões judiciais, desrespeitando um pla-nejamento realizado com definição de metas a serem alcançadas e destinação de recursos para o alcance das mesmas, ameaça a concretização do direito de todos.

Nesse mesmo sentido Perlingeiro:

A ofensa ao interesse público, ao ser considerado um limite à execução das decisões judiciais contra a Administração Pública, não raro, leva ao juiz, quando do julgamento sobre a procedência dos direitos do cidadão, o dever de ponderar o interesse público e, por este se confundir com o poder estatal de realizar valores constitucionais (políticas públicas), leva, ainda, ao juiz a missão de externar o atual papel do Judiciário, que deixa de ser apenas corretivo (retributivo), para também transitar pelo campo da justiça distributiva.

[...] Parte-se, ainda, da premissa de que o juiz administrativo, diante da alegação de ofensa a interesse público, vale-se de aspectos

23 Cite-se como exemplo o diagnóstico das ações judiciais direcionadas à Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo. O fornecimento de medicamentos ocupa lugar de destaque nas demandas judiciais, muitas vezes, sem qualquer evidência de eficácia e segurança do tratamento solicitado e com definição equivocada do pólo passivo para cumprimento dessas decisões. Essa constatação fez com que a Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo (SESA) buscasse conhecer detalhadamente essas demandas a fim de monitorá-las e traçar ações estratégicas para seu enfrentamento. Disponível em: http://www.escoladegoverno.pr.gov.br/arquivos/File/Material_%20CONSAD/paineis_III_congresso_consad/painel_9/diagnostico_das_acoes_judiciais_direcionadas_a_secretaria_de_estado_da_saude_do_espirito_santo.pdf. Acesso em 15 jun. 2014.

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socioeconômicos quando da ponderação de valores constitucionais ou da aplicação dos postulados da proporcionalidade ou da razoabilidade para fundamentar as suas decisões segundo as garantias do devido processo legal e do processo justo. De fato, uma decisão que ignore a realidade socioeconômica, em certos casos, poderá ser considerada “ilegítima”, “injusta” ou “insustentável” do ponto de vista socioambiental ou, ainda, rotulada de “decisão materialmente impossível”, contribuindo para o descrédito do Poder Judiciário. (PERLINGEIRO, 2011)

Observa-se, assim, que as situações litigiosas entre a Administração e os cidadãos demandam, em face da sua complexidade, a adoção de tutelas específicas, capazes de promover uma justiça administrativa. Trata-se de uma exigência que se desdobra na necessidade de uma estrutura apta a cumprir tal desiderato sob o viés do atendimento ao direito fundamental à boa administração coletiva e não individual.

Não se pode olvidar, portanto, que quem estabelece as diretrizes superiores é a própria Constituição a partir dos parâmetros contidos nos princípios e nos direitos fundamentais. Assim, as entidades estatais e seus órgãos e agentes possuem como missão implementar as diretrizes constitucionais, dentro de sua esfera de atribuição.

4. conclusões

A forma pela qual deve se operacionalizar a resolução de controvérsias envolvendo a Administração deve estar em consonância com o modelo de exercício das funções estatais promotora da ordem democrática substantiva.

A transformação da justiça administrativa põe em evidência a necessidade de proteção dos direitos subjetivos, permitindo que cada cidadão possa ser resguardado em face da infração de legalidade por parte da Administração.

Com efeito, a superação no direito europeu de um modelo de jurisdição par- cial, desprovido de caráter coercitivo, rompe com os paradigmas anteriores estabe-lecendo novos instrumentos relacionados à forma de atuar do juízo contencioso.

A ordem constitucional brasileira, sob o império da jurisdição una, confere a cada ente estatal autonomia legislativa para disciplinar o procedimento administrativo. Em que pese a existência de uma lei federal, que avançou na

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consolidação de princípios e institutos afetos ao procedimento administrativo, tem-se que a atuação administrativa requer uma atuação jurisdicional e regras processuais especializadas e aptas a solucionar com eficácia os conflitos entre interesses privados e públicos, independentemente da existência do modelo de jurisdição. Nesse sentido, a doutrina brasileira avança, inclusive participando da elaboração de um Código Modelo de jurisdição administrativa.

Na própria dicção do Código Modelo, há uma pauta de diretrizes a ser observada materialmente pela Administração. Ainda que não incluído de modo explícito, o direito fundamental à boa administração é resguardado pela inci-dência de outros princípios.

O reconhecimento deste direito, consagrado pela Carta de Direitos Fun-damentais da União Europeia, começa a ingressar na pauta do Judiciário brasileiro, chamando atenção para a necessidade de averiguar com profundidade a existência ainda que implícita de um direito fundamental à boa administração, de forma a conferir-lhe eficácia direta e imediata.

A doutrina brasileira, capitaneada por Freitas, reconhece o direito à boa ad-ministração como direito fundamental implícito. Nesse sentido, irradia normativi-dade não só ao Poder Executivo, mas a todos os Poderes do Estado, que no exercício de suas funções devem observar o direito fundamental à boa administração.

Assim, o diálogo da boa administração não está restrito às tarefas executórias da atividade estatal, mas ecoa também sobre a atividade legislativa e judiciária.

O objetivo último da pesquisa é atingido quando se propõe o direito à boa administração como parâmetro valorativo na aferição da antijuridicidade.

Observa-se, assim, que as situações litigiosas entre a Administração e os cidadãos requerem a adoção de tutelas específicas, capazes de promover uma justiça administrativa materialmente qualificada pelo atendimento ao direito fundamental à boa administração daquilo que é de todos.

5. referências

ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de; GONÇALVES, Marcus Fabiano. Fundamentação ética e hermenêutica: alternativas para o direito. Florianó-polis: CESUSC, 2002.

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direito fundamental ao planejamento: limite à atuação do estado em momento

de crise econômica, política e social

Edimur Ferreira de Faria1

Juliano Ribeiro Santos Veloso2

Resumo

O presente trabalho versa sobre a reflexão em torno do planejamento como direito fundamental, e sua utilização no contexto de crise econômica, política e social.A Comissão de Veneza em recente encontro em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil conclui sobre o papel essencial do Judiciário nos momentos de crise econômica, financeira e social. O direito ao planejamento se insere nessecon-texto como ferramenta fundamental do operador do direito. Justifica-se o estudo do Planejamento como direito fundamental porquanto qualquer política pública necessariamente deverá ser planejada de modo a efetivar pelo menos o mínimo existencial. O objetivo principal é compreender a juridicidade do Planejamento/Plano e sua instrumentalidade na efetivação e manutenção de direitos como saúde, educação, moradia, etc, no contexto de crise. Conclui-se acerca da necessidade de reconhecer o Planejamento como um direito fundamental diante do contexto teórico e legal apresentado.

Palavras-chave

Direito Constitucional; Direito Administrativo; Direito ao Planejamento; Direitos Fundamentais.

Resumen

El presente trabajo se ocupa de la reflexión sobre la planificación como un derecho fundamental, y su uso en el contexto de crisis económica, social y política.

1 Professor da graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Presidente do IMDA-Instituto Mineiro de Direito Administrativo.

2 Procurador Federal. Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutorando em Direito Público na mesma universidade.

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La Comisión de Venecia, en una reciente reunión en Ouro Preto, concluye sobre el papel esencial de la judicatura en tiempos de crisis económica, financiera y social. La correcta planificación encaja en este contexto como una herramienta funda-mental de un operador del derecho. És justificado el estudio de la planificación como un derecho fundamental, ya que cualquier política pública necesariamente debe planificarse a fin de lograr, al menos, el mínimo existencial. El principal objetivo es entender la legalidad de Planificación / Plan y su instrumentalidad en asegurar y mantener los derechos como la salud, educación, vivienda, etc, en el contexto de crisis. La conclusión es sobre la necesidad de reconocer la planificación como un derecho fundamental en el contexto teórico y legal presentada.

Palabras clave

Derecho Administrativo; Derecho Constitucional; Derechos de Planifica-ción; Derecho Fundamental.

1. introdução

“Não são as ervas más que afogam a boa semente, e sim a negligência do lavrador.”

(CONFÚCIO)

A crise mundial que teve início em 2007 e se agravou em 2008 atingiu com mais intencidade os Estadus Unidos e os Estados Europeus em geral, uns mais do que outros. Em decorência, a Europa, por exemplo, enfrentou e ainda enfreta, em menores proporções, as consequências da crise no campo econômico, financeiro e social, que quase acarretou a saída de alguns Estados-membros da União Européia da zona do euro. Determinados Estados mais atingidos, foram obrigados a adotar medidas de austeridade fiscal para conseguirem financiamento junto a outros países, o que causou abalo no sistema jurídico, com supressão de direitos, inclusive de dogmas como o direito adquirido, segundo asseveram (URBANO, 2013, p.29) (CROIRIE, 2013, p. 33).

Nesse contexto, surge a necessidade de o Estdo encontrar soluções jurídicas de enfrentamento das questões dedecorrentes da crise. A Comissão de

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Veneza3 na Carta de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil (LEE, 2014) sinalizou que os juízes são mais responsáveis nos momentos de crises, porquanto os riscos para os direitos são maiores. Ao Judiciário é atribuído o poder para delimitar as incertezas jurídicas e evitar o retrocesso dos direitos fundamentais.

Os problemas de distribuição de recursos e de efetividade dos direitos se fazem mais importantes e, talvez, mais evidentes, em períodos de crise econômica, em função das medidas de austeridade. Estas medidas governamentais, de forma específica, são desafiadas nos tribunais. (COMISSÃO DE VENEZA, 2014).

“O dilema é claramente evidenciado, por exemplo, naqueles casos em que os parlamentos modificaram a Constituição para fixar um limite de gasto público ou para estabelecer um princípio de estabilidade orçamentária”, afirmou, em nova referência à crise econômica iniciada em 2007. (LEE, 2014)

A referida crise mundial não será tratada neste trabalho, por não ser o seu objetivo. O assunto é trazido à tona a guisa de exemplo de hipótese em que o Estado em crise econômica, finnceira e social terá de replanejar ou planejar com vistas a minimizar os efeitos da crise, tendo por metas a supressão da mesma. Nessa batalha é indispensável a atuação harmônica do Executivo, do Legislador e do Judiciário. O Judiciário, em situação de crise, pode ser chamado para coibir eventuais abusos transvestidos de princípios como o de estabilidade orçamentária e para dirimir conflitos entre Estado e cidadão em virtude da administração da crise.

Por outro lado, mais do que nunca, os operadores do direito são desafiados a desenvolver a experiência jurídica de forma a permitir a superação dos momentos de crise de forma rápida, evitando assim a sua perpetuação.

Nesse sentido, o direito ao planejamento se apresenta como alternativa viável à superação dos momentos de crises econômicas, políticas e sociais, revestindo-se, de caráter de direito fundamental à estabilização das crises.

O objetivo do presente trabalho é demonstrar a importância da compreensão do direito ao planejamento como direito fundamental, principalmente nos

3 A Comissão Europeia para Democracia através do Direito, conhecida como Comissão de Veneza, é formada por membros de cortes constitucionais de 56 países e se reúne para debater desafios enfrentados pelos membros.

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momentos de crise, quando a necessidade de sua utilização como instrumento balizador das decisões judiciais é maior.

Para isso, desenvolvem-se: no item 2 teoria justificadora do direito ao planejamento; no item 3 o método jurídico e a realidade social. Nesse item dá-se ênfase ao planejamento em todas as áreas de atuação do Estado, com, entre outroas, condição indispensável à efetivação dos direitos fundamentais; no item 4 a ideia do planejamento e o ativismo judicial, dando-se realce ao planejamento e ao ativismo judicial na concretização dos direitos subjetivos decorentes dos direitos fundamentais. Nessa situação o Supremo Tribunal Federal tem decidido a favor do postulante independetemente de previsão orçamentária ou de lei infraconstitucional implementadora de direitos fundamentais garantidos pela Constituição. As decisões judiciais, nessas condições, além de reconhecerem o direito subjetivo postulado, servem de alerta ao Estado legislador e ao Estado executor, principalmente, nos casos de crise; no item 5 cuida-se do desenvolvi-mento da teoria dos direitos fundamentais; no item 6 procura-se explicar e fundamentar o conceito do Instituto do Planejamento arrimado em autores nacionais e estrangeiros e ainda com respaldo da filosofia; por fim, no item 7 cogita-se da conclusão, que confirmou a hipótese. Qual seja, o adequado plane-jamento público é condição essencial à implementação das políticas públicas, principalmente as decorrentes dos direitos fundamentais garantidos constitu-cionalmente, e em virtude da importância do planejamento na concretisação dos direitos fundamentais ele, implicitamente, integra o rol dos direitos fundamen-tais. Concluiu-se também, que o Judiciário, mesmo em tempo de crise reconhece os direitos subjetivos fundamentais endependentemente de previsão orçamentária ou de lei implementdora do direito garantido pela Constituição.

2. o direito ao planejamento

O planejamento4, de acordo com o senso comum, diz respeito às técnicas ou ferramentas gerenciais capazes de organizar a ação das pessoas físicas e jurídicas

4 Neste trabalho será utilizado o “planejamento” com letra minúscula quando o enfoque for predominantemente gerencial. E o “Planejamento” com letra maiúscula será dado quando o enfoque for predominantemente jurídico, de modo a dar ênfase á sua qualidade de instituto jurídico. (MANUAL DE REDAÇÃO DA PUC/RS, 2013).

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em torno de objetivos e de metas ao longo do tempo. Trata-se, grosso modo, de raciocínio simples no sentido de identificar aonde se quer chegar e qual o caminho a ser seguido. É uma maneira de pensar comum a todo ser humano dotado de consciência e replicável a qualquer ramo de conhecimento. O planejamento é inerente à racionalidade dos seres humanos e do Estado. O planejamento é uma atividade atemporal necessária à realização de atividades complexas e não reativas.

O Direito Administrativo5, como ramo do Direito Público que tem por objeto o estudo de normas e de procedimentos da Administração Pública6 presentes na legislação em sentido amplo, está diretamente relacionado ao Planejamento à medida que recursos financeiros, materiais, humanos e tecnológicos vão sendo direcionados, ou deixam de ser direcionados, ao cumprimento dos deveres/poderes da Administração na efetivação de direitos fundamentais como saúde, educação e segurança pública, entre outros.

As normas de Direito Administrativo abarcam o planejamento como ins-trumento fundamental na execução do seu fim último, qual seja, a efetivação dos direitos dos cidadãos por meio da prestação de serviços públicos eficientes e efetivos.

O termo planejamento, do ponto de vista jurídico, possui mais de uma acep-ção. O planejamento pode significar o ato do plano ou o processo de elaboração do plano. E o plano é o instrumento jurídico propriamente dito. Tanto o ato ou o processo de planejar quanto o documento escrito do plano caracterizam o Instituto Jurídico do Planejamento. O Instituto Jurídico do Planejamento deve ser entendido, nesse sentido amplo, de plano ou forma de elaboração do plano (MARRARA, 2011, p. 11).

Por outro lado, a ausência de respeito ao Instituto do Planejamento por parte da Administração Pública é causa de inúmeros prejuízos à sociedade, o que aflige diretamente o interesse público primário, não podendo ser concebido

5 Direito e Direito Administrativo são utilizados em letra maiúscula quando dizem respeito ao ramo de conhecimento ordenado metodologicamente constituindo uma Ciência. Em letra minúscula significará conjunto de regras.

6 Administração pública no sentido utilizado por Cretella Júnior (1995, p. 11): “o direito administrativo tem como objeto de estudo a Administração pública ou, de modo mais técnico, a Administração (com A maiúsculo) [...]”

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pelo ordenamento jurídico, uma vez que o pressuposto lógico é o princípio da eficiência, insculpido, por exemplo, no art. 37 da Constituição Federal brasileira de 1988.

Em função desse caráter efetivador de direitos fundamentais atinente ao planejamento, são gerados direitos públicos subjetivos à prestação de serviços públicos adequados e eficientes.

Decorre desse contexto a necessidade de compreensão do Planejamento como ferramenta jurídica do Direito Administrativo Constitucional capaz de gerar o empoderamento do cidadão, a consensualidade, a governança social e a concretização dos objetivos e metas insculpidos nas Constituições, efetivando os direitos fundamentais.

Portanto, o Planejamento é instituto jurídico fundamental à efetivação dos direitos constitucionalmente assegurados. Um direito fundamental! Não é somente um meio mas, direito fundamental em si, porquanto garantidor dos limites de atuação do Estado.

A racionalidade do Planejamento é pressuposto para a efetivação dos direitos fundamentais. “É da lógica da democracia que o Estado aja racionalmente, pensando nas gerações presentes e futuras e concretizando os interesses públicos e difusos escolhidos pela comunidade por ele ordenada” (MARRARA, 2011, p. 04).

Nesse contexto, é mister compreender o Planejamento como instrumento de observança obrigatória, capaz de contribuir para criar, modificar e extinguir direitos na perspectiva de efetivação de direitos fundamentais, como previsto em diversos textos constitucionais e infraconstitucionais. Enfim, necessário compreender o Planejamento como instituto jurídico7, o direito ao planejamento.

7 O professor Miguel Reale explica o significado de instituto jurídico: “[...] Esse é, por assim dizer, o instrumental lógico e linguístico básico da Ciência do Direito, que exige conceitos ou ‘categorias’ fundamentais, tais como ‘competência’ ‘tipicidade’, ‘culpabilidade’ etc. A esses conceitos gerais subordinam-se gradativamente outros, cujo conhecimento vamos adquirindo dia a dia, à medida que progredimos no conhecimento jurídico, sem jamais podermos considerar finda a nossa tarefa cognoscitiva. Como já ponderamos anteriormente a ciência é, até certo ponto, a sua linguagem. Já dissemos que as normas jurídicas se ordenam logicamente. Essa ordenação tem múltiplos centros de referência, em função dos campos de relações sociais que elas disciplinam, havendo uma ou mais ideias básicas que as integram em unidade. Desse modo, as normas da mesma natureza, em virtude de uma comunhão de fins, articulam-se

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3. o método jurídico e a realidade social

O planejamento é condição para a efetivação do Estado, democrático e de direito. A concretização dos direitos sociais condiciona-se ao planejamento público, o que pode ser exemplificado pelo planejamento urbanístico, em que se pretende organizar o uso do espaço urbano, distribuindo as infraestruturas essenciais (MARRARA, 2011, p.14).

Logo, o planejamento é ainda condição para efetividade do ordenamento jurídico brasileiro e está diretamente ligado ao regime democrático. O plane-jamento pode servir para ampliar ou reduzir a efetividade da ação do Estado. “A relação entre planejamento e Estado Democrático é inafastável pelo simples fato de que um Estado aleatório, desorganizado e ineficiente na consecução das metas públicas que o ordenamento jurídico lhe imputa mostra-se injustificável [...]” (MARRARA, 2011, p. 02).

Neste trabalho, parte-se do pressuposto de que o planejamento é instituto jurídico porque, além de estar presente em diversas normas, é capaz de gerar direitos e deveres, implicando a efetividade dos comportamentos sociais, segundo leciona Reale (2002, p. 62): [...] “‘Direito’ está em correlação essencial com o que denominamos ‘experiência jurídica’, cujo conceito implica a efetividade de comportamentos sociais em função de um sistema de regras que também designamos com o vocábulo Direito.”

O Direito Administrativo como ramo da Ciência do Direito Público tem por desiderato a efetividade dos comportamentos sociais, o desenvolvimento da experiência jurídica de forma a tornar efetivo dos direitos constitucionais

em modelos que se denominam institutos, como por exemplo, os institutos do penhor, da hipoteca, da letra de câmbio, da falência, da apropriação indébita. Os institutos representam, por conseguinte, estruturas normativas complexas, mas homogêneas, formadas pela subordinação de uma pluralidade de normas ou modelos jurídicos menores a determinadas exigências comuns de ordem ou a certos princípios superiores, relativos a uma dada esfera da experiência jurídica. Quando um instituto jurídico corresponde, de maneira mais acentuada, a uma estrutura social que não oferece apenas uma configuração jurídica, mas se põe também como realidade distinta, de natureza ética, biológica, econômica etc., tal como ocorre com a família, a propriedade, os sindicatos etc., costuma-se empregar a palavra instituição. A não ser por esse prisma de maior objetivação social, envolvendo uma ‘infraestrutura’ associativa, não vemos como distinguir um instituto de uma instituição.”( REALE, 1987, p. 190-191, destaque nosso)

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fundamentais, pelo menos. A crítica atual ao Direito Administrativo brasileiro decorre justamente do fato de ter se tornado um fim em si mesmo.

Como leciona Edimur, o Direito está diretamente ligado ao fato social e à ideia de justiça (FARIA, 2011, p. 8-9), “é produto da experiência e da experi-mentação. É, portanto, ciência.”.

Na mesma linha, Miguel Reale prega o Direito como experiência jurídica, que decorre do conceito de “modelo”, comum a diversos ramos do conhecimento, e que se aplica ao Direito, principalmente no que tange ao instituto jurídico do planejamento8.

O planejamento no Direito Administrativo é fruto da experiência jurídica, podendo ser compreendido também como modelo jurídico, porque visa, por meio de uma sequência de medidas ou prescrições (metas e objetivos), a efetivação de direitos constitucionalmente assegurados (planificação lógica e representação simbólica na Constituição de 1988)9.

O Direito Administrativo cumpre o papel de tornar o Direito Constitucio-nal concretizado (GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ, 2008, p. 45). Isso não quer dizer que o Direito Administrativo somente tenha esse papel, mas, sem dúvida, é um dos papéis do Direito Administrativo, bem como todos os outros ramos do Direito. Todavia, esse papel concretizador da Constituição é de extrema importância porque demonstra que o Direito Administrativo não pode ser fim em si mesmo, mas, instrumento.

Já no prólogo da edição espanhola, José María Rodríguez de Santiago (2013), da Universidade Autônoma de Madrid, sustenta que o planejamento é insti- tuto de fundamental importância para o desenvolvimento do ordenamento de Direito Público alemão e espanhol.

Normas que aparentemente tenían poco que ver con «materia constitucional» como, por el ejemplo, el (preconstitucional) art.

8 O conceito de modelo, em todas as espécies de ciências, não obstante as suas naturais variações, está sempre ligado à ideia de planificação lógica e à representação simbólica e antecipada dos resultados a serem alcançados por meio de uma sequência ordenada de medidas ou prescrições. (REALE, 2002, p. 184, destaque nosso)

9 Ideia que se repete no pensamento de Shapiro (2011) e será tratada mais à frente.

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132 del Reglamento de Planeamiento Urbanístico, relativo a la aprobación definitiva de los planes urbanísticos, desde los últimos años ochenta, se «llenaron» literalmente de eficaces criterios interpretativos (control de legalidad y de oportunidad, interés local o supralocal, etc.) que la jurisprudencia (en este caso, la del Tribunal Supremo) extraía directamente de los preceptos constitucionales que garantizan la autonomía municipal (arts. 137 y 140 CE). (WAHL, 2013. p. 15, destaque nosso).

Nesse sentido, José María menciona Barrio (apud SANTIAGO, 2013) so- bre o controle da discricionariedade do planejamento.

O professor alemão Maurer (2012, p. 424-427) explica que o plano pode aparecer em todas as formas jurídicas tradicionais (lei formal, regulamento, ato), e pelo fato de estabelecerem direitos e obrigações para os cidadãos caracterizam-se como normas ou atos jurídicos. Enfatiza que os Planos que restrigem a liberdade ou a propriedade dos cidadãos, ou criam obrigações devem ser feitos mediante lei.

Como lecionado por Maurer (2012, p. 20-22), novos institutos jurídicos foram sistematizados no âmbito do Direito Administrativo Alemão com a Constituição de Bonn de 1949, superando as concepções tradicionais do Direito Administrativo.

A finales del siglo XIX el método de la ciencia del Estado fue reemplazado por el denominado método jurídico, según el cual no sólo debían recopilarse y valorarse las normas jurídicas existentes, sino también — y sobre todo — construirse los conceptos generales e identificarse los aspectos y estructuras comunes del derecho administrativo. Con ello nació la parte general del derecho administrativo. Esta nueva senda se inició en 1895-96 con la publicación del manual de Otto Mayer, que contiene la exposición clásica del derecho administrativo del Estado de derecho liberal. Su principal objetivo es la sujeción de la actividad administrativa de intervención a los límites propios del Estado de derecho, valiéndose para ello de los institutos de la reserva de ley y del acto administrativo (como acto jurídico de intervención). Por su claridad conceptual y coherencia interna, dicho manual, objeto todavía de dos ediciones posteriores (1917 y 1924), ha ejercido — y sigue ejerciendo, en sus aspectos fundamentales — una gran influencia sobre la doctrina y la práctica del derecho administrativo.

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[...]

La Ley Fundamental de Bonn supuso un gran revulsivo para el derecho administrativo — en algunos aspectos, sólo tras el transcurso de un cierto periodo de tiempo desde su aproba-ción —. Ha provocado cambios muy profundos, comportando el rechazo de algunas concepciones jurídicas tradicionales y el reconocimiento de institutos jurídicos completamente nuevos. La jurisprudencia y la doctrina han tenido igual parti-cipación en dicho proceso, siendo en ocasiones la primera la que ha asumido la iniciativa (como, por ejemplo, el BVerwG en relación con los límites impuestos a la revisión de oficio de actos administrativos favorables) o la que ha dado el paso decisivo (como, por ejemplo, el BVerfG al rechazar la figura de las relaciones de sujeción especial). (MAURER, 2012. p. 20- 22, destaque nosso).

O Direito Administrativo Alemão passou a reconhecer o planejamento como instituto jurídico desde a década de 60.

A Constituição Alemã de 1949, vigente até os dias de hoje, expressamente prevê o Planejamento do Ensino (art. 91-b), planejamento técnico de sistemas de informação (art. 91-c), plano orçamentário (art. 110), entre outras formas de planejamento/plano.

Talvez não seja demais dizer que o sucesso da Alemanha em termos de re- construção, após a 2ª Guerra Mundial, tenha sido também pelo fato de ter compreendido a relevância jurídica do Planejamento, principalmente, o Planejamento financeiro e da educação tratados de forma especial no texto de Bonn.

Meirelles (2004, p. 44) deixa claro que o Direito se relaciona com as ciências sociais. As Ciências Jurídicas “visam a estabelecer normas coercitivas de conduta”, o que as distinguem de outras ciências sociais. Todavia, o Direito Administrativo “pede achegas” às ciências sociais para aperfeiçoar seus institutos.

O Direito Administrativo é ciência social aplicada, que tem por objeto a aplicação da norma à realidade, conforme também leciona Batista Júnior (2012, p. 529, destaque nosso) “sua interpretação há de ser, na essência, teleológica, isto é, o hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que ela preci-sa atingir em sua situação prática.” E ignorar o Planejamento é justamente

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ignorar o método jurídico. Importante frisar que o Direito Administrativo, ou qualquer parte especial do Direito Administrativo, que diz respeito a determinada política pública, não é um fim em si mesmo, trata-se de uma ciência que tem por fim aprimorar a realidade social, e a avaliação dos resultados é de fundamental importância.

Chapus (2001), ao dissertar sobre o Direito Administrativo, percorre o ca-minho da escola clássica do serviço público fundada por Duguit, da faculdade de Direito de Bordeaux, e da escola clássica da “puissance publique” de Hariou, da Faculdade de Toulouse, para concluir que o Direito Administrativo seria subdividido em parte geral e em parte especial. A parte geral seria a parte central do Direito Administrativo e abarcaria uma troca entre diversas disciplinas, como a Ciência da Administração, a Sociologia da Administração e a história da Administração. O Direito Administrativo especial cuidaria do Direito Público Econômico, do Direito do Urbanismo e do Direito Ambiental, entre outros (CHAPUS, 2001, p.10-11).

Na Espanha, Vera (2009), trata desde o papel promocional/prestacional do Direito Administrativo Social, decorrente dos comandos constitucionais, passando pela educação, pela vigilância sanitária, pela saúde, pela ação social, pelo esporte, pelos consumidores, pela cultura e pelos espetáculos, pela gestão patrimonial, pelo domínio público hidráulico, pelo domínio público marítimo, viário, minerário, até chegar à questão florestal. E o planejamento ocupa lugar transversal de maneira destacada em quase todas essas políticas públicas ou processos administrativos. Para Vera (2009, p. 92-93), o planejamento ou a programação, além de permitir ordenar as atividades próprias da Administração, permite canalizar as intervenções em âmbito alheio, nos limies do legalmente permitido, gerando autovinculação da gestão, permitindo o cumprimento dos fins de maneira sistemática. Algumas vezes o planejamento tem características de prerrogativas como acontece na desapropriação. Outras vezes, o planejamento possui efeito legitimador e de vinculação, tanto para a Administração quanto para os particulares. O planejamento pode, também, ser geral ou setorial, ou ainda, vinculante ou indicativo.

A jurisprudência espanhola tem entendido que os planos, em regra, têm ca-ráter setorial e indicativo, o que não impede de serem limites à atuação do Estado.

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Nas matérias em que a Administração deve intervir, como no setor elétrico, o plano é indicativo e vinculante. Muitas vezes, ainda na Espanha, os planos legais têm caráter prevalecente a quaisquer outros instrumentos de planejamento, não podendo haver qualquer derrogação ou revogação por esses outros instrumentos, como no caso do Plano de Ordenação dos Recursos Naturais.

O planejamento está justamente inserido na parte geral do Direito Ad-ministrativo, em razão de ser pressuposto de toda e qualquer ação da Administra-ção Pública. Sem o Planejamento, os recursos financeiros, materiais, humanos e tecnológicos da Administração são desperdiçados. O planejamento dá início ao processo administrativo gracioso ou não contencioso ou de resultado, que no Brasil vem sendo reconhecido como política pública.

É possível dizer que a compreensão do Direito Administrativo nesse formato é condição para a satisfação dos direitos fundamentais. Todos esses direitos se tornam concretos à medida que a Administração Pública age de forma harmônica, como se fosse uma orquestra. E o Planejamento é peça-chave na consecução desses direitos, uma vez que é por meio dele que os recursos financeiros, materiais, humanos e tecnológicos serão garantidos.

Ainda em 1951, Oviedo (1951, p. 52) apresentava críticas à tentativa de aplicação exclusiva do chamado método jurídico, se afastando da realidade, sem considerar o método exegético que, além de ser também jurídico, é aplicado em todos os outros ramos do Direito.

Na mesma linha do professor de Sevilha, Oviedo, o pressuposto adotado neste trabalho é a preponderância do método jurídico. O Direito Administrativo não é Ciência da Administração ou Ciência Política, e, assim sendo, possui o seu próprio objeto e método.

Como o Direito Administrativo compreende o estudo da atividade jurídica da Administração, então não há porque não tentar compreender o que há de jurídico em fenômenos políticos, econômicos ou sociais.

Muito ao revés, o método jurídico só se torna jurídico, nas palavras de Cretella Júnior (1995, p.178) , à medida que analisa e constrói o Direito, sem negar a realidade e muito menos os textos legais.

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Laubadère (1973, p. 15) exemplifica os critérios da chamada técnica jurídica do Direito Administrativo. Basicamente, seriam formadas por regras jurídicas que prevalecem no tecido social em contraposição a situações particulares de direitos individuais, capazes de criar atos administrativos suscetíveis de gerar efeitos de direito, com fundamento na teoria geral do direito. E essa técnica, também na França, reforça a compreensão ampla do Direito Administrativo dependente do planejamento para a efetivação das políticas públicas.

O planejamento regula o comportamento social, é previsto nos mais diver- sos tipos de normas jurídicas, objetiva a manutenção da estrutura social por meio da ação racional, possui grau de eficácia social (principalmente o planejamento financeiro), é garantido pela possibilidade de sanção (exemplo: improbidade administrativa), e é reconhecido como vinculante pela sociedade e principalmente pela Administração. Ainda assim, há muito o que ser feito para que haja eficácia social adequada.

No âmbito da epistemologia jurídica, o Direito é ciência normativa, com três acepções: “ciência que estabelece normas (Wundt); ciência que estuda normas (Kelsen); e ciência que conhece a conduta através de normas (Cossio)” (DINIZ, 2003. p.153), o que, outrossim, corrobora a correta interpretação do método jurídico.

Na França, por exemplo, há uma forma de planejamento que é feita por con-tratos de planos ou de empreendimentos (DUPUIS, GUÉDON, CHRÉTIEN, 2009, p. 344-345). Não é diferente quando o planejamento é considerado como lei geral e abstrata, cumprindo todos os requisitos do método jurídico.

Esse é o raciocínio também utilizado por Dupuis, professor emérito de Paris I (Panthéon-Sorbonne), Guédon e Chrétien (2009), que defendem que somente é possível entender o Direito Administrativo: “[...] se conhecer a Administração por ela mesma, sua história, o seu futuro: o pivô da construção de um Estado centralizado, que sofreu muitas transformações, acelerando ao final do século XX, geradores do aumento da complexidade e de novas incertezas”.

Nas palavras dos citados autores, o Direito Administrativo é desafiado em função do funcionamento da Administração. Essas duas questões constituem ponto importante na Reforma do Estado. Os professores apontam como

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desafio do Direito Administrativo manter a identidade, integrando todo o direito internacional e europeu, reforçando e racionalizando a descentralização, garantindo a efetividade dos direitos dos cidadãos (DUPUIS; GUÉDON; CHRÉTIEN, 2009, Contracapa) (destaque nosso).

Em suma, a partir do método jurídico que considera a realidade, a partir da compreensão jurídica dos fenômenos políticos, técnicos, econômicos e sociais, percebe-se a necessidade de reorganização do Direito Público a partir da noção de políticas públicas (BUCCI, 2008, p. 256). E a proposta de compreensão do Ins-tituto Jurídico do Planejamento vai ao encontro dos desideratos constitucionais.

Na mesma linha, Binenbojm (2008, p. 320) defende a reformulação do Direito Administrativo à luz dos direitos fundamentais e da democracia.

Na França, Cailosse (2008. p. 11, 22) fala da “constituição imaginária da Administração”. O Direito Administrativo seria uma encenação. A partir desse pressuposto, ele discute a “política do direito administrativo”, a incongruência entre o direito dos destinatários da lei e os autorizados a decidir em nome do interesse geral. Conclui que, por meio da lei administrativa, “outro jogo é jogado”, sob a cortina de uma “neutralidade”. Ele propõe a desconstrução do Direito Administrativo para rediscuti-lo em face das políticas públicas, de um governo de riscos (CAILOSSE, p. 313-314), em que o Direito Administrativo e a Ciência da Administração têm papéis complementares. A partir daí, propõe o Direito Administrativo da ação pública. Para isso, é necessária nova territorialização do Direito Administrativo de modo a se mover da concepção tradicional (CAILOSSE, p. 335). O atual avatar- do Direito Administrativo é um efeito do fenômeno da “constitucionalização do direito” (CAILOSSE, p. 383). Trata-se, portanto, de um processo de desconstrução-recomposição do ordenamento jurídico (CAILOSSE, p. 390) em torno da realidade, na qual a avaliação das políticas públicas se torna necessária (CAILOSSE, p. 404). O Direito Administrativo deve passar para um Direito da ação pública.

Para Maria Coeli Simões Pires, o planejamento é inerente às políticas públi-cas, e estas, inerentes aos direitos fundamentais.

O ciclo de políticas públicas, que, na rotina, apresenta - em etapas agregadas ou não - a concepção, o planejamento, o orçamento,

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a hierarquização e a execução de ações, a avaliação, o controle e a realimentação do processo, deve ser cumprido de forma compartilhada entre os entes federativos, com a participação da sociedade. (PIRES, 2008, p. 180-181).

Do ponto de vista jurídico, a política pública nada mais é do que um processo administrativo, um conjunto de atos, em que o planejamento é ou deveria ser o primeiro passo.

Moreira Neto (2008), por exemplo, categoriza, do ponto de vista jurídico, as políticas públicas como um “complexo de processos”, em que há o planejamento, a orçamentação e a execução.

Dessa concepção de política pública como um complexo de processos e sis-temas jurídicos decorre, necessariamente, a possibilidade de controle judi-cial, além do controle social, o que não implica substituição do administra- dor (MOREIRA NETO, 2008, p. 63-64). Pelo contrário, implica reconheci-mento da juridicidade de instrumentos, como o planejamento, alinhando a atuação do Estado por meio de mecanismos de freios e contrapesos Implica o reconhe- cimento do Planejamento como barreira na atuação do Estado em momentos de crises.

Em síntese, as políticas públicas nada mais são, do ponto de vista jurídico, do que processo jurídico para efetivação de direitos, em que o Planejamento estabelece os meios e os fins a serem alcançados. Decorrência lógica é a possibilidade de exigência por meio do Poder Judiciário da sua elaboração e da execução no prazo determinado.

Em resumo, políticas públicas são arranjos institucionais complexos, expressos em estratégias ou programas de ação governamental, que resultam de processos juridicamente regulados, visando adequar meios e fins (BUCCI, 2008, p. 251).

Segundo José María Rodríguez de Santiago (2013. p. 15), o Direito Ad-ministrativo Espanhol, a partir da visão constitucional, com influência da dou-trina alemã deixou de ser considerado um direito acéfalo para se preencher de valores constitucionais, superando a barreira entre o Direito Político e o Direito Administrativo (SANTIAGO, 2013. p. 15).

Partindo desse pressuposto, o Direito Administrativo somente faz sentido quando serve para efetivar os direitos constitucionalmente garantidos, não

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podendo ser um fim em si mesmo, sob pena de se perpetuar um Direito Ad-ministrativo míope.

A partir da Constituição da Alemanha de 1949, o Direito Administrativo foi influenciado pelo Direito Constitucional. Na Espanha, alguns administrativistas entenderam que, com a Constituição de 1978, o Direito Administrativo não deveria apenas existir, mas também funcionar (SANTIAGO, 2013).

Trazendo para a realidade brasileira, em face da Constituição de 1988, a cha-mada Constituição Cidadão, o Direito Administrativo deve existir, por exemplo, para garantir que o cidadão tenha seu direito à saúde respeitado, com hospitais de qualidade e médicos para atendê-los; que as escolas sejam de qualidade, educando e preparando os alunos para os desafios do mundo globalizado. A superação da barreira acerca da necessidade de compreensão de fenômenos econômicos, políticos e sociais sobre a ótica jurídica é de fundamental importância.

A partir desse novo pressuposto, fala-se de nova Ciência do Direito Ad-ministrativo, na qual o planejamento desempenha papel de destaque. Trata-se de decorrência lógica inscrita nos textos constitucionais. Pergunta-se: como se chega à efetivação dos direitos fundamentais sem Planejamento? E como pode se tornar efetivo esse Planejamento se não torná-lo exigível juridicamente?

4. o planejamento e o ativismo judicial

O ativismo judicial é fenômeno mundial, conforme demonstra Gauri e Brinks (apud ABRAMOVICH; PAUTASSI, 2009). Não há prevalência do político sobre o jurídico e vice-versa. Em pesquisa realizada em alguns países, como Brasil, África do Sul, Índia, Nigéria e Indonésia, ficou demonstrado que o ativismo judicial vem justamente atuar como um “sistema de alarme”, permitindo a realização de “compromissos incompletos”, tendo em vista a opinião pública e os atores sociais relevantes (GAURI; BRINKS, 2008; NELSON; DORSEY, 2006 apud ABRAMOVICH; PAUTASSI, 2009, p. 44-49).

O ativismo judicial decorre da própria ineficiência do Estado; decorre da incapacidade em realizar os fins constitucionalmente almejados. Representa, na verdade, sinal de alerta para a Administração. Essa ineficiência começa na gestão dos recursos do orçamento, como no problema do contingenciamento dos recursos financeiros (PINTO, 2008, p. 69-105).

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Trata-se de caminho sem volta. A democracia, os direitos humanos e o desenvolvimento político, econômico e social são elementos interconectados e interdependentes. Apesar das dificuldades, a priori, em uma perspectiva teórica de aplicação, o enfoque de direitos, isto é, o reconhecimento de direitos por parte do Estado, de modo a balizar as políticas públicas e seu reconhecimento judicial, é importante passo para o cumprimento dos objetivos fundamentais.

Nas estratégias de desenvolvimento e redução da pobreza, é reconhecida am-plamente a importância de dotar de poder, os segmentos da sociedade excluídos e pobres, por meio da atribuição de direitos (ABRAMOVICH; PAUTASSI, 2009, p. 293). E a possibilidade de exigir judicialmente a formulação ou o cumprimento do planejamento é de fundamental importância.

Percebe-se, portanto, que há mudança de beneficiários/usuários/clientes para titulares de direito, no qual o planejamento ocupa papel de destaque na garantia dos direitos fundamentais.

O direito subjetivo é valor ético e político que corre o risco de ficar na retórica se não existir exigibilidade por parte dos seus titulares (sindicabilidade, justiciabilidade ou exigibilidade judicial), o que pressupõe técnica de garantia por meio de ações judiciais, ativando mecanismos de responsabilidade. Isso é, o reconhecimento de direito é reconhecimento de um campo de poder no qual está limitado às margens de ação dos sujeitos obrigados.

O indivíduo é sujeito ativo do desenvolvimento econômico e social (Declara-ção sobre o direito ao desenvolvimento econômico e social – Resolução 41/128 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 4 de Dezembro de 1986). E, para exercer esse papel, ocupando seu espaço, a tutela dos direitos é de fundamental importância, mesmo tendo em vista as dificuldades na construção da experiência jurídica. O primeiro passo na garantia dos direitos públicos subjetivos, em termos de políticas públicas, é reconhecer a necessidade de enfrentamento dessas dificuldades, principalmente em momentos de crise.

Percebe-se, portanto, a formatação de um marco jurídico gerencial democrá-tico em decorrência do ativismo judicial. Pode-se tratar de aperfeiçoamento do sistema político/jurídico/gerencial, quando bem delineado. E o planejamento, como instituto jurídico, é capaz de ajudar nesse delineamento e estabelecer a racionalidade na utilização dos recursos, tanto no papel do Executivo como no

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papel do Judiciário, não somente, mas principalmente em contextos de crises econômicas, políticas e sociais, evitando abusos e distorções.

Como visto, vários fatores são intervenientes e, para evitar distorções do siste-ma de equilíbrio de poderes, bem como fazer prevalecer os valores democráticos, é prudente fazer a dissecação do caso concreto, de modo a delimitar o ponto no qual termina a discricionariedade e começa a ilegalidade.

Em suma, o planejamento realizado pela Administração Pública é fato jurí-dico em si mesmo, vez que determina a competência legal para a concretização de objetivos e metas, exigíveis com frequência nos tribunais, motivo que justifica o seu estudo e aplicação pelo Direito Administrativo brasileiro.

A função administrativa é complementada pela função jurisdicional e legislativa, fazendo parte de um todo. O administrativista, ao analisar os institutos jurídicos, também deve contribuir com a elaboração de leis que sejam coerentes entre si e principalmente em relação à efetivação dos direitos constitucional-mente garantidos.

Essa compreensão é de fundamental importância, uma vez que os direitos fundamentais somente serão efetivos quando o planejamento for realizado de forma legítima e exigível, de forma a traçar o caminho para a efetivação de direitos fundamentais, como a saúde e a educação, por exemplo.

5. teoria dos direitos fundamentais

Segundo Sampaio (2013), Constituição em sentido comum é o conjunto de elementos de um objeto qualquer.

Constituição em sentido material na acepção comum significa o conjunto de elementos que organizam e estruturam determinado objeto, que é o Estado. A Constituição é, portanto, conjunto de princípio e regras, estruturantes do Estado.

Logo, sempre que existiu Estado, existiu Constituição pois sempre há uma organização estruturada.

Há Estado sem constituição? Do ponto de vista material, sempre houve Constituição. Mas, Constituição formal (documento escrito como nome de Constituição) nem sempre existiu. Constituição formal data do séc. XVIII (EUA 1887).

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A história de adoção e proliferação da Constituição escrita é o que chamamos de ‘Constitucionalismo’ ou ‘Movimento Constitucionalista’ que prega a adoção de constituição escrita como necessidade para a limitação do poder.

Os Direitos fundamentais, no mesmo sentido, em sua concepção clássica, são limites do poder.

A história do constitucionalismo é a mesma história do reconhecimento dos direitos fundamentais – movimentos gêmeos e indissociáveis (reconhecimento de direitos fundamentais e a adoção de constituição escrita).

As expressões Direitos Fundamentais e Direitos Humanos são diferenciados em função do contexto geográfico. Os Direitos Fundamentais são utilizadas pelo Direito Positivo Estatal. Já os Direitos Humanos são utilizados no plano internacional. Na verdade, os Direitos Fundamentais são os Direitos Humanos positivados em determinado Estado. É o reconhecimento deles em um deter-minado Estado.

Decompondo a Expressão “Direitos Fundamentais” é possível compreender o conceito. São direitos, não mero conselhos, aspirações. Devem, por isso, ser exigíveis. Por serem fundamentais, não são todos os direitos do homem. São aqueles considerados fundamentais. Estão relacionados a prestação do que é algo fundamental para o ser humano. O direito é fundamental porque foi formalizado como fundamental. Tudo que formalmente é dito como fundamental, re-conhecido como fundamental para o ser humano.

Se fosse assim, o Título II fala – “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Assim, o que está no Título II da CF/88 (art. 5o. ao 17) é direito fundamental formal.

Esse não é o critério utilizado pela maior parte da doutrina. A maior parte da doutrina identifica a fundamentalidade de um direito não na forma, mas em sua essência, em seu conteúdo. Aí surgirá um direito fundamental material. O direito fundamental material é aquele que tem conteúdo de fundamental, e terá esse conteúdo quando o direito for indispensável à dignidade do ser humano. A fundamentalidade está ligada à sua indispensabilidade para a vida digna.

O planejamento é então formalmente e materialmente fundamental, porque é pressuposto para a elaboração de qualquer política pública.

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5.1. características dos direitos fundamentais

São características dos Direitos Fundamentais (SAMPAIO, 2013):

1. Historicidade: Os direitos fundamentais são históricos. Eles surgem, modificam-se e até deixam de ser considerados fundamentais. O que é essencial para a vida humana digna varia no tempo. (Ex.: direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado- não era considerado como direito fundamental). Além disso, alguns direitos podem ter seu con-teúdo modificado bem como pode ser que alguns direitos, que hoje não são reconhecidos ou que estão nascendo, ser no futuro um direito fundamental. Um exemplo é a inclusão digital. Hoje pode ter uma vida digna sem inclusão digital, e daqui a 50 anos?

2. Inalienabilidade: Eles não podem ser objeto de negócio jurídico, não tem conteúdo patrimonial. Não pode vender nem alugar a liberdade. E a propriedade? Ora, o que é direito fundamental é o direito à pro-priedade (a capacidade de ser proprietário) é que é inegociável, não é direito fundamental a propriedade em si mesmo. A capacidade de ser proprietário é intransferível, mas o objeto da propriedade é transferível.

3. Imprescritibilidade: Se a pessoa não exercer o direito fundamental não perde a sua titularidade. É imprescritível, ainda que a pessoa não exer-cite.

4. Irrenunciabilidade: A pessoa pode atentar contra seu direito fundamen-tal (ex.: vida), que mesmo assim, se sobreviver vai ter direito à vida.

5. Limitabilidade / Relatividade: Os direitos fundamentais não são abso-lutos. Não existe direito absoluto, nem o direito à vida (legítima defesa, estado de necessidade, por exemplo.). Todos os direitos são relativos. Assim, apesar dos direitos serem inalienáveis, irrenunciáveis, pode ha-ver casos em que o direito fundamental pode ser objeto de negócio jurídico. (Ex.: Direito de Imagem. Agora, esse negócio jurídico pode tangenciar o Direito de Imagem, mas não pode acontecer do desfazi-mento do direito.)

6. Concorrência: É possível que em determinada situação fática mais de um direito fático pode ser exercido ao mesmo tempo. (Ex.: jornalista,

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em um telejornal, dá a notícia e comenta a notícia. Ocorre o direito de informação mais o direito de opinião, sendo exercidos ao mesmo tempo).

7. Universalidade: Os direitos fundamentais são universais. Isso quer dizer que, onde houver um ser humano, tem que reconhecer a ele os direitos fundamentais. Em qualquer lugar onde tiver ser humano, o Estado tem que reconhecer os Direitos Humanos.

8. Vedação ao Retrocesso: Uma vez que a sociedade alcance direitos fun-damentais não é possível retroceder à essas conquistas.

5.1.1. Perspectivas dos Direitos Fundamentais

Os direitos fundamentais são direitos e também valores. Na perspectiva subjetiva há o modelo histórico clássico dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais são limites impostos ao Estado. A vida, propriedade, a liberdade, a igualdade são direitos. É a ideia da relação jurídica obrigacional.

Já na perspectiva objetiva, vida, igualdade, liberdade, propriedade, segurança, além de serem direitos, uma não excluir a outra, são também valores. São os valores mais importantes de uma sociedade.

A vida é um direito, por isto, é possível exigir do Estado a não adoção da pena capital. Mas a vida também é um valor porque obriga a própria pessoa proteger sua vida (ex. colocar cinto de segurança). Na perspectiva subjetiva, é o cidadão que pode exigir do Estado o respeito. E na perspectiva objetiva é um direito do cidadão mas também um valor, pois o Estado está exigindo que a pessoa proteja a sua vida.

5.1.2. Funções desempenhadas pelos Direitos Fundametnais

Os direitos fundamentais representam diversas funções.

Desempenham a função de defesa ou de liberdade, defendendo o ser humano do abuso do Poder Estatal. Os direitos fundamentais podem servir para exigir do Estado uma abstenção, um não fazer (não seja arbitrário, por exemplo).

Há a função de Prestação. Os direitos fundamentais podem servir para exigir do Estado uma obrigação positiva, uma obrigação de fazer. Dar escola, saúde, etc. ao cidadão.

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Desempenham a função de proteção perante terceiros, que não o Estado. Terceiros também não podem desrespeitar direitos fundamentais. Sendo que nessa relação entre pessoas, o Estado, mesmo que não diretamente envolvido, está presente pois tem que assegurar os meios para assegurar a punição de terceiros que viola os direitos fundamentais, e mesmo evitem a violação destes direitos. Assim, mesmo nas relações horizontais o Estado também participa (mantendo MP, Judiciário, polícia).

Por fim, os direitos fundamentais promovem a igualdade material. Promovem a proteção das minorias, asseguram o pluralismo, garantindo a tolerância da sociedade.

5.1.3. Gerações de Direitos Fundamentais

Existe na Jurisprudência do STF menção a essas gerações de direitos fundamentais. Elas são classicamente divididas em três gerações (Existe uma classificação quinária, mas há muita controvérsia).

As gerações de direitos fundamentais são momentos históricos nos quais determinados direitos (com alguma identidade) foram reconhecido como fundamentais.

Esses momentos históricos distintos também estão vinculados ao papel do Estado na sociedade, pois o devedor clássico dos direitos fundamentais é o Estado. Não tem como discutir os direitos fundamentais sem discutir o papel do Estado em sua implementação; assim vai depender dos modelos estatais.

Os direitos fundamentais de 1ª geração surgem com a revolução francesa. Identificando o papel do Estado, chegou-se nos direitos fundamentais. À época, o Estado era um mal, pois o monarca podia fazer o que quisesse.

Assim, com a Revolução Francesa nasce o modelo de Estado Liberal, o Estado mínimo ou, Estado Abstencionista.

O Estado era ameaça que poderia afetar a vida, a propriedade e a liberdade das pessoas. Os cidadãos precisam se proteger do Estado, logo o Estado deveria ser mínimo, não deveria se intrometer na vida da pessoa, ele é o Leviatã (algo nocivo).

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Quanto menos Estado, melhor. Mas ele precisa existir, pois não há outro meio de conviver em sociedade. Esse é o traço característica dos direitos civis e políticos, a igualdade formal no séc. XVIII. Essa ausência do Estado é benéfica quando a pessoa pode cuidar de si sozinho.

Já no séc. XIX surgem os direito da 2a. Geração. Sur a Revolução Industrial e com ela, aquela possibilidade das pessoas reslverem os seus problemas e satisfazer as suas necessidades materiais desaparece, ou fica muito difícil. Essa fase da evo-lução econômica e social foi particularmente, problemático para os artesões que antes conseguiam se sustentarem com dignidade, e depois da Revolução Industrial perderam essa condição em virtude do surgimento dos produtos industrializados.

Nesse ambiente, as massas se rebelam contra o Capitalismo e proliferam ideias do Socialismo e do Marxismo (no início do séc. XX).

Para sobrevivência do capitalismo, foi preciso modificar o paradigma de Estado liberal para Estado do bem-estar social. A Constituição de Weimar é um exemplo. (Welfare State). Também chamado de Estado Providência, pois providencia prestações positivas para atender às pessoas. Aqui surgem os Direitos Econômicos e Culturais.

Até a 2ª geração, os direitos eram individuais. Após a 2ª guerra mundial, surge a ideia da 3a. geração, marcada pela noção de grupo e gera modificação profunda do papel do Judiciário. Até então o Judiciário resolvia conflitos entre duas partes, direitos individuais. Com essa nova geração de direito, o Judiciário passa decidir sobre matéria de direito coletivo e difuso de toda a coletividade, ou de determinado drguimrnto social. Surgem, então, os Direitos Difusos e Coletivos, como marca da 3ª geração.

A doutrina costuma identificar as três gerações com os três postulados da Revolução Francesa;

1ª geração: Liberdade (o Estado deve se omitir para não atingir os direi-tos do cidadão).

2ª geração: Igualdade (para a Igualdade ser atingida, o Estado tem que fazer alguma coisa para alcança-la)

3ª geração: fraternidade: tem a ver com irmandade, com grupo.

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O direito ao planejamento se enquadra perfeitamente ao desenvolvimento dos direitos fundamentais por viabilizar justamente a coexistência entre os direi-tos à liberdade, igualdade e fraternidade.

6. o conceito do instituto do planejamento

O planejamento como previsto no ordenamento jurídico pátrio pode ser definido como o método jurídico utilizado no âmbito nacional, regional, estadual, metropolitano, municipal e setorial, pelo qual são alocados os recursos financeiros, materiais, humanos, tecnológicos e operacionais. Estabelecem-se diretrizes, objetivos e metas no curto, médio e longo prazo, de modo a alcançar os fins constitucionais e legais de forma concreta e efetiva, por meio de valores democráticos, permitindo a participação da sociedade na sua elaboração, consecução, controle e avaliação, como condição de validade e efetividade. O planejamento somente pode ser alterado se não atendida à condição rebus sic stantibus (“enquanto as coisas estão assim”), podendo ser exigido uma vez que foi mantidas inalteradas todas as outras condições (ceteris paribus).

Washington Peluso Albino de Souza (2005, p. 390-392) apresenta algumas posições da doutrina de Direito Econômico. Para os socialistas, como Petko Stainov, o plano seria uma “superlei” abaixo da Constituição. Para outros, já do ponto de vista capitalista, não teria sequer força jurídica. Para a corrente que defende a juridicidade do plano, ele poderia ser “complexo de atos jurídico e não jurídicos” (Laubadère), “ato-regra ou ato-condição” (Eros Roberto Grau) ou “ato jurídico complexo” (Washington Peluso). Seria ato complexo já que é formado por prismas político, econômico jurídico.

Leopoldino da Fonseca (2010, p. 258-274), ressalta uma série de opiniões no que tange à natureza jurídica do plano. Para Henri Jacquot (apud LEOPOLDI-NO DA FONSECA, 2010), o plano seria simples comprometimento unilateral do Estado, gerando obrigações de comportamento. Para Laubadère (apud LEO-POLDINO DA FONSECA, 2010), o Plano é ato jurídico sui generis, porquanto é instrumento técnico político dotado de flexibilidade, instrumento de orientação e indicativo e deve ser dotado de juridicidade sob pena de se tornar inútil. Para Burdeau (apud LEOPOLDINO DA FONSECA, 2010), a razão do plano é mobilizar a vontade coletiva, criando uma vontade democrática. Nessa linha, o

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plano deve ser dotado de flexibilidade e deve ser elaborado por técnicos, sendo ato técnico, tendo o parlamento papel simbólico. Burdeau caracteriza o plano como mito, capaz de garantir a integração social, por meio de consenso favorável. Para Farjat (apud LEOPOLDINO DA FONSECA, 2010), o plano é categoria nova de Direito Econômico, um “ato prospectivo”, sendo dotado de generalidade, obrigatoriedade e revisibilidade. Para Quadri, o plano se torna juridicamente relevante quando é transformado em ato jurídico, possuindo flexibilidade e caráter temporário, respeitando a lógica da cláusula rebus sic stantibus. Para Gordillo (2013), “o plano, em suma, é um complexo de diversos atos jurídicos e não jurídicos, legais e regulamentares, gerais e particulares, que se entroncam entre si, formando o sistema que há de orientar a ação do Estado e da sociedade num período dado.” Para Chambre (apud LEOPOLDINO DA FONSECA, 2010), dado o caráter normativo atribuído pelo Direito Soviético, os atos de planificação são fontes de direito que visam regular as relações econômicas. Para Maysdadt (apud LEOPOLDINO DA FONSECA, 2010), o plano não deve ser somente um instrumento de previsão, mas também instrumento de ação, devendo ter certa força obrigatória. Para Bernard (apud LEOPOLDINO DA FONSECA, 2010), os planos soviéticos tiveram caráter imperativo com uma função de previsão, gestão, controle e mediação do crescimento. Para Kucera (apud LEOPOLDINO DA FONSECA, 2010), na linha do Direito Econômico Socialista, o plano é imperativo e as organizações socialistas são obrigadas a cooperar entre si, justificando caracterizar o plano como verdadeira regra de direito. Stainov distingue planificação de programação, sendo que aquela tem caráter imperativo e esta, caráter indicativo. O plano seria, então, norma jurídica, possuindo força de lei, como previstos nas constituições da antiga URSS, Iugoslávia, Hungria e China. Por fim, Leopoldino da Fonseca (2010, p. 273-274) conclui que a conceituação de plano dependerá do contexto cultural e ideológico, devendo ser compreendido sob o aspecto semântico.

Para Marrara (2011, p. 07), o planejamento é um conjunto de procedimentos.

Todos os aspectos levantados não contradizem o conceito constitucional do Planejamento no sistema administrativo constitucional brasileiro. Pelo contrário, além de permitir a melhor compreensão do Instituto, corroboram suas qualidades principais.

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Em suma, o plano pode ser regra ou princípio, sendo elaborado por meio de processo que se concretiza em ato jurídico.

6.1. princípios limitadores e motivadores do plane-jamento

O planejamento é, ao mesmo tempo, limitado e direcionado pelos princípios estruturantes do Estado de Direito, do Estado Democrático, do Estado Social e do Princípio Republicano (MARRARA, 2011, p. 13). Ao mesmo tempo em que o planejamento deve cumprir esses princípios, é também, por meio dele, que desses princípios é que o planejamento se concretiza. Na verdade, o planejamento é pressuposto do Estado republicano, social, democrático de direito.

É vedado, portanto, planos sem exposição de motivos, que possam ser arbitrários e incompreensíveis.

Os planos devem ser legítimos e legitimados pela sociedade por meio de consultas e audiências públicas, como decorrência da democracia e como condi-ção de efetividade.

O Princípio Republicano impõe que os recursos públicos sejam utilizados em benefício de todos e não em benefício de alguns, impedindo que haja a “captura” e a “privatização” do processo de planejamento (MARRARA, 2011, p. 13).

O Princípio do Estado social impõe a exigência de um mínimo existencial, a igualdade de oportunidades e a justiça social (MARRARA, 2011, p. 13), que devem ser entendidos na perspectiva intergeracional.

Hoppe (apud MARRARA, 2011, p. 14) esclarece que os Planos não só são limitadores, mas protegem e promovem os direitos fundamentais pela oferta de novas comodidades, pelo fomento à liberdade ou pela proteção da propriedade privada.

6.2. o planejamento como omissão de ação/regulação

O Planejamento também pode ser realizado por omissão, quando o Estado age indiretamente à medida que não há necessidade de intervenção. Marrara (2011, p. 08) enfatiza que essa forma de planejamento está respaldada pelo princípio da

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subsidiariedade e razoabilidade. A subsidiariedade impõe a atuação do Estado somente à incapacidade de atendimento das necessidades pela sociedade. Já a razoabilidade é juízo de custo-benefício ou de eficácia das medidas.

O Estado age por meio da regulação, impondo os limites de atuação para os atores intervenientes em determinado tema. Porém, isso não ocorre somente nos casos das chamadas Agências Reguladoras, mas também na forma de organização da vida civil, como previsto no Código Civil.

O Código Civil é norma de direito que determina planejamento das condutas perante o Direito. É muito importante para o interesse público que as relações privadas sejam previsíveis, visto que exigíveis juridicamente.

Como bem observou Shapiro (2011), as normas jurídicas podem ser, também, planos.

6.3. classificação dos planos

A doutrina alemã adota classificação dos planos em indicativos, orientativos e imperativos (MAURER, 2012, p. 425-427). Os planos indicativos são fontes de informação e são qualificados como atuações de caráter material. Os planos orientativos são mais difíceis de conceber juridicamente porque podem variar desde uma declaração de vontade vinculante até uma mera declaração de intenções. Já os planos imperativos, são criados por leis formais, podendo ser exigíveis por meio do controle jurisdicional.10

10 a) Los planes indicativos representan una forma de información y deben calificarse, por consiguiente, como actuaciones de carácter material. b) Los planes orientativos son más difíciles de calificar desde el punto de vista jurídico. Depende de si el anuncio se produce junto con una declaración de voluntad vinculante o sin ella, lo que debe negarse en el supuesto de que se trate de una mera declaración de intenciones, pero debe, por el contrario, afirmarse cuando se establecen legalmente unos beneficios fiscales. Entre ambos extremos se encuentra una amplia gama de supuestos que resultan a menudo difíciles de valorar. Aun cuando, por regla general, puede rechazarse la existencia de una declaración de voluntad vinculante, mediante el solo efecto estimulante de estos planes puede engendrarse una situación de confianza. Los planes imperativos tienen, desde el punto de vista del análisis jurídico, la mayor importancia. A menudo, el legislador ha determinado ya la forma jurídica: los presupuestos de la Federación y de los Länder se establecen mediante una ley formal (cfr. artículo 110 II GG para la Federación). Lo mismo vale también para los planes de necesidades relativos a la ampliación de las carreteras federales (cfr. supra, marg. 7). Los presupuestos de los municipios

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De acordo com o tipo de plano, há uma relação de indenização segundo a doutrina alemã (MAURER, 2012. p. 429). Os planos imperativos são ordenados pela lei e geram direito à indenização no caso de descumprimento, por exemplo, o caso do planejamento urbano. Nos planos indicativos, só há direito à indenização se há informação incorreta. Os planos orientativos não geram direito à indeni-zação. (MAURER, 2012, p. 429)

Essa classificação utilizada na Alemanha pode apresentar risco quando confrontada com a teoria da legislação simbólica descrita por Neves (2011), em que há o predomínio da função simbólica sobre a função jurídica instrumental. A função simbólica representa o predomínio do aspecto político sobre o jurídico. Ele reconhece que as legislações podem perder o seu caráter simbólico e cumprir seu papel jurídico instrumental, mas também pode ocorrer o contrário (NEVES, 2011, p. 30-). Nesse sentido, a legislação simbólica foi classificada em uma tipologia em função de suas finalidades: a) confirmação de valores sociais; b) legislação-álibi; c) compromissos dilatórios.

Os chamados Planejamentos orientativos e indicativos são uma armadilha em termos de legislação simbólica. E para cumprir seu papel jurídico instrumental, é torná-los exigíveis de forma a assegurar os direitos fundamentais.

O fato de o planejamento ser entendido como princípio jurídico justamente impõe, nas situações abstratas, o seu detalhamento até o cumprimento do papel jurídico instrumental.

se fijan mediante ordenanzas (cfr., por ejemplo, el §79 de la Ley de Régimen Municipal de Baden-Württemberg). El plan de urbanismo se adopta mediante la forma de ordenanza (§ 10 BauGB), mientras que la resolución que pone fin a un procedimiento integrado de aprobación de un plan se adopta como un acto administrativo (cfr., por ejemplo, §74 de la Ley de Procedimiento Administrativo (VwVfG). Muy diferentes son las regulaciones de las leyes de planificación de los Länder en relación con los planes de desarrollo del correspondiente Land y los planes regionales: los primeros se adoptan predominantemente bajo la forma de una ley, pero también en parte bajo la forma de un reglamento (así, por ejemplo, en Hesse); los planes regionales se publican en Baden-Württemberg, Baja Sajonia y Sajonia bajo la forma de una ordenanza y, en caso contrario, la mayoría de las veces en forma de reglamento. En ocasiones no existe una denominación legal más cercana. De la determinación de la forma jurídica resulta en primer lugar que los planes respectivos deben tratarse formalmente como una ley formal, como una ordenanza, etcétera, en particular en lo que se refiere a sus requisitos jurídicos y a su control judicial. La forma jurídica debería asegurar sobre todo la colaboración de los parlamentos en la adopción de las decisiones de planificación importantes. (MAURER, 2012, p. 425, 427, destaque nosso)

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No Brasil, o Direito Econômico foi o pioneiro a cogitar do planejamento co- mo instituto jurídico. Washington Peluso Albino de Souza (2005, p. 371-398) trata o planejamento como instrumento de intervenção ou “técnica de intervenção” do Estado no domínio econômico. Ele entende que o planejamento é a ação de elaboração do plano, que, por sua vez, é peça técnica, representada por lei (p. 372-373).

Souza leciona (2005, p. 371-398) que há alguns que entendem que o planeja-mento poderia ser, inclusive, disciplina jurídica autônoma. Para ele, programas, projetos, metas e objetivos são considerados desdobramentos da lei do plano. Esclarece, ainda, que o plano pode ser visto pelos prismas político, econômico, administrativo e jurídico, devendo considerá-los todos em conjunto. E pode inte-ressar aos diversos ramos do Direito, em interface ao Direito Econômico (SOUZA, 2005, p. 379). Ele faz menção a normas-objetivo, que permitem a avaliação quantitativa e qualitativa do resultado (SOUZA, 2005, p. 394), e menciona, ainda, a existência do planejamento combinado na França, onde participam representantes do Governo, empresários e consumidores (SOUZA, 2005, p. 397).

Do ponto de vista do Direito Administrativo, como já foi demonstrado acima, o plano pode estar não só em uma lei como em outros tipos de atos normativos administrativos, como editais de licitações e de concursos públicos. Isso implica que nem sempre, do ponto de vista do Direito Administrativo, o plano será técnica de intervenção do Estado na Economia. Ao revés, na maioria das vezes, os planos são formas de organização da Administração Pública, cuja informação é essencial para a garantia de direitos fundamentais.

Leopoldo da Fonseca (2010, p. 249-297) lembra que os planos econômicos surgiram com o objetivo de racionalizar o mercado e que hoje independe de ideologia, uma vez que tantos os Estados Unidos como a antiga União Soviética praticam ou praticaram uma forma de planejamento econômico. Não há mais ideologia ligada ao planejamento ou muito menos considerar um instrumento daqueles países que negam ou não a economia de mercado. O objetivo comum é a tentativa de racionalizar a política econômica.

Da mesma forma que o planejamento é utilizado para racionalizar política econômica, ele também serve para racionalizar qualquer tipo de política pública ou a atuação da área meio da Administração. Muitas vezes a intervenção judicial

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atingirá justamente a ineficiência da área meio no planejamento ou na execução do Plano.

Ainda Leopoldo da Fonseca (2010, p. 256-257) apresenta o processo de planejamento na França desde 1947. O planejamento de n° XI, realizado em 2000, foi concretizado por grupos transversais de trabalho, cujos objetivos eram temas como a modernização, a competitividade, a coesão social e a qualidade de vida. A comissão de competitividade francesa chegou à conclusão da necessidade de qualificação para favorecer as capacidades criadoras e de competência. Como lei que é, o Plano francês evoluiu no sentido de permitir a discussão democrática.

6.3.1. O planejamento na filosofia do direito

Shapiro (2011) entende que normas são, no final das contas, planos, e, por isso, apresenta também contribuição para a compreensão do Planejamento como instituto jurídico.

A partir de então, ele estabelece sua hipótese no sentido de que a atividade legal é melhor entendida como um plano social e as normas legais são planos (SHAPIRO, 2011, p.12). Os planos serviriam não só para organizar o pensamento, mas também para organizar o comportamento, permitindo alcançar alguns fins que de outra maneira não seria possível (SHAPIRO, 2011, p. 122).

O pressuposto é que os planos delimitam a ação dos agentes em determinadas condições, e por isso, podem ser considerados como normas (SHAPIRO, 2011, p.127). Quando um plano é adotado, também é adotada uma norma. Todos os planos seriam normas, mas nem todas as normas seriam planos. Os planos são criados para serem normas.

Em geral, é possível dizer que uma norma é um plano, desde que seja criado por meio de processo que deveria criar normas (SHAPIRO, 2011, p. 128). Uma norma será plano somente se é criada por meio de processo que predispõe os sujeitos objetos da norma em questão a agir como prescrito pela norma (SHAPIRO, 2011, p.129).

Segue-se, então, que a decisão de não incutir disposições em seus súditos para cumprir o plano não geram planos. O plano é, então, um tipo especial de norma em que se propõe a resolver o que deve ser feito (SHAPIRO, 2011, p.129 ).

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A atividade legal não é só uma atividade de planejamento, mas de planejamento social (SHAPIRO, 2011, p. 203). É importante preocupar-se não só com que haja planejamento, mas como é realizado o planejamento (SHAPIRO, 2011, p. 205). Os planos não exigem força moral (SHAPIRO, 2011, p. 231).

Shapiro (2011) apresenta, então, a Teoria do Planejamento do direito, que somente corrobora a juridicidade do Planejamento, à medida que compreende normas como Planos exigíveis.

As leis orientam a conduta da mesma forma que os planos o fazem, deliberação e direcionando o sujeito a agir de acordo com o plano. Ao resolver assuntos em favor da ação direcionada, as leis reduzem os custos de deliberação e negociação, compensando incapacidades cognitivas e assimetrias informacionais, permitindo, assim, que os membros da comunidade alcancem objetivos e realizem os valores que estariam fora do seu alcance (SHAPIRO, 2011, p.274).

O planejamento é processo cumulativo, em que o processo de criação de solução aumenta ao longo do tempo, à medida que são criados sub-planos, aprimorando as possíveis soluções (SHAPIRO, 2011, p. 279).

De acordo com a Teoria do Planejamento, a missão primordial da lei é criar mecanismos para alcançar os objetivos e os valores buscados pelo sistema legal. Instituições legais visam resolver questões sobre os objetivos políticos específicos por meio de planejamento social: os planos criados devem distribuir direitos e responsabilidades de tal forma que o exercício dos poderes atribuídos e a observância dos deveres alcancem os objetivos selecionados e os valores designa-dos (SHAPIRO, 2011, p. 309).

Shapiro (2011, p. 394-395) apresenta benefícios instrumentais e anônimos das regras de direito, que dão condição para o planejamento social.

Os benefícios instrumentais são: o planejamento é social por natureza, já que regulamenta as atividades relativas às políticas públicas em regra, devem ser claro, consistente, prospectivo, contentável e estável.

Os benefícios anônimos são:

a. os membros da sociedade são capazes de prever a ação dos agentes ofi-ciais e planejar suas vidas efetivamente.

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b. proteger os indivíduos de eventuais abusos.

c. a economia de energia cognitiva economizada por não ter que pensar sobre o melhor caminho para regular a sociedade e não ter que conven-cer os outros da assertividade dos julgamentos.

O autor conclui que o Direito é instrumento que pode ser utilizado para o bem ou para o mal. Por outro lado, há formas corretas e incorretas de usar o instrumento. Não há manual de uso desse instrumento, bem como não há como legislar esse manual, mas a esperança não estaria perdida na utilização desse instrumento chamado lei (SHAPIRO, 2011, p. 399).

6.4. a localização do planejamento

O Planejamento é o primeiro passo no chamado processo administrativo de resultado, já conhecido no Direito Administrativo brasileiro como gracioso ou não contencioso ou de resultado.

Em síntese, o processo administrativo é concatenado por diversos atos da seguinte forma: planejamento, execução, controle e avaliação.

Diferentemente das concepções apresentadas até agora, o planejamento, como instituto de Direito Administrativo, é o primeiro passo no chamado processo administrativo de resultado, gracioso, ou não contencioso.

Isso não quer dizer que o Planejamento no Direito Administrativo Brasileiro ignore o conhecimento criado em outros ramos de conhecimento ou disciplinas de Direito (como o Direito Econômico). Ao contrário, o planejamento no Direito Administrativo deve aproveitar o que for útil, mas lembrar-se de que ele deve ser sistematizado na lógica administrativista.

Basta recordar que o Direito Econômico tem por objeto o estudo dos chamados Planos Econômicos. Já o Direito Administrativo estuda todas as formas de planos da Administração.

Em resumo, planejamento é processo de definição das metas e resultados, que quando são executados, se consolidam em um plano, que passará a ser implementado, podendo ser realizado parcialmente, totalmente ou ser fracassado, para em seguida ser avaliado e modificado se necessário.

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O escopo é discutir a aplicação prática do Planejamento em estudos de casos. O Direito Administrativo, como ciência social aplicada que é, deve vislumbrar sua efetividade e, para isso, é necessário discutir alguns pressupostos.

Godillo (2013), a partir das aulas do curso de Mestrado da Universidade de Buenos Aires (UBA) em Direito Administrativo e Administração Pública desenvolveu a obra El derecho administrativo en la práctica, cujo enfoque é discutir o problema concreto na prática da aplicação do Direito Administrativo, enfrentando a realidade da chamada “Administração paralela”, permitindo a reconstrução do Direito Administrativo, que está alheio às práticas cotidianas e às necessidades das pessoas que devia servir. Godillo se propôs a analisar o direito em movimento a partir do problema e das práticas da Administração e dos tribunais, sem medo de encarar a realidade, ressurgindo com a proteção dos direitos como foco principal (GODILLO, 2013).

Essa é a ideia que deve inspirar o Direito Administrativo Constitucional, de modo a efetivar os direitos fundamentais, não só nos momentos de crise. Por isso, necessário se faz tratar o Planejamento como um direito subjetivo, na prática da realidade.

6.5. direitos subjetivos decorrentes do planejamento

A questão dos direitos subjetivos em face do planejamento surge nesse con-texto. Os planos se encontram em equilíbrio entre flexibilidade e estabilidade, mudadas as condições iniciais (rebus sic stantibus) e não mantidas as outras condições (ceteris paribus), os planos devem ser corrigidos. “Con el derecho al mantenimiento del plan no se trata - al igual que con el derecho al cumplimiento del plan - de influir en la planificación, sino de la protección de las posiciones subjetivas jurídico-públicas creadas por el plan.” (MAURER, 2012, p. 430).

É necessário compreender que os planos determinam uma distribuição de riscos (MAURER, 2012, p. 429) entre o autor do plano e seus destinatários em caso de supressão, modificação ou inobservância é um caminho.

É possível, portanto, o controle judicial11 do plano ou do planejamento, principalmente diante do contexto do ativismo judicial, mas, para isso, a quali-

11 Vários são os exemplos práticos da utilização do direito ao Planejamento pelo Judiciário, que não foram trazidos em face das limitações do Edital.

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ficação dos operadores do direito é pressuposto de modo a permitir a correta delimitação dos direitos subjetivos e, por conseguinte, a efetivação dos direitos fundamentais.

7. conclusões

“Se você falha em planejar, está planejando falhar.” (RIBEIRO).

O planejamento é um instituto jurídico reconhecido mundialmente em vários ordenamentos jurídicos. Como demonstrado, o reconhecimento do planejamento como instituto se deu em função da necessidade de exigibilidade e da exequibilidade das leis fundamentais que estabeleceram direitos econômicos, políticos e sociais, como a Constituição Alemã de 1948, a Carta Magna espanhola de 1978 e a Constituição Cidadã de 1988.

O planejamento como instituto jurídico de Direito Administrativo é reco-nhecido em países como Alemanha, Espanha, Argentina e Portugal, não só em seus textos constitucionais ou legais, mas também pela doutrina.

Como demonstrado, 16% do texto constitucional brasileiro diz respeito ao instituto do planejamento, caracterizando-o como “Constituição Planejadora”. Talvez o planejamento seja o instituto jurídico com maior capilaridade no texto constitucional.

O planejamento é o primeiro ato jurídico para a concretização dos direitos fundamentais no processo administrativo voltado para resultado.

A qualidade jurídica do planejamento convive harmonicamente com as qualidades técnicas, políticas, econômicas e sociais. Na verdade, são faces da mesma moeda que o operador do direito não pode ignorar.

O planejamento, além de gerar racionalidade, permite a concretização da democracia por meio da participação e da divulgação, por isso é imperativo para o Estado social, republicano, democrático de direito.

A não elaboração ou não execução do planejamento pode representar ineficiência e desorganização, que deve ser repelido pelo ordenamento em sede de controle judicial.

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O planejamento, como instituto jurídico, ocupa papel de protagonista na efetivação de direitos, visto que é o primeiro ato jurídico do processo administrativo das políticas públicas, condição para a efetivação de direitos fundamentais.

O cidadão pode e deve exigir a elaboração e a execução do planejamento, seja por meio judicial ou político, inclusive exigindo seu direito à participação por meio de audiências públicas e consultas.

À medida que o planejamento gera a racionalização da utilização de recur-sos públicos, a Administração pode se respaldar no planejamento de modo a demonstrar a paulatina concretização dos direitos fundamentais, evitando medidas ineficientes ou ineficazes de decisões judiciais.

A compreensão jurídica do planejamento vem justamente permitir que o Poder Judiciário se alinhe e se responsabilize pelas políticas públicas de forma correta, realizando o controle do resultado em face do planejamento constitucional ou infraconstitucional.

Em síntese, o cidadão deve participar e exigir o planejamento, já que ele é o meio para a consecução dos direitos fundamentais. O planejamento pode ser exigido administrativa ou judicialmente, tanto para a elaboração do plano como para a sua execução, no prazo determinado. A Administração deve interagir com a sociedade, permitindo a sua participação na elaboração e na consecução do plano, o que gera o comprometimento e maior eficácia social. A Administração pode e deve se resguardar juridicamente por meio do planejamento contra decisões absurdas e desproporcionais que impõe obrigações irazoavel, como comumente ocorre em momentos de crises econômicas, políticas e sociais.

Conclu-se, por fim, que nos casos de crise econômica, financeira e social, o Judi-ciário é instado a se pronunciar sobre matéia pertinente a direitos fundamentais não atendidos pela Administração. Com frequência, nesses casos o juiz reconhece o direito postulado, sem verificar a existência de orçamento ou até mesmo de lei regulamentadora do direito fundamental garantido constitucionalmente.

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em busca do desenvolvimento sustentável por meio de políticas

públicas socioambientais e seus reflexos na américa latina

Antônio Carlos Efing1

Silvio Alexandre Fazolli2

Resumo

A presente pesquisa enfrentará a questão da efetividade das políticas públicas emancipatórias, assecuratórias do consumo consciente e do multiculturalismo que caracteriza a sociedade brasileira e os demais povos da América Latina. Com vistas ao estabelecimento de padrões de consumo condizentes com as necessidades locais e compatíveis com o modelo cultural latino-americano, serão levantadas questões sociológicas e jurídicas, com enfoque nos problemas ocasionados pelo descarte inadequado de resíduos. No cenário apontado, se perquirirá, ainda, sob o ponto de vista democrático, acerca da intervenção do Judiciário, na esfera de atuação dos demais Poderes.

Palavras-chave

América Latina; Desenvolvimento sustentável; Ética; Pós-consumo; Políticas públicas; Judicialização.

Resumen

Esta investigación se enfrentará a la cuestión de la eficacia de la emancipación, assecuratórias política pública del consumo consciente y la multiculturalidad que

1 Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP; Professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUCPR, onde leciona na graduação, especializações, mestrado e doutorado; Professor da Escola da Magistratura do Paraná; membro do Instituto dos Advogados do Paraná; Advogado militante em Curitiba/PR – [email protected].

2 Doutorando em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR (linha de pesquisa Sociedades e Direito); Mestre em Tutela dos Direitos Transindividuais pela Universidade Estadual de Maringá – UEM; Professor efetivo da mesma instituição e docente junto à Pontifícia Universidade Católica do Paraná/Campus Maringá; Advogado militante em Maringá/PR – [email protected].

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caracteriza a la sociedad brasileña y de otros pueblos de América Latina. Con el fin de establecer los patrones de consumo en consonancia con las necesidades locales y en consonancia con el modelo cultural hispana, se plantearán cuestiones sociológicas y jurídicas, con especial atención a los problemas causados por la eliminación inadecuada de residuos. En el escenario se ha mencionado, también perquirirá bajo el punto de vista democrático, sobre la intervención del Poder Judicial, en el ámbito de acción de los otros Poderes.

Palabras clave

América Latina; Desarrollo sostenible; Ética; Post-consumo; Política pública; La intervención judicial.

1. introdução

Marcados pela identidade colonizatória, e com diversos projetos para a efetivação de um mercado econômico comum, os países da América Latina vivenciam o paradoxo da conclusão de seus processos de industrialização, com vistas à salvaguarda da economia e a preservação dos recursos naturais existentes em seus territórios. Em meio a estas questões mais intimamente ligadas à sobrevivência da espécie, as populações latino-americanas experimentam o drama da aculturação, provocada pelas imposições do mercado de consumo, quase sempre contrário aos usos e costumes regionais e voltados para os interesses hegemônicos de fornecedores.

Neste cenário de inconteste insubsistência, assume a atual proposta de Estado Constitucional, a árdua tarefa de promover a integração entre economia e meio ambiente, fazendo com que se estabeleçam padrões sustentáveis de consumo, com preocupações voltadas tanto para a produção como para o pós-consumo ambientalmente corretos, sem prejuízo aos marcos civilizatórios, formadores da cultura latino-americana.

Não obstante a carga programática das normas constitucionais dos países em questão - colonialmente ligadas ao modelo jurídico eurocêntrico – já se en-contrar voltada para a proteção dos valores aqui retratados (consumidor, cultura e meio ambiente), tem-se que o pleno desenvolvimento social ainda depende

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do estabelecimento de padrões sustentáveis de consumo, movidos não mais por interesses econômicos, mas pelas reais necessidades da população, com a consequente diminuição e controle dos resíduos sólidos gerados.

Neste sentido, se perquirirá sobre a possibilidade de uma atuação estatal “libertadora”, por meio de políticas públicas verdadeiramente emancipatórias, contrárias a hegemonia do mercado internacional, e voltadas para a formação de consumidores conscientes, integrados aos aspectos culturais que lhes são próprios e solidariamente centrados na preservação ambiental para as gerações vindouras.

Ao final, como forma de possível “controle” das ações majoritariamente de-sempenhadas pelo Poder Executivo, se proporá investigação sobre a viabilidade democrática e eventuais limites da intervenção judiciária, na defesa dos valores eleitos constitucionalmente, em especial daqueles relacionados à cultura, meio ambiente e direitos do consumidor latino-americano.

2. aspectos culturais e os “fossos” civilizatórios la-tino-americanos

Embora se forre a qualquer mítica especifista, é possível se afirmar que a pro-dução cultural seja um dos grandes elementos capazes de distinguir a humanidade dos demais co-habitantes de nosso planeta. Desprovido de significativa orientação intrínseca, o homem desenvolve símbolos aos quais atribui valor, passando à aceitação coletiva por retratarem uma impressão comum. É a forma – por vezes inconsciente – de replicação de ideias em uma verdadeira mandala da humani-dade, cujos “marcos de civilização evocam as gerações antecedentes” (SOUZA FILHO, 2006, p. 17).

Neste sentido, a expressão “cultura” seria o principal indicativo da qualidade humana: sê homem, materializa valores em objetos, físicos ou ideais, capazes de serem transmitidos a outros indivíduos. Sustenta sua permanência terrena na eterna busca pela inatingível completude (COMPARATO, 2008, p. 28-30), deixando traços que, de forma imperceptível, trilham a busca das gerações futuras.

No ordenamento jurídico brasileiro, a proteção da “cultura”, como bem jurídico individualizado, encontra respaldo na Constituição Federal de 1988 – doravante utilizada como referência -, que por meio de seu art. 215, afirma que

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“o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

Todavia, diante do maior grau de importância reconhecido a certos bens culturais, a Constituição passou a elencá-los sob rotulagem diferenciada, através de seu art. 216, que trata do “patrimônio cultural brasileiro”, em rol não taxativo de bens, os quais podem ser resumidos nos seguintes grupos, segundo classificação feita por José Afonso da Silva:

(a) direito de criação cultural, compreendidas as criações científicas, artísticas e tecnológicas; (b) direito de acesso às fontes da cultura nacional; (c) direito de difusão da cultura; (d) liberdade de formas de expressão cultural; (e) liberdade de manifestações culturais; (f) direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura, que, assim, ficam sujeitos a um regime jurídico especial, como forma de propriedade de interesse público (SILVA, 2002, p. 312).

Ainda que não se possa imputar como regra absoluta, tem-se que o desen-volvimento cultural é influenciado por aspectos físicos, climáticos, sociológicos, jurídicos, etc., que dialogam com o processo de formação/criação do homem (ASSIER-ANDRIEU, 2000, p. 55). As diferentes gêneses humanas, auxiliadas pelo isolamento, deram ensejo a uma incomensurável diversidade cultural, capaz de instigar sentimentos de estranheza em um contexto social diverso, ou mesmo o enquadramento pela antijuridicidade de algum ordenamento jurídico.

Haveria, deste modo, a possibilidade de uma cultura universalizante e libertadora (SEN, 2010, p. 309), capaz de aceitação por todos os povos? A prática da excisão (retirada do clitóris), por exemplo, assegura às meninas de várias sociedades da África ocidental, a aquisição de sua própria família, vez que, somente então, passam a ser aceitas para o casamento (ASSIER-ANDRIEU, 2000, p. 56-59). Da mesma aceitação social e jurídica, compartilha a submissão da mulher, em algumas comunidades islâmicas, à vontade soberana do marido (SEN e KLIKSBERG, 2010, p. 25-26), de quem é vista, naturalmente, como uma espécie de dependente social e, por vezes, jurídico. A aversão causada à sociedade ocidental, em virtude de tais práticas, compromete o sucesso do “paradigma da

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humanidade”, inviabilizando, por conseguinte, a conciliação entre a emancipação pela razão e a regulação através da autoridade (SANTOS, 2000, p. 57).

A questão é deveras mais tormentosa se analisada sob o viés da crescente globalização, enquanto instrumento de veiculação de práticas econômicas hegemônicas do sistema capitalista vigente (GRAMSCI, 1982, p. 81), pautado no consumo desregrado. O equivocado processo de ocidentalização, imposto por regentes de mercado (SEN, 2010, p. 308), acaba por ditar as regras do aceitável, rechaçando por injustas ou até mesmo antijurídicas, as atitudes sociais que não estejam afinadas com seus interesses. Esse é o desenrolar dos “ciclos do progresso” (CAPELLA, 1998, p. 17), em que os cidadãos deixam de participar/decidir sobre seu próprio futuro, ficando integralmente à mercê do capitalismo, com sua obsolescência programada (CAPELLA, 1998, p. 24).

A preservação do multiculturalismo (em prejuízo do integracionismo hege-mônico) é medida que garante sentido ao conceito “humanidade”, enquanto conjunto de pessoas umbilicalmente unidas pelas diferenças, mas totalmente avessas às desigualdades (COMPARATO, 2008, p. 190). Ademais, as desigualdades econômicas e sociais, impostas pelo sistema colonial a ser abordado no tópico seguinte, comprometem, sobremaneira o desenvolvimento de culturas distintas, ante a imposição de interesses dominantes, consoante à óptica consumerista internacional.

Comentando os resultados de relatório produzido pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL, realizado no ano de 2009, Bernado Klikberg, em perspectivas sobre o desenvolvimento dos povos latino ameri- canos, atribui grande parte dos problemas à falta de igualdade na formação educacional dos jovens, despreparados não apenas para o exercício de atividade profissional, mas para realizar escolhas de consumo. Neste sentido, menciona que: “As deficiências educacionais condenam os jovens ao desemprego ou às ocupações informais e outras de baixa produtividade, reproduzindo-se as armadilhas da transmissão geracional da pobreza” (SEN e KLIKBERG, 2010, p. 150).

A diferença social se acentua quando se consideram populações menos favorecidas. Na América Latina, o índice de desnutrição entre crianças indígenas é de 58% (SEN e KLIKBERG, 2010, p. 160) e o de acesso à água potável para as comunidades indígenas bolivianas é de apenas 49% (p. 179). Estima-se, ainda,

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que 80% da população indígena viva em situação de extrema pobreza (SEN e KLIKBERG, 2010, p. 320).

Para o mercado internacional de produtos e serviços, estas pessoas não passam de estatística negativa, um campo infértil para a propagação do consumo. Por ou-tras palavras, são “excluídos” da atual noção de “humanidade”, pois lhes é defeso o acesso ao consumo de bens e serviços que, segundo a mídia, seriam indispensáveis ao homem moderno. Não apenas carros, casas, viagens internacionais, e outros produtos mais restritos, mas, também, shampoos, enxaguantes bucais, sheiks para emagrecimento e outros utensílios simples, falsamente propagados pelos meios de comunicação como transformadores da realidade individual, ainda são inacessíveis a grande parcela da população latino-americana.

Tratam-se dos chamados “fossos” causados pela aplicação incondicional do pensamento econômico ortodoxo, preocupado exclusivamente com o aumento de indicativos gerais, como o PIB (motivado por fatores de consumo), sem se ater às realidades e locais e regionais. Tais índices, entretanto, não são capazes de assegurar o desenvolvimento com liberdade cultural. O fato de não falar espanhol, por exemplo, faz com que crianças indígenas repitam de ano duas vezes mais que outras da mesma idade (SEN e KLIKBERG, 2010, p. 231).

Pelo que restou sucintamente demonstrado alhures, verifica-se que a realidade dos povos latino-americanos ainda se encontra intimamente ligada a problemas imediatistas, há muito superados pelos países colonizadores, como fome, miséria e educação. A publicidade avassaladora acerca de novos produtos e serviços disponíveis, compromete a formação pessoal das populações tradicionais e outros povos marginalizados pela própria sociedade em que vivem, ante a falta de capacidade para o consumo.

As desigualdades demonstradas não são fruto das diferenças culturais, mas decorrências do processo de colonização impingido por países eurocêntricos, conforme se demonstrará a seguir.

3. colonização, constitucionalização e globaliza-ção na américa latina

Devido ao isolado absoluto de influências externas, a América Latina contava com sociedades indígenas diversificadas e altamente desenvolvidas sob o ponto

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de vista cultural e político. Tratavam-se de organizações autossustentáveis, que praticamente pereceram tanto pelo choque cultural, como pelos enfrentamentos físicos com os povos estrangeiros (GALEANO, 2002, p. 27-32), valendo ressaltar a invasão espanhola aos impérios inca e asteca, durante o primeiro estágio daquela colonização, ocorrido até a década de 1570 (WACHTEL, 2008, p. 195).

Doenças como a varíola, sarampo, gripe e outras pestes, trazidas pelos europeus, provocaram o decréscimo da população indígena do planalto mexicano em cerca de 90% (noventa por cento) em menos de um século, conforme se infere dos seguintes dados, relacionando marcos históricos e a diminuição da população nativa:

1519: 25,0 milhões

1532: 16,8 milhões

1548: 6,3 milhões

1568: 2,65 milhões

1580: 1,9 milhões (WACHTEL, 2008, p. 200-201)

Acerca do agravamento da situação social e demográfica daquelas populações indígenas, durante o século seguinte, esclarece Serge Gruzinski:

A adesão mais ou menos sincera das camadas dirigentes à sociedade dos vencedores, o papel ativo dos índios na igreja, o desaparecimento o aparato dos antigos cultos substituídos por instituições cristãs, a exploração colonial sob suas formas mais diversas e mais brutais e, para culminar, a colossal perda demográfica transtornaram a existência cotidiana de todos os indígenas. As políticas de ‘congregações’, por sua vez, contribuíram para abalar o enraizamento territorial dos grupos que haviam escapado da morte. Ao longo da década de 1620, a população indígena do México central atingiu seu ponto mais baixo, 730 mil pessoas, representando apenas 3% do que fora às vésperas da Conquista. Se acrescentarmos a isso os efeitos da anomalia causada pelo questionamento das normas e hierarquias tradicionais, se considerarmos o impacto da desorientação cultural produzida pela introdução de novos modelos de conduta (os rituais cristãos, o casamento e aliança, o trabalho etc.), todos os elementos de uma

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vertiginosa agonia humana e cultural pareciam reunidos no final do século XVI. (GRUZINSKI, 2003, p. 218)

Semelhantemente ao perecimento humano e social apontado, as Antilhas encontram-se dispostas como espécie de “colcha de retalhos” cultural, vez que, no século XVI, com o início da conquista do continente americano, as riquezas encontradas no México e no Peru, atraíram povos europeus (franceses, ingleses e holandeses) que se instalaram em algumas ilhas. Estes, aliados aos escravos negros e hindus, deram origem a uma das maiores miscigenações constatadas na América Latina, o que ocorreu em prejuízo da cultura nativa (OLIC, 1992, p. 82-83).

Vê-se, pois, que se o fator mundialização aproxima pessoas e seus valores, por certo também corrobora para a desertificação cultural (POLANYI, 2000, p. 123) de populações minoritárias, por vezes incapazes de se esconder sob o manto da soberania estatal, enfraquecido por relações econômicas de subjugação impostas pela “nova ordem” (ASSIER-ANDRIEU, 2000, p. 64), voltada para o consumo. Em favor da padronização/dominação social são levantadas bandeiras de progresso e nacionalização que, desapercebidamente, contagiam opiniões servis, em prol de um modelo eurocêntrico. O homo faber dá lugar ao animal laborans (ARENDT, 2010 p. 129), cujo perfil mecanicista e repetitivo torna-o arquétipo ideal de “cidadão”, apto à “inclusão” neste novo engendramento social de pessoas treinadas para adquirirem coisas.

Na contramão dos interesses de mercado, diversos são os esforços da comuni-dade internacional consciente para a preservação das características civilizatórias, no estabelecimento de um limite desenvolvimentista latino-americano, consoante se infere dos estudos desenvolvidos e retratados por relatórios conjuntos da CEPAL, IPEA e PNUD, indicando a existência de “grupos altamente vulneráveis”, dentre os quais se destacam as populações indígenas do Brasil, Peru, Equador, Guatemala e Bolívia, integrantes de um genuíno “fosso” (SEN e KLIKSBERG, 2010, p. 186) de discriminação, ocasionado pela cultura econômica dominante. Também a Organização Internacional do Trabalho – OIT, por meio da Convenção 107, com os acréscimos promovidos pelo documento 169, defende o direito ao desenvolvimento diferenciado dos povos indígenas, prevendo, inclusive o alber-gue de direitos à propriedade, aos recursos ambientais e à integridade cultural, dentre outros.

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Na tentativa de manter os interesses acima apontados, Roberto Gargarella retrata os recentes processos de reforma constitucional experimentados por países latino americanos, reconhecendo, entretanto, as limitações das mudanças implementadas:

En las últimas décadas, numerosos países latinoamericanos encararon procesos de reforma constitucional: Nicaragua en 1987, Brasil en 1988, Colombia en 1991, Paraguay en 1992, Perú en 1993, la Argentina en 1994, Venezuela en 1999, Ecuador en 2008  y Bolivia en 2009. Este movimiento incluye, además, a países que introdujeron en sus textos enmiendas constitucionales importantes, como Costa Rica, Chile, México y Venezuela. Una pregunta relevante atañe al valor y la significación de lo que hemos hecho los latinoamericanos en estos años en el plano constitucional. Más específicamente (y reconociendo la capacidad limitada que, en cualquier caso, puede tener una reforma constitucional para transformar la realidad), debemos preguntarnos: ¿hemos hecho lo mejor posible, dentro de los obvios límites en que nos movemos, para mejorar la calidad de nuestras instituciones y contribuir al logro de una sociedad más justa, igualitaria y democrática? Me parece que no. (GARGARELLA, 2011, p. 87)

Enfocando a tendência globalizante das constitucionalizações e respectivas reformas, na identificação de um ordenamento supranacional, destaca Rachel Sieder:

La globalización legal no es nueva. El derecho de los Estados individuales (el derecho nacional) y las prácticas legales de los grupos subordinados (el derecho consuetudinario o derecho comunitario) por muchos años han sido fenómenos globalmente constituidos. El constitucionalismo liberal de Latinoamérica se formó bajo los ideales y modelos políticos legales de Francia, los Estados Unidos y la Gran

Bretaña, los legados coloniales de España y Portugal, y las exigencias del desarrollo capitalista en el siglo XIX. Las normas y prácticas legales de las comunidades indígenas de toda la región fueron en parte moldeadas en respuesta a este contexto más amplio. Sin embargo, la fase actual de globalización es diferente sobre todo por la rapidez de los vínculos económicos y culturales a través de las fronteras nacionales, algo que está generando

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nuevos marcos legales de regulación y conectando distintas realidades a través del tiempo y del espacio a una rapidez nunca antes experimentada. Por ejemplo, los patrones globalizados de la producción y del consumo capitalista están generando nuevas formas de regulación legal, como aquellos vinculados con la integración económica regional. Al mismo tiempo –y en parte en respuesta a los impactos de las economías neoliberales del mercado en sus vidas- los actores subalternos en todo el mundo se han conectado cada vez más a las prácticas e ideas legales más allá de las fronteras de los Estados nacionales en los que viven. En respuesta a los impactos negativos del neoliberalismo en sus vidas, estos han construido alianzas y se han vuelto parte de redes transnacionales que a su vez han contribuido a la construcción de campos legales transnacionalizados. (SIEDER, p. 3-4)

Importante destacar, todavia, que a Constituição da Colômbia, seguida pelas Cartas da Bolívia e Equador, andando em viés oposto dos interesses da economia dominante e seu “culturalismo de mercado” (ARANTES, VAINER e MARICATO, 2010, p. 16), estabelecem verdadeiros Estados multiétnicos, recuperando o modelo cultural constatado antes da formação do organismo nacional.

No interregno valorativo entre culturas significativamente diferentes, estende-se interessante discussão sobre a formação de um marco kuhniano, visando compatibilizar uma sociedade essencialmente pluralista e de risco, sob a égide de um mesmo ordenamento jurídico, há muito desfocado do Princípio de Tolerância apregoado por Artur Kauffman (2004, p. 440) e ainda afeto às ultrapassadas diretrizes do positivismo jurídico kelseniano, incapaz de lidar com situações formalmente diferentes, mas essencialmente iguais em termos valorativos, segundo a tradição de um povo.

Ao se debruçar sobre o ordenamento jurídico brasileiro, como palco para tais discussões, passa-se a questionar a formulação/utilização da palavra “povo”: qual o elemento de ligação das pessoas que compõe o povo brasileiro, vez que em poucos países se constata tal diversidade de costumes imigrantes, em prejuízo dos aspectos verdadeiramente nativos dos que aqui habitam(avam)? Com efeito, a colonização por exploração, também na hipótese brasileira, fez por acentuar as diferenças existentes entre povos “civilizados” e “não civilizados” (POLANYI, 2000, p. 64), depreciando e segregando os atributos destes.

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Na manutenção e resgate das culturas verdadeiramente locais, as políticas públicas inicialmente encampadas pelos Poderes Legislativo e Executivo assumem destacado papel, visando promover a inclusão/integração dos dissidentes do sistema atualmente dominante, através de uma “discriminação compensatória” (DWORKIN, 2002, p. 343), seja no resguardo de vagas em estabelecimentos de ensino, na preservação de usos e costumes, ou no incentivo na manutenção da propriedade sobre a terra, dentre outras medidas.

Partindo-se da conformação do novo modelo de Estado Constitucional, Thiago Lima Breus, propõe o abandono à filosofia da intervenção mínima. Assim para que “o Estado possa influenciar a atuação da sociedade civil, é elaborada uma série de mecanismos jurídicos para que sua atuação ocorra a contento. Nesse contexto, o instrumento utilizado para a promoção dessa participação perante as relações sociais são as políticas públicas” (2007, p. 214).

4. os direitos socioambientais e o respeito à cultura latino-americana

A amplitude da expressão “meio ambiente”, assim entendida como conjunto de interações, naturais e artificiais, no entorno da vida humana, capaz de ofertar alterações ao modo de vida de nossa espécie, permite que se analise, de forma conjunta, esse “metabolismo” (VEIGA, 2007, p. 105) de todas as externalidades impostas pelo setor econômico. Assim, acredita-se que as imposições de novos padrões de vida, embasados no consumo desregrado, além dos prejuízos ao equi-líbrio ambiental, motivados pela incansável busca por matéria prima natural e o depósito inadequado de rejeitos de produção e consumo, é fonte motriz do crescente processo de aculturação que assola a América Latina, iniciado pela organização colonial dos saberes, linguagem e memória, intensificada nos séculos XVIII e XIX (LANDER, 2000, p. 16).

Acerca da “cultura”, enquanto ponto de investigação ambiental, vale destacar a peculiar formação dos povos latinos, identificados não apenas pelo mul- ticulturalismo, mas, principalmente, pela convivência multiétnica sob um mesmo ordenamento jurídico, de aspecto unitário, ainda preso à escala kelseniana de hierarquia de normas.

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Sob este prisma, como viabilizar a coexistência de culturas e povos distintos, sob a mesma rotulagem política? Proteger as crenças e cultura de povos indígenas, marginalizados pelo capitalismo de mercado? Seria o Direito o único/melhor instrumento para a promoção de tais intentos?

Com efeito, as respostas almejadas não encontram campo de aplicação em meio à cultura constitucional impingida à América Latina pelos povos colo-nizadores, vez que destoante dos anseios dos povos colonizados. Em que pese à cientificidade e utilidade do modelo constitucional eurocêntrico para o desenvolvimento da cultura jurídica dos povos do antigo continente, tem-se que tal modelo não é suficiente para lidar com questões próprias dos países em questão, onde a colonização (econômica, cultural e jurídica) importou em significativa perda de identidade dos povos.

A existência de um ordenamento jurídico, de base cogente, atuando como limi-tador da vontade privada é, com certeza, um dos principais métodos de controle social dos povos contemporâneos, mas ainda é processo avesso aos propósitos de “bem viver” (LANDER, 2000, p. 11) das nações indígenas, subjulgadas pelo modelo vigente. Em populações tradicionais “fechadas”, que desde tempos imemoriáveis habitam território considerado como próprio, praticam crenças e costumes desenvolvidos e cultivados por seus ancestrais, a imposição forçada de novas condutas, mercantilizadas e jurisdicionalizadas por uma organização social da qual não participaram ou almejam participar, é meio de violência impar, coibido pelos direitos humanos reconhecidos pela comunidade internacional, como a já mencionada Convenção 107 da OIT, alterada pelo Documento 169 do mesmo órgão, que apregoa o direito ao desenvolvimento diferenciado da população indígena.

Pelas razões expostas, deve-se investir em um socioambientalismo diferen-ciado para os povos latino-americanos, com políticas públicas capazes de proteger as populações tradicionais do processo de aculturação, favorecido pelo excesso de legalismo do modelo Estatal vigente, ainda que, para tanto, se retrai o consumo e o “desenvolvimento” econômico chancelado pelo modelo constitucional eurocêntrico – repita-se: impróprio para a realidade latino-americana.

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5. as políticas públicas ambientais de incentivo ao consumo consciente e responsabilidade pelo pós-consumo

Considerando o Direito como um dos possíveis instrumentos, aptos a via-bilizar a proteção dos valores culturais e ambientais propriamente ditos, produ-tivo debruçar esforços no estudo, desenvolvimento, e concretização de políticas públicas capazes de transformar a realidade social marcada por desigualdades econômicas e, ao mesmo tempo, promover o respeito às várias culturas dos povos latinos, protegendo-os dos riscos ambientais do consumo perdulário.

É neste sentido que se cultua a necessidade melhor integrar a população, em todas as suas classes econômicas e divisões culturais, acerca da crise ambiental que se transmuda no novo armagedom da humanidade. Paralelamente aos impasses criados à preservação da cultura dos povos analisados, é crescente a confirmação dos graves danos ambientais promovidos pela endemia social do “consumismo”.

Dentre os malefícios do consumo desregrado, fruto da incansável busca pela materialização da felicidade em produtos e serviços oferecidos pele mercado, encontra lugar de destaque o desequilíbrio ecológico provocado pelo acúmulo de resíduos do sistema de produção. Na referida fase de pós-consumo, faltam orientações à população consumidora e efetiva atuação dos Poder Executivo (principal agente implementador de políticas públicas), na informação e educação para a separação, processamento e destinação dos resíduos de consumo.

Assim, em áreas urbanas isoladas de grandes e pequenos centros, é possível se encontrar verdadeiras montanhas de lixo, irregularmente depositado por moradores inconscientes e, por vezes, pelo próprio Poder Público, responsável por dar a destinação final dos resíduos produzidos por seus cidadãos. Também falha o agente público ao não fiscalizar atividades empresariais de larga produção, assegurando que internalizem as externalidades ambientais geradas; ao não incentivar a coleta seletiva de materiais reciclados, investindo em cooperativas de catadores e outras entidades capazes de transformar resíduos em fonte de renda para parte da população.

Para a perfeita compreensão da matéria, que trata da atuação do Estado na condução das metas constitucionalmente estabelecidas, com enfoque naquelas

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voltadas para solucionar problemas do pós-consumo, se faz necessária alguma incursão sobre a delimitação do alcance da expressão “políticas públicas”, o que, de per se, é capaz de comprometer a perfeita utilização do instituto em tela para a promoção da inclusão/integração cultural.

Interessa aos operadores do direito delimitar o alcance jurídico da expressão em comento (políticas públicas): trata-se de norma positivada, exaurindo-se na edição de leis, pelo Legislativo, e certos atos normativos, por parte do Poder Executivo? Ou, se mais abrangente, mas não se confundindo com as ações de sua concretude, incorporaria o sentido de implementação das prescrições normativas (que nada mais são do que especificações das metas gerais asseguradas pelo texto constitucional), possibilitando, assim, a sua prática por integrantes da coletividade?

Conforme melhor se pontuará a seguir, identifica-se na segunda hipótese, uma possível compatibilização com a teoria constitucional de Menelich e Scotti (2011), onde os cidadãos (no mais amplo sentido da palavra), “reencantando-se” como direito, em uma “eticidade reflexiva”, ofereceriam força motriz para o cumprimento/criação de políticas públicas, através do impulso legitimatório do Poder Judiciário por meio do exercício do direito de ação, jurisdicionalizando suas ações afirmativas.

Esclarecido este contexto, passa-se a indagar sobre a possível adjetivação de tais políticas públicas (enquanto conceito jurídico) como “emancipatórias” (libertadoras; atribuidoras de independência), vez que se emanadas do corpo social dominante, tendem a universalizar os valores do modelo adotado (capitalista). Desta forma, acredita-se que “emancipar” não é, simplesmente, integrar o indivíduo ao sistema hegemônico imposto pelas artificiosas necessidades de consumo atuais, desprestigiando aspectos culturais de seus antepassados. Ainda que bem intencionada e corretamente aplicada, a norma/ação pode trazer resultados não pretendidos (“justiça procedimental imperfeita” – RAWLS, 2008, p. 104). Assegurar ao indígena, por exemplo, o ingresso ao sistema público de ensino, através de instituição de cotas, conforme já mencionado, bem como o acesso a tratamentos médicos e odontológicos, além, é claro, do acesso a bens de consumo, é, em certo sentido, contribuir para que se corrompam seus valores e crenças.

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Neste ambiente de insegurança, forjado pelos riscos de políticas públicas desastrosas, cumpre trazer a baila o novo papel do Poder Judiciário3, enquanto órgão atuante, engajado na promoção do bem estar social (em uma perspectiva de “senso comum emancipatório” – SANTOS, 2000, p. 109) e concretização dos valores eleitos pela Constituição, ainda que em desprestígio das pretensões da economia consumista.

Neste viés, enfocando as diferenças entre o modelo liberal e o Estado social interventor, destaca Osvaldo Canela Júnior (2011, p. 72):

No Estado liberal, o objetivo da teoria da separação dos poderes, consoante já assentado, era o de evitar a concentração do poder estatal, a fim de que os direitos fundamentais de primeira geração fossem assegurados. O Estado, na premissa liberal, é um elemento catalisador do poder, instrumento para a sua contenção, em estrito respeito à liberdade individual.

No Estado social, este objetivo permanece, mas a ele é acrescentado o desiderato de realização dos direitos fundamentais de segunda e outras gerações, com o propósito de se assegurar a igualdade substancial entre os cidadãos. De uma conduta meramente negativa, passiva, o Estado assume, também, uma conduta pró-ativa”.

Dentre as atuações Estatais (políticas públicas), capazes de contornar a crise ambiental4 oriunda do consumo perdulário e respectivo descarte inadequado de materiais aparentemente inservíveis, encontram-se as atividades que visam a educação ambiental de todos os consumidores em potencial, inseridos ou não na crescente onda de universalização de necessidades fomentada pela economia. Complementando a conhecida política dos “três erres” da sustentabilidade (reduzir, reutilizar e reciclar), deveria o Estado galgar esforços para incentivar a prática do “recusar”, ainda que contrária aos verdadeiros fatores reais poder lassalianos, inclusive com a proteção de seus cidadãos do superendividamento

3 Sobre a redefinição da atuação do Judiciário para os países da América Latina e Caribe, conveniente o estudo do Documento Técnico 319 do Banco Mundial.

4 Segundo índice do Living Planet Index (LPI), de 2006, ao avaliar os prejuízos ecológicos ocasionados pela população sobre a biosfera (avaliação conhecida como “pegada ecológica” – ecological footprint), constatou-se que o declínio da biodiversidade planetária, entre os anos de 1970-2003, foi de 30 %. (VEIGA, 2007, p. 86)

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(EFING, 2012, p. 679). Talvez residisse, neste ponto, a mais eficaz das políticas públicas para o consumo consciente.

6. judicialização das políticas públicas: um possível caminho para a descolonização emancipatória na defesa cultural e higidez ambiental

Historicamente falando, a partir da posição assumida pela Suprema Corte dos EUA, com o julgamento do caso Marbury vs. Madison, relatado pelo juiz Marshall, em 1803, já na formulação do Estado-Providência, o Judiciário alçou posição de destaque frente aos demais Poderes, o que levou à rediscussão do dogma separatista e seus freios e contrapesos. É chegada a era do judicial review, com o fito de proporcionar uma discussão institucional, enriquecendo a qualidade argumentativa da democracia (MENDES, 2011, p. 27-28).

Deixando de lado a fictícia noção de completude do ordenamento segundo o princípio kelseniano da clausura, o magistrado, no neo-constitucionalismo vigente, passa a se comportar como um “legislador implícito” (VIANNA, BURGOS e SALLES, 2007, p. 40), encontrando a melhor solução para o caso concreto, tal como se verifica nos países da common law. Ademais, a autorização para tanto (embora desnecessária, à luz do art. 5.º, inc. XXXV, da Constituição Federal brasileira de 1988), vem sendo instrumentalizada pelo legislador infraconstitucional, conforme se infere dos mecanismos de tutela específica, trazidos pelas últimas reformas processuais (Código de Processo Civil brasileiro, Arts. 461, § 5.º e 461-A, § 3.º, dentre outros).

Quando da análise de um hard case, versando sobre a inconstitucionalidade (por ação ou omissão) de políticas públicas implementadas pelo Legislativo e/ou Executivo – que reproduzem o fracasso no diálogo entre tais Poderes -, deve o Judiciário, mediante provocação (pelo próprio cidadão, inclusive), revisar a atuação dos outros dois agentes estatais (judicialização interna), procurando uma solução interpretativa que melhor se amolde aos ditames constitucionais5,

5 Nesse sentido, vale ressaltar o polêmico voto do Min. Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento conjunto das ADCs 29 e 30 e da ADI 4578, envolvendo a chamada “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar 115/2010), negou à qualidade de princípio à presunção de inocência assegurada pelo art. 5.º, inc. LVII, da CF/88.

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segundo apregoada densificação de princípios feita por Menelich de Carvalho Neto e Guilherme Scotti (2011, p. 63), de acordo com tendência judiciária brasileira timidamente iniciada na década de 1970 (VIANNA, BURGOS e SALLES, 2007, p. 39). Aliás, segundo Celso Campilongo (1997), é preciso deixar de lado conformações meramente legalistas do conceito de Justiça, voltando-se para a análise de princípios e valores que amparam a legislação escrita.

A respeito da importância dos princípios – em especial os constitucionais, capazes de assegurar os verdadeiros anseios de coletividades locais -, para o ordenamento jurídico de um determinado país, visando contornar certas limitações do Estado unitário, expõe Celso Ribeiro Bastos (BASTOS, 1999, p. 153/154):

Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isto só é possível na medida em que estes não objetivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo jurídico. Alcançam os princípios esta meta à proporção que perdem o seu caráter de precisão de conteúdo, isto é, conforme vão perdendo densidade semântica, eles ascendem a uma posição que lhes permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que uma norma estabelecedora de preceitos. Portanto, o que o princípio perde em carga normativa ganha como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas.

Diante do embate entre duas culturas divergentes que, em última ratio, representam a dignidade6 (art. 1.º, inc. III, da CF) de cada etnia contrastada, deve o Judiciário, por força dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, ofertar solução condigna às partes envolvidas, ainda que, para tanto, tenha de interferir na esfera de atuação de outro Poder. Ao assim proceder, não incorre no chamado “ativismo”7, agindo sim, politicamente, pelo judicial review, enquanto encarregado do zelo pela efetivação dos valores constitucionais, evitando-

6 “A dignidade da pessoa humana simboliza, desse modo, verdadeiro super-princípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido.” (PIOVESAN, 2006, p. 31).

7 Terminologia, por vezes, utilizada e sentido pejorativo pelos críticos do judicial review.

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se que os direitos fundamentais se transformem em “exclusões fundamentais” (CARVALHO NETO e SCOTTI, 2011, p. 43).

Embora a simetria do diálogo ainda se apresente como fórmula desconhe-cida, em casos onde as “virtudes passivas” (MENDES, 2011, p. 111) se mostrarem insatisfatórias, deverá o Poder Judiciário agir ativamente, no sentido de impor aos agentes de mercado, quando constatado abuso ou ilegalidade, a realização de publicidade negativa, com o escopo não apenas de alertar, mas de formar consumidores aptos a proceder escolhas próprias. Trata-se do “consumo consciente”, eleito pela ONU, no ano de 2000, como uma das oito metas para a preservação da vida na Terra.

Para tais intervenções, interessante citar os avanços do ordenamento jurídico brasileiro, com a edição da Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n.º 12.305/2010), que viabiliza o retorno de dejetos para as pessoas que integraram o ciclo de vida dos produtos consumidos pela população (Princípio da Logística Reversa), além de assegurar apoio aos catadores de material reciclável.

Ao controlar o acúmulo de resíduos poluentes e dimensionar as necessidades de consumo para que não subvertam o modo de vida dos destinatários finais de produtos e serviços, estaria o Judiciário atuando como agente residual de política pública, promovendo a defesa dos valores nacionais e étnicos, consoante orientação daquilo que vem se denominando de “Novo Constitucionalismo Latino-Americano” (GARGARELLA, 2011).

Um caso de possível desconformidade (acredita-se, não maliciosa) entre o bem estar coletivo e os resultados atingidos por política pública traçada pelo Executivo, pode ser visualizado no município8 de Maringá-PR, o qual pretendia a implantação de usina de incineração de resíduos sólidos urbanos. Em 15 de maio de 2012, após inúmeras manifestações de instituições de ensino superior e outras organizações civis locais (Comissão do Meio Ambiente da OAB/Maringá e Congregação Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB; cooperativas de catadores de material reciclável; dentre outros), a deliberação do Poder Executivo, dispondo sobre a incineração dos resíduos sólidos urbanos, foi afastada, em sessão da

8 Menor ente político autônomo, integrante do modelo federativo brasileiro.

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Câmara dos Vereadores, substituindo tal proposta por projeto de lei que cria Programa de Coleta Seletiva com Inclusão Social e Econômica dos Catadores de Material Reciclável – Pró-Catador.

Dentre os problemas apresentados pela iniciativa de política pública muni-cipal em comento (implantação do sistema de incineração como solução para os resíduos sólidos urbanos), aqui utilizada como ilustração, vale destacar: a) falta de assistência aos catadores de material reciclado; b) a despreocupação com a formação do consumo consciente (seja na aquisição ou no descarte dos resíduos); c) toxidade dos resíduos oriundos da incineração. Tem-se, pois, um claro exemplo de política pública exercida em descompasso com ideário protecionista encampado por acordos e documentos internacionais que, se implantada, provavelmente, traria inúmeros prejuízos de fundo socioambiental.

Na hipótese vertente, aqui utilizada apenas como um parâmetro para a ar-gumentação, indaga-se: não fosse a aprovação de projeto de lei pelo Legislativo, que dentre as consequências impede a iniciativa do Executivo de promover a incineração dos resíduos sólidos urbanos, não poderia o Judiciário, devidamente motivado, intervir na política pública formulada pelo Executivo municipal (a qual deliberava pela incineração do lixo), indicando medidas mais adequadas para a disposição final dos resíduos? Como substrato de sua decisão, por mais adequadas à formação do consumo consciente, não poderia o Judiciário deliberar por medidas e prazos trazidos por normativas e documentos internacionais?

A problemática reside, assim, em se saber dos limites da intervenção do Ju-diciário9 nas políticas públicas formuladas pelo Executivo, comumente criticadas por suposta agressão ao Princípio da Isonomia entre os Poderes (WALDRON, 2006) e em razão do exercício de possível atividade criadora do Judiciário (no sentido de inovação ao ordenamento, o que, por vezes, lhe confere o equivocado adjetivo de “ativista”).

Eis o impasse vivenciado pelo Judiciário brasileiro, corporificado em seus agentes de decisão (juízes, desembargadores e ministros dos tribunais de cúpula), impedidos do exercício de “virtudes passivas” (MENDES, 2011, p. 111)

9 Sobre a redefinição da atuação do Judiciário para os países da América Latina e Caribe, conveniente o estudo do Documento Técnico 319 do Banco Mundial.

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quando presente o risco de perecimento de um interesse por ausência de norma regulamentadora e, ao mesmo tempo, tolhidos na sua liberdade de julgar por equidade.

Vale ressaltar que a orientação buscada é no sentido de melhor conformação da política pública ao texto constitucional – sem perder a ética esperada de todos os órgãos da administração pública (EFING, 2012, p. 657) -, em casos de omissões a serem supridas pelo judicial review (análise do papel neo-constitucinal do magistrado enquanto “legislador implícito” - VIANNA, BURGOS e SALLES, 2007, p. 40), como mecanismo de enriquecimento da qualidade argumentativa da democracia (MENDES, 2011, p. 27-28). Forrando-se ao conceito pejorativo de “ativismo” (EFING, 2012, p. 656) a intervenção do Judiciário para promover a salvaguarda dos interesses eleitos pela Constituição não seria uma “opção”, mas verdadeiro ato “vinculado” (CANELA JÚNIOR, 2011, p. 77), na defesa da cultura, meio ambiente e direitos do consumidor latino-americano.

7. conclusões

Considerando a forma pela qual se deu a ocupação do continente ameri-cano por povos eurocêntricos – colonização de exploração –, e a continuidade do imperialismo implantado pelos colonizadores, até os tempos atuais, ordenamentos de vários países latino americanos voltam seus interesses para a criação de mecanismos jurídicos capazes de assegurar a manutenção dos vários representantes culturais daquela nação.

Sob este pano de fundo, constatou-se a impropriedade do paradigma kelseniano, pautado na simples hierarquia das normas jurídicas, com substrato máximo advindo do texto constitucional vigente. Trata-se do fracasso do Estado unitário tal como projetado no limiar do século XX, e que tantas contribuições ofereceu ao sistema capitalista europeu, fortalecido pela Revolução Industrial e a necessidade de expansão do comércio.

Na retomada das funções desempenhadas pelo Estado, galga espaço o papel intervencionista, como meio de se assegurarem as diferenças, por meio da eliminação ou mesmo diminuição das desigualdades em meio aos povos latino americanos, ao menos no que se refere ao critério de consumo. O cumprimento

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espontâneo, pelo Estado, das metas previstas por sua Constituição, é dado o nome de política pública, sendo tais atividades predominantemente executadas pelo Poder Executivo, por meio de programas governamentais e ações articuladas, colimando o bem comum.

Em caráter residual, verifica-se a possibilidade destas políticas públicas serem desempenhadas pelo Poder Judiciário, quando, para a concretização dos valores eleitos pelo documento de regência, passa a intervir na esfera de atuação dos demais Poderes. Trata-se do fenômeno da judicialização, de aceitação corrente em meio à doutrina constitucionalista contemporânea.

Dentro da importante missão assumida (garantia do cumprimento do con-teúdo valorativo da Constituição), o Judiciário pode ofertar significativo auxílio na promoção do multiculturalismo que marca as sociedades latino americanas, desde que, no cumprimento de tal mister, se desapegue das aplicações literais de textos legislativos, voltando seus interesses para os valores constitucionalmente eleitos, e os feitos da decisão em meio ao verdadeiro objeto de tutela da norma: a sociedade.

Assim, com a aplicação dos valores éticos, reconhecendo-se o multicultu-ralismo e efetivamente tratando desigualmente os desiguais (visando realizar a isonomia material), poderão ser alcançados os objetivos de desenvolvimento sustentável dos países latino-americanos, onde os direitos socioambientais sejam preservados e fomentada a prática do consumo consciente e o respeito ao meio ambiente, com o correto tratamento dado ao pós-consumo. Para tanto, o ponto de partida é o enfrentamento corajoso desta realidade.

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legitimidade ativa na ação popular ambiental: uma análise crítica do conceito de cidadão sob a ótica

do acesso à justiça

Ângela Issa Haonat1

Vinicius Pinheiro Marques2

Resumo

O art. 5°, LXXIII, da Constituição Federal de 1988, assegura que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao meio ambiente. Por seu turno, o art. 1°, § 3°, da Lei n° 4.717/65 estabelece que a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou com documento que a ele corresponda. Diante desta constatação, como problema de pesquisa foi analisada a lacuna imprópria contida no art. 1°, § 3°, da Lei n° 4.717/65, tendo como objetivo demonstrar a inadequação desta previsão legal ante a consagração do direito ao meio ambiente como um direito fundamental e intergeracional, apontando-se como conclusão final a sustentação de uma interpretação de que o conceito de cidadão deve ser o mais amplo possível, não estando subordinado à condição eleitoral da pessoa a fim de que se possa dar efetividade ao direito tutelado. O método utilizado foi o dedutivo, caracterizando-se a pesquisa como qualitativa e os dados obtidos foram coletados através de livros, artigos e legislações dispostos em meio físico e eletrônico.

Palavras-chave

Ação popular; Legitimidade ativa; Cidadão; Acesso à justiça.

1 Doutora em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SÃO PAULO). Professora do Curso de Direito e da Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado Profissional) em Prestação Jurisdicional e Direito Humanos da Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: [email protected].

2 Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MINAS). Professor do Curso de Direito da Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: [email protected]

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Abstract

The art. 5, LXXIII, from the Federal Constitution of 1988 ensures that any citizen has standings to propose popular claim seeking to annul an injurious act to the environment. In turn, the art. 1°, §3°, of Law n° 4.717/65 establishes that proof of citizenship for entry into judgment will be made with the electoral title, or document that matches to it. Given this finding, as the research problem was analyzed the improper gap contained in art. 1°, § 3°, of Law n° 4.717/65, aiming to demonstrate the inadequacy of this legal provision before the consecration of the right to the environment as a fundamental right and intergenerational. It was pointed out as the final conclusion to support an interpretation that the concept of citizen should be as broad as possible, not being subject to the electoral condition of that person so that it can give effect to the protected right. The method used was deductive, characterizing the research as and the data were collected through books, articles and laws arranged in physical and electronic means.

Key words

Popular claim; Active legitimacy; Citizen; Access to justice.

1. introdução

A temática ambiental aparece hoje como um dos temas de maior relevância deste século, estando incorporada às preocupações gerais da opinião pública, na medida em que se torna cada vez mais evidente que o crescimento econômico, a garantia da qualidade de vida às futuras gerações e, sobretudo, a sobrevivência da espécie humana não podem ser pensados sem a perspectiva de um meio ambiente equilibrado.

A ação popular no ordenamento jurídico pátrio atualmente é regulamen-tada pela Lei n° 4.717, de 29 de junho de 1965, conferindo legitimidade a todo cidadão para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio, considerando este como sendo os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.

A Constituição Federal de 1988, especificadamente no art. 5°, LXXIII, ampliou o objeto de tutela da ação popular acrescentando a tutela ambiental,

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uma vez que, por força do art. 225 da mesma Carta Magna, ficou registrado que é dever de todos (poder público e coletividade) preservar e defender o meio ambiente.

Pode-se afirmar, portanto, que a ação popular ambiental qualifica-se como ins-trumento processual de resgate às garantias constitucionais inerentes à sociedade e como verdadeiro exercício de cidadania.

Cappelletti e Garth (1988) afirmam que a expressão acesso à justiça é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico (este entendido como o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado). Primeiro, o sistema deve igualmente ser acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individualmente e socialmente justos.

Sem dúvida, uma premissa básica é de que a justiça social, tal como desejada por nossa sociedade moderna, pressupõe o acesso efetivo. Assim, o acesso à justiça não é apenas um direito social fundamental, crescente e reconhecido; ele é, necessariamente, o ponto central da moderna processualística.

Diante do exposto, pode-se observar que, apesar da citada ampliação constitucional do objeto de tutela da ação popular para abarcar os interesses ambientais, não houve uma modificação da norma contida no art. 1°, § 3°, da Lei n° 4.717/65, pois esta limita o acesso à justiça na medida em que restringe o conceito de cidadão ao somente conferir legitimidade ativa àquele que estiver inscrito e em dia com as obrigações eleitorais. Tal restrição, como será abordado nos capítulos seguintes, não merece acolhimento, pois ela se demonstra desconexa com os princípios do ordenamento jurídico, necessitando de um esforço hermenêutico para ampliar o rol dos legitimados ativos da ação popular ambiental com o intuito de concretizar o direito fundamental a um ambiente saudável e equilibrado.

2. meio ambiente como direito fundamental

A Constituição da República Federativa do Brasil, quanto à matéria am-biental, assegura no seu art. 225, caput, que

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Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Segundo entendimento doutrinário pátrio (SILVA, 2007a; BARROSO, 1992; FIORILLO, 2009a; FIORILO, RODRIGUES, 1999; FREITAS, 2002), a carta magna brasileira ostenta um dos mais completos e avançados arcabouços normativos de tutela ambiental composto pelos fundamentais art. 225 e art. 170, inciso VI, as disposições relativas à competência concorrente e comum em matéria ambiental (arts. 24, VI e 23, VI, VII).

O conceito operacional de meio ambiente é fornecido pela Lei n° 6.938/81 que, no seu art. 3°, I, preceitua que o meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

Oliveira e Guimarães (2004) asseveram que a questão ambiental é algo que diz respeito à própria vida e a todos os elementos que são indispensáveis para a sua boa qualidade, sejam eles naturais, culturais ou artificiais.

Para Alonso Júnior (2006), o conceito disposto pela referida lei é amplo, pois engloba os recursos naturais (ar, solo, água, fauna e flora) e artificiais (edificações e equipamentos produzidos pelo homem, como praças, ruas, parques etc.), bem como os patrimônios culturais (histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico). O mesmo entendimento tem Machado (2006), o qual destaca que o legislador adotou um conceito amplo e relacional de meio ambiente, o que, em consequência, dá ao direito ambiental brasileiro um campo de aplicação mais extenso que aquele de outros países.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está intimamente relacionado à dignidade da pessoa humana, este enquanto fundamento do Estado Democrático de Direito, e de sua efetividade dependerá a sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações.

(...) o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental, voltado a assegurar a vida e a dignidade da

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pessoa humana, preservando a saúde, a segurança, o sossego, o bem-estar da coletividade, entre outros bens e valores, sem os quais não se pode falar em vida humana digna. (YOSHIDA, 2009, p. 74)

Ao se falar sobre o meio ambiente, não se pode deixar de mencionar o princí-pio n° 1, da Declaração do Meio Ambiente, adotado na Conferência da ONU, em 1972 na cidade de Estocolmo, que elevou o meio ambiente à qualidade de direito fundamental do ser humano. Segundo Milaré (1999), houve a consagração do Princípio da Participação, pois, de acordo com este princípio, a resolução dos problemas ambientais deve ser buscada por meio da integração da sociedade com o Estado, por meio da participação dos diversos grupos sociais na formulação e execução da política ambiental.

Importante observar que, considerando a importância do tema, a constituição brasileira, ao mesmo tempo que assegurou o direito fundamental de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impôs, de forma obrigatória, a co-responsabilidade do Poder Público e da coletividade de protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, dever este fundado na solidariedade e na equidade intergeracionais (LEITE, AYALA, 2013).

3. ação popular ambiental

O crescimento dos danos ambientais, sobretudo por não se saber conjugar desenvolvimento econômico e preservação, faz a sociedade emergir como grande protagonista na possibilidade de uma efetiva tutela do meio ambiente. Assim, Guimarães (2009) afirma que cabe à população buscar a proteção jurisdicional dos direitos difusos de ordem ambiental diante de dano ou ameaça de lesão ao meio ambiente, enquanto ao Estado incumbe proporcionar os instrumentos adequados para a atuação dos cidadãos nesta seara, propiciando o efetivo acesso à justiça em matéria ambiental.

O acesso à justiça em matéria ambiental é objeto de relevante discussão, diante das peculiaridades inerentes aos conflitos ambientais, que incidem sobre interesses e direitos de natureza difusa, o que traz dificuldades no que se refere à sua adequada organização, representação e defesa.

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Para Oliveira e Guimarães (2004) fica claro que todos, e não apenas o Estado, têm a incumbência de preservar o meio ambiente. O Estado deve fornecer ao cidadão os meios necessários à tutela do bem. O cidadão, por sua vez, deve, diante de tais meios, participar de todas as ações que se destinam à preservação do meio ambiente saudável, exercendo assim a sua cidadania em matéria ambiental.

Silva (2004) relata que o meio ambiente, hoje, mais do que nunca, precisa ser efetivamente tutelado por meio de instrumentos processuais adequados (mecanismos céleres e seguros à precaução e/ou prevenção ambiental). Essa efetividade processual dimana de garantia constitucional de aplicação imediata, qual seja, o preceito inserto no art. 5°, inciso XXXV, da Carta Magna o qual retrata o acesso à ordem jurídica democrática, que, aliás, deve ser amplo e efetivo.

3.1. previsão da ação popular nas constituições bra-sileiras

Segundo Antunes (2001), a ação popular é um dos mais tradicionais meios de defesa dos interesses difusos do Direito brasileiro. A Constituição de 1934 estabeleceu, pela primeira vez, a garantia constitucional da ação popular no ordenamento jurídico brasileiro, nos seguintes termos: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios” (art.113, item 38, CF/34).

Durante a ditadura de Getúlio Vargas, a ação popular foi suprimida na carta outorgada em 1937. Mancuso (2008), ao analisar o histórico da ação popular, notifica o desaparecimento da mesma durante os regimes fascistas de vários estados. Passado o período ditatorial, a ação popular constitucional foi restaurada: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista” (art.141, item 38, CF/46). Percebe-se que houve a ampliação do objeto da ação popular considerando que, durante aquele período, avançou no Brasil a descentralização estatal, através da criação intensificada de órgãos da administração indireta, principalmente devido ao maior intervencionismo político do estado.

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Na constituição de 1967, a ação popular é mantida, em termos similares, conforme se segue: “Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas” (art. 150, §31, CF/67). A emenda Constitucional n°1, de 1969, por seu turno, reafirmou na íntegra o texto constitucional de 1967.

Embora se constate que os dispositivos constitucionais supracitados apontassem para uma defesa dos direitos ou interesses difusos, Mancuso (1994) destaca que estes não eram usados para certos fins, por exemplo, para a tutela dos bens ambientais.

Não obstante, Moreira (1977) leciona que foi a evolução doutrinária que, de fato, propiciou a melhor caracterização e sedimentação do conceito de interesses ou direitos difusos e, por conseguinte, assinalou com a possibilidade de utilização destes na sede da ação popular.

3.2. conceito e natureza jurídica

Temer (1996), ao discorrer sobre o conceito de ação popular, analisa que este é o instrumento que deita suas raízes no direito romano, pelo qual o povo é chamado a exercer um poder de controle da atividade pública. “Eam popularem action emdicimus, quae suem ius populi tueter. Eis a fonte romana da ação popular: a ação de que se servia o povo para defender os direitos do próprio povo” (TEMER, 1996, p. 197). Com base nessa matiz é que se pode evidenciar que esta ação é a “forma de participação comunitária dirigida contra atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o estado participe.” (GARCIA, 1989, p. 14).

Se se considerar a teoria da força normativa da constituição (HESSE, 1991), sobretudo no que tange à característica dela ser uma ordem geral objetiva do complexo de relações de vida e de ser uma força ativa de tarefas a serem realizadas, é que se deve destacar conceitos de ação popular com contornos constitucionais, tal como enunciados abaixo:

“(...) remédio constitucional nascido da necessidade de se melhorar a defesa do interesse público e da moral administrativa, inspirando-se na intenção de fazer de todo o cidadão um fiscal do bem comum” (FERREIRA FILHO, 1989, P. 277).

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“(...) é o meio constitucional posta à disposição de qualquer cida-dão para obter a invalidação de atos ou contratos administra- tivos – ou a estes comparados – ilegais e lesivos do patrimônio federal, estadual e municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiro público” (MEIRELLES, 1999, p. 113-114).

Por tudo que foi exposto, pode-se concluir que a ação popular constitucional brasileira é um instituto processual civil, outorgado a qualquer cidadão, como garantia político-constitucional (ou remédio constitucional), para a defesa do interesse da coletividade, mediante a provocação do controle jurisdicional administrativo corretivo de atos lesivos do patrimônio público, da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico cultural (SILVA, 2007b).

Quanto à ação popular ambiental brasileira, Sirvinskas (2011) afirma que a ação popular ambiental tem natureza jurídica constitucional, onde o titular da ação é o cidadão. Este propõe a ação, não com fundamento em interesse individual, mas em interesse público relacionado ao meio ambiente. Não há, assim, coincidência entre o titular do bem lesado (coletividade) e o sujeito da ação (autor popular).

Ademais, Silva (2009) evidencia ainda que o objeto imediato da demanda popular consiste na anulação do ato lesivo ao meio ambiente e na condenação dos responsáveis pelo ato, incluindo os seus destinatários, ao pagamento de perdas e danos ou, alternativamente ou cumulativamente, a repor a situação no status quo ante, ou seja, a recuperar o meio ambiente degradado. Ao passo que o objeto mediato constitui-se na proteção do meio ambiente, o que envolve a ideia de conservação, recuperação, preservação da sua qualidade.

Constitui ela um direito público subjetivo, abstrato e autônomo, como qualquer ação judicial. Mas inclui-se entre os direitos políticos do cidadão brasileiro. Difere ainda das ações judiciais comuns, porque seu titular não defende interesse exclusivamente seu, mas interesse da coletividade em ter uma administração fundada nos princípios da legalidade e da probidade. Revela-se assim como uma garantia constitucional e um remédio destinado a provocar o controle da legalidade e da moralidade dos atos do poder público, e de entidades em que o interesse coletivo se faça presente. (SILVA, 2007b)

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Costa (2007) conclui que a particularidade da ação popular reside justamen- te no seu caráter democrático, já que a sua legitimidade ativa é conferida a qualquer cidadão. E mais: o constituinte de 1988 tratou de facilitar o acesso conferindo gratuidade a esse poderoso instrumento, ou seja, o autor popular é isento do ônus da sucumbência e das despesas judiciais (custas, taxas judiciárias, despesas com determinados atos processuais).

Fica evidenciado, desta forma, o interesse constitucional de criar um ins-trumento com o qual a coletividade, na figura do cidadão, pudesse exercer, na prática, o seu dever de proteção ambiental (determinado pelo caput do art. 225) e, mais ainda, de fiscalização do Poder Público, já que muitas vezes é o próprio Estado que efetiva a degradação do meio ambiente, quando o mesmo for, por sua ação ou omissão, o responsável pelo dano ambiental. (BRITO, 2007).

4. a legitimidade ativa na ação popular ambiental

Na seara processual, a legitimidade ativa para propositura da ação popular ambiental pode ser classificada como ordinária na medida em que todo o ato ilegal ao meio ambiente praticado pela Administração Pública, que fundamenta a ação popular, tipifica o autor como vítima, em razão da ilegalidade ou dano ambiental (presente e futuro). Consequentemente, “quando o cidadão promove a ação popular assim o faz na condição de ‘co-titular’ do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado que foi lesado por ato da Administração Pública e assim age em nome próprio para tutelar interesse próprio” (PAULA, 2009, p. 228-229).

O referido autor sustenta sua posição argumentando que não se pode qualificar a legitimidade ativa como ordinária ou extraordinária a partir dos efeitos subjetivos da sentença ou da extensão subjetiva da coisa julgada. Posto que, se assim prosseguir nesse método de análise, a legitimidade somente seria averiguada a partir do trânsito em julgado da sentença, para depois concluir se as partes eram ou não legítimas para integrar a relação processual.

Por oportuno, é relevante destacar a posição de Nery Junior (2001) que entende neste caso ser uma espécie de legitimação autônoma para condução do processo, pois é “totalmente independente do direito material discutido em juízo: como os direitos difusos e coletivos não tem titulares determinados, a lei escolhe alguém ou algumas entidades para que os defendam em juízo” (2001, p. 569).

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O exercício da ação popular está deferido à condição de cidadania, que de acordo com o art. 1°, §3°, da Lei n° 4.717/65, possui uma dimensão minimalista, eis que ela será comprovada com o título eleitoral ou com documento equivalente.

Castro (2006) tenta justificar a restrição de legitimados ativos na medida em que tal dispositivo revela especial preocupação em dotar o eleitor de instrumento de ação, num efetivo reconhecimento de que aquele que detém um cadastro eleitoral possui, pelo menos, duas características essenciais: capacidade de fato para exercer os atos da vida política e consciência social da importância de seu cadastro como eleitor. Assim, “a possibilidade do cidadão-eleitor ingressar com a ação popular, e só ele, é uma espécie de prêmio à cidadania”. (CASTRO, 2006, p. 193)

Com efeito, Gonçalves (2011) sustenta a importância de se notar que ao tratar a ação popular ambiental como um direito político e, portanto, restrito aos eleitores, não significa retirar dos demais brasileiros a condição de titulares do direito ambiental, mas tão somente interpretar o que, inegavelmente, disse o constituinte, que se pretendesse dar à mesma uma legitimidade universal, não teria utilizado o termo cidadão, mas outro vocábulo, como “todos”.

Não merece prosperar a linha de argumentação sustentada pelo citado autor e demais que com ele corrobora. O texto do art. 5, LXXIII, é categórico ao afir-mar que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular” (destaque nosso), não podendo uma norma infraconstitucional da Lei n° 4.717/65 contra-riar este direito fundamental.

Nesse sentido, Almeida (2003, p.403) é contundente ao afirmar que a ação popular ambiental é “garantia constitucional fundamental, não é compatível, na espécie, qualquer interpretação restritiva”.

Além deste fundamento de ordem constitucional pela não-recepção do art. 1°, § 3°, da Lei n° 4.717/65, há de se considerar que o conceito de cidadão ou cidadania evoluiu ao longo da história, a compreensão atual de que a participação popular é importante instrumento de transformação da sociedade e fortalecimento das instituições democráticas, e que se faz necessário um esforço hermenêutico para propiciar uma leitura adequada da norma que dispõe sobre a legitimidade ad causam da ação popular ambiental, não se limitando apenas a uma discussão jurídica dogmática, tudo conforme se demonstrará nos subcapítulos a seguir.

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4.1. evolução do conceito de cidadão

Segundo Soares (2011), a Antiguidade desconhecia direitos individuais, pelo que o conceito de cidadania, construído na perspectiva greco-romana, vê-se demarcado por privilégios usufruídos pelas castas sociais mais elevadas em detrimento das castas inferiores, condenadas às funções subalternas em sociedade organicista.

No entanto, a qualidade de cidadão, principalmente de Roma, como titular de exigências e prestações do estado e de participação da vida política, deve ser reconhecida como legado para a cidadania moderna graças à sagacidade do espírito jurídico dos romanos (JELLINEK, 1954, p. 236).

Ao relatar sobre o período medievo, Soares (2011) afirma que o tema essencial da teoria do medieval é a dicotomia estabelecida na relação do Estado, enquanto poder temporal, com a Igreja, enquanto poder espiritual. Nesse sentido, o “Estado era visto, antes das concepções escolásticas, como mal necessário derivado da queda do homem, que apenas lograria sua proteção e salvação pela Igreja, não mais se sujeitando à pólis” (SOARES, 2011, p. 169). Complementan- do, importante destacar as palavras de Arendt (1987, p. 30) ao esclarecer que a “vitaactiva e o biospolitikos direcionaram-se para a vida de contemplação cristã”, representando, dessa forma, o que Duby (1992) denominou de retração do poder público na primeira fase medieval.

Consoante os ensinamentos de Soares (2011), percebe-se que o sentido histórico em que se matizou o conceito de cidadania deriva das conquistas socioeconômicas e políticas dos movimentos libertários. Assim, o referido autor destaca que na cidadania do Estado liberal ou clássica, o papel de cidadão condiciona-se à forma individualista e instrumental, onde os indivíduos se apresentam como pessoas privadas, externas ao estado, e seus interesses são pré-políticos. Já na cidadania social, prevalece uma concepção comunitarista. “Há uma cidadania ativa e pública, e não mais formal ou passiva” (SOARES, 2011, p. 178), onde os indivíduos interagem-se numa comunidade política.

Na concepção moderna de estado de direito, a concretização dos direitos fun-damentais permite aos titulares exercer plena, efetiva e socialmente a cidadania ativa do estado, ao satisfazer uma parte decisiva da função de integração,

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organização e direção jurídica da Constituição. Nesse sentido, Soares (2011, p. 184) aduz que “A cidadania ativa no estado democrático de direito pressupõe um cidadão político, capaz de influir concretamente na transformação da sociedade e apto a fazer valer suas reivindicações perante os governantes”.

Desta forma, parece que assiste razão à Fiorillo (2009) ao argumentar que a exigência do documento descrito no art. 1°, § 3°, da Lei n° 4.717/65, hipertrofiada por uma doutrina interessada em inviabilizar o efetivo acesso à justiça durante algumas décadas, não se coaduna evidentemente com o critério definido para a ação popular ambiental constitucional estabelecido na Constituição federal de 1988, na medida em que seus bens ambientais – vinculados materialmenteà vida da pessoa humana e causa de pedir de toda e qualquer ação ambiental – são de uso comum do povo brasileiro.

Nesta linha de entendimento, interessante a observação de Canotilho (2000) ao perceber que o direito a um procedimento justo implica nos dias de hoje a existência de procedimentos coletivos, possibilitadores da intervenção coletiva dos cidadãos na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais de grande relevância para a existência coletiva (exemplo: ‘procedimentos de massas’ para a defesa do ambiente, da saúde e do patrimônio cultural dos consumidores).

Desta forma, verifica-se quer a participação popular no sistema democrático ultrapassa a noção do sistema representativo tradicional, onde a cidadania se restringia à participação do eleitor na escolha de seu representante no Poder legislativo e do Poder Executivo. Ghellere (2010) verifica que ao cidadão é dado o poder de participação também na esfera do Judiciário, ou seja, através das chamadas ações coletivas e ainda através de qualquer tipo de ação de conhecimento que busque a efetivação de seus direitos fundamentais, o popular é chamado a buscar e exigir a proteção dos direitos transindividuais que estão sendo ameaçados ou danificados.

4.2. participação popular como instrumento de trans-formação

Gorender (1997) analisa que o último terço do século XX é marcado por transformações de grande importância no sistema capitalista mundial. Essa

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mudança de paradigma não debilitou a essência do modo de produção capitalista, na verdade, reforçou-a, uma vez que acentuou sua característica mundial. Nesse sentido, as mudanças sociais oriundas da globalização da economia anularam importantes conquistas das classes subalternas em sua secular luta pela conquista de direitos. Segundo Bobbio (2004, p. 229):

A luta pelos direitos teve como primeiro adversário o poder religioso; depois, o poder político; e por fim, o poder econômico. Hoje as ameaças à vida, à liberdade e à segurança podem vir do poder sempre maior que esta em condição de usá-las. Entramos na era que é chamada de pós-moderna e é caracterizada pelo enorme progresso, vertiginoso e irresistível, da transformação tecnológica e, consequentemente também tecnocrática do mundo.

Adentrando o século XXI, Miranda, Castilho, Cardoso (2009) identificam que os movimentos sociais e a participação popular se reconfiguram em face da globalização, inclusive por meio das Organizações Não-Governamentais (ONG’s). Estas, enquanto associações de cidadãos que se organiza na defesa de direitos, se apresentam como nova forma de resistência.

A reversão dos estragos dos anos 1990, que foram econômicos, políticos, sociais e culturais, portanto, é possível, mas vai exigir muita coragem e vontade política dos novos dirigentes do país, e muita mobilização popular, para além do voto. (BEHRING, 2003, p. 287)

Todos os movimentos populares contribuem para despertar a consciência dos problemas vivenciados e promovem a participação dos cidadãos com capacidade de continuar a organizar-se em movimentos sociais, de forma a solidificar e a aumentar o rol dos direitos sociais e políticos, por meio de um processo constante e contínuo.

Dizemos que a participação é conquistada para significar que é um processo, no sentido legítimo do termo: infindável, em constante vir-a-ser, sempre se fazendo. Assim, participação é em essência autopromoção e existe enquanto conquista processual. Não existe participação suficiente, nem acabada. Participação que se imagina completa, nisto mesmo começa a regredir. (DEMO, 1993, p. 18)

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O processo de transformação social, onde os cidadãos passam de uma situação passiva para uma situação ativa e reivindicatória, é decorrente do contexto socioeconômico e histórico de cada sociedade. Quem participa das lutas, é o homem, o homem real; não é a “História” que utiliza o homem como meio para realizar os seus fins, pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos. (MARX; ENGELS; 2003)

A implementação do Direito Ambiental ocorre diretamente do conjunto de instrumentos preventivos e sancionatórios e, de forma indireta, pelos princípios e objetivos que norteiam esse ramo do Direito. Como aponta Fiorillo (2009a), os princípios ambientais constituem pedras basilares dos sistema político-jurídicos dos Estados civilizados.

A compreensão dos princípios ambientais como parte da implementação do Direito Ambiental é antes de tudo, percebê-los como parte do direito à vida e da dignidade humana. Como observa Serrano (2007, p. 21) acerca do problema ambiental “alfin y al cabo la problemática ambiental deriva de la relación entre la libertad de contaminar (para prosperar) y el derecho de sobrevivir (y de hacerlo dentro de unos determinados estándares de calidad de vida)”.

Como indica Machado (2006, 88-89.) o princípio da participação é “uma das notas características da segunda metade do século XX”. De modo que ao visar a conservação do meio ambiente “insere-se num quadro mais amplo da participação diante dos interesses difusos e coletivos da sociedade”. Cita o autor, como exemplo da evolução conceitual da participação popular, que não mais se restringe ao voto popular em escrutínio secreto, a concepção de participação adotada pela Constituição da Finlândia

Art. 14 a: Cada um é responsável pela natureza, pela biodiversidade e pelo ambiente. Os Poderes Públicos devem garantir a cada um o direito a um meio ambiente sadio, assim como a possibilidade de influenciar na tomada de decisões sobre as questões relativas a seu meio ambiente.

Do ponto de vista assumido por Mateo (2003), justifica-se o princípio da participação, pelo fato do meio ambiente não ser propriedade da Administração Pública, constituindo-se essa, apenas a sua guardiã. Sobre a importância da

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participação popular, importante registrar a contribuição de Mirra (1996, p. 57) ao dispor de três formas:

“Em primeiro lugar, pela participação nos processos de criação do Direito Ambiental, com a iniciativa popular nos procedimentos legislativos [...] a realização de referendos sobre leis [...] e a atuação de representantes da sociedade civil em órgãos colegiados dotados de poderes normativos [...] Em segundo lugar, a sociedade pode atuar diretamente na defesa do meio ambiente participando na formulação e na execução de políticas ambientais, por intermédio da atuação de representantes da sociedade civil em órgãos colegiados responsáveis pela formulação de diretrizes e pelo acompanhamento da execução de políticas públicas; por ocasião da discussão de estudos de impacto ambiental em audiências públicas [...] e nas hipóteses de realização de plebiscitos E, finalmente, o terceiro mecanismo de participação popular direta na proteção do meio ambiente é por intermédio do Poder Judiciário, com a utilização de instrumentos processuais que permitem a obtenção da prestação jurisdicional na área ambiental”

Por tudo o que foi exposto, há de se concluir que a participação popular é um instrumento de transformação social, mas que o princípio da participação do Direito Ambiental passa pelo envolvimento do Poder Público e da sociedade numa ação conjunta.

4.3. para além da dogmática jurídica

Como bem salienta Ferraz Júnior (2009), o positivismo jurídico esteve ine-gavelmente ligado à necessidade de segurança da sociedade burguesa, pois o período anterior à Revolução Francesa ficou caracterizado pelo enfraquecimento da justiça, mediante o arbítrio inconstante do poder da força, provocando a insegurança das decisões judiciárias. Nesse sentido, a autolimitação da ciência do Direito ao estudo da lei positiva representava a própria estabilidade do Direito.

Ao analisar a teoria do positivismo jurídico, Bobbio (1995) menciona algumas características, e, consequentemente, problemas. O primeiro ponto de crítica reside na própria postura científica do positivismo jurídico frente ao direito, ou seja, faz a exclusão de juízo de valor, eliminando todos os elementos subjetivos, e

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adota a postura da tomada de conhecimento da realidade (juízo de fato). Assim, o estudo da norma somente se opera no plano da validade, analisando se a norma faz parte de um ordenamento jurídico real, efetivamente existente numa dada sociedade.

O segundo ponto de crítica a ser destacado é o problema das fontes do direito na doutrina positivista, pois, segundo esta, há prevalência de uma determinada fonte do direito (lei) sobre todas as outras. Para que tal situação ocorra é necessário que no ordenamento jurídico existam várias fontes (ordenamento complexo) e que estas fontes não estejam num mesmo plano, enfim, devem estar hierar-quicamente estruturadas.

Por fim, e não menos importante, a crítica ao positivismo jaz também na concepção imperativista da norma, ou seja, a norma jurídica como tendo a estrutura de um comando, buscando estabelecer uma relação de subordinação vinculada à concepção legalista-estatal do direito.

Sobre o acesso à justiça, Canotilho (1993) leciona que este é um princípio jurídico fundamental pertencente à ordem jurídica e constitui um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo. No ordenamento jurídico brasileiro ele está inserido no art. 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, expressado nos termos de que a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.

Entre as possibilidades de um modelo liberal, comunitarista ou crítico-deliberativo, impera em nossa ordem jurídico constitucional uma vertente caracterizada pela visão comunitarista da constituição.

Em linhas gerais, o comunitarismo jurídico consiste numa compreensão da sociedade segundo a qual a constituição de um povo sintetiza os ideais e valores identificadores dessa comunidade como fonte formal de princípios normativos a serem concretizados. (SILVA FILHO, 2009, p. 15)

Para Fachin e Tristão (2009) o acesso à justiça é um verdadeiro princípio constitucional fundamental que deve nortear a atividade hermenêutica no momento da aplicação concreta da lei para que se possa franquear opções para sua efetivação, possibilitando, dessa forma, a construção da democracia de forma justa e igualitária.

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Exposta a fragilidade e insuficiência do positivismo jurídico para as demandas sociais e no caso específico do art. 1°, §3°, da Lei n° 4.717/65 fica evidente o problema da lacuna imprópria ou a inadequação social da referida norma no contexto atual decorrente de uma leitura positivista. Sobre as lacunas, importante frisar a lição de Larenz (1991, p. 519) ao afirmar que

(...) toda lei contém inevitavelmente lacunas. Igualmente se reconheceu desde há muito a competência dos tribunais para colmatar as lacunas da lei. É, portanto, um desiderato importante da Jurisprudência pôr à disposição do juiz métodos com ajuda dos quais ele possa cumprir essa tarefa de modo materialmente adequado e conclusivo. Mas, por vezes, não se trata só no desenvolvimento judicial do Direito colmatar lacunas da lei, mas da adopção e conformação ulterior de novas ideias jurídicas que, em todo o caso, se tinham insinuado na própria lei, e cuja realização pela jurisprudência dos tribunais vai para além do plano originário da lei e o modifica em maior ou menor grau. Compreende-se que também um tal desenvolvimento do Direito superador da lei só deva ter lugar em consonância com os princípios directivos da ordem jurídica no seu conjunto.

Cappelletti e Garth (1988) destacam a necessidade de que o instrumento chamado processo, que serve enquanto caminho para a realização do direito material, seja realmente apto e célere para garantir a quem de direito o bem da vida afirmado em juízo. Desta forma, restringir o acesso à justiça não oportunizando a ação popular ambiental é negar o direito material pleiteado. Numa ponderação de princípios, há de se sobressair neste caso o acesso à justiça e afastar a norma que exige a apresentação de título de eleitor ou de documento semelhante que faça as vias da comprovação da cidadania.

Gontijo (2011) sustenta que o direito estaria alinhado ao universo da semiótica ou semiologia, esta enquanto o estudo da produção social de significados com base em sistemas de signos. Para Trask (2004, p. 263) os objetos de estudo da semiótica “são examinados como textos que comunicam significados, e esses significados derivam da interação ordenada de elementos portadores de sentido, os signos, que estão eles mesmos encaixados num sistema estruturado, de maneira parcialmente análoga aos elementos portadores de significados em língua”.

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Se a semiótica estuda o significado que a linguagem atinge mediante o contexto que é empregada, a ideia de contexto deve ser analisada pelo direito de forma cuidadosa, pois aí reside seu desafio.

Continuando nas lições de Gontijo (2011), no direito há dois hemisférios básicos para se pensar o contexto e que sugerem momentos específicos. O primeiro, aqui como ponto de partida, é quando a lei é feita; já o segundo quando a lei é aplicada ou interpretada, sendo considerado o momento de concreção.

Fato é que o direito deve estar atento a uma análise crítica do discurso e nessa toada interessam algumas abordagens especiais como: em que contexto social e político o discurso é proposto? Quem o propõe? A que ordem o propositor está inserido? A quem este discurso está dirigido e por quê? Que interesses subjazem o texto produzido pelo operador do direito?

Linguagem é uma questão humana, por este motivo, talvez, Perelman (1998, p. 148) escreveu que “aprendizado de uma língua também significa aderir valores de que, de modo explícito ou implícito, ela é portadora, às teorias cujas marcas traz, às classificações subjacentes ao emprego dos termos”.

Com bases na compreensão do objeto de estudo da semiótica é que se questiona a exigência de inscrição e quitação com as obrigações eleitorais para o exercício da ação popular. Primeiro, o contexto de cidadania em 1965, onde existia um estado ditatorial, é completamente diferente de um contexto atual, onde se vivencia em tese um estado democrático de direito. Segundo, não era do interesse do estado ditatorial sofrer controles ou fiscalização de qualquer pessoa. Terceiro, a manutenção de um discurso restritivo é incoerente com um estado democrático, que somente visa atender interesses escusos de um poder que não quer ser controlado ou fiscalizado.

O direito é um fenômeno complexo e sua formação se dá a partir de outras áreas do conhecimento. A linguagem constrói os sentidos e os faz pragmatica-mente, ou seja, por meio dos usos que se faz desses sentidos. A construção dos sentidos se dá por meio da linguagem desta forma o suposto sistema auto-referencial do direito nunca se fecha completamente, mas apenas parcialmente porque comunga com o mundo externo – o ambiente e outros sistemas – a formação dos signos que usa e interpreta (GONTIJO, 2011).

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Este fenômeno é expressão mais precisa do que se pode entender por hermenêutica jurídica e permite compreender que a exigência de título de eleitor ou documento equivalente é incompatível, pois a lei de 1965 atribuiu um significado para o termo cidadania coerente à época da lei, mas que não atende à realidade social atual e, sobretudo, pelo termo cidadania ter outro significado, coerente com um estado democrático de direito e valores cristalizados na constituição federal. (GONTIGO, 2011)

5. conclusões

O cidadão, como sujeito político, e dotado de autonomia ativa, deve participar dos procedimentos democráticos, decidindo nas diversas instâncias de uma comunidade, em diversificados papéis, o seu destino social como pessoa humana.

Desta forma, a ação popular ambiental é uma das formas do preceito do parágrafo único do artigo 1° da Constituição federal, que diz que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente. É a consagração da democracia participativa, que será exercida diretamente pelo cidadão através da ação popular visando a proteção do interesse social de um meio ambiente saudável e equilibrado para as gerações presente e futura. O significado de cidadão expresso no art. 1°, § 3°, da Lei n° 4.717/65 não deve ser restrito somente àquele inscrito e em dias com suas obrigações eleitorais, pois o contexto da lei de 1965 não se aplica e nem é coerente com os valores contidos na Constituição Federal de 1988 e pertinentes a um estado democrático de direito.

Os tribunais e seus respectivos magistrados, diante desta lacuna imprópria ou inadequada à realidade social, devem realizar um esforço hermenêutico a fim de superar as fragilidades de um sistema dogmático e positivo com o intuito de proporcionar um acesso à justiça efetivo e garantir a tutela do meio ambiente.

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o contrassenso político-administrativo entre a criação jurídica de novos

municípios e a estagnação do desenvolvimento socioeconômico no

estado do ceará/brasil

Laécio Noronha Xavier1

Resumo

O Congresso Nacional aprovou em maio de 2014, o Projeto de Lei Complementar que define os requisitos de emancipação distrital visando à criação de novos municípios. Para além dos atuais 5.570 municípios brasileiros, a regulamentação do art. 18, §4º da Constituição Federal de 1988, ainda que fundada em critérios mais rigorosos, possibilita o surgimento de 130 cidades. A grande maioria com menos de 15 mil habitantes, sem arrecadação tributária e dependente dos repasses de fundos constitucionais e programas assistenciais. No Estado do Ceará, onde 80% dos municípios são marcados pela “economia sem produção”, 30 distritos tentam viabilizar sua emancipação e mudar de status jurídico. Nas últimas décadas, vários estudos comprovam que, no Brasil e Ceará, os piores indicadores socioeconômicos advêm das cidades com menos de 20 mil habitantes e que os municípios recém-emancipados não conseguiram melhorar a qualidade de vida de suas populações.

Palavras-chave

Municípios; Administração; Desenvolvimento.

Abstract

The National Congress approved in may of 2014 the Complementary Law Project that defines the requirements of district emancipation aiming the creation

1 Advogado, Doutor em Direito Público/UFPE, Mestre em Direito Constitucional/UFC, Especialista em Economia Política/UECE, Professor de Direito Municipal-Urbanístico da UNIFOR e Conselheiro da OAB-CE.

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of new municipalities. Besides the current 5.570 brazilian municipalities, the regulations of art. 18, §4º of the Federal Constitution of 1988, even founded on stringent criteria, will give rise 130 cities. The vast majority with less than 15 thousand inhabitants, no tax revenues and dependent on transfers of constitutional funds and assistance programs. In the State of Ceará, where 80% of municipalities are characterized by a “non producer economy”, 30 districts try to facilitate its emancipation and change of legal status. In the last decades, many studies show that, in Brazil and Ceará, the worst socioeconomic indicators come from cities with less than 20 thousand inhabitants and the newly emancipated municipalities have not improved the quality of life of its population.

Key words

Municipalities; Administration; Development.

1. introdução

A Constituição Federal de 1988 seguiu a tendência dos países desenvolvidos de destinar para as municipalidades ações executivas de interesse imediato do cidadão, com a oferta de serviços públicos essenciais que fizessem progredir a qualidade de vida das populações mais isoladas, buscando a economia de escala na aplicação de recursos e a fiscalização direta do contribuinte sobre o erário. Todavia, houve um crescimento exagerado do número de municípios de pequeno porte, com baixa capacidade de investimentos, dependente de repasses constitucionais, malversação de recursos, inchamento da máquina pública, serviços públicos de péssima qualidade, queda nos indicadores socioeconômicos e má gestão administrativa de grande parte dos municípios recém-emancipados.

Tentando conter a farra da emancipação de distritos que se tornaram municí- pios de débil qualidade administrativa, a Emenda Constitucional nº 15/1996 alterou o art. 18, §4º da Constituição de 1988, estabelecendo que a criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios passaria a ser feita por Lei Estadual, mas dentro dos critérios e período determinados por Lei Complementar Federal, em especial, por meio de Estudos de Viabilidade Municipal (EVM) e plebiscitos junto às populações envolvidas. A Lei Complementar Federal, contudo, não foi elaborada e aprovada de imediato, o que levou várias Assembleias

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Legislativas a ingressar com Ações Diretas de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal e a criar suas leis complementares estaduais “regulan-do” a matéria, tendo em vista que a omissão/morosidade do legislador federal feria o pacto federativo.

Foi o que aconteceu com a Assembleia Legislativa do Ceará ao aprovar sua Lei Complementar no final da década passada, realizar EVM de dezenas de distritos que solicitavam emancipação, aprovar a maioria destes requerimentos e encaminhar pedidos ao Tribunal Regional Eleitoral do Ceará para que realizasse os plebiscitos nas localidades. A Corte Eleitoral, no entanto, alegou ausência da Lei Complementar Federal regulamentadora para criação de novos municípios, fato que ensejou recursos judiciais ao Tribunal Superior Eleitoral e Supremo Tribunal Federal, apesar da manutenção das decisões da corte a quo. O imbróglio manteve-se até o final de 2013, quando o Senado aprovou um Projeto de Lei Complementar (PLC) que, mesmo estabelecendo regras mais incisivas do que as previstas pelas Assembleias Legislativas e outros PLC federais, foi vetado integralmente pela Presidência da República alegando que a possível criação de quase 400 novos municípios era excessiva e que provocaria despesas adicionais, sacrificaria finanças municipais e poria em risco os limites de gastos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), agravado ainda, pelas desonerações fiscais federais nos anos de 2008-2013, que reduziram bruscamente os repasses constitucionais para os municípios. Recentemente, em maio de 2014, novo texto do PLC foi aprovado pelo Senado, com critérios bem mais rígidos para criação de municí-pios, mas sem que a matéria fosse concluída em face das emendas e a conseqüente falta de sanção executiva.

O artigo em pauta se baliza, inicialmente, pelo aprofundamento histórico deste processo de regulamentação constitucional da criação de novos municípios e pela conceituação e/ou análise por óticas jurídica, política e administrativa dos municípios e suas formas de autonomia federativa, dos distritos e os critérios para sua emancipação, dos fundos de repasses constitucionais e as desonerações fiscais que prejudicaram gravemente as municipalidades brasileiras, do papel das entidades emancipalistas e dos argumentos favoráveis e contrários a ampliação do número de entes municipais no Brasil.

Em seguida, serão expostas os motivos histórico-políticos pelo excessivo aumento de novos municípios brasileiros, bem como as formas alternativas

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para otimização das administrações municipais sem necessariamente emancipar distritos de pouca expressividade econômico-financeira, através da apresentação de pesquisas de institutos públicos e privados e de estudos de doutrinadores das áreas do Direito e da Administração Pública, referenciando com a realidade nacional e, especialmente, mostrando a impossibilidade do Estado do Ceará de ampliar seu elenco de municípios em face do quadro geral de precariedade socioeconômica revelado pelos mais diferentes indicadores.

Por fim, será demonstrado a partir de uma mix de análises, levantamentos e proposituras sobre a realidade cearense que, com raras exceções, a experiência alencarina de emancipar distritos e torná-los municípios não trouxe os resultados esperados, tendo em vista a atávica assimetria econômica regional e as dificul-dades de montagem de um plano de desenvolvimento socioeconômico susten- tável e de longo prazo para as diferentes macrorregiões estaduais. Ou seja, que o Ceará necessita com urgência não de municípios de pequeno porte que representam economia sem produção, acentuados processos migratórios, baixas oportunidades sociais e insegurança pública. Mas, de ampliar qualitativamente o número de suas cidades-polo enquanto pontos de equilíbrio econômico, referência administrativa e de influência regional.

2. a constitucionalização e a regulamentação cons-titucional dos municípios no brasil

Município deriva-se do latim municipium, e que designa juridicamente a personalidade jurídica de direito público interno de um ente com extensão territorial constituída em divisão político-administrativa de uma Unidade Federativa e pertencente a um regime de autonomia administrativa, política e financeira, capaz de se autogovernar pela vontade de seus habitantes. No art. 1º da Constituição Federal de 1988, o município foi elevado ao mesmo nível autônomo dos Estados e do Distrito Federal, entes que juntos com a União formam a estrutura indissolúvel da República Federativa do Brasil e constituem o Estado Democrático de Direito.

Tal autonomia municipal é assegurada pelos arts. 18, 29, 34 e 35 da Consti-tuição de 1988 que garante a organização político-administrativa da República sendo que a União não intervirá nos Estados e no Distrito Federal, nem os Estados

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intervirão nos Municípios, exceto para assegurar a observância de determinados princípios constitucionais, entre os quais, a autonomia municipal. O conceito de autonomia municipal é determinado pela capacidade de autogoverno que tem o Município, exercido através dos poderes Executivo, nas pessoas do Prefeito e do Vice-Prefeito e do Legislativo, composto pelos Vereadores; de auto-administração utilizando-se da competência estabelecida na Constituição Federal ou de um dos Estados, as quais delimitam esses poderes; e de auto-organização, através da Lei Orgânica do Município e por meio da edição de sua própria legislação, não podendo contrariar as leis estaduais e federais, como define o art. 29 da Constituição de 1988. Observa José Afonso da Silva (2008, p. 642) que a Lei Orgânica do Município ou a “constituição municipal” discrimina a matéria de sua competência exclusiva, observadas as peculiaridades locais, bem como a competência comum reservada constitucionalmente a União, Estados e Distrito Federal, indicando as matérias de sua competência, aquelas que lhe cabe legislar com exclusividade e as que lhe seja reservado legislar supletivamente.

Ao Município, além do dever de obediência aos princípios constitucionais da administração pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência), compete exclusivamente, conforme o art. 30 da Constituição de 1988, legislar sobre: assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; instituir e arrecadar os tributos de sua alçada; organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local; manter em regime de cooperação técnica e financeira com a União e o Estado, programas de educação fundamental e serviços de saúde à população; promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, confor-me legislações federais e estaduais; ordenar seu território, mediante planeja- mento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano; e criar, organizar e suprimir distritos conforme legislação estadual.

De acordo com dados de 2013 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui desde 1º de janeiro de 2013, exatos 5.570 municípios, distribuídos entre 26 estados da federação. Seguem listados todos os estados brasileiros e seus respectivos números de municípios: Minas Gerais (853), São Paulo (645), Rio Grande do Sul (496), Bahia (417), Paraná (399), Santa Catarina (293), Goiás (246), Piauí (224), Paraíba (223), Maranhão (217), Pernambuco (185), Ceará (184), Rio Grande do Norte (167), Pará (143), Mato

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Grosso (141), Tocantins (139), Alagoas (102), Rio de Janeiro (92), Espírito Santo (78), Mato Grosso do Sul (78), Sergipe (75), Amazonas (62), Rondônia (52), Acre (22), Amapá (16) e Roraima (15). São Paulo é o município mais populoso, com 11.244.369 habitantes, enquanto que o menos populoso é Borá/SP, com 805 habitantes. Já o Ceará, possui população de 8.448.055 habitantes divididos em 184 municípios, tendo Fortaleza como 5ª cidade mais populosa do país, com quase 2,5 milhões de habitantes.

No caso de Borá, dentre outros municípios que também possuem reduzida população, convém mencionar que a lei de sua criação data de 28 de fevereiro de 1964 (Lei Estadual nº 8.092) não foi regulamentada pela Constituição de 1988 e demais documentos legais, cabendo, outrossim, o entendimento do art. 96 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que convalidou atos de criação de novos municípios, cuja lei tenha sido publicada até 2006, conforme legislação do respectivo Estado à época de sua origem. Até 1996, os critérios para emancipação de distritos eram estabelecidos pelas Assembleias Legislativas. Com a Emenda Constitucional (EC) n° 15/1996 foi definido que tais exigências deveriam constar em legislação federal, embora a aprovação para criar um novo município continue a depender das assembleias estaduais, uma vez que o PLC regulador destes critérios ainda não foi aprovado pelo Congresso Nacional. A EC n° 15/196 deu nova redação ao §4º do art. 18 da Constituição de 1988, validou os novos municípios criados até 31 de dezembro de 2006 por lei estadual e dentro do período determinado pela nova Lei Complementar Federal, previu a divulgação dos EVM publicados na forma da lei e garantiu a consulta prévia mediante plebiscito às populações dos municípios envolvidos.

Em relação aos distritos, estes são subdivisões territoriais e não autônomas dos municípios, os quais se fracionam, ainda, em bairros e ruas, sendo, em geral, localizados distantes da sede do município, ou seja, da área urbana citadina e, em que os poderes públicos exercem a autoridade administrativa, judicial, fiscal, policial, sanitária e eleitoral. No Brasil, figuram duas exceções ao conceito de distritos municipais: o Distrito Federal que, apesar de apresentar-se como Uni-dade Federativa, enquanto Capital da República brasileira, não possui subdivisões em municípios; e Fernando de Noronha, o Distrito Estadual de Pernambuco, que também não se subdivide em municípios.

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Já a emancipação distrital significa a existência de um novo município pela conquista de autonomia política, financeira e administrativa quando do desmembramento do território de seu município-mãe. Emancipar significa conferir autonomia a território que preencha requisitos estabelecidos em lei e que autorizam a maioridade político- administrativa de um distrito, transformando-o em ente integrante do pacto federativo. O processo de criação de municípios por meio da emancipação de distritos é regulada, além do art. 18 da Constituição de 1988, por meio de três leis: uma estadual que cria, incorpora, funde ou desmembra um município ou municípios; e duas federais - uma complementar, que discorre sobre o período em que as alterações de estado poderão ser realizadas, e outra ordinária, que regulamenta os critérios do EVM. A Lei Complementar do Ceará nº 84/2009, por exemplo, menciona no §1º do art. 1º que a criação de município precede a emancipação de parte de território, distritos de um ou mais municípios, com sua elevação à categoria de pessoa jurídica de direito público interno, através da outorga de autonomia por Lei Estadual.

A Lei Complementar do Ceará nº 84/2009 obedece ao art. 18, § 4º da Cons-tituição de 1988 e, conceitua criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios:

i) Criação de município é a emancipação de parte ou partes de território, distritos de um ou mais municípios, com sua elevação à categoria de pessoa jurídica de direito público interno, através da outorga de auto-nomia, por Lei Estadual;

ii) Incorporação é a união de um município a outro, perdendo um deles a personalidade jurídica, que se integra à do município que o incorpo-rou;

iii) Fusão é a reunião de dois ou mais municípios, que perdem as persona-lidades jurídicas, surgindo um novo município, com outra personalida-de;

iv) Desmembramento é a separação de parte de um município, para ane-xar-se a outro ou constituir um novo município.

Dessa forma, cada Estado brasileiro é responsável pela decisão sobre quais distritos ou territórios serão emancipados, regulando sobre como tal processo

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acontecerá e quais requisitos serão avaliados, de acordo com a realidade econômica e estrutural de cada região. No Ceará, conforme o art. 5º da Lei Complementar (LC) nº 84/2009, o pedido para que um distrito possa tornar-se município deverá ser feito por meio de requerimento de Deputado ou entidade, através de um Projeto de Iniciativa Compartilhada dirigido à Mesa Diretora da Assembleia Legislativa do Ceará (ALCE), assinada, por, no mínimo, 100 eleitores domiciliados na área territorial a ser emancipada, desmembrada ou incorporada, ou em cada um dos municípios a serem fundidos, com firmas reconhecidas. Pedido apresentado será, então, realizado um EVM para analisar se o distrito ou território atende aos requisitos obrigatórios. Caso atendidos, a Lei Complementar Federal deve estabelecer o período em que esse novo município poderá ser criado e a obrigação de realizar consulta popular através de plebiscito, para que a população envolvida decida se quer ou não uma nova municipalidade.

As etapas do processo de emancipação de distritos cearenses, a partir da propositura do pedido de emancipação protocolado junto à Presidência da Casa. As lideranças do distrito que tentam emancipar-se, ou as do próprio município a que elas pertencem, devem reunir o maior número de informações, principalmente aquelas que comprovem a capacidade de auto-sustentabilidade econômico-financeira do distrito. A partir daí, é encaminhado à Comissão de Triagem, Elaboração de Propostas e Emancipação de Novos Municípios da ALCE para checagem da documentação exigida. Em seguida, o pedido é encaminhado à Mesa Diretora que solicita informações sobre o distrito junto ao IBGE, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Tesouro Nacional, Secretaria Estadual da Fazenda (SEFAZ), Prefeitura Municipal e Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Tais dados são repassados aos relatores dos processos escolhidos entre os deputados da Casa para a apresentação de parecer. Depois de votado e aprovado o parecer, a Mesa Diretora elabora o Decreto Legislativo a ser lido em plenário e apreciado na sua Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR). Aprovado na CCJR, o decreto segue novamente para votação em plenário e, caso aprovado, é então encaminhado ao TRE para que realize o plebiscito entre a população do município.

Vale registro, que com a Constituição de 1988 a competência exclusiva para legislar sobre novos municípios novamente ficou com os Estados. Sem a

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interferência legal da União, os requisitos que deveriam ter o papel de selecionar as localidades que realmente poderiam tornar-se municípios serviram apenas para cumprir o processo burocrático exigido. Prova disso é o crescente número de novos municípios no período. Em 1980, existiam no País 3.974 municípios instalados, montante que passou a 4.090 em 1984, um crescimento de 3%. Em 1996, já eram 4.974 municípios e outros 533 aguardavam instalação, ou seja, acréscimo de 22% desde 1984. Segundo o Censo IBGE (2010), em 2000, o número de municípios atingia 5.561. Como nem o Produto Interno Bruto (PIB) nacional ou a arrecadação de receitas públicas cresceram na mesma proporção no período, as fatias de receita de cada município ficaram menores e a federação brasileira tornava-se mais pobre a cada município criado (LORENZETTI: 2003, p. 4). Com a EC nº 15/1996, alterando o §4º do art. 18 da Constituição de 1988, foi modificada a competência legislativa dos Estados e a União voltou a participar do processo com tal redação vigorando até os dias atuais e tornando as esferas estadual e federal co-responsáveis pelo processo de criação de novos municípios.

Desde 1996, vários foram os projetos de lei e de emenda constitucional visando mudar a redação do §4º do art. 18 da Constituição e, destes, alguns nem sequer apreciados pela Casa e outros foram aprovados pelo Congresso Nacional, apesar de vetados pela Presidência da República. Mesmo que os EVM dos novos municípios sejam de competência de cada Estado, a regulamentação da LC Fe-deral é que vai determinar o período de ocorrência do processo de criação do município, bem como se necessita de Lei Ordinária para dispor sobre os critérios do EVM. Sem a existência da referidas leis, ficaram os distritos e territórios brasi- leiros impedidos de intentarem a emancipação. Ainda assim, vários Estados deba-teram o tema, como é o caso do Ceará, que aprovou uma LC Estadual (nº 84/2009) que “regulamentou” a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios, cuja justificativa foi a de que o Congresso Nacional foi omisso e moroso, e que, portanto, os Estados poderiam avançar na temática, uma vez ter sido agredido o pacto federativo (DIÁRIO DO NORDESTE, 2012).

Os requisitos presentes na LC cearense nº 84/2009 vão além de critérios técnicos, uma vez que também exigem comprovação dos meios de capacitação de receita própria e de que o novo município terá condições mínimas para

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oferecer serviços básicos à população. A LC referida se configura como a norma temática estadual mais rigorosa do País, sendo que pelos seus critérios elencados, os últimos 14 municípios criados no Ceará não se emancipariam. Tais requisitos estão no art. 2º da LC nº 84/2009 ao prever que nenhum município será criado caso os distritos tenham descontinuidade territorial, população menor que 8 mil habitantes e eleitorado inferior a 40% de sua população; devendo apresentar estimativas de receitas fiscais e provenientes de transferências estaduais e federais, de custos da administração (remunerações, despesas dos órgãos e prestação de serviços públicos), sem que haja perda pelo município de origem de mais de 50% das receitas tributárias próprias e de transferências; contar com centro urbano e número de prédios residenciais, comerciais e públicos superior a 400 e, em con-dições de sediar Prefeitura e Câmara Municipal; possuir rede de distribuição de energia elétrica, sistema de abastecimento público de água potável e possibilidade de implantação dos sistemas de coleta/disposição final de esgotos sanitários e resíduos sólidos; ter escolas de educação infantil, fundamental e média, posto de atenção primária de saúde e sistema de telefonia pública; estabelecimentos de venda de combustíveis e gás de cozinha, posto de serviço dos correios e estrutura de segurança pública.

Atendidos os requisitos obrigatórios para a emancipação restará à consulta po-pular na forma de plebiscito, com resultado favorável devidamente homologado pelo TRE-CE, responsável também pelas despesas da realização das consultas plebiscitárias. Para a criação do novo município, deverá ter o voto da maioria dos eleitores do município ou dos municípios envolvidos na alteração territorial que compareceram às urnas, com pelo menos, a maioria absoluta dos eleitores inscritos nas áreas objeto da consulta. O plebiscito é definido pela Lei nº 9.709/98, como sendo a consulta popular realizada para que o povo delibere sobre dada matéria de acentuada relevância constitucional, legislativa ou administrativa, convocado antes de um ato legislativo ou administrativo ser constituído. Regulamentadora do art. 14 da Constituição de 1988, a Lei nº 9.709/98 define ainda que a responsabilidade para convocar tal modalidade de plebiscito será das Assembleias Legislativas. Após o processo de apresentação e análise dos requisitos e realização de plebiscito com resultado favorável a emancipação, serão considerados instalados aqueles municípios cujo poder executivo, na pessoa do Prefeito e Vice-Prefeito, e poder legislativo, todos os vereadores, tenham sido eleitos e empossados.

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Todavia, desde a aprovação da LC nº 84/2009, várias foram as tentativas de efetivar a emancipação de distritos, esbarrando sempre na inviabilização dos plebiscitos por falta de autorização do TRE-CE. A última negativa ocorreu em março de 2012, quando o TRE-CE rejeitou os pedidos da ALCE para realizar plebiscitos em 28 municípios-sede visando a criação de 30 novos municípios, com o argumento de que para a criação de novo município se fazia necessária a edição de LC Federal e, que pela inexistência desta seria impossível realizar consultas populares. Não é sem razão que todos os processos de emancipação de distritos cearenses e os de outros estados do País encontram-se estagnados. Em 2008, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) divulgou os 412 distritos que buscavam emancipar-se, divididos entre os estados do Amapá, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo. Os demais estados, desde a EC nº 15/96, não realizaram protocolo de pedido de emancipação ou arquivaram requisições que tramitavam. (BOSELLI, 2008).

No Ceará, são 30 os distritos aptos, segundo critérios da LC estadual, que intentam a emancipação. Conforme o Diário do Nordeste (2012, p. 13), segue a relação Distrito/Município, com as respectivas populações distritais: Almofala (11.925)/Itarema, Amanari (9.556)/Maranguape, Antônio Diogo (9.179)/Redenção, Jurema (109.413)/Caucaia, Camará (14.169)/Aquiraz, Iguape (13.538)/Aquiraz, Cruxati (12.158)/Itapipoca, Flores (9.988)/Russas, Guanacés(9.158)/Cascavel, Icaraí (9.179)/Amontada, Itapebussu (10.317)/Maranguape, Jamacaru (9.903)/Missão Velha, José de Alencar (8.301)/Iguatu, Aranaú (8.704)/Acaraú, Juritianha (10.187)/Acaraú, Lima Campos (9.190)/Icó, Lisieux & Macaraú (11.689)/Santa Quitéria, Mineirolândia (11.525)/Pedra Branca, Monte Nebo (8.430)/Crateús, Nova Floresta &/Feiticeiro (8.045)/Jaguaribe, Pajuçara (34.673)/Maracanaú, Palestina do Cariri (8.488)/Mauriti, Parajuru (12.596)/Beberibe, Ponta da Serra (8.611)/Crato, Santa Felícia (8.252)/Acopiara, Santa Tereza (8.029)/Tauá, São João do Aruaru (9.293)/Morada Nova, São Pedro do Norte (8.252)/Jucás, Sucesso (9.158)/Tamboril, Timonha & Adrianópolis (13.190)/Granja.

Para Tasso Jereissati (2009, p. 18), o correto seria primeiro procurar desenvol-ver os distritos, para, em seguida, buscar a independência, considerando-se os benefícios ou prejuízos ocasionados com sua criação. A emancipação pode até

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tornar-se um instrumento de desenvolvimento socioeconômico de determinadas áreas. Entretanto, este potencial há de ser comprovado, através de estudos con-fiáveis e critérios técnicos que tratem sobre população mínima, estrutura física adequada, capacidade do novo município de auto-sustento e garantia de que a União poderá proporcionar o mínimo necessário para a sobrevivência do novo ente. Por falta de recursos próprios, milhares de municípios brasileiros sobrevivem apenas das cotas constitucionais. Criar um novo município implica em aumento de despesas de custeio e, sem qualquer incremento na receita, seja no novo ou no município originário, o que torna mais difícil a situação de ambos. Não se pode desmembrar uma área privilegiada de um dado município, gerando um novo que usufruirá de sua boa situação em termos de arrecadação, em detrimento da área remanescente que perderá a sua já frágil viabilidade.

Países do primeiro mundo alcançaram estágios avançados de gestão pública ao concentrarem, no plano local, toda a parte executiva das ações de interesse imediato do cidadão, com serviços públicos essenciais (educação, transportes, policiamento e controle urbano). A Constituição de 1988 seguiu tal tendência, transferindo da União e dos Estados tarefas vinculadas diretamente à cidadania para o âmbito municipal. Em primeiro lugar, haveria economia de escala na aplicação de recursos; depois, o contribuinte, beneficiário direto de cada empreendimento, seria fiscal natural dos recursos do erário. Na prática, porém, o plano não funcionou dessa forma. Às Prefeituras competem diversas atribuições gerenciais, ao mesmo tempo, que a LRF regulamentou a execução orçamentária, estabelecendo o emprego de 25% da receita tributária em educação; 15% em saúde; e, no máximo, 60% no custeio da máquina. Poucos gestores se dão conta da tênue margem de destinação de recursos financeiros de seus municípios para empreendimentos fora desse compromisso legal de absorção da arrecadação. A falta de domínio sobre essas limitações legais resulta, na maioria das vezes, em gestão temerária, com risco de enquadramento nas penalidades legais.

É relevante mencionar que a importância da emancipação do distrito não reside apenas em proporcionar melhor qualidade de vida com disponibilização de acesso digno a serviços públicos e conquista de novas identidades culturais da população, mas condições que proporcionem um plano de desenvolvimento socioeconômico sustentável e de longo prazo para o novo município. Ademais,

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devem-se conhecer nestes processos emancipatórios os reais interesses por trás das candidaturas dos distritos ao status de novo ente federado.

3. criação de novos municípios e o quadro geral do desenvolvimento socioeconômico do estado do ceará

O imbróglio jurídico continuou quando, em outubro de 2013, o Senado aprovou outro PLC sobre criação de municípios e definiu regras mais rígidas do que as previstas em outros projetos de lei e pela Assembleia cearense. Mesmo assim, no mês seguinte, a presidente Dilma Rousseff vetou integralmente o PLC por provocar despesas adicionais, sacrificar as finanças municipais e em face dos cortes nas transferências constitucionais. O IPEA (2013) estimou que poderiam ter sido criados 363 novos municípios, caso o veto fosse derrubado pelo Congresso, gerando uma redistribuição do FPM que ultrapassaria R$ 1 bilhão/ano.

Em 7 de maio de 2014, o Senado aprovou um PLC com novas regras para a criação de municípios. O PLC, relatado pelo senador Valdir Raupp (PMDB-RO), poderá diminuir em 1/3 o número de cidades a ser criadas para, no máximo, 130 cidades. As emendas ainda precisam ser analisadas, contudo, podem limitar ainda mais esse cenário. Uma determina que novos municípios do Norte e Centro-Oeste devem ter território de, pelo menos, 200 km², com o limite para as criações de cidades em outras regiões ficando em 100 km². O relator aumentou a população mínima exigida para novo município no Sul e Sudeste, passando de 12 mil para 20 mil a quantidade de habitantes e, no Nordeste, esse limite, foi elevado de 8,4 mil para 12 mil habitantes. No Centro-Oeste e Norte foi mantida a exigência de 6 mil moradores na nova cidade. O PLC também reduz de 10% para 3% da população dos locais envolvidos o número de assinaturas para iniciar processo de fusão ou incorporação de municípios. Já os novos municípios a serem criados no Nordeste devem ter, no mínimo, a assinatura de 20% dos moradores no pedido de elevação do distrito em município, bem como base urbana com mínimo de 624 residências. O PLC ainda exige que o EVM seja feito por entidade isenta e contratada pelo governo estadual. Também ampliou de 10 para 12 anos o período de vedação para a realização de novo plebiscito no caso de o resultado da primeira consulta ter sido rejeitado. Além do que, os novos municípios devem receber

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parte das dívidas dos municípios-sede, proporcional à estrutura do novo ente federativo. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2014).

Em meados de maio de 2014, a presidente Dilma Rousseff reuniu-se com o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, que pediu aumento de 2% na fatia da arrecadação total do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) destinada ao FPM. O fundo recebe atualmente 23,5% de tudo o que é arrecadado com os dois impostos pelo governo federal e as prefeituras querem elevar o repasse para 25,5%. Com as desonerações de alíquotas do IPI, o governo federal retirou dos municípios brasileiros R$ 77 bilhões entre 2008 e 2013. O deputado Danilo Forte (PMDB/CE) é o relator da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 406-A/99 que trata da redistribuição orçamentária aos municípios e do aumento do FPM, da parcela de arrecadação do ICMS e da arrecadação das contribuições sociais sobre receita, faturamento e lucro do PIS/COFINS e da CSLL, com incremento nas contas municipais passando dos atuais R$ 82, bilhões para R$ 90 bilhões. (FORTE, 2014). Pequenos e médios municípios brasileiros estão enfrentando fase financeira crítica, em razão da diminuição dos valores do FPM. Essas transferências constitucionais são afetadas a cada desoneração tributária concedida pelo governo federal. Como o FPM é constituído com parcelas oriundas dos IR e IPI e, nos últimos anos, a União estimulou vários segmentos industriais (automobilístico e eletroeletrônico) com redução de alíquotas do IPI para preservar empregos e incentivar vendas, tal ação fiscal implicou em parcelas menores correspondentes às transferências para estados e municípios. Essa receita corresponde à principal fonte de receita de quase todos os municípios cearenses em face da fragilidade das economias locais. A inviabilidade da gestão municipal se deve ao peso excessivo de sua despesa pública e de elevados encargos com pessoal. Em 2013, 110 municípios cearenses registravam despesas de pessoal acima de 51%, comprometendo a Receita Corrente Líquida (RCL) e, portanto, distantes da meta do equilíbrio orçamentário. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2014).

O centralismo da arrecadação federal afeta os estados, mas, fundamental-mente, os municípios, com 80% deles sem receita própria para cobrir seus gastos/encargos obrigatórios. A base física da geração das riquezas nacionais é o Município, mas nem assim a distribuição fiscal lhe faz justiça. A Constituição de

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1988 ensaiou uma partilha equitativa em relação à sistemática atual, mas a União foi mais expedita ao retomar o centralismo da arrecadação dos tributos federais. Apenas 4 capitais brasileiras dispõem de arrecadação própria maior do que o valor recebido das transferências do FPM e do ICMS. São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Florianópolis são as únicas capitais que conseguiram equilibrar suas finanças próprias, superando as transferências constitucionais. As demais capitais continuam dependentes das transferências do FPM, ICMS, fundos setoriais para merenda e transporte escolar. Macapá, ocupante do último lugar na geração de receitas próprias, consegue apenas R$ 22,00 para cada R$ 100,00 obtido com os repasses constitucionais. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2014).

Com a criação de novos municípios, esses recursos constitucionais não aumentarão, apenas serão redistribuídos. Muitas vezes, o que ocorre com a eman-cipação de distritos é que a separação deixa a sede do município em situação financeira ruim. O cenário preocupa porque, em vez de ser canalizado para a população, os recursos vão para a folha de pagamento. A emancipação de distritos se compara à “economia de escala”, quando uma única estrutura burocrática que servia a 20 mil habitantes, ao ser duplicada para atender metade da quantidade de habitantes, dobra o valor dos custos. Como solução alternativa à emancipação de distritos para reduzir as desigualdades entre as localidades, encontra-se a opção do orçamento territorializado. Atualmente, quando o Executivo Municipal envia a previsão de gastos do ano seguinte para ser aprovado no Legislativo, as despesas são pensadas por áreas temáticas (saúde, habitação, educação). Entretanto, a gestão não se responsabiliza com a execução orçamentária por regiões das cidades. Ademais, as prefeituras carecem de melhor administração para democratizar as ações que contemplem os distritos. A solução seria uma gestão pública regionalizada, sem que haja necessidade de novos prefeito e câmara para que o município atenda os distritos. De maneira geral, o que se tem presenciado na maioria dos estados é a tentativa de criar municípios inviáveis, seja pelo tamanho, condições econômicas e arrecadação de recursos através de tributos ou de produtividade.

Conforme Juliana Coissi (2013, p. 13), levantamento promovido pela Folha de São Paulo, em 2013, dá conta das condições enfrentadas pela maioria dos últimos 595 municípios instituídos no País em 1997: baixa qualidade de vida e a expressiva maioria se mantém abaixo da média dos demais. Do total, 570 não

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evoluíram a novos estágios no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de seus estados, que avalia renda, escolaridade e expectativa de vida. Os municípios-mãe também não alcançaram o IDH estadual, depois que perderam área e população pelo desmembramento. O quadro, porém, não é dos mais favoráveis para o Ceará. Dos 30 distritos candidatos a municípios, com o novo texto do PLC de 2014, o número de possíveis municípios caí para 8, inclusive, nos casos dos distritos de Jurema/Caucaia e Lima Campos/Icó. Jurema ficaria de fora por ter uma área de apenas 17 km², quando o exigido é de 100 km². Já outros 21 distritos, em 2010, possuíam população abaixo de 12 mil habitantes, mínimo demográfico exigido pelo texto. Conforme a Comissão de Criação de Novos Municípios, Estudos de Limites e Divisas Territoriais da ALCE, outro problema sério que inviabiliza a criação de novos municípios é que 80% dos municípios cearenses têm problema de disputa territorial por conta da indefinição de seus limites e as alternativas para que sejam solucionados esbarram em resistências financeiras, técnicas e políticas de seus gestores. (O Povo, 2014).

Ademais, conforme dados do IBGE (2010), o Ceará possui área total de 148.825,6 km² (9,37% da área do Nordeste ou 1,7% da superfície do Brasil) e população de 8.450.527 habitantes, conferindo-lhe a 8ª colocação entre os estados mais populosos, com 4,4% dos brasileiros. Com PIB de R$ 105,7 bilhões em 2013, o Ceará é o 12º estado em produção de riqueza do país e o 3º do Nordeste, significando 2,18% do PIB nacional. O Ceará tem o 11º pior IDH entre as 27 unidades federativas, com valor de 0,682. Com economia girando em torno de R$ 37 bilhões, desde 2012, Fortaleza ocupa o posto de maior PIB dos municípios do Nordeste e o 9º maior do país. Todavia, o IDH de Fortaleza, 1º colocado do Ceará (0,754), representa um indicador nacionalmente mediano, sendo o 19º entre as capitais e 467º entre os municípios brasileiros. Para se ter idéia, o Facebook comprou, em fevereiro de 2014, o aplicativo WhatsApp por US$ 19 bilhões. Com o Dólar cotado à época a R$ 2,33, a transação totalizou R$ 44,2 bilhões. Ou seja, o WhatsApp, com apenas 55 funcionários é maior que o PIB de Fortaleza e equivale a quase metade do PIB do Ceará. (BORTOLOZI, 2014).

Acerca da execução orçamentária do Estado no período de 2007 a 2013, houve um aumento de 8% na participação dos gastos com pessoal dentro das despesas do governo, chegando em 2013, essa rubrica, a participar de 52,7% dos gastos

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do governo, perante um limite prudencial de 57%. De acordo com o Relatório Anual das Contas da Gestão do Governo do Estado do Ceará, exercício 2013, os gastos com folha de pagamento atingiram o R$ 5,8 bilhões. As despesas com pessoal do Executivo já respondem a 43,53% do percentual de R$ 19,3 bilhões da Receita Corrente do Ceará em 2013. O limite prudencial é de 46,17%, e o limite máximo legal autorizado pela LRF é de 48,60%. Os gastos do Executivo estão abaixo do limite prudencial. Todavia, o que preocupa, é que, quatro anos atrás, eram de 39,5% em face das despesas terem crescido a uma taxa maior que a da receita. (VARELA, 2014).

Além disso, o Ceará tem baixa densidade demográfica (56,78 hab/km²), com forte concentração nos 15 municípios da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) - 3.255.701 habitantes, e nos 9 municípios da Região Metropolitana do Cariri (RMC) - 519.055 habitantes. Somadas as populações metropolitanas, chegam a 3.873.146 habitantes (46%), apesar de contarem com somente 7.875,767 km² ou 5,3% da área total, o que proporciona uma densidade de 491 hab/km². A concentração também alcança o PIB, com os 24 municípios das regiões metropolitanas reunindo quase 75% da riqueza cearense. Apenas na RMF perfila 62,7% do PIB, com Fortaleza representando 47,7% do PIB. Dos 184 municípios cearenses somente 8 têm mais de 100 mil habitantes (Fortaleza, Caucaia, Maracanaú, Maranguape, Juazeiro do Norte, Crato, Sobral e Itapipoca). Exatos 25 municípios contam com mais de 50 mil e menos de 100 mil habitantes. Entre mais de 20 mil e menos de 50 mil habitantes o Ceará possui 59 municípios. Metade dos municípios (92) tem menos de 20 mil habitantes. Ou seja, 151 municípios possuem menos de 50 mil habitantes ou 36% da população, enquanto Fortaleza tem 29% da população e os 7 municípios com mais de 100 mil habitantes representam 16% da população. (INSTITUTO DE PESQUI- SA E ESTATÍSTICA DO ESTADO DO CEARÁ, 2009).

Conforme o IPECE (2011), a dimensão econômica do desequilíbrio regional pode ser avaliada por meio da participação dos municípios na formação do PIB cearense: Fortaleza detém 47%; Juazeiro do Norte, Crato, Caucaia, Maranguape, Maracanaú, Itapipoca e Sobral contam com 18%; os 25 municípios que figuram entre mais de 50 mil e menos de 100 mil habitantes totalizam 14%; e os 151 com menos de 50 mil habitantes somam 21%. Os desequilíbrios regionais

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freiam acarretam no crescimento econômico desigual combinado com a intensa concentração urbana em algumas áreas estaduais provocando grave assimetria na distribuição da população e da riqueza entre Fortaleza e o Interior. Estudo divulgado pela IPC Marketing revela que o consumo da população de Fortaleza deverá atingir R$ 42 bilhões em 2014, valor que coloca a cidade na 8ª posição do ranking nacional. O total representa 1,28% do potencial de compra previsto para o Brasil (R$ 3,3 trilhões). No contexto estadual, entretanto, a Capital cearense lidera com 43,4% do montante estimado para o Ceará em 2014, com projeção de gastos de R$ 97,7 bilhões. Dos 10 municípios cearenses com maior potencial para consumir em 2014, além da Capital (1ª), 4 integram a RMF: Caucaia (2ª), Maracanaú (4ª), Maranguape (8ª) e Aquiraz (10ª). Juntos, os moradores dessas cidades deverão gastar R$ 7,9 bilhões com bens e serviços. Também estão entre as dez primeiras colocações: Juazeiro do Norte (3ª), Sobral (5ª), Iguatu (7ª) e Itapipoca (9ª). O potencial de consumo dos 10 municípios soma R$ 58,6 bilhões, o equivalente a 59,9% dos gastos projetados para o Estado, índice que denota grande concentração de renda na Capital. Ademais, 9 dos 10 municípios citados são os que possuem as maiores populações, excetuando Aquiraz. Por ou-tro lado, das 184 cidades cearenses, as dez últimas colocadas no ranking, todas têm população inferior a 20 mil habitantes: Granjeiro, Guaramiranga, Potiretama, General Sampaio, Baixio, Moraújo, Pacujá, Ererê, Tarrafas e Antonina do Norte. Conforme o estudo, em conjunto, a população dessas cidades desembolsará R$ 46,1 milhões neste ano, valor que representa apenas 0,47% do potencial de consumo estimado para o Ceará. (IPC MARKETING, 2014).

Praticamente, são as mesmas cidades que configuram entre as melhores posições do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), embora abaixo da média nacional. Divulgado em julho de 2013, o IDH-M 2013 traz os indicadores de expectativa de vida, educação e renda dos municípios brasileiros. Fortaleza, Sobral, Crato, Eusébio, Juazeiro do Norte, Maracanaú, Barbalha, Caucaia, Limoeiro do Norte e Iguatu são as dez cidades melhor colocadas. Em comum, a forte atividade comercial e a arrecadação tributária em contraste com a grande maioria de municípios cearenses. (JUNIOR, 2013). Apesar de continuar a frente da média nacional, Fortaleza é a 7ª capital nordestina e a 20ª do Brasil em nível de desenvolvimento, segundo o Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM), que tem por base dados nacionais sobre educação, saúde,

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emprego e renda coletados em 2011. Atrás de Fortaleza, no Nordeste, em relação ao IFDM, estão Salvador e Maceió. O levantamento aponta que, com a atual dinâmica de desenvolvimento das cidades, o Nordeste levaria 26 anos para alcançar os indicadores registrados em 2011 pelo Sul, onde 92,3% dos municípios registram desenvolvimento moderado ou alto. (FIRJAN, 2011). Da totalidade dos municípios do Ceará destacaram-se administrativamente na última gestão (2009-2012) menos de 5% das prefeituras: Sobral, Crato, Parambu, Eusébio, Horizonte, Viçosa do Ceará, Maracanaú, Iguatu e Tauá. A maioria esmagadora dos 184 municípios não é referencial de nenhuma política pública ou dínamo de crescimento econômico. Das 43 cidades turísticas somente 8 apresentam infraestrutura para receber visitantes. Menos de 20% dos municípios possuem Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) atualizado pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) e nenhum município interiorano instalou seu Instituto de Planejamento Urbano. Mesmo as Macrorregiões de Planejamento, dentre elas, as Regiões Metropolitanas de Fortaleza e Cariri não são geridas por órgão estadual especializado.

Dados da Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará (2013) revelam um incontestável indicador de crescimento econômico das cidades é a alta capacidade de recolhimento do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), como é o caso dos municípios que atuaram, em 2012, no topo da arrecadação de ICMS: Fortaleza, Maracanaú, Caucaia, Sobral, Juazeiro do Norte. Dos três municípios que mais arrecadaram ICMS, em 2012, estão incluídos na RMF: Fortaleza, Maracanaú e Caucaia. Todavia, enquanto Fortaleza recolheu em R$ 5,7 bilhões de ICMS, Maracanaú que ocupa o 2º lugar recolheu R$ 491 milhões, ou seja, menos de 10% do que arrecadou Fortaleza. Caucaia que está em 3º lugar no ranking arrecadou R$ 280 milhões, isto é, somente 57% do recolhido por Maracanaú. Para o 4º lugar, Sobral, há uma queda de cerca de 50% em relação a Caucaia, com uma arrecadação de R$ 144 milhões. Somente Juazeiro do Norte, que ocupou a 5ª posição com R$ 133 milhões arrecadados, representa índices significativos, ou seja, 92,4% do ICMS recolhido por Sobral. O grau de dependência de outras receitas tributárias por parte das cidades cearenses alcança 65,4% em Fortaleza, 78,8% nas cidades da RMF e 91,2% no restante das cidades interioranas. Em 2011, Fortaleza somava 25% da arrecadação tributária total em IPTU, 60% em ISS, 13% em ITBI e 2% em taxas municipais. No Interior, da

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arrecadação tributária total, o IPTU representou 9%, o ISS alcançou 73%, o ITBI chegou a 8% e as taxas municipais ficaram em 10%. Em 2012, dos 184 municípios do Ceará, 121 ficaram inadimplentes com o Governo Federal e encontravam-se impedidos de firmar convênios. (IPECE, 2011).

Até 2013, apenas 26,4% da população do Estado tinha acesso à rede de esgoto, de acordo com o estudo Benefícios Econômicos da Expansão do Saneamento Brasileiro, feito pelo Instituto Trata Brasil. Assim, 73,6% dos cearenses não têm esgoto disponível. Apesar disso, o Ceará é o 2° estado do Nordeste com o maior número da população com acesso ao esgoto, perdendo para a Bahia. Enquanto 2.282.465 de cearenses possuem esgoto, 4.003.196 (26,9%) de baianos têm o recurso. O estudo do instituto também mostra que 5.900.415 dos cearenses têm acesso à água tratada, ou seja, 68,3% do total da população. Estão à frente do Ceará, a Bahia, com 10.666.143 (71,8%) e Pernambuco, 6.144.330 (67,8%). Todavia, sob o aspecto da proporcionalidade populacional, o Ceará é o 5º estado, estando à frente Sergipe (81,6%), Bahia (71,8%), Rio Grande do Norte (71,4%) e Paraíba (68,4%). No Ceará, dos 184 municípios, apenas 55 (30%) possuem plano de saneamento básico. (ROCHA, 2014). Em 1990, aproximadamente 180 nações pactuaram com a Organização Mundial de Saúde (OMS) a implementação de políticas que reduzissem a mortalidade materna e infantil. A meta era chegar em 2015 com a diminuição de 75% no número de óbitos maternos e infantis. Em 2010, o Brasil esteve distante quando se trata da Razão de Mortalidade Materna (RMM), que é o número de óbitos para cada 100 mil crianças nascidas vivas. Para atingir a meta, o Brasil teria que chegar em 2015 com RMM menor que 35 por 100 mil nascidos vivos. Acontece que o país encontrava-se com 63,9 óbitos, em 2011. No Ceará, este indicador está em 88,6 por 100 mil nascidos vivos, maior que a média nacional. Hipertensão, hemorragias, infecção puerperal, doenças do aparelho circulatório e abortamentos são responsáveis por quase 100% destes óbitos, tanto no Ceará como no Brasil. O perfil das mulheres que morrem, na sua maioria, são negras e pobres e 15% delas adolescentes. (ANANIAS, 2014).

A taxa de alfabetização na população de 15 anos ou mais de idade, no Ceará, saltou de 75,2% em 2001, para 83,7% em 2012. Média inferior à nacional, que tinha 87,6% em 2001, subindo para 91,3% em 2012. É o que aponta o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2014. O estudo revela que universalizar, até 2016,

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a educação infantil na pré-escola para crianças de 4 e 5 anos de idade, e ampliar a oferta de educação infantil em creches, de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos, é meta do Plano Nacional de Educação (PNE). Contudo, entre 2011 e 2012, a porcentagem de crianças de 4 e 5 anos que frequentam a escola cresceu 0,5 ponto percentual no Brasil. Era de 81,7 em 2011, passando para 82,2 em 2012. No Ceará, o crescimento foi de 2,2%, aumentando de 90,8% em 2011, para 93% em 2012. O ritmo é lento, e fica mais evidente diante da meta de universalização do acesso à pré-escola, que deve ser cumprida em 2 anos, segundo o PNE e conforme a EC nº 59/2009. O Brasil possui 7.295.512 crianças na educação infantil, 2.540.791 em creches e 4.754721 na pré-escola. Universalizar o ensino fundamental de 9 anos para toda a população de 6-14 anos e garantir que pelo menos 95% dos alunos concluam esta etapa na idade recomendada também está entre as metas do PNE. Mas, desde 2007, a taxa líquida de matrícula do ensino fundamental do Ceará permanece a mesma - 93,8%. Embora o índice seja razoável, ainda há uma distância até se alcançar a universalização estabelecida em lei e traduzida em meta pelo PNE, por se tratar da inclusão da população com maior vulnerabilidade social. (LIMA, 2014).

O “Ceará concentrado” é corroborado pelo fato de ter recebido mais de R$ 2,6 bilhões em investimento estrangeiro nos últimos 18 anos (1995-2013), dos quais 60% das empresas (3.206) ficaram em Fortaleza e 5% dos empreendimentos (285) em Caucaia, situada na RMF. O Panorama sobre o Investimento Estrangeiro no Ceará foi apresentado em maio de 2014 na Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC). De acordo com o estudo, a maioria dos estrangeiros que investem no Ceará é de portugueses, pessoas físicas, relacionados à indústria do turismo, serviços, energia eólica e construção civil. Já os espanhóis são os que mais investem em quantidade de recursos. Na verdade, a lógica é o capital ir para onde tem capital. Capital estrangeiro no Brasil vai para o Sudeste e quando vem para regiões economicamente menos favorecidas, chegam aos principais centros, com a maioria dos investimentos sendo realizados em Fortaleza e muito pouco para o Interior. (MARQUES, 2014).

O Ceará é uma unidade federativa em constante déficit na balança comercial. Em 2013, as exportações registraram aumento de 12,1% sobre 2012, represen-tando o maior valor exportado desde 2009, com US$ 1,4 bilhão. O mesmo vale às

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importações, com incremento de 15,3% em relação ao ano anterior, alcançando assim US$ 3,3 bilhões. Em 2013, a balança comercial cearense registrou déficit de quase US$ 1,9 bilhão. Ressalte-se, que apesar do saldo negativo, o ano de 2013 foi vigoroso para o comércio exterior cearense, com quebra de recorde para as exportações e importações, com participação do Ceará na balança comercial brasileira passando a representar 0,59% de tudo o que foi exportado pelo país. Do lado das importações, o estado registrou 1,38%. O Ceará permanece na 15ª posição entre os estados brasileiros exportadores em relação ao ano de 2012. São Paulo (US$ 56,3 bilhões), Minas Gerais (US$ 33,4 bilhões) e Rio Grande do Sul (US$ 25,1 bilhões) correspondem a quase metade de todas as vendas externas brasileiras em 2013. (CARDOSO, 2014).

O déficit de bons gestores municipais talvez seja a mais grave preocupação do quadro geral de problemas que historicamente assola o Ceará (93% do território estadual encravado no Polígono das Secas, solo cristalino, clima semiárido e intermitência pluviométrica; altas taxas de migração e miséria; 80% de cidades de “economia sem produção”; 4% do PIB relativo à agricultura; industrialização tardia e turismo sem capacitação; representar somente 2,1% do PIB nacional; e ape-nas 8 cidades possuírem mais de 100 mil habitantes). Lógico, sem desconsiderar estiagens prolongadas decorrentes de fenômenos cíclicos e inevitáveis desman-telam a estrutura de produção agrícola e pecuária. O Ceará, nesse ponto, apesar das fortes desvantagens naturais, mudou seu perfil substancialmente quando diversificou as fontes geradoras de riqueza do PIB e de distribuição da água. Por padecer de forte desequilíbrio regional e fortes desvantagens naturais, é que o Ceará urge por cidades que rivalizem com Fortaleza (e regiões metropolitanas) o encaminhamento do êxodo demográfico, a atração de investimentos produtivos e a recepção preferencial de equipamentos públicos e obras de infraestrutura. Torna-se fundamental proporcionar um grau de planejamento estadual conectado com “padrões prospectivos de desenvolvimento de cidades selecionadas” que dinamizem a economia, desconcentrem a população, proporcionem equilíbrio es-truturante em todas as grandes regiões cearenses e influenciem as administrações das cidades para que ampliem seus níveis de desenvolvimento socioeconômico. Mas, para que o Ceará iguale o PIB (2,18%) à população (4,4%) em proporção nacional, seriam necessários 30 anos de crescimento contínuo de 3,5% do PIB cearense e sem aumento populacional. Por isso é tão necessário refletir sobre uma

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célebre frase de Peter Ducker: Gerenciamento é substituir músculos por pensamentos, superstição por conhecimento, e força por cooperação.

4. municípios referenciais ao invés de mais municí-pios no ceará

A bandeira da criação de novos municípios tem sido frustrada, diante das dificuldades que a pauta encontrou em nível nacional. Especialistas em Administração Pública e Direito Municipal ponderam que o apoio à eman-cipação dos distritos tem viés mais político do que técnico. Reconhecendo que essas localidades enfrentam precariedades, os doutrinadores apontam para o contrassenso de se criar novas estruturas administrativas sem viabilidade financeira. O que a realidade brasileira tem mostrado é que a maior parte dos distritos que estão querendo se tornar municípios, em princípio, não reúne essas condições básicas, como estrutura urbana, saúde, educação, segurança pública, habitação e autonomia financeira.

A Revista de Administração Municipal do Instituto Brasileiro de Adminis-tração Municipal (IBAM) publicou vários artigos para entender o animus emancipatório. Rudolf Noronha (1996, p. 110-117) procurou focar a opinião das comunidades locais, através de entrevistas realizadas com os habitantes de 17 municípios do Rio de Janeiro que alcaçaram sua emancipação durante o período de 1985-1993, concluindo que 4 desses municípios emanciparam-se por interesses político-eleitorais visando novos núcleos de poder; 6 deles por apresentarem estáveis condições econômicas; e 7 buscaram a emancipação para evitar que a economia local estagnasse. Vale ressaltar, que 1.408 municípios foram criados entre 1984 e 87, quando não havia regras claras. Desses 77% tinham 10 mil habitantes ou menos, e geralmente sem capacidade de gerar receita. Entre 1991 e 1996, mais de 1.000 municípios foram criados no Brasil, saltando, em menos de 5 anos, de 4.491 para 5.507 municípios. A pesquisa de Rudolf Noronha (1996) no tocante aos 4 distritos que haviam buscado a emancipação movidos, prioritariamente, por interesses político-eleitorais de determinados grupos, analisou que diversos políticos vendo-se derrotados eleitoralmente e sem novas chances de retornar aos poderes públicos (executivo e legislativo), viam na criação de um novo município o retorno de tal possibilidade, ainda que estes intuitos

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fossem ocultos nos discursos de emancipação. Mas, nesses discursos, também se omitia a estrutura do município (em geral com até 15 mil habitantes), quais sejam eles: 01 Prefeito e 01 Vice-Prefeito, o mínimo de 09 vereadores (art. 29, IV, a da Constituição de 1988), 06 secretários municipais, em média; e centenas de cargos comissionados que independem de concursos públicos.

Levantamento inédito da Federação das Indústrias do Rio (FIRJAN), de 2011, concluiu que 533 cidades analisadas (12%) gastaram mais com atividades burocráticas da administração e com o Legislativo local do que com Saúde e Assistência Social. Além do que, 548 cidades (12,3%) desembolsaram mais com o custeio da máquina do que com Educação. A análise considerou 4.437 municípios no período, que com o cruzamento de dados, verificou-se que 269 prefeituras gastaram mais com atividades burocráticas da administração e com o Legislativo do que com Saúde, Assistência Social e Educação. Metade delas possuía menos de 5 mil habitantes, e apenas 10 superavam 100 mil habitantes. O peso da administração municipal é maior nas cidades pequenas, já que enquanto cada brasileiro desembolsou, em média, R$ 280 com administração e Legislativo municipais em 2011, em cidades com menos de 5 mil habitantes, esse valor era R$ 621,00 (CASTRO & ILHA, 2013). Outro levantamento feito pela FIRJAN e O Globo nas Assembleias Legislativas dos 26 estados da federação revela que o país poderia ganhar até 410 novos municípios, elevando para quase 6 mil o número de cidades brasileiras. O Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM), demonstrou que em 58 prefeituras, criadas entre 2001 e 2010, foram abertos novos 31 mil cargos públicos, que movimentaram, em 5 anos, R$ 1,3 bilhão do FPM. Todo esse investimento, entretanto, não se reverteu em melhoria dos indicadores sociais para a maioria das cidades. O IFDM, divulgado em janeiro de 2013, 45% dos 58 municípios emancipados registraram piora de desempenho ao longo da última década. (BIASETTO, 2013). Conforme Chico Alencar (2014), em 2013, 88% das prefeituras brasileiras tinham débito com a Previdência, apenas 4% conseguiam levar seus resíduos sólidos para aterros sanitários, 37% dos municípios com menos de 50 mil habitantes não conseguiam disponibilizar seus dados para os cidadãos e cerca de 2.500 dos municípios brasileiros não tinham receita própria.

Em 1995, antes da EC que freou as emancipações, a Secretaria da Fazenda do Ceará (SEFAZ) realizou estudo sobre o potencial arrecadador de municípios

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criados havia pouco tempo, elaborada pelo assessor Alexandre Cialdini. Na pesquisa, foram analisados 12 dos 31 municípios emancipados entre 1987 e 1992: Ararendá (1990), Barreira (1987), Barroquinha (1988), Deputado Irapuan Pinheiro (1988), Ererê (1987), Fortim (1992), Graça (1987), Horizonte (1987), Miraíma (1988), Ocara (1987), Pires Ferreira (1987) e Tarrafas (1987). A constatação foi de que, pelo menos cinco anos depois de criados, a capacidade arre-cadatória desses municípios se revelou insignificante, viabilizando-se escorados no FPM. Dos 12 municípios, 7 estavam acima da média de participação do FPM no total arrecadado. (FIRMO, 2013). O estudo ressalta que nem o FPM nem os outros sistemas de partilha ou transferência devem substituir o esforço fiscal próprio. Mas serem sempre fonte suplementar de recursos e jamais a única alternativa de sobrevivência. O estudo mostrava ainda que, em 1994, 70% dos gastos dos municípios recém-criados iam para despesas correntes. Ou seja, má-quina administrativa. Em apenas 3 municípios, os investimentos representaram ao 1/3 das despesas. Em 5 deles, não chegaram a 1/5 dos gastos. Ou seja, dinheiro demais para manter a burocracia e quase nada para desenvolver o local. O estudo mostrou ainda que, em 1994, nenhum dos municípios arcou com a totalidade das despesas empenhadas previstas em orçamento (restos a pagar). Em apenas 4 municípios, a arrecadação superou as despesas previstas. Em 8, estimou-se gastar mais do que se arrecadou, aí incluídas as transferências. Ademais, as emancipações não reduziram o êxodo rural. Pelo contrário, o processo aprofundou-se em mais de 80% dos municípios no período.

Para Alexandre Cialdini, ao invés de estimular a criação de novos municípios, dever-se-ia investir na aplicação e oportunidade geradas com a Lei de Consórcios Públicos. Essa alternativa significaria, ao invés de desmembrar distritos, promover parcerias entre entes autônomos para superar as muitas carências e alcançar determinados objetivos em comum com a promoção de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento local e regional. Os municípios participantes não perdem autonomia, mas passam a atuar em conjunto nas ações determinadas. Seria solução que vem ao encontro do modelo federativo cooperado, como acontece nas economias desenvolvidas. A alternativa vai no caminho inverso da emancipação de distritos, embora não seja necessariamente antagônica. (FIRMO, 2013).

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Conforme estudos realizados pelo O Povo (2013), a maioria dos municípios criados no Ceará entre 1987 e 1992 ainda não apresentou melhorias nos índices socioeconômicos. No levantamento, O Povo escolheu os 12 municípios analisados em 1995, por Alexandre Cialdini, da SEFAZ-CE). Pelo menos 7 das 12 municípios criados no período estão na rabeira do ranking do Índice de Desenvolvimento Municipal (IDM), que consiste em uma análise multidimensional com 30 indicadores ligados a aspectos fisiográficos, fundiários e agrícolas, demográficos e econômicos, infraestrutura e sociais, sendo que 10 dos avaliados estão em situação pior que suas antigas sedes. Segue a lista dos piores do ranking IDM 2010: Ererê, Tarrafas, Miraíma, Pires Ferreira, Ararendá, Barreira, Ocara, Barroquinha, Fortim e Graça. As exceções, ou seja, os que melhoraram no ranking IDM 2010, são Horizonte e Deputado Irapuan Pinheiro. Para Sergiano de Lima Araújo (2010, p. 20), cerca de 85% dos municípios cearenses “sobrevivem” exclusivamente dos recursos do FPM e ICMS. Dos 184 municípios do Ceará, somente 15 têm outras arrecadações e, a grande maioria dos municípios sequer cobra o IPTU dos munícipes. É o que se denomina de “economia sem produção”, com os recursos arrecadados mal dando para custear os gastos da máquina pública e pagar salários do funcionalismo. Sem recursos próprios, a maioria dos municípios cearenses tem ficado refém da renda gerada pelas aposentadorias rurais e pelas políticas sociais de complementação de renda do governo federal, mantendo quase inalterado o estado de pobreza dessas populações.

Ao contrário de outros estados do Sul, Sudeste e Nordeste, falta ao Ceará mais cidades que sirvam de referências em todas as macrorregiões de planejamento estadual. Cidades que ajudem a desconcentrar as populações das regiões metropolitanas de Fortaleza e do Cariri e sejam âncoras na ampliação do mercado imobiliário, na recepção de equipamentos públicos e na atração de investimentos produtivos. Descentralização é a estratégia de desenvolvimento regional que aglutina municípios limítrofes que possuem afinidades sociais, econômicas, ambientais, e culturais com o objetivo de utilizar regionalmente os potenciais das cidades para procurar inibir os fatores que produzem desequilí-brios interregionais. Existem duas categorias de cidade diante dessa estratégia de desenvolvimento descentralizado e de realidade urbana: a cidade municipal e a cidade metropolitana. A cidade municipal é conceituada como realidade urbana que se estende em um único município. Já a cidade metropolitana é

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uma realidade urbana que se estende por vários municípios, enquanto realidade intermunicipal. Quanto à gestão, cidades municipais são administradas pelo seu todo, pois se encontram contidas em um município e detêm poderes executivo e legislativo únicos, sendo legítima a competência do Município/gestor. Nas cidades metropolitanas precisam ser geridas por partes, uma vez que cada município administra a parte da cidade situada em seu território e, a competência não é somente municipal, mas, também, do Estado/gestor. A governança da cidade metropolitana precisa ser compartilhada por governos e sociedade em busca de um arranjo político-administrativo que equacione tal dualidade. Na verdade, a vida do cidadão metropolitano que vive em uma das cidades municipais faz parte da cidade metropolitana, como é o caso daquele que mora na cidade A, trabalha na cidade B, frequenta curso superior na cidade C e se diverte na cidade D. Mais da metade da população brasileira mora em cidades metropolitanas, que con- centram problemas socioeconômicos que causam sofrimento à população, ao mesmo tempo que multiplicam as oportunidades. (CARTAXO, 2014).

A experiência de agrupamentos e debates das potencialidades regionais acoplada da ideia de fortalecer as cidades-sede das regiões já existe fartamente no Ceará. As associações dos municípios das regiões do Vale do Curu, Juaguaribe, Maciço de Baturité, Zona Norte, Serra da Ibiapaba, Sertão Central, Cariri, dentre outras, há algum tempo organizam encontros com rodízio de sedes, contando com a presença de prefeitos e secretários municipais, universidades, bancos de fomento, agências de desenvolvimento, secretários estaduais e consultores para discutir os mais diferentes projetos. Tais associações foram criadas com o objetivo de promover a união dos municípios e seus fortalecimentos regionais através do desenvolvimento sustentável, tendo como metas realizar cursos, congressos e eventos visando à meritocracia institucional dos municípios, utilizando-se como ferramentas os serviços de consultoria técnica especializada para a assistência de seus filiados.

Outra opção para os municípios é a formação de consórcios entre cidades vizinhas ou entre aquelas pertencentes à mesma região para otimização de investimentos e redução do custeio com recursos humanos. Exemplo típico é o capitaneado pela Associação dos Municípios do Ceará (APRECE) e denominado Consórcio de Governança Cooperativa para Políticas Públicas de Convivência e Desenvolvimento dos Municípios do Semiárido Cearense, que abrangerá 30

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municípios situados nos Sertões de Crateús, Inhamuns e Sertão Central, além do município de Acopiara, no Centro Sul. O Consórcio visa a convivência e não apenas para a sobrevivência da população no semiárido, trabalhando questões e consequências climáticas de forma preventiva, com uma equipe técnica para rea-lizar estudos e compor o perfil de cada município. A primeira sede do Consórcio será em Tauá e mudará a cada dois anos. Uma equipe com técnicos de várias áreas, especialmente de recursos hídricos será formada e fará estudos hídricos e geológicos de todos os municípios envolvidos, a fim de montar um perfil com características, localização e especificidades de cada cidade. A partir daí serão elaborados projetos regionais, de acordo com a vocação e necessidade maior de cada município. O consórcio terá um pensamento global. Os resultados concretos serão a construção de reservatórios, poços profundos, além de investimento na agricultura familiar e no meio rural, em consonância com as políticas públicas. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2014).

A FIEC também se engaja no esforço pela descentralização do setor industrial cearense visando apressar o processo de desenvolvimento estadual, que padece de forte concentração. Para libertar a economia cearense da produção primária, foi apresentado o Programa Indústria Viva ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio reivindicando apoio para a criação de 7 polos industriais no Complexo Portuário e Industrial do Pecém, Limoeiro do Norte, Sobral, Russas/Morada Nova, Cariri, Iguatu e Sertão Central (Quixeramobim e Quixadá), interiorizando, assim, a produção secundária, além de incentivos finan- ceiros para a modernização das plantas industriais. Para a FIEC, existem, no momento, empreendimentos industriais demonstrando a vocação interiorana para o crescimento ordenado e o desmonte do desequilíbrio regional. Outro projeto da FIEC denominado Setores Portadores de Futuro Para o Ceará, ouviu 250 especialistas de diferentes regiões do Estado, que apontaram os setores com maior potencial de futuro para economia cearense, frente às exigências do mercado global até 2025 em 54 municípios cearenses. A partir desses resultados, mitigam-se os riscos de se investir em áreas onde não se tem chance de competir, aumentando a segurança para os empresários, instituições de credito e institui-ções de desenvolvimento publicas e privadas. Coincidentemente, o Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico (CEDE), destaca que as empresas instaladas no Ceará entre 2007 e 203 contemplaram somente 51 municípios do

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Estado (ou 27,7% dos 184 municípios cearenses). Desses, 13 estão na RMF. Os investimentos que chegaram a R$ 2,6 bilhões são frutos dos incentivos fiscais estadual de redução das alíquotas do ICMS. (O Povo, 2014). São ao todo 17 setores (Água, Biotecnologia, Confecções, Construção Civil, Couro & Calçados, Economia Criativa, Economia do Mar, Energia, Indústria Agroalimentar, Logística, Meio Ambiente, Metal-mecânico, Minerais Não-metálicos, Madeira & Móveis, Saúde, Tecnologia da Informação, Comunicação e Turismo) que trazem novas perspectivas de transformar o tecido do setor empresarial cearense em cada região do Estado. A promessa é situar o Ceará em posição competitiva nacional e internacional, contribuindo para o desenvolvimento sustentável entre todas as regiões: Sul, Centro-Sul, Jaguaribe, Sertões, Noroeste, Norte e Metropolitana de Fortaleza. (MUCHALE, 2014).

Desde 1980, comentam-se no Brasil sobre o programa asiático de incentivos fiscais visando criar distritos industriais e exportadores competitivos para gerar empregos e desenvolvimento econômico: as Zonas de Processamento de Exportação (ZPE). Em 2013, o Ceará implantou a primeira ZPE em operação no País, a maior em dimensão geográfica, com 572 hectares já alfandegados dos 4.271 hectares no total, além de contar com duas âncoras de impulsão ao desenvolvimento: a Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP) e a Vale Pecém. Somente a CSP possui 3 mil operários no canteiro de obras, e a tendência é aumentar até o pico da construção até 2014, para 15 mil homens. A expectativa é de que o PIB industrial cearense tenha incremento de 40% nos próximos 5 anos com a ZPE. (ADECE, 2013).

O enfrentamento dos desequilíbrios cearenses exige políticas públicas e programas privados de estímulo ao crescimento econômico ancoradas na coexistência de múltiplos núcelos de crescimento. Interiorizar o desenvolvimento requer fortalecer as aptidões de algumas cidades e suas regiões de influência, Ou seja, em cidades-polo que absorvam crescimento urbano, organizem regiões e viabilizem o desenvolvimento socioeconômico. No caso, deve-se mapear tais cidades-polo de influência regional no Ceará para que sirvam como pontos estaduais de equilíbrio econômico, caso haja parcerias entre poderes públicos, agências de fomento financeiro e qualificação do empreendedorismo, entidades da sociedade civil e empresariado em geral, numa unidade pública-coletiva-privada que pode ofertar programas visando o desenvolvimento regional

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equilibrado e integrado do Ceará com a dinamização econômica a priori de 20 municípios, através de coleta e produção de informações, elaboração de dia-gnósticos e articulação política para financiamento e investimentos públicos e privados e incentivos técnico-administrativos para ampliação do capital social das cidades selecionadas. Apenas instituições políticas inclusivas geram instituições econômicas prósperas. Por todos os problemas históricos, naturais e econômicos, o Ceará necessita de um planejamento político racional para a condução econômica pragmática envolta numa metodologia institucional participativa que garanta oportunidades às mais importantes cidades de suas regiões. O Ceará pode alcançar um equilíbrio programado das macrorregiões através de cidades símbolos, aglomeradoras e dinâmicas, caso conte, em especial, com a “boa gestão municipal” visando interiorizar e exemplificar o desenvolvimento.

Ao invés de novos municípios de pequeno porte, o Ceará necessita de cida-des-polos com influência econômica regional. É imperioso o lastro técnico das administrações municipais para ampliar receitas tributárias, operar novos fluxos demográficos, avançar a mobilidade social, atrair empreendimentos e obras com integração competitiva em educação, cultura e ciência & tecnologia. O Ceará, que rivalizava com Piauí e Maranhão pelos piores índices nordestinos, a partir de 1987 montou um plano de vôo administrativo reconhecido internacionalmente. Atualmente, disputa com Pernambuco e Bahia pela hegemonia econômica nordestina. Nas últimas três décadas, o mais duradouro, qualificado e eficiente “choque estadual de gestão” foi patrocinado pelo Ceará. Mesmo com o 12º PIB brasileiro, o Ceará ocupa a 4ª posição nacional em capacidade de investimentos, perdendo somente para São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

5. conclusões

Diante os dados levantados e a partir das pesquisas realizadas sobre o processo de emancipação distrital e criação de novos municípios no Brasil e no Ceará, pode-se constatar a mora do Congresso Nacional em regulamentar a temática que tanto interessa aos Estados e Municípios e levanta tantas discussões controversas. Fato é que desde 1996, quando foi aprovada Emenda Constitucional que retira dos Estados a prerrogativa absoluta de legislar sobre novos municípios, o país encontra-se sem Lei Complementar federal para regular o processo de criação,

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fusão, desmembramento e incorporação de municípios. Tal inércia do legislador federal com o pacto federativo fez com vários estados, assim como o Ceará, resolvessem dar um passo a frente da União e buscassem formas alternativas de concretizar a criação de novos entes federados, por meio de leis próprias que suprimem a falta da regulamentação federal.

Os diferentes estudos e pesquisas apresentados mostram que os critérios atuais ainda não são suficientes para garantir ao distrito que se emancipa a certeza de conseguir desenvolver-se sem inchar a máquina pública, prejudicar o município-mãe ou independente de repasses constitucionais. Uma vez que, historicamente, municípios recém-emancipados não se encontram preparados econômica e es-truturalmente para melhorar as condições de vida da população. Principalmente, no assimétrico e desequilibrado Estado do Ceará, salvo raras exceções. Nenhuma cidade cearense poderá almejar ser uma referência regional caso não reúna três características básicas: 1) sólidas instituições políticas e econômicas; 2) renda per capita elevada e bem distribuída, e 3) políticas públicas eficientes refletidas em altos IDH. Mas que criar municípios de pequeno porte, fundamental para o Ceará é que as municipalidades tenham capacidade para criar um ambiente propício para o investimento produtivo e crescer num ritmo sistemático de parcerias regionais. Como deve ser a cidade metropolitana: envolta em gestão estadual e local.

O déficit de bons gestores municipais talvez seja o mais grave problema de um quadro geral de desvantagens naturais, atavismo econômico e forte desequilíbrio regional que historicamente assolam o Ceará. Somente um grau de planejamento estadual conectado com “padrões prospectivos de desenvolvimento de cidades selecionadas” ou cidades-polos que “concentrem pra desconcentrar” todas as grandes regiões cearenses. Enfim, para que o Ceará possa em razoável período igualar sua população ao seu PIB em proporção nacional.

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o estudo de impacto ambiental: um instrumento de proteção à

função social da cidade

Adriana de Abreu Mascarenhas1

Robson Antão de Medeiros2

Resumo

O direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado presente no artigo 225, caput, da Constituição brasileira de 1988 é um direito fundamental, isto é, seu conteúdo invoca a construção da liberdade do ser humano. O presente artigo tem por objetivo analisar o estudo de impacto ambiental frente aos instrumentos de proteção à função social da cidade, através de pesquisa bibliográfica e legislação especializadas. Principais resultados obtidos inserem-se no sentido de que o desenvolvimento sustentável não pode ser imposto por pressões externas; deve penetrar na cultura, como parte dos valores, interesses e prioridades de cada País. A transição à sustentabilidade exigirá um ambiente econômico internacional solidário. Ela não poderá favorecer uma imposição externa de novas condições ou limitações ao desenvolvimento. Não se pode negar aos países o direito de crescer, nem impedi-los de escolher seus próprios caminhos de crescimento. Tal direito tão pouco deve ser limitado por novas condições ou fluxos financeiros e comerciais impostos em nome do meio ambiente.

Palavras-chave

Direito Ambiental; Estudo de Impacto Ambiental; Espaços Urbanos.

Resumen

El derecho a un medio ambiente ecológicamente equilibrado presente en el artículo 225, caput, de la Constitución brasileña de 1988 es un derecho fundamental, es decir, los contenidos invoca la construcción de la libertad

1 Doutoranda e Professora do CCJ/UFPB2 Doutor e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Jurídicas/CCJ/UFPB.

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humana. Este artículo tiene como objetivo analizar los instrumentos del estudio de impacto ambiental de la protección contra la función social de la ciudad, a través de una revisión de la literatura y de la legislación especializada. Resultados principales obtenidos se insertan en el sentido de que el desarrollo sostenible no puede ser impuesta por presiones externas; debe penetrar en la cultura, como parte de los valores, intereses y prioridades de la transición de cada país con la sostenibilidad requerirá un entorno económico internacional favorable. Ella no puede favorecer a una imposición externa de las nuevas condiciones o limitaciones al desarrollo. No se puede negar a los países el derecho a crecer o evitar que la elección de su propio camino de crecimiento. Este derecho debe limitarse tan poco a las nuevas condiciones o impuestos financieras y comerciales en favor del medio ambiente.

Palabras clave

Derecho Ambiental; Estudio de Impacto Ambiental; Espacios Urbanos.

1. introdução

A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento salientou que havia um problema fundamental a ser resolvido: muitas das atuais tendências do desenvolvimento resultam em número cada vez maior de pessoas pobres e vulneráveis, além de causarem dano ao meio ambiente. Faz-se necessário um novo tipo de desenvolvimento capaz de manter o progresso humano não apenas em alguns lugares por alguns anos, mas em todo o planeta até um futuro longínquo. A fórmula sugerida é a tese do Desenvolvimento Sustentável.

O direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado presente no artigo 225, caput, da Constituição brasileira de 1988 é um direito fundamental, isto é, seu conteúdo invoca a construção da liberdade do ser humano. A liberdade, objeto do direito fundamental, é aquele conjunto de elementos mantenedores e estabilizadores da sociedade em que se insere o direito positivo. Não há lei natural que reflita o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O fato de o objetivo de sua aplicação ser o bem-estar e a manutenção da vida na terra não significa filiação a qualquer lei natural. A natureza não é necessariamente boa e nem muito menos busca o equilíbrio da manutenção da vida. Não há qualquer

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naturalidade na obtenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. É uma imposição social cujos meios de implementação e movimentos de reação e oposição a sua concretização são encontrados na própria sociedade.

Em resumo, um direito fundamental será obtido por meio do direcionamento das relações sociais para sua obtenção. Quando se trata do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, as relações sociais econômicas têm força decisiva para sua efetivação. O meio ambiente compreendido como recurso natural, e o meio ambiente como local em que se travam as relações sociais, são diretamente atingidos pelos resultados da atividade econômica. Sendo assim, para a concretização do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, deve a atividade econômica desenvolver-se pautada no princípio da defesa do meio ambiente (artigo 170, VI, da CF). As relações travadas em sociedades destinadas à reprodução de riquezas não podem prescindir de avalia-ções destinadas a garantir a manutenção do meio e a reprodução dos recursos naturais utilizados.

O conteúdo do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado vincula-se à aplicação que se faz do princípio da defesa do meio ambiente prescrito no capítulo da Ordem Econômica da Constituição brasileira. A realização do meio ambiente ecologicamente equilibrado pressupõe a obediên-cia ao princípio da defesa do meio ambiente nas atividades econômicas. Sendo um direito fundamental a ser construído na atividade social, somente a atividade social - por conseguinte a atividade econômica - que contemple o princípio da defesa do meio ambiente poderá concretizá-lo. Assim, será conforme o direito aquela atividade que no seu desenvolvimento orienta-se na defesa do meio ambiente e, deste modo, contribui na concretização do direito fundamental social ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Uma economia ecologicamente alinhada, isto é, uma economia que considera os aspectos ambientais de qualidade do ambiente e sustentabilidade dos recursos, é uma economia que se desenvolve pautada no princípio da defesa do meio ambiente, inscrito na ordem econômica constitucional, e que se destina a realizar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Os interesses privados prevalecentes nas atividades econômicas são confrontados com interesses coletivos, isto é, próprios às pessoas que convivem numa sociedade,

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sedimentando a norma jurídica uma necessária solidariedade, para a obtenção de objetivos forçosamente comuns, porque atingem a todos, embora natural-mente com reflexos diferenciados, dependendo da posição de cada indivíduo na sociedade.

2. meio ambiente: os fundamentos filosóficos da tu-tela ambiental

O meio ambiente é, atualmente, destaque em todos os meios de comuni-cação, bem como alvo de políticas públicas de diversos Estados. No entanto, para que se entenda o porquê de tamanha importância, é fundamental que se aborde, ainda que de maneira breve, os motivos filosóficos que levaram a sociedade a colocar a questão ambiental em posição privilegiada.

Uma primeira corrente de pensamento, de caráter dominante, explica a preo-cupação ambiental pela vertente da necessidade. O homem ocidental, desde as suas civilizações mais antigas, tende a se colocar como o centro do universo. Desde Platão, que se refere ao homem como raça superior, passando pelo cristianismo, afirmando que o homem é imagem e semelhança de Deus, e chegando até Hobbes, o qual preceitua que o homem é o lobo do homem, o antropocentrismo tem tradição no pensamento do Ocidente.

Por esse entendimento, diversas são as causas que fazem o homem tutelar o meio ambiente. Uma delas se refere à questão da sobrevivência e prosperidade humana: a sociedade e o meio ambiente se auto-protegem, ambos garantindo sua sobrevivência; assim como não há progresso econômico sem ecossistemas saudáveis e, sobretudo, úteis ao homem. Nessa última perspectiva, há uma valorização daquilo que, no meio ambiente, é conveniente ou não à sociedade. São contrariados, por conseguinte, os ensinamentos de Aristóteles, o qual determina que a natureza não cria nada sem real necessidade.

Outra vertente antropocentrista busca explicar a proteção à natureza sob uma proposta religiosa. O homem protegeria a natureza porque nela identifica Deus. Tendo como base trechos bíblicos, bem como ideias de São Francisco de Assis, forma-se um ambientalismo espiritual que busca explicar na fé a causa da tutela ambiental.

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Questões estéticas também embasam a proteção à natureza. As belezas dos Alpes, a variedade de cores e formas das florestas tropicais são, para alguns, riquezas incapazes de serem aferidas economicamente. O grande valor estético do meio ambiente é atemporal, frente à paisagem artificial e ao estilo de vida caótico presentes nas grandes cidades.

Questões culturais também ensejam na proteção ao meio ambiente, uma vez que muitos povos possuem elementos e habitat específicos, que lhes remetem à sua identidade, e por isso são alvos de preservação. No entanto, resguardar a águia norte-americana, símbolo da cultura dos EUA, não tem o mesmo caráter benigno de preservar a caça as baleias, genocídios ou canibalismos realizados por vários povos. Há também justificativas recreacionais, baseadas no que hoje chamamos de ecoturismo. Áreas ecologicamente ameaçadas surgem, no “greentourism”, como uma grande justificativa para, na verdade, fugir do estresse da vida urbana e tentar camuflar o caráter individualista da sociedade moderna.

Por fim, uma das formas mais antropocêntricas de se justificar a preservação da natureza é a de buscar garantir, às futuras gerações, um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Essa preocupação com as gerações futuras é típica do pós-guerra e busca mostrar um compromisso político dos governantes com a sociedade traumatizada pelos conflitos. A última grande corrente de destaque na busca pelos fundamentos da preservação ambiental é o biocentrismo, o qual revela uma proposta não antropocêntrica através da estipulação de valores intrínsecos à natureza. O homem e meio ambiente ocupam uma posição de paridade, de maneira que não se considera os diferentes níveis de racionalidade ou aptidões das espécies: os direitos têm que ser conferidos ou negados a todos os integrantes da natureza, desde que haja sempre presentes os sensos de justiça e compaixão.

Nas palavras de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (s/d):

Conclui-se que o antropocentrismo é o substrato filosófico da proteção ambiental. Radica no auto-interesse, em razão econômica, em justificativas religiosas, estéticas, culturais, recreacionais. Constrói-se o mito das “futuras gerações”. Formata-se uma reação biocêntrica, ainda não totalmente esclarecida, com as cores de um antropocentrismo retificado, mitigado, emancipado. Percebe-se uma apropriação mercadológica, que transita num discurso

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messiânico, apocalíptico, escatológico, que alberga oportunistas, que vendem uma bandeira, por alguns minutos de fama, comprovando o vaticínio de Andy Warhol.

Embora esse último posicionamento pareça ser o mais coerente com uma proteção justa ao meio ambiente, não se pode negar a mistura de todas as outras opiniões na formação dos fundamentos da tutela ambiental. Cada um, em menor ou maior grau, serve de embasamento para medidas protetivas editadas pelos Estados, bem como para ações das sociedades.

3. histórico da tutela do meio ambiente

A legislação ambiental brasileira é, indubitavelmente, uma das mais modernas do mundo. Todavia, para que haja uma real compreensão das nossas normas ambientais, é necessário o estudo do processo evolutivo da nossa legislação ao longo da História, ou seja, é fundamental que se busque compreender os fatores históricos que, aparentemente irrelevantes em sua forma singular, são essenciais na formação da ordem jurídica vigente.

Segundo Antonio Herman de Vasconcelos e Benjamin, o Brasil passa por três fases na sua evolução legislativo-ambiental, a saber: o período da exploração desregrada, o período fragmentário e o holístico. Contudo, é importante ressaltar que essas fases não são estanques, delimitadas ou excludentes, mas sim constituem em momentos interdependentes, nos quais, muitas vezes, normas com orientações diversas convivem lado a lado no mesmo espaço de tempo. Assim, a interpretação é amplamente usada para identificar se os dispositivos em análise regulam o meio ambiente por uma visão mais avançada ou se ainda adotam uma política mais sedimentada. (ALMEIDA, 2002)

3.1. primeiro momento: a fase da exploração desre-grada

A situação legislativa ambiental da atualidade e, sobretudo, o pensamento ecológico vigente no Brasil são frutos do período compreendido entre 1500 e, aproximadamente, meados do século XX, chamado de fase da exploração desregrada. Durante grande parte desse período, as terras brasileiras estavam sobre a influência do domínio português, o qual regulava essa submissão de acordo com suas necessidades. (ALMEIDA, 2002)

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Assim, deve-se sempre ter como base a ideia de que, ao Brasil, era incumbida a tarefa de fornecer gêneros tropicais à metrópole, bem como aos outros paises aos quais estivemos subordinados (Espanha no século XVI e Holanda no século XVII), de modo que qualquer dispositivo legal teria que se adequar a essas necessidades.

Quando o Brasil foi descoberto, estavam vigentes, em Portugal, as Ordenações Afonsinas, primeiro código legal europeu, que tinha como fontes desde o Direito Romano e Canônico até as leis promulgadas por D. Afonso II. Ao que parece, a legislação portuguesa era avançada em termos ambientais, como se percebe com a proibição do corte deliberado de árvores frutíferas, contida no livro V, título LVIII das Ordenações Afonsinas. O referido crime era tipificado como uma injúria ao rei, o que demonstra a grande preocupação portuguesa com proteção florestal. (WAINER, 1991, p. 4)

Contudo, não se deve esquecer que o fulcro da tutela ao meio ambiente era de ordem econômica, uma vez que não poderia haver progresso para o país sem o emprego da madeira necessária à expansão ultramarina, bem como sem os gêneros alimentícios fundamentais à população.

A partir de 1521, passa a vigorar em Portugal as Ordenações Manuelinas, as quais, em termos ambientais, apenas mostravam uma proteção mais detalhada. Em 1530, devido a constantes ataques franceses, a coroa portuguesa ordena a implantação do sistema de capitanias hereditárias no Brasil. Ao contrário do sistema das sesmarias, que visava o cultivo de terras em Portugal, as capitanias buscavam garantir a ocupação do território colonial pela coroa lusitana e, por via indireta, o estabelecimento do monopólio real na comercialização do Pau-Brasil.

Posteriormente, com a implantação do Governo Geral na colônia, bem como, em sequência, com o surgimento das Ordenações Filipinas, as questões ambien-tais continuaram a serem tratadas, basicamente, do mesmo modo, uma vez que o Brasil ainda era visto como fornecedor de suprimentos necessários à metrópole. Entretanto, no parágrafo 7º do Título LXXXVIII do referido dispositivo legal, surge o conceito de poluição, o qual é de fundamental importância na proteção das águas. O intuito do legislador era o de não poluir as águas com qualquer subs-tância que pudesse matar os peixes nelas presentes, o que evidencia a preocupação com o déficit alimentício existente na época.

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Em 1605, passa a viger o “Regimento sobre o Pau-Brasil”, como sendo a primeira lei protecionista florestal brasileira. Com esse dispositivo, surge uma constante preocupação com o desmatamento, o que pode ser confirmado pela sua inclusão no Regimento da Relação e Casa do Brasil, o qual foi o primeiro tribunal da colônia e possuía jurisdição em todo seu território. O referido juízo, todavia, não chegou a julgar nenhuma questão ambiental durante o período de sua existência. Vários foram os motivos que determinaram a ausência de julgados acerca de processos ambientais, destacando-se: o curto período de existência do tribunal (extinto em 1626), a dominação holandesa no nordeste brasileiro e, principalmente a difícil aplicabilidade dos dispositivos ambientais, uma vez que as legislações suplementares extravagantes versavam, muitas vezes, dos mesmos assuntos tratados nos Ordenamentos vigentes, havendo apenas a troca da terminologia legislativa.

A má aplicabilidade das normas ambientais do Brasil-colônia perdurou, mesmo após a extinção do referido tribunal, não apenas por razões de má técnica legislativa, mas também por motivos culturais. Nesse sentido, pertinentes são as palavras de Caroline Corrêa de Almeida (2002):

Na verdade, pouco valiam as leis que visavam à conservação do meio ambiente, por não existir uma conscientização coletiva, no sentido de respeitá-las, fazendo com que fossem cumpridas. O problema era bilateral – estava tanto na falta do civismo de corpo administrativo, quando na falta de civilidade por parte da população.

No século XVIII, com as atenções da metrópole voltadas para a mineração no sul da colônia, são editadas diversas normas ambientais; todas elas, entretanto, visando o benefício da coroa portuguesa na extração das riquezas percebidas. Paralelamente, surgiram normas que atribuíam a outras regiões ou habitantes da colônia o dever de produzir gêneros alimentícios, a fim de suprir as necessidades da população. Embora esses dispositivos legais pouco se preocupassem com a preservação do meio ambiente, mas, apenas, em manter os interesses econômicos lusitanos, causaram o povoamento, mesmo que espaçado, de diversas áreas da colônia, que estavam até então desabitadas. Foi nessa tendência que a floresta amazônica começou a ser explorada: a princípio, com a extração de várias de suas riquezas, para, posteriormente, concentrar-se no látex.

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Nesse período, ainda perdurava a grande preocupação com a preservação da madeira, uma vez que as reservas eram cada vez mais escassas em Portugal e estavam sendo extraídas sem nenhum controle no Brasil. O Regimento do Pau-Brasil só tutelava uma espécie de madeira, deixando à margem outras necessárias ao desenvolvimento econômico da época. Assim, foram criadas diversas normas, cujo fulcro era o de regular a extração da madeira e garantir sua conservação. Todavia, as normas se tornavam inoperantes por varias razões como, por exemplo, a grande extensão territorial do Brasil. Além disso, essas normas ainda buscavam realizar apenas os interesses da metrópole, como foi o caso dos diversos alvarás, expedidos em 1756, que isentavam da cobrança de impostos todos os portugueses que importassem madeira para reconstruir a cidade de Lisboa, que tinha sido devastada por um terremoto. Providenciais são as palavras de Ann Helen Wainer (1991) revelar o tratamento dado pela metrópole portuguesa à pesca das baleias, evidenciando o caráter econômico das normas ambientais editadas:

Em relação ao reino animal, a pesca da baleia foi uma das produções mais rendosas, embora sem grande expressão no contexto da economia colonial, se comparada com as atividades de extração das minas e da madeira ou com a lavoura canavieira. Realizava-se na costa atlântica da Bahia até Santa Catarina. Sendo monopólio da coroa, era concedida através de contrato por prazo certo e determinado, em geral de seis anos, a grupo de particulares. Novas técnicas de pesca foram se aperfeiçoando e a espécie foi sendo grandemente exterminada, até o ponto em que a Coroa portuguesa abandona o monopólio e a pesca se torna livre.

Com a chegada do século XIX e a vinda da família real portuguesa para a co-lônia, a madeira continuava a ser o grande bem ambiental explorado pela coroa. Devido à ganância dos governantes em, principalmente, expandir a construção naval, as matas foram devastadas por todo o território de modo desordenado, o que levou a edição, por exemplo, das primeiras medidas de reflorestamento na costa do Brasil.

Após a independência, é promulgada, em 1824, a primeira Constituição brasileira, que previa a edição de um Código Civil e Criminal, a fim de que se rom-pesse com a dependência legislativa das Ordenações Filipinas. A Carta Magna trouxe diversos progressos em âmbito de direitos humanos, uma vez que foram abolidos os açoites e outros tipos de penas cruéis, bem como houve a

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garantia do direito de propriedade, que era tão violado na época da mineração. Essas mudanças foram importantes na seara ambiental, pois as severas penas para quem cortasse madeira ilegalmente constituíam uma afronta aos direitos do homem, bem como à própria Justiça, já que, na prática, apenas as pessoas de classes sociais menos abastardas eram vitimas de tais castigos.

O avanço normativo também se dá na legislação extravagante, pois em 1830 é editado o Código Penal, o qual previa penas para o corte ilegal de madeiras e estabelece reparação do dano ecológico. A água também ganha destaque, através do art. 162 que determina: “Corromper ou conspurcar a água potável de uso comum ou particular, tornando-a impossível de beber ou nociva à saúde. Pena: prisão celular de 1 (um) a 3 (três) anos”.

Com o advento da República, foi promulgada uma nova Constituição que, entre as inovações, elimina o Poder Moderador e estabelece o presidencialismo no Brasil, mudanças que até hoje se encontram vigentes. A primeira Constituição republicana, contudo, não trata com amplitude de questões ambientais, mas apenas faz referência, em seu artigo 34, à competência da União para legislar sobre minas e terras, continuando omissa em matéria de recursos hídricos.

Como segunda grande novidade legislativa do período republicando, surge o Código Civil Brasileiro, que revoga as Ordenações Filipinas e vários outros dispositivos legais até então vigentes, como decretos, alvarás, resoluções, etc. Nessa época, a consciência ambiental ainda era muito incipiente, de maneira não se poderia esperar grandes progressos sobre a matéria. No entanto, o Código trata da questão ambiental, sucintamente, nos art. 554 e 555, ao regular situações onde haja o uso nocivo da propriedade. Assim, os artigos estabeleciam:

Art. 554: O proprietário, ou inquilino de um prédio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam.

Art. 555: O proprietário tem direito a exigir do dono do prédio vizinho a demolição, ou reparação necessária, quando este ameace ruína, bem como que preste caução pelo dano iminente.

Esses dispositivos, ao contrario do que pensam alguns, são de ordem pública, uma vez que buscam harmonizar as relações de vizinhança e, por conseguinte, interessam a toda a coletividade.

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Já recentemente, com o advento da Lei nº 6.938/81, o conceito de poluição se desenvolve ao ponto de englobar a diminuição da qualidade ambiental produzidas por atividades que, de maneira direta ou não, afetem as condições estéticas ou sanitárias da natureza. Nesse ínterim, importantes contribuições foram dadas ao combate à poluição, como a possibilidade de, por exemplo, o Ministério Público impetrar ações de responsabilidade civil em favor de quem sofra danos causados por poluição por óleo.

Com o fim do Estado Novo e a redemocratização brasileira, surge a Constituição de 1946 que, a respeito de inovações ambientais, volta a trazer para o domínio da União a competência para legislar sobre as riquezas do subsolo. Esta Carta Magna, em matéria ligada aos recursos hídricos, passa a incluir, como bens de domínio da União, as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países, bem como restringe, a brasileiros ou empresas organizadas no país, a autorização ou concessão que tratava o art. 119 da Constituição Federal de 1934.1

Todavia, devido ao reduzido respaldo constitucional para se tutelar o meio ambiente, o legislador buscava embasamentos indiretos para conseguir tal fim, editando, por exemplo, normas que protegiam a saúde, com o fulcro de salvaguardar o meio ambiente, pois é impossível a garantia daquela sem a manutenção deste.

Caroline Correa de Almeida (2002), ao tratar da matéria, afirma:

Até a década de sessenta, a omissão legislativa era preponderante. Não havia um pensamento jurídico ambiental, mas somente iniciativas pontuais do Poder Público objetivando a conservação dos bens ambientais em geral. A conquista de novas fronteiras (agrícolas, pecuárias e minerais) era o fim colimado na relação homem-natureza. Esse período foi escravo da visão distorcida da natureza-inimiga, em que o desenvolvimento está atrelado ao ultraje e a devastação dos recursos naturais.

Assim, não havia uma tutela eficaz ao meio ambiente em âmbito legislativo, mas apenas a presença de normas que protegiam interesses sociais ou econômicos, tratando, por via tangencial, das questões ambientais a eles ligados.

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3.2. segundo momento: a fase fragmentária

Nos anos sessenta, é percebida uma imensa alteração da conjuntura do Brasil em diversos níveis, seja pela alteração da Capital Federal para Brasília, seja pelo aumento da produção legislativa em matérias ligadas ao meio ambiente. Nesta fase da evolução da tutela ambiental, conhecida como fragmentária, surgem os primeiros limites legais às atividades exploratórias, até então ignoradas pelo Ordenamento Jurídico nacional, e que agora passam a ser tipificadas e reprimidas.

Contudo, ao cumprir essa tarefa, a legislação operava pelo utilitarismo, de maneira que protegia os bens que eram julgados relevantes pelo interesse econômico. Na esfera formal, os dispositivos legais encaravam o meio ambiente como passível de divisão, de forma que cada bem era tutelado separadamente, e não como sendo uma parte integrante de um sistema interdependente. Sob a mesma ótica, também havia a divisão quanto ao aparato legislativo, em virtude do entendimento setorizado do meio ambiente. Assim, percebe que esse período ainda não dispunha de uma visão totalitária da questão ambiental, o que dificultava uma tutela eficaz e completa na busca pela conciliação dos valores ambientais com os ideais sociais e econômicos.

A Constituição Federal de 1967 não traz grandes inovações me termos ambientais, sendo mantida tal estrutura pela Emenda Constitucional nº 1 de 1969. Porém, como destaque dessa época, há a Lei nº 4.504/64, que preceitua o estatuto da terra e traz em seu texto a ideia da função social da propriedade, tão difundida na atualidade. Outro dispositivo importante é a Lei nº 4.717/65, que institui a ação popular, a qual é um dos meios mais utilizados pela sociedade na proteção ambiental. A ação popular pode ser entendida, nas palavras de Ann Helen Wainer (1991) como sendo:

um dos instrumentos legais para o cidadão, em nome da coletividade, obter a invalidação de atos ou contratos administrativos, ilegais ou lesivos ao patrimônio federal, estadual e municipal, de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos.

Todavia, a atual Carta Magna amplia o conceito supracitado e dá legitimida-de ao cidadão para impetrar ação popular, com o fulcro de tornar nulo ato que lesione o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.

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Durante a fase fragmentária, no que se referem à legislação ambiental rela-cionada aos recursos hídricos, tem-se a edição do Código Florestal, que protege matas ciliares e florestas ao longo de cursos d’ água, lagos, nascentes, lagoas ou reservatórios, assim como a promulgação dos decretos nº 75.700/75 e 79.367/77 que tratam, respectivamente, da proteção de fontes de água mineral e do padrão de potabilidade de água.

3.3. terceiro momento: a fase holística

Como dito anteriormente, embora entre todas essas fases haja uma relação de interdependência, de modo que não é possível separar, de forma precisa, umas das outras, foi com a chegada da década de 70 que houve uma real valorização das questões ambientais. Essa nova perspectiva se reflete em uma produção legislativa mais eficaz e na formação de uma valoração jurídica ao meio ambiente. Assim, em 1971, é realizada a VIII Reunião Internacional dos Magistrados no Rio de Janeiro, na qual se discutiu, pela primeira vez, a relação do jurista com o meio ambiente. Conceitos como a importância de se viver e trabalhar em um ambiente sadio, presente na atual carta constitucional, foram abordados sob o ângulo dos aplicadores da lei ao caso concreto, o que mostra a importância do encontro realizado. No ano seguinte, surge a Conferencia de Estocolmo, a qual lança os princípios básicos de tutela ao meio ambiente e faz surgir as diretrizes de um novo ramo do direito: o Direito Ambiental.

Esse novo ramo do Direito, inicialmente chamado de Direito Ecológico, foi definido como o conjunto de regras, técnicas e instrumentos jurídicos, organizados de forma sistemática para garantir um comportamento que minimize os impac-tos causados ao meio ambiente1. No entanto, esse conceito passou por grandes evoluções, haja vista que a idéia de meio ambiente também foi alterada com o tempo. Atualmente, nas palavras de Paulo Affonso de Leme Machado (1998), sobre o que agora se chama de Direito ambiental, pode afirmar que:

O Direito Ambiental é um Direito sistematizador, que faz a articulação da legislação, da doutrina e da jurisprudência concernentes aos elementos que integram o ambiente. Procura evitar o isolamento dos temas ambientais e sua abordagem antagônica. Não se trata mais de construir um Direito das águas,

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um Direito da atmosfera, um Direito do solo, um Direito florestal, um Direito da fauna ou um Direito da biodiversidade. O Direito Ambiental não ignora o que cada matéria tem de específico, mas busca interligar estes temas com a argamassa da identidade dos instrumentos jurídicos de prevenção e de reparação, de informação, de monitoramento e de participação.

A partir dos eventos supracitados e dos novos conceitos surgidos, a comuni-dade internacional passa a encarar o meio ambiente como um sistema integrado, no qual o que se tutela é um complexo conjunto de inter-relações. Assim, proteger determinado ente ambiental isoladamente, pode significar o desequilíbrio de todo o sistema e proporcionar a sua consequente degradação.2

Um exemplo dessa nova perspectiva é o advento da Lei nº 9638/81, que ins-titui a Política Nacional do Meio Ambiente, a qual trata a questão ambiental de maneira totalitária. Como inovações desse dispositivo legal, tem-se, por exemplo, o surgimento das bases para a busca pelo desenvolvimento sustentável, consolidação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e adoção da teoria da Responsabilidade Civil Objetiva, que determina apenas a necessidade da ocorrência do dano e da sua autoria para que o seu agente seja obrigado a indenizar.

Uma importante contribuição dada à defesa do meio ambiente foi a de legi- timar o Ministério Público da União e dos Estados para impetrar ação de responsabilidade civil criminal por danos causados nessa esfera. Contudo, procedentes são as considerações feitas por Ann Helen Wainer: (1991)

Contudo, esta norma legitimou apenas o Ministério Público da União e dos Estados para pleitear contra o poluidor a indenização pelos danos causados, quando, na realidade, com a ampliação da legitimidade, a defesa dos interesses ambientais estaria melhor assegurada.

Posteriormente, surge a lei nº 7.347/85 instituindo a Ação Civil Pública, que se mostra a melhor forma de tutelar os direitos do meio ambiente, bem como quaisquer outros que estejam na esfera dos interesses difusos e coletivos. A legitimidade para propor a presente ação é bem maior do que da Ação de Responsabilidade Civil, uma vez que nela são competentes, além do Ministério Público da União e dos Estados, mas também a União, os Estados, os Municípios,

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órgãos da administração direta e indireta, assim como algumas associações que se enquadrem na forma da lei.

Por fim, como grande marco da revolução da tutela ambiental das últimas décadas, está a promulgação da Constituição Federal de 1988, que, em oposição às singelas expressões das Cartas anteriores, traz vasta regulamentação ao meio ambiente. A essência da defesa ambiental na Carta Magna vigente pode ser traduzida pelo caput do art. 225, que afirma o caráter prioritário da proteção ao meio ambiente em relação a qualquer interesse particular, inclusive ao direito de propriedade. No mesmo artigo, a Constituição Federal ainda impõe incumbências ao Poder Publico e aos particulares, além de subjugar qualquer pessoa que lese o meio ambiente a sanções penais ou administrativas, independente da obrigação de reparar qualquer dano causado.

Além do exposto, outras inovações passaram a integrar a Carta Magna atual, a saber: a implementação do estudo prévio de impacto ambiental, prevista pela lei nº 6.803/80, e a inclusão da educação ambiental, em conformidade com o presente na Política Nacional do Meio Ambiente.

Neste sentido, Caroline Corrêa de Almeida (2002) afirma:

Para a efetividade das normas mister a adoção de medidas governamentais fundadas em mecanismos eficientes; uma me-lhor institucionalização dos órgãos responsáveis pela proteção ambiental; o desenvolvimento de instrumentos eficazes para a implementação das políticas ambientais; a conscientização da sociedade civil; a atuação incisiva do Poder Judiciário e Ministério Público, com o intuito de frear os abusos cometidos contra a natureza.”

Assim, a simples edição de normas avançadas que protejam os recursos naturais não se torna suficiente para salvaguardar estes bens, pois se não houver a promoção de medidas efetivas, por parte do Poder Público, para tornar realidade aquilo é estipulado nos dispositivos legais, a tutela será incompleta e ineficiente.

4. a nova política ambiental brasileira

O problema ambiental, em uma análise econômica, é tratado como uma falha de mercado, ou seja, uma situação em que aquele não opera em bases inteiramente

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competitivas. Sob essa perspectiva, os problemas ambientais têm sido vistos pelos economistas como externalidades negativas. O conceito de externalidade é usado para definir uma situação em que o uso de um recurso econômico por um determinado indivíduo depende não apenas de um conjunto de bens e serviços que estão sob o seu controle direto, como também de outros bens ou serviços sob o controle de terceiros.

A finalidade da economia de mercado é o lucro (aumento de capital). Para alcançar este constante aumento é necessário crescimento, cujo motor é a concorrência. Sem a concorrência estanca-se o crescimento, e o dinheiro não tem o que adquirir. Emperra-se a máquina - sendo este um dos fatores responsáveis pelo fracasso das economias socialistas. Concorrência é o anima do mercado. Concorrência no mercado interno e externo, estabilidade da moeda, pleno emprego são tidos como condições para o sistema continuar operando, com vistas a um constante crescimento econômico.

No momento em que se procura normatizar a utilização do meio ambiente, trabalha-se com dois aspectos de sua realidade. O primeiro considera o meio ambiente enquanto elemento do sistema econômico, e o segundo considera meio ambiente como sítio, um local a ser apropriado para o lazer ou para as externalidades da produção, tornando-se depósito dos subprodutos indesejáveis desta produção. Procura-se normatizar uma economia (poupança) do uso de um bem, e determinar artificialmente (sem qualquer relacionamento com as leis de mercado) um valor para a conservação de recursos naturais. Estes são os meios encontrados para “integrar os recursos naturais ao mercado”. A economia ambiental tem como foco de preocupação os “efeitos externos”, e procura fixar o emprego da “monetarização” para responder à questão do uso de recursos renováveis e não renováveis. O ideal estaria em que cada fração de recurso natural utilizado obtivesse um preço no mercado.

A política ambiental vinculada a uma política econômica, assentada nos pres-supostos do desenvolvimento sustentável, é essencialmente uma estratégia de risco destinada a minimizar a tensão potencial entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade ecológica. Considerações estratégicas, em tais circunstâncias, estão baseadas na proposição de que a integridade dos componentes dos ecossistemas está diretamente conectada aos papéis físicos, químicos ou biológi-

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cos que assumem na totalidade do sistema. Além da sua função na manutenção dos processos dos ecossistemas, os bens ecológicos (ou recursos naturais) possuem um valor sócio-econômico, que nem sempre é fácil de visualizar. Este valor é dependente do emprego dado aos recursos naturais, ou seja, da forma que assumem com a sua inserção na sociedade. À análise econômica, relativamente aos objetivos sociais, cabe propiciar à sociedade o conhecimento dos custos implicados em qualquer decisão estatal e, mais do que isso, revelar a maneira menos onerosa em termos globais de atingir os objetivos culturais e éticos por ela definidos.

4.1. o estudo de impacto ambiental

O impacto é qualquer fator ou perturbação que tende a desequilibrar o estado de equilíbrio instável em que se encontra um sistema (enfoque funcionalista). Já, de acordo com um enfoque estruturalista, impactos são aqueles fatores ou condições de um sistema, que levem a mudanças estruturais do mesmo. Impacto ambiental é uma alteração física ou funcional em qualquer um dos componentes ambientais. Essa alteração pode ser qualificada e muitas vezes, quantificada. Pode ser favorável, ou desfavorável, ao ecossistema ou à sociedade humana.

Um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é uma atividade com o objetivo de identificar e predizer o impacto, no ambiente e na saúde pública, de propostas legislativas, programas de desenvolvimento, projetos, etc., como também de interpretar e comunicar informações sobre os impactos. Por isso é que o EIA deve sempre fornecer informações sobre a capacidade humana de se adaptar, física e mentalmente, às alterações que serão induzidas por uma dada ação.

Antes de se iniciar um EIA, é necessário verificar se o projeto em consideração (mineração, obra hidráulica, indústria, projeto urbanístico, tratamento e disposição final de resíduos sólidos, etc.), pode induzir impactos ambientais relevantes, ou seja, se há efetiva necessidade de se exigir um estudo daquele tipo, pois exigir EIA’s indiscriminadamente acabaria, apenas, produzindo uma indústria de elaboração dos mesmos, de acordo com Nogueira Neto (1990).

Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é o estudo de um ciclo de eventos, interligados numa cadeia de causas e efeitos que decorrem de necessidades humanas. Se esses efeitos degradam o ecossistema, eles causam um impacto

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ambiental. É especialmente importante na avaliação de impacto prever a combinação esperada de efeitos passados, presentes e futuros. É uma análise e avaliação de atividades planejadas, com vista a assegurar um desenvolvimento não impactante e sustentável.

O EIA é uma área da ecologia aplicada, mas com freqüência, tem misturado questões morais e políticas com questões científicas. Exemplo: que qualidade ambiental deseja-se? Quanto tempo demora para um rio se recuperar de um derrame de petróleo?

Ainda que muitos estudos já tenham sido feitos, procurando avaliar os efeitos de ações humanas sobre ecossistemas, há sensíveis diferenças entre esses trabalhos e uma avaliação de impacto ambiental. As características básicas de um EIA são:

1. é um estudo de curta a media duração;

2. é multidisciplinar;

3. cobre geralmente áreas geográficas extensas, envolvendo muitos pesqui-sadores, técnicos, etc.

4. envolve vários níveis de governo, universidades, firmas de consultoria, etc.;

5. é, por natureza, orientado para a resolução de problemas; é relativo e “ad-hoc”.

6. as informações produzidas têm grande chance de serem utilizadas para a solução de questões ambientais.

Acima de tudo, o EIA não deve ser um trabalho acadêmico, mas sim, essencialmente objetivo e pragmático.

O EIA é extremamente valioso, por contribuir para uma maior informação imparcial sobre um determinado projeto, permitindo que o público possa orientar corretamente sua posição em relação ao mesmo, com menos emotividade, sabendo eliminar a influência tanto de grupos políticos como de grupos econômicos.

Para se decidir, se é necessário ou não, elaborar um EIA, deve-se, preli-minarmente:

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1. estabelecer que tipos de ações contidas no projeto induzem potencial-mente efeitos ambientais

2. em cada uma dessas ações, que aspectos ambientais estarão envolvidos;

3. identificar, que informações necessitamos obter sobre aqueles efeitos ambientais e como as iremos obter;

4. estabelecer, com base no obtido nos itens 1, 2 e 3, como se tomará a decisão sobre a aceitabilidade do projeto.

Infelizmente, em todos países que adotaram o EIA, muitos desses estudos têm sido superficiais, sem analisar interligações, sem a desejável amplitude e profundidade que permita, efetivamente, compreender os efeitos do projeto proposto sobre o ambiente. Uma alternativa para se corrigir essa situação, seria cada vez mais envolver nos EIA’s, as Universidades e os Institutos de Pesquisa, através da prática denominada “consultoria”. Com essa prática a sociedade se beneficiará de um eficiente canal de acesso ao conhecimento retido pela Universidade, à medida que esse é gerado ou assimilado pela instituição. Isso hoje, em nosso País, tem sido aplicado em alguns grandes centros.

Se considerar planejamento como sendo a localização racional, ou a exploração de recursos, visando benefícios ao homem a curto e a longo prazos, é fácil verificar que o EIA deve ser um componente, dos mais importantes, daquele planejamento.

O Estudo Prévio de Impacto Ambiental é um pressuposto constitucional da efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Tem fulcro no artigo 225, § 1º, inciso IV, da Constituição de 1988, que incumbe ao Poder Público exigi-lo nas hipóteses de instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. Prescreve, ainda, que dele se dê publicidade. Mas já era uma previsão legal como um expressivo instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n.º 6.938/81, artigo 9º, inciso III) e pressuposto para o licenciamento de construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades capazes de causar degradação ambiental.

Ressalta Despax que, no direito americano como no francês, o estudo prévio de impacto ambiental tem por objeto conciliar o desenvolvimento econômico

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com a conservação do meio ambiente. Assim, também deve ser entendido entre nós, pois, como já observa-se: compatibilizar o desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico constitui um dos principais objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.º 6.939/81, artigo 4º, inciso I).

O objetivo central do EIA é simples: evitar que um projeto (obra ou ativida-de), justificável sob o prisma econômico ou em relação aos interesses imediatos de seu proponente, se revele, posteriormente, nefasto ou catastrófico para o meio ambiente.

Valoriza-se, na plenitude, a vocação essencialmente preventiva do Direito Ambiental, expressa no conhecido ditado “é melhor prevenir que remediar” (mieux vaut prévenir que guérir), segundo Prieur, (2001).

O estudo de impacto ambiental é um instrumento da política de defesa da qualidade ambiental. Realiza-se mediante um procedimento de direito público, cuja elaboração há de atender a diretrizes estabelecidas na legislação e nas que, em cada caso, forem fixadas pela autoridade competente.

O procedimento compreende elementos subjetivos e objetivos. Os primeiros consistem no proponente do projeto, a equipe multidisciplinar e a autoridade competente. Os segundos são a elaboração das diretrizes, os estudos técnicos da situação ambiental, o relatório de impacto ambiental – RIMA e a avaliação do órgão competente.3

4.2. descentralização: repartição das competências

A República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (artigo 1º da CF). “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição” (artigo 18, caput, CF).

3 O RIMA é um parecer técnico vinculante, nos casos em que seja obrigatório. A discri-cionariedade, se houver, será técnica, não administrativa, cf. Antônio Herman Benjamin, “Os princípios do estudo de impacto ambiental como limites da discricionariedade administrativa”, RF 317, 25 e ss., 1992.

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O fundamento de toda ordem federal, “comunitária”, reside no reconheci-mento de que a sobrevivência das partes constituintes de uma Federação é, de alguma maneira, a razão de ser da ordem federal - de onde decorre uma dupla obrigação: de um lado, para as partes integrantes, no seu próprio interesse, em virtude de fazer aquilo que for indispensável para a Federação, para que ela possa cumprir seu papel; de outro lado, existe a obrigação para a própria Federação de velar para o bem daqueles que a compõem, porque, em caso contrário, a legitimação, a legitimidade da Federação cessaria de existir. E sobre a fidelidade federal, cita Alfred Hueck, que conceitua o princípio como aquele que implica “o dever de se abster de causar qualquer prejuízo aos interesses da comunidade e aos interesses dos associados, ligados pela finalidade comunitária, como o dever suplementar de promover esses interesses no quadro das atividades resultantes da comunidade”.

A aliança entre Estados, Municípios e Distrito Federal, que formam a União, gera um relacionamento de fidelidade entre a União e os Estados, mas, também, entre a União e os Municípios. Encontramos, entre os deveres da União, o de preservar a autonomia municipal (artigo 34, VII, c, CF), devendo intervir nos Estados para assegurar esse princípio institucional, como, entre outros motivos, para assegurar a entrega pelos Estados aos Municípios, das receitas tributárias fixadas no Constituição, com a observância dos prazos fixados em lei (artigo. 34, V, b, CF).

A origem do termo “Federalismo” encontra-se na palavra latina foedus, foederis significando “aliança”, de acordo com Albert (1995). Afirma Pedro J. Frias que o:

Federalismo deverá fazer suas provas; que se defenda por si só, pela verdade que contém. Para que isso seja possível, é necessário que não se deturpem as tendências à liberdade e à participação dentro da comunidade nacional e que o Federalismo seja vivido como um sistema coerente: não só como uma fragmentação do poder senão como uma associação de suas competências.

Quem está aliado, deve somar esforços para a consecução de fins comuns e buscar a realização conjunta das aspirações.

A Constituição Federal previu dois tipos de competência para legislar, com referência a cada um dos membros da Federação: a União tem competência privativa e concorrente; os Estados e o Distrito Federal têm competência

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concorrente e suplementar; e os Municípios têm competência para legislar sobre assuntos de interesses local e para suplementar a legislação federal e estadual.

A razão última de distribuição do Poder entre seus distintos níveis, não deve ser outra que a de facilitar seu mais adequado e eficaz exercício. As fórmulas que se adotem, como todas as fórmulas políticas, devem legitimar-se pelos seus rendimentos sociais efetivos. Daí a necessidade de ser considerado o melhor nível de gestão dos serviços e a maior atenção às necessidades concretas e reais dos cidadãos e da própria sociedade. A determinação dos âmbitos que possam corresponder aos distintos níveis do Poder, assim como a forma em que deve ser exercido, haverá de fundamentar-se, de modo inequívoco, no princípio de como se exercem melhor as competências, que aqueles níveis recebem como atribuições. Junto a isso, deve-se considerar, também, o custo econômico que representa o exercício dessas funções. É algo que se olvida com frequência.

A Constituição Federal de 1988, inobstante tenha dado passos significativos em matéria ambiental, no sentido de colocá-la, na sua maioria, no campo da competência concorrente, guardou, ainda, para a União, o monopólio de legislar em alguns setores como águas, energia, minas, jazidas, outros recursos minerais, atividades nucleares de qualquer natureza (artigo 22, CF). Sob o ponto de vista da eficiência legislativa, parece difícil que a legislação federal privativa nos setores indicados tenha melhor desempenho do que se fosse inserida na competência concorrente. Da forma como está, os Estados e Municípios não podem suplementar as deficiências dessas normas federais, como, também, não têm atribuições diretas para adaptar essas normas às suas peculiaridades regio- nais e locais. Não reivindicamos para o Brasil a debilitação do Estado Federal.

Entende-se ser de real importância que a normatização fundamental para o meio ambiente seja feita pela União, através de normas gerais; mas que com isso não se anule o Município. Entretanto, denunciam-se as colocações que identificam a política de descentralização com uma prática democrática, partindo da premissa de que encerra, na realidade, um conteúdo fragmentário, o que contraria a concepção de um projeto global para o País. Entende-se com isto que diretrizes políticas, que têm acenado para possibilidades de estruturação de um poder local, escudado em propostas de autonomia decisória, estaria atendendo, na verdade, a interesses hegemônicos da sociedade. “A argumentação crítica levantada pode

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encontrar suporte na presença local da grande indústria, que se constitui em fonte praticamente exclusiva de emprego, mas que se subordina inteiramente a decisões vindas de fora”, segundo Davidovich (1999).

Com a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, cria-se o CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente, que é um Órgão Consultivo e Deliberativo, com a finalidade de assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e de deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida. O CONAMA (artigo 24, § 1º, da CF), tem competência para estabelecer normas e padrões gerais, que, entretanto, poderão ser suplementados pelos Estados, conforme o artigo 24, § 2º, da CF.

Nas questões ambientais não se podem criar oportunidades para uma administração monolítica - fechada em si mesma - com unidade de canais de co-municação e de decisão, dando-se, portanto oportunidade a erros e inoperâncias, ou de ações mal concebidas ou mal executadas. Para que isso não ocorra, criaram-se programas específicos como o Fundo Nacional do Meio Ambiente, que tem como objetivo desenvolver os projetos que visem o uso racional e sustentável de recursos naturais, incluindo a manutenção, melhoria ou recuperação da qualida-de ambiental, no sentido de elevar a qualidade de vida da população.

5. espaços urbanos: as funções sociais e ambiental da cidade

A correlação entre o microssistema ambiental e o urbanístico efetiva-se em decorrência de seus objetivos mediatos e comuns: a proteção e a defesa da qualidade de vida e do bem-estar dos habitantes da cidade. Por consequência, na defesa ambiental propriamente dita e na ordenação dos espaços habitáveis, o que se objetiva é a concretização das funções sociais da cidade, pois elas alcançam todas as variáveis da vida humana.

O conceito de função designa o tipo de atividade ou de comportamento que define os seres ou instituições e os caracteriza. Etimologicamente deriva de fungere, que significa fazer, cumprir, exercitar.

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Durkhiem sustenta que os fenômenos sociais somente podiam ser explicados pela idéia de função, definida de acordo com as necessidades do organismo social. Esse conceito está estritamente relacionado com o de estrutura social, entendida como conjunto de relações sociais regulares e padronizadas que constituem o lado permanente e estável de um sistema social .4

De acordo com o artigo 182, caput, da Constituição Federal, a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus habitantes. Significa realizar as funções de habitação, condições adequadas de trabalho, recreação e de circulação humana. O pleno desenvolvimento dessas funções deve ser compreendido como o direito à cidade.

Segundo Saule Júnior (1998) “as funções sociais da cidade são interesses difusos, pois não há como identificar os sujeitos afetados pelas atividades e funções nas cidades”.

Dentro da função social da cidade existe o escopo de defesa e proteção do meio ambiente e da qualidade de vida dos seus habitantes: a função ambiental da cidade.

A função ambiental atua sobre a cidade para concretizar o seu fim: efetivar o bem-estar dos habitantes da cidade e o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A cidade cumpre a sua função ambiental quando garante a todos o direito ao meio ambiente urbano ecologicamente equilibrado, na existência de áreas verdes e equipamentos públicos, espaços de lazer e cultura, transportes públicos, esgotamento sanitário, serviços de água, luz, pavimentação de vias públicas.

Dessa forma, para garantir a função ambiental da cidade, cabe ao Poder Público e à coletividade a tarefa de defesa e preservação do meio ambiente em todas as suas formas. Significa que, para a cidade cumprir sua função ambiental, é necessária a existência de um meio ambiente urbano ecologicamente equilibrado, bem como de uma proteção aos ambientes culturais, aos ambientes naturais e aos ambientes de trabalho. Contudo, não há que responsabilizar somente os entes

4 Enciclopédia Mirador Internacional, 1996.

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estatais na efetivação da função ambiental, todos somos chamados a cooperar na construção da cidade ecologicamente equilibrada, ou seja, se os cidadãos têm direitos, também possuem deveres e responsabilidades.

Por consequência, necessária a consciência dos cidadãos de que pequenos atos, como atirar lixo pela janela do veículo automotor, maculam a materialização cotidiana da sustentabilidade da cidade (abrangendo a proteção ao meio ambiente e aspectos institucionais, culturais, sociais e políticos).

Como vimos, a expressão “funções sociais da cidade” é expressa na Constituição Federal de 1988, artigo 182, caput. Por outro lado, a noção de função ambiental da cidade, apesar de não estampada em nenhum outro dispositivo legal, depreende-se dos preceptivos constitucionais de garantia de bem-estar aos habitantes da cidade e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, consoante artigo 225, caput, da CF.

5.1. educação ambiental

A sustentabilidade do Planeta, sem dúvida alguma, está nas mãos do homem, o único ser capaz de, com suas ações, romper o equilíbrio dinâmico produzido espontaneamente pela interdependência das forças da natureza e modificar os mecanismos reguladores que, em condições normais, mantêm ou renovam os recursos naturais e a vida na Terra. Não se trata de ser contra o progresso, mas de promover o desenvolvimento sustentável, utilizando e conservando de modo racional os recursos naturais, e solidarizando-se sincrônica e diacronicamente com toda a humanidade. O destino das gerações futuras encontra-se, assim, nas mãos das presentes gerações.

Foi por certo, tendo em mente este contexto, dentro do qual o homem paulatinamente redescobre que é parte integrante do mundo natural, que o legislador brasileiro consagrou a Constituição de 1988 o princípio e a determinação de que a educação ambiental permeie os currículos de todos os níveis de ensino, e que a população em geral seja conscientizada acerca da necessidade de se preservar o meio ambiente.5

5 Este, aliás, o anseio da grande maioria dos brasileiros, segundo pesquisa realizada pelo Ibope/Iser, em janeiro de 1997, com 2 mil pessoas, a pedido do Ministério do Meio Ambiente. Nesse

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Um pouco tardiamente, porém sempre oportuna, apareceu a Política Nacio-nal de Educação Ambiental, definida na Lei n.º 9.795, de 27 de abril de 1999, tornando-se uma das mais importantes armas em defesa do Meio Ambiente pois, tem como objetivo dar sequência e eficácia aos artigos 205 e 225 da nossa Carta Magna. Decorreram, por conseguinte, quase dez anos para que os dispositivos constitucionais viessem a ser detalhados suficientemente, direcionando assim, a legislação ordinária sobre o assunto.

Em seus 21 artigos, o novo diploma legal despontou como um dirimidor de dúvidas pedagógicas sobre a natureza da educação ambiental. Com efeito, definiu como espaços para ela a educação em geral e a educação escolar, porém com linhas de ação inter-relacionadas. O Capítulo II estabelece critérios e normas para a educação ambiental no ensino formal, no “âmbito dos currículos das instituições de ensino públicas e privadas. Já na Seção III, artigo 13, o mesmo Capítulo trata da educação ambiental não-formal, constituída de “ações e práticas educativas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais e à sua organização e participação na defesa da qualidade do meio ambiente”.6

A educação ambiental deve ser considerada como uma atividade-fim, por-quanto se destina a despertar e formar a consciência ecológica para o exercício da cidadania. Não é panacéia para resolver todos os males; sem dúvida, porém, é um instrumental valioso na geração de atitudes, hábitos e comportamentos que concorrem para garantir a qualidade do ambiente como patrimônio da coletivi-dade, significa dizer que consubstancia o estatuto de cidadania, pressupondo que todos os segmentos da sociedade são responsáveis pela qualidade de vida. Partindo dessa concepção, a educação ambiental no Ministério do Meio Ambiente tem o papel de um elo mediador entre os anseios da sociedade e as políticas governamentais, garantindo a transparência dos atos governamentais e mantendo condições institucionais compatíveis que permitam o acesso da sociedade a informações sobre todas as questões que permeiam e perpassam os temas ambientais.

A crescente intensidade desses desastres ecológicos despertou a consciência ambientalista, ou a consciência ecológica, por toda parte, até com certo exagero,

estudo, 94% dos entrevistados defendem a inclusão da Educação Ambiental nos currículos escolares.

6 8. Constituição Federal de 1988.

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mas exagero produtivo, porque chamou a atenção das autoridades para o pro-blema da degradação e destruição do meio ambiente, com o combate pela lei de todas as formas de perturbação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico, de onde foi surgindo uma legislação ambiental em todos os países.

É preciso que as propostas de trabalho consistam numa ação sistemática que possa garantir a atuação da educação ambiental de forma apropriada e legítima dentro do MMA, em consonância com o Programa Nacional de Educação Ambiental – PRONEA, objetivando também dar seqüência a iniciativa do MMA com a realização da I Conferência Nacional de Educação Ambiental – I CNEA.

A I CNEA, definida como um marco nacional na condução das discussões das questões relativas a área da educação ambiental foi reconhecida interna-cionalmente, conforme destaque conferido pela UNESCO na “International Conference on Environment and Society: Education and Public Awareness for Sustainability, em Thessaloniki, Grécia, dezembro de 1997”.

Fazem-se necessárias ações prioritárias para que a Lei possa realmente exercer o seu papel para a sociedade, algumas delas são:

• Subsidiar,discutir,acompanharegarantiraimplementaçãodaPolíticaNacional de Educação Ambiental;

• Estimularegarantirainclusãodaeducaçãoambientalnassuasdiversasvertentes nos programas, projetos e atividades que competem a este Ministério, assegurando a eficácia das ações através de identificação de estratégias com fundamentos teóricos, metodológicos e práticos susten-táveis;

• Estimulareproporodesenvolvimentodeaçõesdeeducaçãoambientalnos programas, projetos e atividades estaduais e municipais;

• EstimularediscutircomoMinistériodaEducaçãoeDesportoasfor-mas de inserção da questão ambiental nas diversas modalidades de ensi-no, atendendo os compromissos constantes do Protocolo de Intenções MMA/MEC assinado em 1996, o qual objetiva a cooperação técnica e institucional na área de educação ambiental; e gerar, sistematizar e difundir ações e dados referentes a todos os setores, instituições e co-

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munidades envolvidos com o tratamento de questões relativas ao meio ambiente para informar e subsidiar o desenvolvimento de atividades de educação ambiental nos órgãos vinculados ao SISNAMA e nas institui-ções da sociedade civil.

A educação ambiental, sob o aspecto formal, refere-se ao ensino programado das escolas, em todos os graus, seja no ensino privado seja no oficial. As melhores concepções e teorias a respeito recomendam que faça parte de um currículo interdisciplinar, ao invés de constituir uma disciplina isolada. É este o sentir da Lei n.º 9.795/99, que, no seu artigo 10, § 3º, prescreve que “a educação ambiental não deve ser implantada como disciplina específica no currículo de ensino”.

De fato, Seara (1994) menciona:

somente a abordagem interdisciplinar seria adequada, a saber, um enfoque que não apenas leve a questão ambiental para dentro das disciplinas, mas provoque uma certa comunicação metodológica entre elas, tornando essa atividade uma preocupação unitária da escola como um todo, através de programas integradores que dêem conta ao mesmo tempo da complexidade e da interconexão dos vários componentes do ecossistema global. Parece que o problema não será equacionado enquanto o corpo docente, vítima da compartimentação do ensino, não tiver ao seu lado alguém com preparação suficiente para promover e ancorar tais programas, dar apoio técnico e coordenar recursos didáticos a serviço das várias disciplinas.7

Sob o aspecto não-formal, a educação ambiental refere-se aos processos e ações de educação fora do ambiente escolar. É o que se vem chamando de educação permanente, muito incentivada pela UNESCO, como fator de desenvolvimento humano continuado.

Essa modalidade de educação tem grande aplicabilidade na educação popular, contribuindo para aperfeiçoar a consciência dos problemas ambientais e buscar soluções práticas para os mesmos, a partir da própria comunidade em que o cidadão está inserido.

7 A propósito, a Lei paulista 8.951/94, que institui, em cada escola, um “coordenador de programas e atividades de educação ambiental”, que representa importante passo estratégico para redirecionar o ensino para a proteção efetiva do meio ambiente.

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O espaço para a educação ambiental informal são as casas de cultura, as diferentes associações civis, as entidades sócio-profissionais e até mesmo as diversas igrejas.

Notáveis são os princípios básicos da educação ambiental formulados no artigo 4º, assim como os objetivos estabelecidos no artigo 5º logo a seguir. Evidencia-se o caráter social da educação ambiental, voltada que deve estar para o patrimônio da comunidade, e o desvelo com as gerações futuras; acrescenta-se que os procedimentos democráticos e participativos são tônica da nova lei. Por outro lado, é enfatizada a visão holística do meio ambiente, a interdependência crescente da gestão ambiental com elementos do meio natural, dos fatores socioeconômicos, culturais, científicos e éticos. Preconiza-se, em outros termos, uma verdadeira revolução pedagógica e didática.

Por último, no que diz respeito à conscientização pública, importa saber se a educação ambiental se faz para a comunidade ou com a comunidade. Parece óbvio, mas é preciso ressaltar que, sendo o meio ambiente patrimônio universal de toda a humanidade, a educação para respeitá-lo e bem administrá-lo deve realizar-se com a participação democrática da população. A questão ambiental é eminentemente política e seu equacionamento exige a interferência de cada cidadão, no debate e nas decisões. Não se trata, portanto, de impor modelos aos cidadãos, como num a prática de cooptação da sociedade para que se adapte à vontade dos órgãos do Estado ou do poder econômico, mas de conclamá-los à participação consciente no gerenciamento de questões que lhes dizem respeito, individual e coletivamente. Trata-se, consequentemente, de um processo educativo a realizar-se com a comunidade e não para a comunidade, até porque na situação ensino-aprendizagem adequadamente estruturada a pessoa é sujeito, e não objeto, da educação educativa, de acordo com Seara (1992/1994).

Na letra desta nova lei e, principalmente, no seu espírito, muitos subsídios es- tão disponíveis para a própria Ciência Jurídica. Os princípios básicos e os objetivos da educação ambiental, como expressos na Política Nacional de Educação Ambien- tal, projetam luzes sobres os princípios e os objetivos do Direito do Ambiente.

5.2. o estudo de impacto e a cidade

Vivemos num país onde há necessidade de desenvolvimento de recursos, de empresas, de saneamento básico, de energia, etc. Com a grande variedade

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de condições ecológicas, biogeográficas que há enorme extensão territorial essa situação de desenvolvimento é um pouco complicada.

Parece-nos que o caminho fundamental para resolver todas as questões é exigir que, concomitantemente com o estudo de viabilidade econômica de um dado projeto, seja efetuado o estudo de viabilidade ambiental em receber o projeto, sem que usos múltiplos sejam comprometidos, sem redução da diversidade, sem agravos de efeitos ecotoxicológicos, sem danos sociais a bens públicos, sem quebra das características paisagísticas.

O EIA é o instrumento que, integrado à avaliação de risco, poderá nos garantir que esse tipo de desenvolvimento seja atingido, pois permite que se encontrem diretrizes para conservação, gerenciamento e medidas mitigadoras de efeitos de ações impactantes.

É possível dizer, resumidamente, que o procedimento para estudo de impacto ambiental se desenvolve primeiramente na fase preliminar do planejamento da atividade de cujo impacto se cogita, devendo o proponente do projeto procurar o Poder Público, a saber o órgão estadual integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, juntamente com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, expondo suas intenções e obtendo diretrizes e informações complementares. Pode-se ainda obter a denominada “Licença Prévia”, que contém os requisitos básicos que devem ser atendidos nas fases de localização, instalação e operação da atividade ou obra.

Num segundo momento, passa-se à fase técnica a cargo de uma equipe multidisciplinar, constituída de especialistas das mais diversas áreas, sendo esta a etapa mais importante do estudo, já que aí será realizado o estudo de impacto ambiental propriamente dito.

Será então elaborado o “Relatório de Impacto Ambiental” (RIMA), que refle-te as conclusões do estudo pelos técnicos da equipe. O órgão estadual integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, juntamente com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA examinará a seguir a viabilidade ambiental do projeto e as possíveis alternativas propostas, podendo aprová-lo, conferindo a “Licença de Instalação” para início da implantação da obra ou da atividade e, futuramente, outorgando a “Licença de Operação”, que autorizará propriamente o início da atividade licenciada.

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A aprovação da atividade e a outorga de licença, contudo, não exoneram o empreendedor pela responsabilidade por danos que cause ao meio ambiente ou a terceiros, já que a responsabilidade neste campo é objetiva, independendo da intenção dolosa e da licitude da atividade, além de ser solidária entre os responsáveis. Aliás, na concessão de licença, sempre estão ressalvados os direitos de terceiros, dentre eles os interesses comunitários difusos.

O estudo de impacto ambiental é, portanto, etapa burocrática muito importante em variadas atividades e obras, cuja viabilidade e possibilidade de implantação podem dele depender. A obtenção do resultado favorável no estudo dependerá da adequação da atividade ou obra, propostos às regras materiais de proteção ao meio ambiente, constantes de legislação específica e complexa.

O processo do EIA atingirá sua plena implantação, quando todo e qualquer proponente de projetos de desenvolvimento se auto-avaliar, incorporar à sua preocupação econômica, a dimensão ambiental. Quando o governo resolver efetivamente abrir suas decisões ao exame público e, também, quando tivermos condições mais efetivas para prever o futuro. Atingirá seus mais nobres objetivos quando não for mais considerado um obstáculo ao desenvolvimento, por exemplo, industrial. E isso só será possível quando os responsáveis pelos projetos de desenvolvimento passarem a considerar, conscientemente, a dimensão am-biental em seus empreendimentos. Quando isso passar efetivamente a ocorrer, poderemos reduzir, em muito, o número de EIA’s a serem exigidos. Aí então, proponentes, governos e a comunidade estarão atuando de forma cooperativa e não em conflito, como hoje ocorre em todo o País.

O processo de urbanização suscita grande preocupação nas autoridades polí-ticas e científicas internacionais, na medida em que o crescimento populacional desordenado traz implicações de várias ordens, principalmente no que tange à qualidade de vida das pessoas, saúde, educação, violência urbana, e impactos ao meio ambiente. A urbanização pode ser entendida como a concentração da população em cidades e consequente mudança sociocultural dessas populações, ou ainda, o aumento da população urbana em detrimento da rural. É o fenômeno da sociedade industrializada que teve seu início com a Revolução Industrial. A situação agrava-se nos países menos desenvolvidos. A má qualidade das condições de vida, somada à alta concentração de renda, desemprego, existência de

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habitações precárias, o aumento dos resíduos urbanos e ausência de infraestru- tura básica, como saneamento, traz consequências desastrosas.

Deve-se refletir sobre a questão ambiental, tendo em vista que, nos países em desenvolvimento, não deve ser referenciada apenas aos aspectos de impactos e degradação do contorno natural, já que estes são, em grande parte, um reflexo da ânsia em escapar à poluição da pobreza, no seu esforço de desenvolvimento.

A função urbanística e ambiental, em sua atuação mais concreta, portanto, é exercida no nível municipal. O Plano Diretor assume a função de instrumento básico da Política Urbana no Município, que tem por finalidade ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar da comunidade local. (Constituição Federal de 1988, artigo 182). No entanto, existe uma grande distância entre a norma e a realidade, isto é, a eficácia do direito depende do nível de compromisso entre o Poder Público e a comunidade no cumprimento e materialização do direito. Significa dizer que a maioria dos municípios brasileiros não possui plano diretor ou possuem simples “arremedos” de plano, contribuindo para a desorganização dos centros urbanos e intensificando os impactos ambientais.

6. conclusões

O paradigma do desenvolvimento econômico e linear, que predominou em toda a história da modernidade, chegou a seus limites, levando o mundo à beira de um caos ambiental. A questão ecológica é séria. As causas, os reflexos e as consequências dessa crise ecossocial atingem, em maior ou menor escala, todas as pessoas e povos. Cada um de nós ajuda a provocá-la e, de alguma forma, é por ela atingido, estando ligado ao todo.

A ordem econômica internacional é hoje desnivelada e injusta, e por isso destrói os sistemas ecológicos e as sociedades que deles dependem. Existe, assim, uma ligação direta entre as políticas econômicas e o empobrecimento ambiental e humano, que provoca uma desigualdade cada vez maior entre a qualidade de vida nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento. Esta ordem econômica vigente hoje no mundo é uma das principais causas da deterioração ambiental, pois hipoteca o caráter sustentável do planeta. Os atuais modelos

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de desenvolvimento não podem durar muito tempo, havendo um tipo para os países ricos e outro, muito diferente, para os países pobres. Esses modelos de desenvolvimento deveriam mudar no mundo inteiro, uma vez que o sistema econômico internacional, criado pelos países industrializados, forçou os países em desenvolvimento a optarem por um modelo inapropriado, em que muitas pessoas partilham de poucos recursos, e poucas pessoas monopolizam a maioria dos recursos naturais. A riqueza econômica de uma minoria, em detrimento dos que vivem em extrema pobreza, é lamentável. As duas principais causas da degradação ambiental nos países em desenvolvimento são a miséria e o mau uso da riqueza. Os pobres são obrigados a destruir, em pouco tempo, os recursos dos quais dependem sua subsistência a longo prazo. Enquanto isso, os ricos provocam demandas insustentáveis de recursos, transferindo mais uma vez os custos aos pobres.

O mundo vem testemunhando transformações nas políticas ambientais e econômicas. O cenário político mundial tingiu-se de verde. Atualmente, por causa de frequentes impactos e desastres ecológicos, o grau de conscientização da opinião pública cresceu de modo significativo, tanto nas regiões desenvolvidas como nas regiões em desenvolvimento. Nesse cenário, surge a sustentabilidade ambiental influenciando um novo conceito de crescimento, que envolve oportunidades e justiça para todos os povos da terra, inclusive para as populações pobres, que vivem na mais absoluta miséria. Tudo aquilo que ultrapassa as fronteiras ambientais, que desrespeita as regras de regeneração da natureza, termina gerando situações insustentáveis. Daí a necessidade de se pensar a organização socioeconômica em termos de seus fundamentos biofísicos, que regem os termos da sustentabilidade do desenvolvimento.

O desenvolvimento sustentável não pode ser imposto por pressões externas; deve penetrar na cultura, como parte dos valores, interesses e prioridades de cada País. A transição à sustentabilidade exigirá um ambiente econômico interna- cional solidário. Ela não poderá favorecer uma imposição externa de novas condições ou limitações ao desenvolvimento. Não se pode negar aos países o direi-to de crescer, nem impedi-los de escolher seus próprios caminhos de crescimento. Tal direito tão pouco deve ser limitado por novas condições ou fluxos financeiros e comerciais impostos em nome do meio ambiente.

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A transição para a sustentabilidade não é possível sem o apoio da comunidade internacional. Esse apoio é particularmente necessário para a reversão da evasão de recursos que sufoca o crescimento econômico dos países em desenvolvimento.

Embora haja uma integração das preocupações relativas ao meio ambiente e ao desenvolvimento, é necessário também satisfazer as necessidades básicas de cada um, elevar seu nível de vida, conseguir uma melhor proteção e gestão dos ecossistemas e garantir um futuro mais seguro e mais próspero para todos. Nenhuma Nação pode alcançar esses objetivos sozinha. Porém, todos juntos podemos fazê-lo em uma associação mundial para que as pessoas vivam em uma sociedade sustentável.

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o imposto sobre a propriedade territorial rural – itr como

instrumento do poder público para o desenvolvimento agrário sustentável:

o itr e as áreas de preservação permanente e de reserva legal

Alexandre Naoki Nishioka1

Resumo

O artigo é dedicado ao estudo da tributação da propriedade territorial rural no Brasil pelo ITR, demonstrando de que forma a legislação procura proteger o meio ambiente e incentivar a produtividade, assegurando, assim, a função social da propriedade.

O autor analisa a Constituição Federal brasileira, o Código Tributário Nacional, a Lei 9393/96, que institui o imposto, e o Código Florestal brasileiro, que define as áreas de interesse ambiental.

Conclui que (a) a proteção do meio ambiente se dá pela exclusão das áreas de interesse ambiental (das quais as áreas de preservação permanente e de reserva legal são os principais exemplos) do cálculo da área tributável do imóvel; (b) a produtividade é incentivada pela progressividade/regressividade das alíquotas do imposto, mais altas para as grandes propriedades e menores para as propriedades que alcançam maior grau de utilização; e (c) o ITR é um instrumento do Poder Público para o desenvolvimento agrário sustentável.

Palavras-chave

Propriedade Territorial Rural; Meio Ambiente; Tributação; ITR; Brasil.

1 Advogado. Professor Doutor de Direito Tributário da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda. [email protected]

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Abstract

The article is devoted to the study of taxation of rural property in Brazil by ITR, demonstrating how the law seeks to protect the environment and encourage productivity, thus ensuring the social function of property.

The author analyzes the Brazilian Federal Constitution, the National Tax Code, Law 9393/96, that establishes the tax, and the Brazilian Forest Code, which defines the areas of environmental interest.

Concludes that (a) the protection of the environment is by exclusion of areas of environmental interest (permanent preservation areas and legal reserves are the main examples) the calculation of the taxable area of the property; (B) productivity is encouraged by the progressivity/regressivity of the tax rates, higher for large farms and smaller for properties that achieve higher degree of utilization; and (c) the ITR is an instrument of the government for sustainable agricultural development.

Key words

Rural Property; Environment; Taxation; ITR; Brazil.

1. o imposto sobre a propriedade territorial rural (itr) na constituição brasileira

A Constituição brasileira (CF) garante o direito de propriedade, que deverá atender a sua função social (CF, art. 5º, XXII e XXIII).2

No caso dos imóveis rurais, a função social é cumprida quando a propriedade atende, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (CF, art. 186).

2 “XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; ...”

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Se o imóvel rural não cumprir sua função social, a União poderá desapropriá-lo por interesse social (art. 184).

Como forma de estimular o cumprimento dessa função social, a CF atribui à União competência para instituir o imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR). O imposto I – será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas; II – não incidirá sobre pequenas glebas rurais,3 quando as explore o proprietário que não possua outro imóvel; III – será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal (CF, art. 153, VI, §4º).

Verifica-se da análise do texto constitucional que o ITR é um imposto que tem nítida finalidade extrafiscal, servindo de verdadeiro instrumento de política fundiária.

Demonstrar-se-á a seguir de que forma a Lei 9393, de 19 de dezembro de 1996, que institui o imposto, procura zelar pelo cumprimento da função social da propriedade rural.

2. o itr na lei 9393

A Lei 9393 institui o ITR, de acordo com as normas gerais contidas nos arts. 29 a 31 do Código Tributário Nacional – CTN (Lei 5172, de 25 de outubro de 1966).4

O fato gerador do imposto, de apuração anual, é a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, localizado fora da zona urbana do município, em 1º de janeiro de cada ano (Lei 9393, art. 1º). A zona urbana não abrange o

3 A Lei 9393/96 considera pequena gleba rural os imóveis com área igual ou inferior a 100 hectares (ha) (se localizado na Amazônia Ocidental ou no Pantanal mato-grossense e sul-mato-grossense); 50 ha (se localizado no Polígono das Secas ou na Amazônia Oriental; 30 ha (se localizado em qualquer outra região do país).

4 “Art. 29. O imposto, de competência da União, sobre a propriedade territorial rural tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, como definido na lei civil, localização fora da zona urbana do Município.

Art. 30. A base do cálculo do imposto é o valor fundiário. Art. 31. Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular de seu domínio útil, ou

o seu possuidor a qualquer título.”

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imóvel que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agro-industrial, incidindo assim, sobre o mesmo, o ITR (Decreto-lei 57, art. 15).

Contribuinte do ITR é o proprietário de imóvel rural, o titular de seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título (Lei 9393, art. 4º).

O cálculo do imposto deve observar o disposto no art. 10 de Lei 9393, que pode ser compreendido a partir do seguinte demonstrativo:

demonstrativo de apuração do itr

Distribuição da Área do Imóvel (ha)

01 – Área total do imóvel

02 – Área de preservação permanente

03 – Área de reserva legal

04 – Área de reserva particular do patrimônio natural

05 – Área de interesse ecológico/servidão pública

05.a – Áreas cobertas por florestas nativas, primárias ou secundárias em estágio médio ou avançado de regeneração

05.b – Áreas alagadas para fins de constituição de reservatório de usinas hidrelétricas autorizada pelo Poder Público

06 – Área tributável (01 – 02 – 03 – 04 – 05 – 05.a – 05.b)

07 – Área ocupada com benfeitorias

08 – Área aproveitável (06 – 07)

Distribuição da Área Utilizada (ha)

09 – Produtos vegetais e área de descanso

10 – Área com reflorestamento

11 – Pastagens

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12 – Exploração extrativa

13 – Atividade granjeira/aquícola

14 – Frustração de safra ou destruição de pastagens

15 – Área utilizada (09 + 10 + 11 + 12 + 13 + 14)

16 – Grau de utilização (15/08)*100

Cálculo do Valor da Terra Nua

17 – Valor total do imóvel

18 – Valor das construções/instalações/benfeitorias

19 – Valor das culturas permanentes e temporárias/pastagens cultivadas e melhoradas/florestas plantadas

20 – Valor da Terra Nua (17 – 18 – 19)

Cálculo do Imposto

21 – Valor da terra nua tributável (06/01)*20

22 – Alíquota

Como se percebe, a lei isenta da tributação todas as áreas de interesse ambiental (02, 03, 04, 05, 05.a e 05.b), excluindo-as da área total do imóvel (01). Todas as áreas de interesse ambiental são definidas no Código Florestal brasileiro, instituído pela Lei 12651, de 25 de maio de 2012.

Além de excluir da base de cálculo do tributo as áreas de interesse ambiental, a lei determina que, quanto mais utilizada for a propriedade e quanto menor for a sua área, menor será a alíquota aplicável.

Assim, a lei dispõe sobre o cálculo do grau de utilização da propriedade, para efeitos de aplicação da alíquota, segundo a seguinte tabela:

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tabela de alíquotas

Área total do imóvel

(em hectares)GRAU DE UTILIZAÇÃO - GU ( EM %)

Maior que 80

Maior que 65 até 80

Maior que 50 até 65

Maior que 30 até 50

Até 30

Até 50 0,03 0,20 0,40 0,70 1,00

Maior que 50 até 200 0,07 0,40 0,80 1,40 2,00

Maior que 200 até 500 0,10 0,60 1,30 2,30 3,30

Maior que 500 até 1.000 0,15 0,85 1,90 3,30 4,70

Maior que 1.000 até 5.000 0,30 1,60 3,40 6,00 8,60

Acima de 5.000 0,45 3,00 6,40 12,00 20,00

Percebe-se, portanto, que o ITR é um imposto que incentiva, ao mesmo tempo, a preservação do meio ambiente e a manutenção de terras produtivas, zelando pelo cumprimento da função social da propriedade.

Questão bastante recorrente nos tribunais brasileiros (administrativos e judiciais) diz respeito à caracterização das áreas de preservação permanente e de reserva legal para efeitos da exclusão das respectivas áreas do cálculo da área tributável do imóvel.

Referidas áreas foram alteradas pelo Código Florestal (Lei 12.651, de 25 de maio de 2012), merecendo o tema análise à luz da nova legislação.

3. as áreas de preservação permanente e de reserva legal no código florestal brasileiro

O ITR, de competência da União, na forma do art. 153, VI, da Constituição, incide nas hipóteses previstas no art. 29 do CTN.

Com base no disposto pelo CTN, a União promulgou a Lei 9393/96, que, na esteira do estatuído pelo art. 29 do CTN, instituiu, em seu art. 1º, como hipótese

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de incidência do tributo, a “propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, localizado fora da zona urbana do município”.

Sem adentrar na discussão a respeito da eventual ampliação do conceito de propriedade albergado pela Constituição Federal pelo disposto nos artigos citados, ao incluírem como fato gerador do ITR o domínio útil e a posse (cum animus domini), cumpre esclarecer que não há qualquer celeuma a respeito da incidência do tributo no que toca às áreas de preservação permanente ou de reserva florestal legal.

Com efeito, ainda que em tais áreas a utilização da propriedade deva observar a regulamentação ambiental específica, disso não decorre a consideração de que referida parcela do imóvel estaria fora da hipótese de incidência do ITR. Isso porque, como se sabe, o direito de propriedade, expressamente garantido no inciso XXII do art. 5º da CF, possui limitação constitucional assentada em sua função social (art. 5º, XIII, da CF).

Nesse sentido, consoante salienta Gilmar Mendes (et. al.), possui o legislador uma relativa liberdade para conformação do direito de propriedade, devendo preservar, contudo, “o núcleo essencial do direito de propriedade, constituído pela utilidade privada e, fundamentalmente, pelo poder de disposição. A vinculação social da propriedade, que legitima a imposição de restrições, não pode ir ao ponto de colocá-la, única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade”.5

No que atine à regulação ambiental, deste modo, a legislação, muito embora restrinja o uso do imóvel em virtude do interesse na preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, na forma como estabelecido pela Constituição da República, não elimina as faculdades de usar, gozar e dispor do bem, tal como previstas pela legislação cível.

Com fundamento no exposto, não versando o presente estudo sobre hipótese de não-incidência do tributo, mas, sim, de autêntica isenção ou, como querem alguns, redução da base de cálculo do ITR, dispôs a Lei 9393/96, em seu art. 10, o seguinte:

5 MENDES, Gilmar Ferreira (et. al.). Curso de direito constitucional. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 483.

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“Art. 10. A apuração e o pagamento do ITR serão efetuados pelo contribuinte, independentemente de prévio procedimento da ad-ministração tributária, nos prazos e condições estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, sujeitando-se a homologação posterior.

§ 1º Para os efeitos de apuração do ITR, considerar-se-á:

[...]

II - área tributável, a área total do imóvel, menos as áreas:

a) de preservação permanente e de reserva legal, previstas na Lei nº 4771, de 15 de setembro de 1965, com a redação dada pela Lei nº 7.803, de 18 de julho de 1989” (grifei).

Havendo referido dispositivo legal feito expressa referência a conceitos desenvolvidos em outro ramo do Direito, mais especificamente no que toca à seara ambiental, oportuno se faz recorrer ao arcabouço legislativo desenvolvido neste campo específico, na forma indicada pelo art. 109 do CTN, para o fim de compreender, satisfatoriamente, o que se entende por áreas de preservação permanente e de reserva legal, estabelecidas como hipótese de isenção do ITR (redução do correspondente aspecto quantitativo).

A respeito especificamente da chamada “área de preservação permanente” (APP), dispõe o Código Florestal o seguinte:

“Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por:

...

II - Área de Preservação Permanente - APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas;

...

Art. 4o Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:

I - as faixas marginais de qualquer curso d’ água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de:

a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’ água de menos de 10 (dez) metros de largura;

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b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’ água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura;

c) 100 (cem) metros, para os cursos d’ água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura;

d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d’ água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;

e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’ água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros;

II - as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com largura mínima de:

a) 100 (cem) metros, em zonas rurais, exceto para o corpo d’ água com até 20 (vinte) hectares de superfície, cuja faixa marginal será de 50 (cinquenta) metros;

b) 30 (trinta) metros, em zonas urbanas;

III - as áreas no entorno dos reservatórios d’ água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d’ água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento;

IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’ água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros;

V - as encostas ou partes destas com declividade superior a 45°, equivalente a 100% (cem por cento) na linha de maior declive;

VI - as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;

VII - os manguezais, em toda a sua extensão;

VIII - as bordas dos tabuleiros ou chapadas, até a linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais;

IX - no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100 (cem) metros e inclinação média maior que 25°, as áreas delimitadas a partir da curva de nível correspondente a 2/3 (dois terços) da altura mínima da elevação sempre em relação à base, sendo esta definida pelo plano horizontal determinado por planície ou espelho d’ água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota do ponto de sela mais próximo da elevação;

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X - as áreas em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação;

XI - em veredas, a faixa marginal, em projeção horizontal, com largura mínima de 50 (cinquenta) metros, a partir do espaço permanentemente brejoso e encharcado.

...

Art. 6o Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando declaradas de interesse social por ato do Chefe do Poder Executivo, as áreas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a uma ou mais das seguintes finalidades:

I - conter a erosão do solo e mitigar riscos de enchentes e deslizamentos de terra e de rocha;

II - proteger as restingas ou veredas;

III - proteger várzeas;

IV - abrigar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de extinção;

V - proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico, cultural ou histórico;

VI - formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias;

VII - assegurar condições de bem-estar público;

VIII - auxiliar a defesa do território nacional, a critério das autoridades militares.

IX - proteger áreas úmidas, especialmente as de importância internacional.”

Verifica-se, à luz do que se extrai dos artigos em referência, que a legislação considera como área de preservação permanente, trazendo à baila a lição de Edis Milaré, as “florestas e demais formas de vegetação que não podem ser removidas, tendo em vista a sua localização e a sua função ecológica”.6

Vale notar, nesse sentido, que a área de preservação permanente tem a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

6 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 691.

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Não se confunde com a área de preservação permanente, no entanto, a chamada área de reserva legal, ou reserva florestal legal, cujos contornos são estabelecidos igualmente pelo Código Florestal, que assim dispõe:

“Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por:

...

III - Reserva Legal: área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa;

...

Art. 12. Todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente, observados os seguintes percentuais mínimos em relação à área do imóvel, excetuados os casos previstos no art. 68 desta Lei:

I - localizado na Amazônia Legal:

a) 80% (oitenta por cento), no imóvel situado em área de florestas;

b) 35% (trinta e cinco por cento), no imóvel situado em área de cerrado;

c) 20% (vinte por cento), no imóvel situado em área de campos gerais;

II - localizado nas demais regiões do País: 20% (vinte por cento).

§ 1o Em caso de fracionamento do imóvel rural, a qualquer título, inclusive para assentamentos pelo Programa de Reforma Agrária, será considerada, para fins do disposto do caput, a área do imóvel antes do fracionamento.

§ 2o O percentual de Reserva Legal em imóvel situado em área de formações florestais, de cerrado ou de campos gerais na Amazônia Legal será definido considerando separadamente os índices contidos nas alíneas a, b e c do inciso I do caput.

§ 3o Após a implantação do CAR, a supressão de novas áreas de floresta ou outras formas de vegetação nativa apenas será autorizada pelo órgão ambiental estadual integrante do Sisnama se o imóvel estiver inserido no mencionado cadastro, ressalvado o previsto no art. 30.

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§ 4o Nos casos da alínea a do inciso I, o poder público poderá reduzir a Reserva Legal para até 50% (cinquenta por cento), para fins de recomposição, quando o Município tiver mais de 50% (cinquenta por cento) da área ocupada por unidades de conservação da natureza de domínio público e por terras indígenas homologadas.

§ 5o Nos casos da alínea a do inciso I, o poder público estadual, ouvido o Conselho Estadual de Meio Ambiente, poderá reduzir a Reserva Legal para até 50% (cinquenta por cento), quando o Estado tiver Zoneamento Ecológico-Econômico aprovado e mais de 65% (sessenta e cinco por cento) do seu território ocupado por unidades de conservação da natureza de domínio público, devidamente regularizadas, e por terras indígenas homologadas.

§ 6o Os empreendimentos de abastecimento público de água e tratamento de esgoto não estão sujeitos à constituição de Reserva Legal.

§ 7o Não será exigido Reserva Legal relativa às áreas adquiridas ou desapropriadas por detentor de concessão, permissão ou autorização para exploração de potencial de energia hidráulica, nas quais funcionem empreendimentos de geração de energia elétrica, subestações ou sejam instaladas linhas de transmissão e de distribuição de energia elétrica.

§ 8o Não será exigido Reserva Legal relativa às áreas adquiridas ou desapropriadas com o objetivo de implantação e ampliação de capacidade de rodovias e ferrovias.

Art. 13. Quando indicado pelo Zoneamento Ecológico-Econômico - ZEE estadual, realizado segundo metodologia unificada, o poder público federal poderá:

I - reduzir, exclusivamente para fins de regularização, mediante recomposição, regeneração ou compensação da Reserva Legal de imóveis com área rural consolidada, situados em área de floresta localizada na Amazônia Legal, para até 50% (cinquenta por cento) da propriedade, excluídas as áreas prioritárias para conservação da biodiversidade e dos recursos hídricos e os corredores ecológicos;

II - ampliar as áreas de Reserva Legal em até 50% (cinquenta por cento) dos percentuais previstos nesta Lei, para cumprimento de metas nacionais de proteção à biodiversidade ou de redução de emissão de gases de efeito estufa.

§ 1o No caso previsto no inciso I do caput, o proprietário ou possuidor de imóvel rural que mantiver Reserva Legal conservada e averbada em área superior aos percentuais exigidos no referido inciso poderá

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instituir servidão ambiental sobre a área excedente, nos termos da Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981, e Cota de Reserva Ambiental.

§ 2o Os Estados que não possuem seus Zoneamentos Ecológico-Econômicos - ZEEs segundo a metodologia unificada, estabelecida em norma federal, terão o prazo de 5 (cinco) anos, a partir da data da publicação desta Lei, para a sua elaboração e aprovação.

Art. 14. A localização da área de Reserva Legal no imóvel rural deverá levar em consideração os seguintes estudos e critérios:

I - o plano de bacia hidrográfica;

II - o Zoneamento Ecológico-Econômico

III - a formação de corredores ecológicos com outra Reserva Legal, com Área de Preservação Permanente, com Unidade de Conservação ou com outra área legalmente protegida;

IV - as áreas de maior importância para a conservação da biodiversidade; e

V - as áreas de maior fragilidade ambiental.

§ 1o O órgão estadual integrante do Sisnama ou instituição por ele habilitada deverá aprovar a localização da Reserva Legal após a inclusão do imóvel no CAR, conforme o art. 29 desta Lei.

§ 2o Protocolada a documentação exigida para a análise da localiza-ção da área de Reserva Legal, ao proprietário ou possuidor rural não poderá ser imputada sanção administrativa, inclusive restrição a direitos, por qualquer órgão ambiental competente integrante do Sisnama, em razão da não formalização da área de Reserva Legal.

Art. 15. Será admitido o cômputo das Áreas de Preservação Permanente no cálculo do percentual da Reserva Legal do imóvel, desde que:

I - o benefício previsto neste artigo não implique a conversão de novas áreas para o uso alternativo do solo;

II - a área a ser computada esteja conservada ou em processo de recuperação, conforme comprovação do proprietário ao órgão estadual integrante do Sisnama; e

III - o proprietário ou possuidor tenha requerido inclusão do imóvel no Cadastro Ambiental Rural - CAR, nos termos desta Lei.

§ 1o O regime de proteção da Área de Preservação Permanente não se altera na hipótese prevista neste artigo.

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§ 2o O proprietário ou possuidor de imóvel com Reserva Legal conservada e inscrita no Cadastro Ambiental Rural - CAR de que trata o art. 29, cuja área ultrapasse o mínimo exigido por esta Lei, poderá utilizar a área excedente para fins de constituição de servidão ambiental, Cota de Reserva Ambiental e outros instrumentos congêneres previstos nesta Lei.

§ 3o O cômputo de que trata o caput aplica-se a todas as modalidades de cumprimento da Reserva Legal, abrangendo a regeneração, a recomposição e a compensação.

§ 4o É dispensada a aplicação do inciso I do caput deste artigo, quando as Áreas de Preservação Permanente conservadas ou em processo de recuperação, somadas às demais florestas e outras formas de vegetação nativa existentes em imóvel, ultrapassarem:

I - 80% (oitenta por cento) do imóvel rural localizado em áreas de floresta na Amazônia Legal; e

II - (VETADO).

Art. 16. Poderá ser instituído Reserva Legal em regime de condomínio ou coletiva entre propriedades rurais, respeitado o percentual previsto no art. 12 em relação a cada imóvel.

Parágrafo único. No parcelamento de imóveis rurais, a área de Reserva Legal poderá ser agrupada em regime de condomínio entre os adquirentes.”

O Código Florestal estabelece, em sua essência, como lembra MILARÉ, a idéia de disciplinar a supressão tanto das florestas e demais formas de vegetação nativa, excetuadas as áreas de preservação permanente, vistas anteriormente, como, igualmente, das florestas não sujeitas ao regime de utilização limitada, ou já objeto de legislação específica.7

Nesse sentido, lembra o referido ambientalista que “ao permitir tal supressão [de florestas] determina que se mantenha obrigatoriamente uma parte da propriedade rural com cobertura florestal ou com outra forma de vegetação nativa”, delimitando, assim, “a porção a ser constituída como Reserva da Floresta Legal”.8

A reserva florestal legal, portanto, sendo um percentual determinado por lei para a preservação da vegetação nativa do imóvel rural, constitui, como afirma

7 MILARÉ, Edis. op. cit. p. 702.8 MILARÉ, Edis. op. cit. p. 702.

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Paulo de Bessa Antunes, “uma obrigação que recai diretamente sobre o proprietário do imóvel, independentemente de sua pessoa ou da forma pela qual tenha adquirido a propriedade”, estando, assim, “umbilicalmente ligada à própria coisa, permanecendo aderida ao bem”.9

À luz do exposto, verifica-se que as restrições ambientais, tanto nos casos de áreas de preservação permanente, como naqueles em que há reserva legal, decorrem, explicitamente, da ocorrência ou verificação, in loco, dos pressupostos legais apontados pela legislação, inexistindo, portanto, qualquer discriciona-riedade por parte do proprietário ou agente público.

Nesse passo, consoante se extrai da legislação ambiental trazida à baila, não há a exigência, para o cumprimento das normas relativas às áreas de preservação permanente, de qualquer ato público que as constitua, mas, apenas e tão-somente, da ocorrência das hipóteses legais previstas pelo Código Florestal, bem como pelos demais atos normativos primários que disponham sobre o tema.

Em relação à reserva legal, a legislação anterior previa sua averbação à margem da matrícula do imóvel. Sempre entendi que essa averbação não tinha natureza constitutiva, mas simplesmente declaratória, tendo em vista que, excetuadas as hipóteses especificamente mencionadas na lei, a observância do percentual de 20% não dependia de qualquer averbação, estando apenas sujeita à aprovação da sua localização por órgão ambiental estadual competente após o exercício de 2002, ou, mediante convênio, pelo órgão ambiental municipal ou outra instituição devidamente habilitada, na forma do §4º do art. 16 da revogada Lei 4771/65 (tendo em vista a redação dada pela Medida Provisória – MP 2166-67, de 2001).

Atualmente, a exigência de aprovação da localização da área de reserva legal se mantém, devendo agora ser autorizada pelo órgão estadual integrante do Sisnama ou instituição por ele habilitada, após a inclusão do imóvel no Cadastro Ambiental Rural – CAR, nos termos do §1º. do artigo 14 do Código Florestal, sendo que, “protocolada a documentação exigida para a análise da localização da

9 ANTUNES, Paulo de Bessa. Poder Judiciário e reserva legal: análise de recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça. In: Revista de Direito Ambiental n.º 21. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 120.

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área de Reserva Legal, ao proprietário ou possuidor rural não poderá ser imputada sanção administrativa, inclusive restrição a direitos, por qualquer órgão ambiental competente integrante do Sisnama, em razão da não formalização da área de Reserva Legal” (artigo 14, §2º., do Código Florestal). Tal cadastro, atualmente, dispensa a averbação no Cartório de Registro de Imóveis (artigo 18, §4º, do Código Florestal) e impede a aplicação de qualquer sanção ao proprietário ou possuidor rural.

Além da desnecessidade de averbação, para o fim específico de constituir as áreas de reserva florestal legal, igualmente não havia, até o exercício de 2000, qualquer fundamento legal para a exigência da entrega do Ato Declaratório Ambiental (ADA) para o fim de reduzir a base de cálculo do ITR. Nesse sentido, aliás, dispunha o art. 17-O, da Lei 6.938/81, com a redação que lhe foi conferida pela Lei 9960/2000, o seguinte:

“Art. 17-O. Os proprietários rurais, que se beneficiarem com redução do valor do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR, com base em Ato Declaratório Ambiental - ADA, deverão recolher ao Ibama 10% (dez por cento) do valor auferido como redução do referido Imposto, a título de preço público pela prestação de serviços técnicos de vistoria.” (AC)

“§ 1o A utilização do ADA para efeito de redução do valor a pagar do ITR é opcional.”

Por esta razão, portanto, isto é, por inexistir qualquer fundamento legal para a entrega tempestiva do ADA, como requisito para a fruição da redução da base de cálculo prevista pela legislação atinente ao ITR, a 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais aprovou a seguinte súmula, extraída do texto da Portaria 106/2009:

“A não apresentação do Ato Declaratório Ambiental (ADA) emitido pelo IBAMA, ou órgão conveniado, não pode motivar o lançamento de ofício relativo a fatos geradores ocorridos até o exercício de 2000.”

Pois bem. Muito embora inexistisse, até o exercício de 2000, qualquer fundamento para a exigência da entrega do ADA como requisito para a fruição da isenção, com o advento da Lei 10.165/2000 alterou-se a redação do §1º do art. 17-O da Lei 6.938/81, que passou a vigorar da seguinte forma:

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“Art. 17-O.

(...)

§ 1o A utilização do ADA para efeito de redução do valor a pagar do ITR é obrigatória.”

Assim, a partir do exercício de 2001, a exigência do ADA passou a ter previsão legal com a promulgação da Lei 10.165/00, que alterou o conteúdo do art. 17-O, §1º, da Lei 6.938/81, para a fruição da redução da base de cálculo do ITR.

Entendo tal alteração na legislação da seguinte forma: o ADA, apresentado tempestivamente, tem a função de inverter o ônus da prova, passando este a ser do Fisco a partir da sua entrega. Caso não ocorra a entrega do ADA, pode o contribuinte se valer de outros meios de prova visando à fruição da redução da base de cálculo.

Assim, sendo certo que as normas que instituem isenções devem ser interpretadas de forma estrita, ainda que não se recorra somente ao seu aspecto literal, como se poderia entender de uma análise superficial do art. 111 do CTN, fato é que, no que atine às regras tratadas como exclusão do crédito tributário pelo referido codex, a legislação não pode ser interpretada de maneira extensiva, de maneira que não há como afastar a exigência do ADA para o fim específico de possibilitar a redução da base de cálculo do ITR.

Importante salientar, outrossim, ainda no que concerne à obrigatoriedade de apresentação do ADA, que não há que se falar em revogação do referido dispositivo pelo §7º do art. 10 da Lei 9393/96, instituído pela MP 2166-67/01, tendo em vista que a inversão do ônus da prova prevista no referido dispositivo refere-se justamente às declarações feitas pelo contribuinte no próprio Ato Declaratório Ambiental (ADA), de modo que não estabelece referido dispositivo legal qualquer desnecessidade de apresentação deste último.

Feita esta observação, relativa, portanto, à obrigatoriedade de apresentação do ADA, cumpre mover à análise do prazo em que poderia o contribuinte protocolizar referida declaração no órgão competente.

No que toca a este aspecto específico, tenho para mim que é absolutamente relevante uma digressão a respeito da mens legis que norteou a alteração do texto do art. 17-O da Lei 6938/81.

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Analisando-se, nesse passo, o real intento do legislador ao estabelecer a obri-gatoriedade de apresentação do ADA, pode-se inferir que a mudança de paradigma deveu-se a razões atinentes à efetividade da norma isencional, especialmente no que concerne à aferição do real cumprimento das normas ambientais pelo contribuinte, de maneira a permitir que este último possa usufruir da redução da base de cálculo do ITR.

Em outras palavras, a efetiva exigência do ADA para o fim específico da fruição da redução da base de cálculo do ITR foi permitir uma efetiva fiscalização por parte da Receita Federal da preservação das áreas de reserva legal ou de preservação permanente, utilizando-se, para este fim específico, do poder de polícia atribuído ao IBAMA.

Em síntese, pode-se afirmar que a alteração no regramento legal teve por escopo razões de “praticabilidade” tributária, a partir da criação de um dever legal que permita, como afirma Helenílson Cunha Pontes, uma “razoável efetividade da norma tributária”,10 no caso da norma isencional.

De fato, no caso da redução da base de cálculo do ITR, mais especificamente no que atine às áreas de interesse ambiental lato sensu, além da necessidade de fiscalizar um número extenso de contribuintes, exigir-se-ia, não fosse a obrigatória protocolização do ADA, que a Receita Federal tomasse para si o dever de fiscalizar o extenso volume de propriedades rurais compreendido no território nacional, o que, do ponto de vista econômico, não teria qualquer viabilidade.

Por esta razão, assim, passou-se, com o advento da Lei 10165/00, a exigir, de forma obrigatória, a apresentação do ADA para o fim de permitir a redução da base de cálculo do ITR, declaração esta sujeita ao poder de polícia do IBAMA.

Tratando-se, portanto, da interpretação do dispositivo em comento, deve o aplicador do direito, neste conceito compreendido o julgador, analisar o conteúdo principiológico que norteia referido dispositivo legal, a fim de conferir-lhe o sentido que melhor se amolda aos objetivos legais.

10 PONTES, Helenílson Cunha. O princípio da praticidade no Direito Tributário (substituição tributária, plantas de valores, retenções de fonte, presunções e ficções, etc.): sua necessidade e seus limites. In: Revista Internacional de Direito Tributário, v. 1, n.º 2. Belo Horizonte, jul/dez-2004, p. 57.

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Partindo-se desta premissa basilar, verifica-se que o art. 17-O da Lei 6938/81, em que pese o fato de imprimir, de forma inafastável, o dever de apresentar o ADA, não estabelece qualquer exigência no que toca à necessidade de sua protocolização em prazo fixado pela Receita Federal para o fim específico de permitir a redução da base de cálculo do ITR.

A exigência de protocolo tempestivo do ADA, para o fim específico da redução da base de cálculo do ITR, não decorre expressamente de lei, mas sim do art. 10, §3º, I, do Decreto 4382/2002, que, inclusive, data de setembro de 2002.

Quer-se com isso dizer, portanto, que, muito embora a legislação tratasse, de maneira inolvidável, a respeito da entrega do Ato Declaratório Ambiental, para o fim específico da redução da base de cálculo do ITR, não havia, sequer no âmbito do poder regulamentar, disposição alguma a respeito do prazo para sua apresentação, e, menos ainda, que possibilitasse à Receita Federal desconsiderar a existência de áreas de preservação permanente ou de reserva legal no caso de apresentação intempestiva do ADA.

Com efeito, sendo certo que a instituição de tributos ou mesmo da exclusão do crédito tributário, na forma como denominada pelo CTN, são matérias que devem ser integralmente previstas em lei, na forma como estatuído pelo art. 97 do CTN, mais especificamente no que toca ao seu inciso VI, não poderia sequer o poder regulamentar estabelecer a desconsideração da isenção tributária no caso da mera apresentação intempestiva do ADA.

Repise-se, nesse sentido, que não se discute que a lei tenha instituído a obrigatoriedade da apresentação do ADA, mas, sim, que o prazo de seis meses, contado da entrega da DITR, foi instituído apenas por instrução normativa, muito posteriormente embasada pelo Decreto 4382/2002, o que, com a devida vênia, não merece prosperar.

Em virtude, portanto, da ausência de estabelecimento de um critério rígido quanto ao prazo para a apresentação do ADA, eis que não se encontra previsto em lei, cumpre recorrer aos mecanismos de integração da legislação tributária, de maneira a imprimir eficácia ao disposto pelo art. 17-O da Lei 6398/81.

Dentre os mecanismos de integração previstos pelo ordenamento jurídico, dispõe o CTN, em seu art. 108, I, que deve o aplicador recorrer à analogia, sendo

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referida opção vedada apenas no que toca à instituição de tributos não previstos em lei, o que, ressalte-se, não é o caso.

Nesse esteio, recorrendo-se à analogia para o preenchimento de referida lacuna, deve-se recorrer à legislação do ITR relativa às demais declarações firmadas pelo contribuinte, mais especificamente no que atine à DIAT e à DIAC, expressamente contempladas pela Lei 9393/96, aplicadas ao presente caso tendo-se sempre em vista o escopo da norma inserida no texto do art. 17-O da Lei 6398/81, isto é, imprimir “praticabilidade” à aferição da existência das áreas de reserva legal e preservação permanente, para o fim específico da isenção tributária.

Pois bem. Sendo certo que a apresentação do ADA tem o papel de imprimir “praticabilidade” à apuração da área tributável, verifica-se que cumpre o escopo da norma a sua entrega até o início da fiscalização, momento a partir do qual a apresentação já não mais atenderá seu desiderato.

De fato, até o início da fiscalização em face do contribuinte, a entrega do ADA possibilitará a consideração, por parte da Receita Federal, da redução da base de cálculo do ITR, submetendo as declarações do contribuinte ao pálio do órgão ambiental competente e retirando referida aferição do âmbito da Receita Federal do Brasil. A entrega, portanto, ainda que intempestiva, muito embora pudesse ensejar a aplicação de uma multa específica, caso existisse referida norma sancionatória, seria equivalente à retificação das demais declarações relativas ao ITR, isto é, da DIAT e da DIAC, devendo, pois, ter o mesmo tratamento que estas últimas, em consonância com o que estatui o brocardo jurídico “ubi eadem ratio, ibi eaedem legis dispositio”, isto é, onde há o mesmo racional, a legislação não pode aplicar critérios distintos.

À guisa do exposto, portanto, no que toca à entrega do ADA, tenho para mim que cumpre seu desiderato até o momento do início da fiscalização, a partir do qual a omissão do contribuinte ensejou a necessidade de fiscalização específica relativa ao recolhimento do ITR, o que implica nos custos administrativos inerentes a este fato.

Assim, aplica-se ao ADA, de acordo com este entendimento basilar, a regra prevista pelo art. 18 da MP 2189-49/01, que assim dispõe:

“Art.  18. A retificação de declaração de impostos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal, nas hipóteses em

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que admitida, terá a mesma natureza da declaração originariamente apresentada, independentemente de autorização pela autoridade administrativa.”

De acordo com a interpretação que ora se sustenta, pois, é permitida a entrega do ADA, ainda que intempestivamente, desde que o contribuinte o faça até o início da fiscalização.

Poder-se-ia sustentar, inclusive, que o ADA poderia ser substituído por outros documentos que comprovassem efetivamente as áreas de preservação permanente e de reserva legal, à luz do que se extrai do próprio “Manual de Perguntas e Respostas” do Ato Declaratório Ambiental (ADA) editado pelo IBAMA em 2010.

Pode-se concluir, portanto, que a própria Administração Pública, que não pode venire contra factum proprium, entende que tanto o ADA como a averbação da reserva legal têm efeito meramente declaratório, não sendo os únicos documentos comprobatórios das áreas de preservação permanente e de reserva legal, o que remete a solução da controvérsia, nas hipóteses em que ausentes a apresentação do referido ADA ou a averbação da reserva legal, à análise de cada caso concreto.

Em relação à reserva legal, esta está sujeita à aprovação da sua localização por órgão ambiental estadual competente após o exercício de 2002, ou, mediante convênio, pelo órgão ambiental municipal ou outra instituição devidamente habilitada, na forma do §4º do art. 16 da revogada Lei 4771/65 (tendo em vista a redação dada pela MP 2166-67, de 2001).

No Código Florestal, a exigência de aprovação da localização da área de reserva legal se mantém, devendo agora ser autorizada pelo órgão estadual integrante do Sisnama ou instituição por ele habilitada, após a inclusão do imóvel no Cadastro Ambiental Rural – CAR, nos termos do §1º. do seu artigo 14, sendo que, “protocolada a documentação exigida para a análise da localização da área de Reserva Legal, ao proprietário ou possuidor rural não poderá ser imputada sanção administrativa, inclusive restrição a direitos, por qualquer órgão ambiental competente integrante do Sisnama, em razão da não formalização da área de Reserva Legal” (artigo 14, §2º). Tal cadastro, atualmente, dispensa a averbação no Cartório de Registro de Imóveis (artigo 18, §4º) e impede a aplicação de qualquer sanção ao proprietário ou possuidor rural.

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4. conclusões

Conclui-se, portanto, que (a) a proteção do meio ambiente se dá pela exclusão das áreas de interesse ambiental (das quais as áreas de preservação permanente e de reserva legal são os principais exemplos) do cálculo da área tributável do imóvel; (b) a produtividade é incentivada pela progressividade/regressividade das alíquotas do imposto, mais altas para as grandes propriedades e menores para as propriedades que alcançam maior grau de utilização; e (c) o ITR é um instrumento do Poder Público para o desenvolvimento agrário sustentável.

Quanto às áreas de preservação permanente, estas decorrem do próprio Código Florestal, podendo ser comprovadas por qualquer meio de prova admitido em direito. No caso de apresentação tempestiva do ADA (até o início da fiscalização), inverte-se o ônus da prova, cabendo à autoridade administrativa a prova de que não existe no imóvel referida área.

No que se refere à área de reserva legal, esta está sujeita à aprovação da sua localização por órgão ambiental estadual competente, ou, mediante convênio, pelo órgão ambiental municipal ou outra instituição devidamente habilitada.

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o novo código florestal e a cota de reserva ambiental como instrumento de compensação da reserva legal: os principais entraves para sua efetiva

aplicação na busca do desenvolvimento sustentável

Lucas de Souza Lehfeld1

Resumo

O presente artigo tem por objetivo estudar a viabilidade da Cota de Reserva Ambiental enquanto instrumento de compensação por parte de proprietários rurais que não possuem o percentual adequado de Reserva Legal em seus imóveis. Para tanto, é estudado o instituto da Reserva Legal, seu conceito, objetivos e suas formas de instituição, adentrando-se na modalidade da compensação. Feita a contextualização parte-se para a análise do regulamento da Cota de Reserva Ambiental promovido pelo Código Florestal de 2012, verificando-se a adequação e viabilidade do instrumento. Nessa análise são apurados entraves que acabam impedindo a difusão do uso desse mecanismo, quais sejam, as inconstitucionalidades ligadas a um retrocesso na proteção ambiental, a carência de um regulamento adequado para o instrumento e a perda de mercado promovida pelo próprio legislador, ao anistiar proprietários que utilizariam o instrumento. São obstáculos que devem ser superados para o uso efetivo da Cota de Reserva Ambiental como instrumento de compensação da Reserva Legal.

Palavras-chave

Reserva Legal; Compensação; Cota de Reserva Ambiental.

Abstract

This article aims to study the viability of the Environmental Reserve Quota as an instrument of compensation by landowners who do not possess the

1 Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (POR). Professor titular da Universidade de Ribeirão Preto e da Organização Educacional Barão de Mauá.

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appropriate percentage of Legal Reserve on their property. Therefore, it is studied Institute of Legal Reserve, the concept, objectives and forms of institution, entering in the form of compensation. After building the context for the analysis of the regulation of the Environmental Reserve Quota promoted by the Forest Law of 2012, the article starts verifying the adequacy and viability of the instrument. In this analysis are calculated barriers preventing a spreading in the use of this mechanism, namely the unconstitutionality linked to a setback in the environmental protection, the lack of an adequate regulation for the instrument and the loss of market promoted by the legislature itself, with the amnesty owners who would use the instrument. Those are obstacles that must be overcome for the effective use of the Environmental Reserve Quota as a mean of compensation of the Legal Reserve.

Key words

Legal Reserve; Compensation; Environmental Reserve Quota.

1. introdução

O novo Código Florestal, Lei 12.651, de 25 de maio de 2012 com as alterações da Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012, baliza-se praticamente em dois princípios, quais sejam, a função socioambiental da propriedade, em especial a rural, e o do desenvolvimento sustentável quanto à proteção dos recursos ambientais e a produção agropecuária como a principal atividade econômica do país.

A proposta da novel legislação é buscar um equilíbrio entre a preservação e recuperação da vegetação nativa e florestas, que em sua maioria encontram-se em imóveis rurais de propriedade privada, e a necessidade de proporcionar condições econômico-financeiras para a exploração da atividade agrossilvipastoris que domina o campo em território brasileiro.

Nesse sentido, o Código Florestal propõe a (re)criação de um aparato de proteção ambiental mais adequada as necessidades socioeconômicas, aproveitando-se de institutos mais modernos e de uma fiscalização mais efetiva do cumprimento de suas regras.

Um dos institutos centrais da tutela florestal segue sendo a Reserva Legal, área que deve receber especial preservação visando garantir com que a atividade

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econômica promovida no imóvel rural não prejudique a biodiversidade e demais benesses promovidas pelo respeito às florestas nativas.

Ocorre que em razão do desmatamento acentuado que atingiu o país, muitos proprietários rurais precisam instituir as suas áreas de Reserva Legal em propriedades sem qualquer tipo de vegetação nativa. Para tanto, ao lado da regeneração ou recomposição, que implicam na “reconstrução” da Reserva Legal dentro da propriedade desmatada, o Código Florestal traz a possibilidade de compensação, que permite que um proprietário proteja área fora de sua propriedade ou mesmo negocie com outro proprietário que possua área protegida acima dos limites legais, para que não perca parte produtiva de seu imóvel rural.

Para garantir ao proprietário rural interessado o acesso aos excedentes de áreas protegidas passíveis de negociação, o legislador criou o instituto da Cota de Reserva Ambiental (CRA), título representativo de áreas de vegetação nativa que ficará disponível no mercado para atender a compensações de Reserva Legal.

Balizado no princípio do protetor-recebedor, trata-se de interessante instrumento que visa difundir a negociação de áreas ambientalmente tuteladas com proprietários que não tem interesse econômico em recompor suas próprias terras, garantindo, assim, um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a proteção do meio ambiente.

Todavia, falhas na regulamentação do instituto criaram verdadeiros entraves à sua aplicação como efetivo instrumento de compensação da Reserva Legal, o que deve ser enfrentado e corrigido pelo legislador para evitar que a CRA torne-se letra morta na novel legislação florestal. A sustentabilidade como um dos princípios informadores do Código Florestal depende da eficácia desse e de outros instrumentos de compensação da Reserva Legal.

2. conceito e origem histórica da reserva legal

A Reserva Legal é atualmente conceituada pelo art. 3º, III, do Código Florestal (Lei 12.651/2012) como a

área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do

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imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa.

Muito antes da moderna redação dada ao dispositivo, vale notar que a preocupação com a restrição à exploração das propriedades remonta ao Brasil colônia, momento em que a Coroa portuguesa já atuava para conter abusos. Nesse período, a exploração descontrolada do pau-brasil por inúmeros países fez com que, no século XVII, fosse elaborado o Regimento do Pau-brasil que proibia o corte da árvore sem expressa autorização das autoridades públicas lusitanas (ANTUNES, 2012, p. 592).

A regulamentação inicial contra abusos de exploração ambiental, portanto, tinha claro caráter político-econômico. Apenas séculos depois foi aceita a concepção de J. Baird Callicot, para quem a terra possui valor intrínseco, além de mero valor instrumental (PALMER, 2006, p. 289). O marco da mudança de paradigma foi a edição do Código Florestal de 1934 que, em seu artigo 23, destacava que “nenhum proprietário de terras cobertas de matas poderá abater mais de três quartas partes da vegetação existente” (GRANZIEIRA, 2009, p. 355).

A chamada “quarta parte” foi o embrião do instituto da Reserva Legal, que ganhou essa denominação com a alteração introduzida no Código Florestal de 1965, pela Lei nº 7.803/1989, que acrescentou os parágrafos 2º e 3º ao artigo 16, tratando-a como “a área de, no mínimo 20% (vinte por cento) de cada propriedade, onde não é possível o corte raso”, demandando, ademais, sua averbação à margem da inscrição de matrícula do imóvel.

O conceito foi ainda alterado pela Medida Provisória 2.166-67/01, que já se encontrava muito próximo ao do atual Código Florestal, apresentado no início do tópico, com a exceção de que a legislação anterior impedia o cômputo da área de preservação permanente na Reserva Legal, situação possibilitada pelo atual diploma florestal.

É inegável a importância da Reserva Legal para a proteção do meio ambiente, servindo como áreas essenciais para a conservação da biodiversidade, bem como atuando em conjunto com as áreas de preservação permanente para manutenção de uma cobertura de vegetação nativa no país.

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Estudo feito pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e pela Academia Brasileira de Ciências aponta que:

O fundamento científico para a RL é o fato de que, antes da existência de uma propriedade, havia uma paisagem natural. Assim, ao reconhecer a importância de uma fonte de matérias-primas, principalmente madeira, no âmbito da propriedade, o Estado propôs a manutenção de uma determinada parcela da área total da propriedade para satisfazer necessidades locais (SILVA, 2011, p. 85).

São inúmeros os ganhos trazidos com a área de Reserva Legal no imóvel rural, seja na tutela do meio ambiente, ou mesmo no desenvolvimento econômico, uma vez que os benefícios acabam também atingindo o proprietário do imóvel. É equivocado pensar que o instituto reserva-se apenas à tutela ambiental, deixando completamente prejudicada a produção econômica da propriedade, conforme conclusão apontada pelo estudo supramencionado:

Além de possibilitar o uso sustentável da vegetação, a RL constitui importante complemento às APPs, como na recarga dos mananciais e na conservação da biodiversidade (imprescindível para possibilitar a polinização em muitas espécies utilizadas na agricultura). Nos dois casos, o primeiro beneficiado com a conservação da vegetação é o próprio proprietário ou agricultor (SILVA, 2011, p. 85).

A Reserva Legal, embora bem ambiental, de certa maneira também beneficia o proprietário ou possuidor rural, tanto pela conservação da biodiversidade, quanto à possibilidade de sua exploração econômica, conforme seu regime jurídico de proteção.

3. proteção jurídica da reserva legal

Muito mais do que uma questão individual do proprietário ou possuidor do imóvel rural, a Reserva Legal interessa à coletividade, sendo bem ambiental de destacada importância.

Essa coletividade exige, portanto, que a obrigação de preservação e restauração de florestas e demais formas de vegetação nativa acompanhe a coisa,

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independentemente de quem esteja na titularidade de seu domínio. Trata-se, portanto, de obrigação propter rem, isto é, que recai sobre uma pessoa por força de determinado direito real (LEHFELD; CARVALHO; BALBIM, 2013, p. 157).

Para demonstração de cumprimento da regra legal, sempre se exigiu que o proprietário do imóvel rural promovesse a averbação da área de Reserva Legal à margem da inscrição de matrícula do imóvel. O Código Florestal atual, contudo, criando o Cadastro Ambiental Rural, registro público eletrônico cujo objetivo é garantir o controle e a fiscalização do imóvel rural, passou a demandar apenas a formalização da Reserva Legal nesse Cadastro, dispensando-se, nesse caso, a averbação do referido percentual de proteção ambiental também na matrícula2.

Feito o registro da área de Reserva Legal – seja na matrícula do imóvel ou, como se passa a permitir, no Cadastro Ambiental Rural – é vedada a alteração na destinação da área em casos de transmissão da propriedade, desmembramento ou retificação da área.

Na posse da área, inclusive, é necessário termo de compromisso firmado pelo possuidor com o órgão competente do SISNAMA, explicitando a localização da área de Reserva Legal e as obrigações do possuidor, que poderá promover na área apenas o manejo sustentável, que será abordado na sequência do presente artigo (art. 18, §2º, do Código Florestal). A transferência da posse implica a sub-rogação das obrigações assumidas no termo de compromisso (§3º).

Em suma, uma vez discriminada a área de Reserva Legal, ela passará a ser tu-telada e apenas poderá ser utilizada respeitando-se o manejo florestal sustentável, seja quem for seu proprietário ou possuidor. Essa proteção é marcada pela perpetuidade, apenas sendo possível a extinção da Reserva Legal caso o imóvel passe a integrar a área urbana mediante seu registro no parcelamento de solo para fins urbanos (art. 19 do Código Florestal).

2 A dispensa de registro da reserva legal na matrícula do imóvel gera inúmeras críticas por representar retrocesso na eficácia do controle ambiental. Por ora, tendo em vista que não houve ainda a implementação do Cadastro Ambiental Rural, a exigência de registro na matrícula subsiste, conforme posicionamento de órgãos ambientais e decisões judiciais (jurisprudência).

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3.1. plano de manejo florestal sustentável em reserva legal e vantagens ao proprietário ou possuidor rural

A Reserva Legal, apesar da denominação, permite a utilização da terra por parte do proprietário, contanto que haja um “manejo florestal sustentável”, que engloba aquele sem propósito comercial, para consumo no próprio imóvel, bem como o com propósito comercial.

O manejo sem propósito comercial, tratado no art. 23 do Código Florestal, consiste na produção de subsistência, de consumo próprio no imóvel rural, podendo ser realizado independentemente de autorização do órgão ambiental competente, bastando declaração prévia dos motivos da exploração e limitação de volume a vinte metros cúbicos anuais.

O manejo com propósito comercial, regulamentado pelo art. 22 do diploma florestal, dependerá, por outro lado, de autorização do órgão ambiental, que somente será concedida se: a) não descaracterizar a cobertura vegetal e não prejudicar a conservação da vegetação nativa da área; b) assegurar a manutenção da diversidade das espécies; c) conduzir o manejo de espécies exóticas com a adoção de medidas que favoreçam a regeneração de espécies nativas.

Ao lado do manejo florestal sustentável, a área de Reserva Legal do imóvel rural poderá ser utilizada também para a coleta de produtos não madeireiros, tais como frutos, cipós, folhas e sementes, contanto que tal conduta não coloque em risco os objetivos de tutelar a biodiversidade da área3.

Como se observa, há vantagens ao proprietário ou possuidor rural, uma vez que, ao lado da proteção da biodiversidade, as normas do Código Florestal garantem a possibilidade de uso da Reserva Legal, gerando, ainda que de forma restrita, ganhos econômicos e sociais.

Com efeito, a possibilidade de uso da área de reserva legal até mesmo para propósitos comerciais (como atividades ligadas ao turismo etc.), revela que o

3 O art. 21 do Código Florestal especifica os requisitos para a coleta, exigindo a observação: I – dos períodos de coleta e volumes fixados em regulamentos específicos, quando houver; II – a época de maturação dos frutos e sementes; III – técnicas que não coloquem em risco a sobrevivência de indivíduos e da espécie coletada no caso de coleta de flores, folhas, cascas, óleos, resinas, cipós, bulbos, bambus e raízes.

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legislador buscou compatibilizar a necessária proteção ao meio ambiente com o uso da terra para o desenvolvimento econômico.

4. instituição da reserva legal

4.1. percentuais mínimos de reserva legal

O art. 12 do Código Florestal estabelece os percentuais mínimos de Reserva Legal em relação à área total do imóvel, consagrando variação conforme a sua localização no território nacional.

A primeira região considerada pelo legislador é a Amazônia Legal, que compreende os Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e as regiões situadas ao norte do paralelo 13º S, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de 44º W, do Estado do Maranhão (art. 3º, I, do Código Florestal). No ecossistema Amazônia Legal são encontradas áreas de florestas, cerrado e campos gerais, divisões consideradas pelo legislador para estabelecer os percentuais mínimos de Reserva Legal.

A floresta é considerada como “entidade fisionômica de vegetação que a nenhuma outra se assemelha; as florestas oferecem uma extensa gama de comunidades vivas radicalmente diferentes, em função dos climas, dos solos e da repartição biogeográfica de seus diversos componentes florísticos ou faunísticos” (CHARBONNEUA, 1979, p. 46). Diante da destacada importância das florestas da região da Amazônia Legal, sobretudo no aspecto da biodiversidade, o percentual de Reserva Legal estabelecido para imóveis rurais localizados nessa região é de 80%.

O cerrado, por sua vez, é o

tipo de vegetação que ocorre no Planalto Central Brasileiro, em certas áreas da Amazônia e do Nordeste, em terreno geralmente plano, caracterizado por árvores baixas e arbustos espaçados, associados a gramíneas, também denominado campo cerrado. É um dos grandes biomas brasileiros, que abrange vários Estados, além do Distrito Federal (MILARÉ, 2009, p. 1295).

Para os imóveis localizados em cerrados da Amazônia Legal o percentual exigido de Reserva Legal é de 35%.

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Os campos gerais, por fim, são

terras planas ou quase planas, em regiões temperadas, tropicais ou subtropicais, de clima semiárido ou subúmido, cobertas de vegetação em que predominam as gramíneas, às vezes com presença de arbustos e espécies arbóreas esparsas, habitadas por animais corredores e pássaros de visão apurada e coloração protetora (MILARÉ, 2009, p. 1295).

Nos imóveis localizados em campos gerais da Amazônia Legal o mínimo de Reserva Legal é de 20%.

A segunda região é obtida por exclusão, tratada pelo Código como “demais regiões do país”, isto é, fora da Amazônia Legal. Nessas, independentemente de biomas, a Reserva Legal deve ser feita em ao menos 20% do imóvel rural.

4.2. critérios de localização e formas de instituição da reserva legal

Os benefícios ambientais garantidos pela manutenção da área de Reserva Legal depende de algumas medidas, não bastando que a propriedade rural reserve qualquer parte de sua extensão para essa finalidade sem que um estudo indique a melhor localização da área para fins de proteção do meio ambiente.

Nesse sentido, o art. 14 do Código Florestal estabelece que a localização da área de Reserva Legal deverá levar em consideração: a) o plano da bacia hidrográfica; b) o Zoneamento Ecológico-Econômico; c) a formação de corredores ecológicos com outra Reserva Legal, com Área de Preservação Permanente, com Unidade de Conservação ou com outra área legalmente protegida; d) as áreas de maior im-portância para a conservação da biodiversidade; e e) as áreas de maior fragilidade ambiental.

São critérios importantes para que a obrigação não se torne mera formalidade, mas represente verdadeiro ganho ambiental.

Voltando-se aos percentuais estabelecidos pela lei, sua observância pode ser analisada em duas situações distintas. A primeira refere-se que o proprietário, quando ocupa área inteiramente ou razoavelmente florestada, deverá respeitar o

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percentual mínimo de Reserva Legal e eventual Área de Preservação Permanente, podendo explorar as áreas remanescentes, desde que atendidas as regras legais.

Outra é a situação quando o proprietário ocupa área inteiramente ou sig-nificativamente desmatada, que não possui o percentual mínimo de Reserva Legal exigido pelo legislador. Nesse caso, o proprietário deverá “criar” a Reserva Legal no imóvel, podendo fazê-lo de três diferentes formas, alternativa ou cumulativamente, com a recomposição, regeneração ou mediante compensação.

A recomposição é a restauração do ecossistema original mediante o plantio de espécies nativas e exóticas. Nessa modalidade, portanto, o proprietário rural atua de maneira ativa, plantando árvores em seu imóvel para recriar a cobertura vegetal anterior ao desmatamento. Trata-se de procedimento mais dispendioso, que demanda altos investimentos pelo proprietário rural.

Na regeneração natural aproveita-se a própria capacidade restauradora da natu-reza, garantindo cenário propício à germinação de sementes e desenvolvimento de mudas que já se encontram no local (LEHFELD; CARVALHO; BALBIM, 2013, p. 145). Nesse caso o proprietário tem atuação mais passiva, bastando cercar a área para possibilitar a regeneração natural, o que se revela mais vantajoso economicamente, embora dependa de uma situação menos precária da área a ser regenerada. Caso a regeneração não ocorra, deverá o proprietário promover o plantio de mudas nativas, voltando-se, portanto, à recomposição.

Finalmente, a instituição da Reserva Legal pode ocorrer por meio da compensação, que engloba quatro diferentes modalidades, sempre dependendo de prévio cadastramento do imóvel rural no Cadastro Ambiental Rural. São modalidades de compensação: a) a aquisição de Cotas de Reserva Ambiental (que por ser objeto central desse trabalho será analisada detalhadamente no tópico seguinte); b) o arrendamento de área sob regime de servidão ambiental ou Reserva Legal; c) a doação ao Poder Público de área localizada no interior de unidade de conservação de domínio público de regularização fundiária; d) o cadastramento de outra área equivalente à Reserva Legal, em imóvel da mesma titularidade ou adquirida em imóvel de terceiro, com vegetação nativa estabelecida, em regeneração ou recomposição, desde que localizada no mesmo bioma (LEHFELD; CARVALHO; BALBIM, 2013, p. 145).

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5. cota de reserva ambiental

A Cota de Reserva Ambiental (CRA) é um título representativo de áreas de vegetação nativa existente ou em processo de recuperação. Seu objetivo é servir como commodity que poderá ser negociada para fins de regularização da reserva legal (CARADORI, 2009, p. 204).

O raciocínio é simples: aquele que, não sendo obrigado por lei, optar por um benefício ao meio ambiente, recebe um título que lhe reconhece um “crédito ambiental”; por outro lado, o proprietário ou possuidor rural, ou mesmo o empreendedor, quando incorrerem em algum “débito ambiental”, por exemplo por não atenderem ao mínimo exigido de área de reserva legal em seus imóveis, adquirem o título daquele para compensarem o prejuízo causado (LEHFELD; CARVALHO; BALBIM, 2013, p. 259).

Trata-se de interessante incentivo ao proprietário que protege os bens ambientais além do que exige a lei. Todo esse valor e importância da CRA inspirou alguma cautela por parte do legislador que, para evitar o mau uso do instituto, determinou as hipóteses específicas que admitem a sua emissão.

a) Área sob regime de Servidão Ambiental: neste caso, o proprietário ou possuidor do imóvel rural limita o uso de sua propriedade, total ou parcialmente, abrindo mão da exploração econômica em prol de preservação, conservação ou recuperação de recursos ambientais. Obviamente a servidão não pode ser aplicada em Áreas de Preservação Permanente ou de Reserva Legal, tendo em vista que nessas situações a limitação decorre da lei, e não de vontade do proprietário (LEHFELD; CARVALHO; BALBIM, 2013, p. 260). Exige, ainda, a lei, que a área de servidão ambiental não seja inferior à área exigida para a Reserva Legal do imóvel.

Por implicar serviço ambiental de preservação, recuperação e conservação dos bens ambientais, além dos limites exigidos pela lei, o proprietário do imóvel rural poderá requerer a emissão de Cota de Reserva Ambiental para negociação com proprietários que estejam em débito com suas obrigações ambientais.

b) Áreas de Reserva Legal acima do limite legal: A lei impõe limites mínimos para as áreas de Reserva Legal, estabelecendo o percentual exigido de todos os

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imóveis rurais. Se, todavia, o proprietário vai além e voluntariamente submete ao regime de proteção área superior à mínima exigida, o serviço ambiental por ele prestado é compensado pela emissão de Cota de Reserva Ambiental passível de negociação.

c) Áreas protegidas na forma de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN): A RPPN é tratada pela Lei nº 9.985/00 que, em seu artigo 21, con-ceitua-a como uma área privada, gravada com perpetuidade, com o objetivo de conservar a diversidade biológica, que somente poderá ser utilizada para a pes-quisa científica ou a visitação com objetivos turísticos, recreativos ou educacionais.

A instituição da RPPN representa claro benefício ambiental, garantindo ao proprietário a emissão de Cota de Reserva Ambiental, contanto que não seja feita em sobreposição à área de Reserva Legal da propriedade, pelos motivos anteriormente apontados.

d) Áreas no interior de Unidade de Conservação de domínio público ainda não desapropriadas: As Unidades de Conservação, tratadas pela Lei nº 9.985/00, podem ser de proteção integral ou de uso sustentável, cada qual com suas respectivas categorias. Dentro dessas categorias são encontrados dois diferentes regimes.

No primeiro, a exemplo do que ocorre na Reserva Biológica e no Parque Nacional, haverá posse e domínio público, de modo que áreas particulares que estejam em seus limites deverão ser desapropriadas. Já num segundo regime encontrado, como no caso do Monumento Natural e o Refúgio da Vida Silvestre, admite-se a existência em seus limites de áreas particulares, contanto que compatíveis com a tutela necessária às unidades. Não havendo tal compatibilidade, a área também deverá ser desapropriada.

Nesse contexto, uma área particular em Unidade de Conservação que demande desapropriação, até que essa se concretize, deverá ser conservada pelo proprietário. E como compensação por tal atividade, aquele poderá solicitar a emissão de Cota de Reserva Ambiental para negociação.

e) Áreas de Reserva Legal em pequena propriedade rural: O Código Florestal, em seu art. 44, §4º, abre a possibilidade de emissão de Cota de Reserva Ambiental pela vegetação nativa encontrada em áreas de Reserva Legal de pequenas pro-priedades rurais.

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Trata-se de situação excepcional que não compensa a preservação de área acima dos limites legais, mas compensa o pequeno produtor em razão do simples cumprimento da regra legal.

5.1. emissão e requisitos da cota de reserva ambiental

Antes mesmo de formular requerimento o proprietário deverá ter seu imóvel incluído no Cadastro Ambiental Rural e possuir um laudo do órgão ambiental que comprove a incidência de uma das hipóteses de emissão (art. 44, §1º, do Código Florestal).

Preenchidos esses requisitos prévios, deverá o proprietário proceder à soli-citação de emissão da CRA, sendo destinatário o órgão ambiental competente, que avaliará o estágio sucessional ou o tempo de recomposição ou regeneração da vegetação nativa, não podendo emitir a CRA caso fique demonstrada a inviabilidade de regeneração ou recomposição (art. 46, §1º, do Código Florestal).

Em caso de avaliação positiva, será emitida a CRA, correspondendo cada título a um hectare de área. Deverá, no procedimento de emissão, o órgão ambiental identificar: a) o número da CRA no sistema único de controle; b) o nome do proprietário da área vinculada ao título; c) a dimensão e localização da área vinculada ao título; d) o bioma em que se encontra a área; e) a classificação da área (se vegetação nativa ou em processo de recomposição ou regeneração) (art. 45, §2º, do Código Florestal).

A emissão da CRA será sucedida de averbação na matrícula do imóvel, visando garantir a segurança e o bom uso do título.

Para que um proprietário possa utilizar a Cota de Reserva Ambiental como instrumento de compensação de sua Reserva Legal insuficiente, deverá se atentar para os requisitos tratados pela lei.

Por primeiro, a CRA somente servirá à compensação de Reserva Legal de imóvel rural localizado no mesmo bioma da área a que o título está vinculado. Ademais, as áreas deverão ser equivalentes em extensão e, estando em outro Estado, devem estar localizadas em áreas identificadas como prioritárias, assim compreendidas as bacias hidrográficas excessivamente desmatadas, a criação de

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corredores ecológicos, a conservação de grandes áreas protegidas e a conservação ou recuperação de ecossistemas ou espécies ameaçados.

5.2. comercialização da cota de reserva ambiental

Para a criação e fomento de um mercado negociador da Cota de Reserva Ambiental, estabeleceu o art. 47 do Código Florestal que o título deve ser registrado em bolsas de mercadorias de âmbito nacional ou em sistemas de registro e de liquidação financeira de ativos autorizados pelo Banco Central do Brasil, no prazo de 30 dias contados de sua emissão.

Atualmente a Bolsa Verde do Rio de Janeiro (BVRIO), bolsa de valores ambientais de abrangência nacional, atua como mercado de negociação das Cotas de Reserva Ambiental, cabendo a ela receber esses registros.

Uma vez disponibilizada para negociação, a CRA poderá interessar aos proprietários, pessoas físicas ou jurídicas, que possuam débitos ambientais. Preenchidos os requisitos supracitados e concretizando-se a negociação, exige-se a averbação da CRA tanto na matrícula do imóvel vinculado ao título quanto na do imóvel beneficiário da compensação.

Importante destacar que a responsabilidade pela conservação da área a que está vinculada a CRA é o proprietário desta, configurando-se relação obrigacional clássica, na qual o adquirente do título obriga-se à remuneração, enquanto o emitente obriga-se à conservação da situação que gerou a emissão do título.

A Cota de Reserva Ambiental servirá como instrumento de negociação e compensação da Reserva Legal até seu eventual cancelamento, que pode ocorrer por solicitação do proprietário rural, caso desista da manutenção das condições que a justificaram; automaticamente, caso decorra de servidão ambiental e o prazo desta termine; ou por decisão do órgão ambiental competente, quando houver degradação da vegetação nativa da área vinculada à CRA e os custos e prazos de recuperação inviabilizarem a continuidade do vínculo entre a área e o título (art. 50 do Código Florestal).

Feito o cancelamento, em atendimento ao princípio da segurança jurídica, é necessária sua averbação na matrícula do imóvel no qual se situa a área vinculada, bem como naquele em que a compensação foi aplicada.

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6. entraves à aplicação da cota de reserva ambiental (cra)

O instituto da Cota de Reserva Ambiental, não obstante possua claro po-tencial como instrumento de compensação das áreas de Reserva Legal desmatadas, encontra obstáculos à sua plena e efetiva aplicação.

6.1. ações diretas de inconstitucionalidade

O primeiro entrave à aplicação da Cota de Reserva Ambiental está na existência de Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra os artigos 44 e 48, §2º, do Código Florestal.

O art. 44, que institui a Cota de Reserva Ambiental, foi impugnado pela ADI 4.937, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que ataca o instituto em sua plenitude.

Alega, em síntese, o legitimado que a CRA permitiria um grande desmata- mento de áreas de maior valor econômico, uma vez que seria possível sua com-pensação por títulos representativos de áreas de menor valor econômico, provo-cando uma especulação imobiliária e atentando contra a produção sustentável, já que grandes desmatamentos num Estado poderiam ser compensados em outros.

O art. 48, §2º, por sua vez, que coloca como requisito para o uso da CRA que o imóvel que visa compensar a Reserva Legal esteja no mesmo bioma da área vinculada ao título foi também impugnada pela ADI 4.937 do Partido Socialismo e Liberdade; bem como pela ADI 4.901, proposta pela Procuradoria-Geral da República.

O Partido Socialismo e Liberdade que, como visto, ataca a própria ideia do instituto sustenta, mais uma vez, que a compensação de Reserva Legal desrespeitada por área já protegida provoca uma diminuição do bem ambiental tutelado, o que fere o art. 225 da Constituição Federal.

A Procuradoria-Geral da República, por outro lado, destaca de maneira mais específica a insuficiência de exigir que o proprietário rural, para promover a compensação, adquira área no mesmo bioma. Sustenta o Ministério Público Federal que os biomas são dotados de destacada heterogeneidade, devendo a

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compensação ser mais restritiva, ocorrendo em áreas com a mesma identidade ecológica.

Alguma razão possuem os legitimados quando combatem os dispositivos que tratam da CRA.

Sobre a ADI 4.937, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade, muito embora não se compartilhe da ideia de que o instituto como um todo é prejudicial e deve ser eliminado do ordenamento jurídico, algumas preocupações devem ser avaliadas.

A questão colocada pela Ação Direta sobre os desmatamentos feitos num Estado e compensados em outro é, de fato, preocupante, mas pode ser resolvida. Exemplo dessa solução pode ser encontrada no Código Florestal de Goiás (Lei Estadual 18.102/2013), primeiro Estado a adaptar sua legislação à federal, que acrescentou à exigência de compensação no mesmo bioma a necessidade de que a localização da área vinculada à CRA esteja no mesmo Estado daquela que pretende ser compensada, ou entre Estados participantes de convênios interestaduais (art. 35, §4º). Nada obsta, ademais, que regulamentos promovam outras restrições de distância entre as áreas.

Havendo essa maior restrição na compensação, a consequência será uma maior proximidade entre a área em débito e a com excedente de proteção. Natural que aquela tenha maior valor econômico do que esta, mas o que se apresenta como mais relevante é o valor ambiental, que, se compatível, garantirá adequada tutela.

A ADI 4.901, proposta pela Procuradoria-Geral da República, apresenta também inquietação relevante quanto à insuficiência de exigir que a área em débito e a com excedente de proteção encontrem-se no mesmo bioma.

Conforme estudo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência em conjunto com a Academia Brasileira de Ciências:

Conforme a proposta apresentada no substitutivo, um proprietário do interior de São Paulo que deveria conservar uma RL de Floresta Estacional Semidecídua pode compensar a destruição irregular desta RL comprando uma área de Floresta Ombrófila Densa da Serra do Mar, ou mesmo de uma área de floresta em Pernambuco.

Nos dois exemplos, as florestas não são equivalentes, pois estão situadas em condições ambientais e climáticas muito distintas,

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com vegetações e ecossistemas bastante diferentes e que não se equivalem. Esse novo dispositivo legal ignora que as florestas e demais formações vegetacionais brasileiras são heterogêneas, resultado de complexos processos biogeográficos, sendo esta, justamente, a razão para que essas áreas sejam reconhecidas internacionalmente pela sua alta biodiversidade (SILVA, 2011, p.102).

O Código Florestal anterior (Lei nº 4.771/1965) consagrava regra mais restritiva, exigindo que a compensação fosse feita “por outra área equivalente em importância ecológica e extensão, desde que pertença ao mesmo ecossistema e esteja localizada na mesma microbacia, conforme critérios estabelecidos em regulamento” (art. 44, III). Mas a nova legislação, numa clara intenção de tornar a CRA um título de mais atrativo, afrouxou demais a exigência, em conduta incompatível com a tutela ambiental. Nesse sentido o estudo suprarreferido explica que:

Além da questão biológica e dos serviços ecossistêmicos, pequenos fragmentos de vegetação nativa, mantidos como RL na mesma microbacia ou bacia têm importante papel para diminuir o isolamento dos poucos fragmentos maiores, funcionando como trampolins ecológicos no deslocamento de espécies pela paisagem. Sem esses fragmentos, os fluxos biológicos seriam muito prejudicados, acelerando ainda mais o processo de extinção (SILVA, 2011, p. 103).

Nesse ponto, parece necessária uma revisão do atual Código Florestal para um retorno às exigências mais restritivas do diploma anterior. A menor liquidez da CRA que o legislador pretendeu combater pode ser compensada com uma difusão mais intensa do instituto, e a consequente oferta de CRA’s nas mais diversas localidades, garantindo que o proprietário que busque o mercado para compensar seu débito ambiental tenha um título correspondente que lhe sirva.

6.2. proteção da área vinculada à cota de reserva am-biental

O segundo entrave que atinge a aplicação efetiva da Cota de Reserva Ambien-tal diz respeito à responsabilidade pela manutenção da área vinculada ao título.

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Pense-se na seguinte situação: um proprietário adquire CRA para compensar a falta de área de Reserva Legal em sua propriedade; meses depois um fenômeno natural atinge a área que deu origem à CRA, acabando com toda a floresta do local. Nesse caso, o proprietário que adquiriu a CRA ficaria sem a área correspondente para compensar seu débito, o que se apresenta como claro problema à negociação do título.

O Código Florestal, na tentativa de superar o problema, impõe que a responsabilidade pela proteção da área vinculada à CRA é de seu proprietário, e não do adquirente do título. Não obstante a clareza da regra não se pode deixar de considerar que a questão não é meramente econômica, mas ambiental, de modo que não bastaria ao proprietário da área atingida pela intempérie indenizar o valor do dano causado, obrigação que ficaria prejudicada, ademais, na falta de dolo ou culpa na causa do prejuízo. O ponto central da questão é que, na falta da área que deu origem à CRA, o seu adquirente não teria mais a Reserva Legal correspondente para garantir a sua compensação e, consequentemente, estaria infringindo as regras legais.

O art. 50, §1º, do referido diploma ainda promove tentativa de superar a questão ora colocada, destacando que o cancelamento da CRA, seja qual for o motivo (dentre os quais enquadra a degradação cujo prazo de recuperação inviabilize a continuidade do vínculo entre a área e o título), só pode ser efetivado se assegurada Reserva Legal para o imóvel no qual a compensação foi aplicada.

Trata-se de regra demasiado genérica, que não atenta para a forma de se assegurar essa nova área de Reserva Legal para compensar aquela que foi cancelada. Pode-se antecipar uma possível falta de outra área para atender a essa regra, ou mesmo questionar-se sobre quem se responsabilizaria pela aquisição das Cotas de Reserva Ambiental vinculadas a essa nova área caso não fosse apurado o dolo ou culpa do proprietário da área inicialmente vinculada ao título.

A questão não é de fácil solução, parecendo ser necessária a construção de um sistema de seguros para viabilizar essa negociação de CRA’s sem que os riscos ao proprietário que pretende usar esse instrumento o desmotivem a realizar o negócio.

Tal sistema pode ser baseado no atual seguro agrícola, que, nos termos do art. 56 da Lei nº 8.171/1991, visa cobrir prejuízos decorrentes de fenômenos

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naturais, pragas, doenças e outros que atinjam plantações, bem como tutelar as atividades florestais e pesqueiras.

No desenvolvimento desse sistema, todavia, deve-se atentar para o caráter ambiental, e não meramente econômico, da tutela, uma vez que seria irrazoável aceitar a perda de áreas protegidas em troca de simples indenizações financeiras, uma vez que a finalidade da compensação é garantir a proteção de áreas relevantes ao meio ambiente.

6.3. anistia dos desmatadores

Por fim, pode-se apontar como terceiro entrave à compensação da Reserva Legal pela Cota de Reserva Ambiental a incoerência do legislador ao anistiar grande parte daqueles que desmataram suas terras.

Nesse sentido, os artigos 67 e 68 do Código Florestal garantem a anistia ligada à Reserva Legal em duas situações.

Primeiro, para os imóveis rurais de até quatro módulos fiscais que, em 22 de julho de 2008, detinham vegetação nativa em percentuais inferiores aos exigi- dos pelo art. 12, a Reserva Legal será constituída tão somente com a área ocupada com a vegetação nativa existente naquela data. Em outras palavras, não será necessária a recomposição, regeneração ou compensação da área faltante para se adequar aos percentuais mínimos exigidos pela lei.

Em segundo lugar, os proprietários de áreas superiores a quatro módulos fiscais ficam isentos de promoverem a recomposição, regeneração ou compensação de suas áreas de Reserva Legal que foram suprimidas com observância dos percentuais exigidos pela legislação vigente à época.

Ambos os dispositivos são objeto de Ações Diretas de Inconstitucionalidade promovidas pela Procuradoria-Geral da República (nº 4901 e 4902), sustentando o ente legitimado verdadeiro retrocesso ambiental, uma vez que a anistia excluiria a proteção de um número incalculável de espaços territoriais especialmente protegidos.

Com efeito, a criação do “mercado de compensação” perde interesse de muitos dos proprietários na aquisição de Cotas de Reserva Ambiental para compensação de seus débitos, uma vez que estes foram “perdoados” pelo legislador.

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Encontra-se, portanto, claro paradoxo no tratamento da Cota de Reserva Ambiental pelo Código Florestal que, de um lado, regulamenta todo um mercado para esses títulos, e de outro, concede anistia que claramente afasta grande parte dos proprietários que atuariam nesse mercado.

7. conclusões

O Código Florestal pretendeu alterar alguns paradigmas da tutela ambiental, afastando uma legislação pouco efetiva em decorrência de inúmeros problemas, como a incapacidade do Estado em fiscalizar as atividades dos proprietários de imóveis rurais, bem como a resistência de alguns agentes que questionavam a regra anterior por implicar muitas vezes em uma redução no desenvolvimento econômico.

A nova lei desenvolveu, portanto, institutos mais eficazes, a exemplo do Cadastro Ambiental Rural, que servirá como importante instrumento de gestão, controle e fiscalização do cumprimento das atuais regras. A regulamentação desses novos institutos, contudo, não pode implicar num retrocesso na tutela ambiental. Em outras palavras, os novos instrumentos, mais eficazes, não podem representar um fim em si mesmo, mas sim um meio de se atingir uma maior proteção ao meio ambiente.

Nesse contexto, o instituto da Cota de Reserva Ambiental ilustra a tentativa do legislador em conciliar o antigo embate entre a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico sustentável. O ponto de equilíbrio entre esses in-teresses, contudo, é extremamente delicado e alguns equívocos foram cometidos.

A proteção da Reserva Legal é de grande interesse para a proteção ambiental e serve, também, para os ganhos econômicos – embora mais restritos – do proprietário rural. Não obstante, ainda que este não pretenda reservar parte de seu imóvel por entender que os ganhos econômicos da área não compensem a perda de sua produção, a lei abriu interessante caminho garantindo a compensação da Reserva Legal em outras áreas.

Para evitar que o proprietário tenha de buscar sozinho as áreas necessárias a uma compensação, o legislador criou a Cota de Reserva Ambiental, que ficará disponível num mercado de negociações, facilitando o acesso pelo interessado.

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Ocorre que ao criar a CRA, o legislador levou em consideração a necessidade de conferir liquidez ao instrumento, tornando-o demasiado abrangente, o que acabou provocando um retrocesso na proteção ambiental. Exigir que a compensação seja feita no mesmo bioma, embora torne a CRA um título de mais fácil negociação, atenta contra a proteção ambiental num país de dimensões continentais e grande variedade florestal.

Ademais, a criação de um mercado de negociação do título é tarefa árdua, que não recebeu a devida atenção do legislador, e deverá ainda passar por estudos e experiências para resolver questões que certamente surgirão, sobretudo na perda da área que deu origem ao título e a responsabilidade, não meramente econômica, mas ambiental, pelo ocorrido.

E não fossem os problemas inerentes à dificuldade de concretização do instituto, o legislador atua contra sua própria criação ao anistiar os principais interessados na compensação, eliminando-os do mercado que criou.

Em conclusão, a Cota de Reserva Ambiental surge como interessante instrumento na tentativa de equilibrar bens valiosos, quais sejam, o meio ambiente e a economia. Todavia, nesse primeiro momento parece que o legislador, perdendo de vista que o instrumento compõe a legislação ambiental, e não a econômica, deu mais importância aos aspectos de liquidez do título e baseou o tratamento acerca da responsabilidade num aspecto meramente financeiro. São entraves que deverão ser revistos para que o instituto prospere como efetivo instrumento de compensação da Reserva Legal, atuando como aliado do meio ambiente.

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os negócios jurídicos enquanto instrumento para a sustentabilidade: uma análise a partir do pensamento

de emílio betti

Sergio Rodrigo Martinez1

Resumo

Trata o presente trabalho de demonstrar questões fundamentais relativas à adoção dos negócios jurídicos enquanto instrumentos para a aplicação da sustentabilidade. Para atingir esse o objetivo proposto, foi utilizado o método dedutivo, instrumentalizado em uma pesquisa bibliográfica, analisando-se as perspectivas do negócio jurídico a partir do pensamento de Emílio Betti. Em sua visão teórica objetiva, Emílio Betti permite o entendimento de que valores outros podem ser contemplados ao se negociar, elevando a tratativa dos negócios jurídicos da esfera privada até a esfera dos interesses transindividuais. Com isso, o negócio jurídico, que visa realizar objetivos da sustentabilidade, ao mitigar impactos das realizações humanas sobre o planeta, pode ser um importante instrumento de efetividade de interesses transindividuais, para além dos interesses privados das partes contratantes.

Palavras-chave

Negócios Jurídicos; Sustentabilidade; Emílio Betti.

Resumen

El presente trabajo tiene ganas de demostrar cuestiones clave relacionadas con la adopción de negocios jurídicos como instrumentos para la aplicación de la sostenibilidad. Para ello, se utilizó el método deductivo, con una búsqueda en la literatura y el análisis de las perspectivas iniciales desde el pensamiento de Emilio

1 Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Estágio Pós-doutoral em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC-PR. Professor Associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Professor Especial Stricto Sensu da Universidade Comunitária da Região de Chapecó. [email protected]

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Betti. En su concepción teórica objectiva, Emilio Betti permite el entendimiento de que otros valores se pueden abordar en la negociación, con el aumento de los tratos de negocios jurídicos de la esfera privada a la esfera del intereses difusos. Por lo tanto, el negocio jurídico que tiene por objeto la realización de la sostenibilidad, para aplacar los impactos de los logros humanos en el planeta, puede ser un importante instrumento de efectividad más allá de los intereses particulares de las partes contratantes.

Palabras clave

Negocios Juridicos; Sostenibilidad; Emílio Betti.

1. introdução

A existência de uma sociedade de massa a integrar todo o planeta, segundo Lipovetsky (2007, p. 32), permite que valores de consumo sejam multiplicados e divulgados por toda a parte.

No intuito de realimentar a cadeia produtiva, a própria sociedade de consumo se reinventa e permite que novos valores sejam agregados aos bens no comércio, buscando-se com isso os diferenciais a serem motivadores do consumo.

Enquanto um valor em si, a questão da sustentabilidade é um desses di-ferenciais, envolvendo o consumo de produtos ou serviços “amigos da natureza”, que mitigam impactos na sua produção, uso, consumo ou reciclagem. Nesses negócios jurídicos chamados sustentáveis, a presença de regras, condições gerais de contratação, rótulos, selos e certificações ambientais atuam enquanto diferencial, cujo uso consciente, então, seria incentivado por seus efeitos em prevenir eventuais danos ao planeta.

Por bem ou por mal, a mola mestra do ciclo econômico da vida, nas sociedades de consumo, requer a continuidade da produção em massa e esse negócios jurídicos passam a compor o chamado “mercado verde”, voltado a viabilizar o chamado “consumo consciente e sustentável”.

Daí que, para além do marketing dos mercados verdes, há que se problema-tizar quando a presença do lema sustentabilidade ambiental nos negócios jurídicos seria um instrumental contratual efetivo para a proteção do meio ambiente.

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Por seu turno clássico, a resposta seria negativa, pois os negócios jurídicos representam um instituto tradicional do Direito Privado, voltado à regulação dos interesses individuais. Sua origem conceitual data mais de um século, representando o ápice teórico da autonomia privada, a qual o indivíduo como legislador das próprias vontades, como atualmente é reconhecido pelo atual Código Civil brasileiro.

Entretanto, ao se analisar o pensamento de Betti, de que os negócios jurídico geram uma declaração objetiva, cujo conteúdo liberta-se da vontade das partes e assim passa a integrar o ordenamento jurídico, para além dos interesses individuais, surge um novo espaço de interpretação do papel sustentável desse instrumento privado.

Isso ocorre porque, a teoria de Betti reconhece a construção de aportes declarativos que enaltecem os negócios jurídicos para além de esfera privada, atingindo assim à esfera dos interesses coletivos.

Desse modo, tais negócios jurídicos poderiam ser demandados não só pelos efeitos entre partes, mas também, em sua objetividade declarativa, pelos efeitos que causam à toda sociedade, em termos de externalidades, o que poderia suscitar uma nova teleologia coletiva dos negócios, ao contratar nos mercados verdes.

Para demonstrar a importância desse entendimento para a construção de uma teoria sobre os negócios jurídicos de sustentabilidade, o levantamento de dados focou-se na pesquisa bibliográfica, realizada por meio do método dedutivo. Segue-se pela análise consubstanciada dos fundamentos da teoria “objetivista” de Emílio Betti, para se chegar a uma síntese capaz de demonstrar a conexão entre negócios jurídicos de sustentabilidade.

Para tanto, no primeiro capítulo será analisado o negócio jurídico por seu conteúdo, o preceito de autonomia privada emanado pela vontade do agente. O conteúdo representaria o que está contido nas regras estabelecidas no instrumento contratual, os seus elementos intrinsecamente considerados em relação à autonomia privada.

Por fim, no segundo capítulo será analisado o negócio jurídico de sustentabilidade por sua forma. A forma representa a exteriorização do negócio jurídico, ou seja, como este se apresenta enquanto autorregramento para o mundo

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social, podendo se dar através de uma declaração, de um comportamento ou uma condição geral contratual.

2. autonomia privada e conteúdo dos negócios jurídicos

2.1. a força normativa dos negócios jurídicos e o papel do estado

A “batalha contra o negócio jurídico” (DE CUPIS, 1992, p. 190) só foi vencida no Brasil com a edição da Lei n. 10.406/2002, criadora do novo Código Civil brasileiro, cuja redação de seu Livro III, Título I, traz expressa a temática do negócio jurídico.

Tal batalha focava um rigor positivista legislado, idealizado na “concepção unitária” (AMARAL, 2008, p. 352), de que a lei seria o centro de regulamentação de todas as relações sociais e os atos jurídicos subsumidos, nas regras do Código Civil, seriam suficientes para regular toda e qualquer forma de contratar.

Ao se resgatar contemporaneamente a ideia de que o negócio jurídico repre-senta o espírito popular presente no Direito Privado, ressurge a ideia de que o contrato é fonte de Direito tão importante quanto a lei, na esfera das relações privadas, pois representa a vontade das partes em legislar em causa própria, visando a seus interesses, perante os quais o Estado está proibido de interferir.

Surge assim o espaço privado negocial. Privado “como limite ao poder do soberano”, como diz Lorenzetti (1998, p. 122). Ou seja, priva-se o Estado em prol da liberdade do cidadão e isso refere-se a um direito fundamental impostergável.

Por outro lado, esse poder de criar normas valoradas entre partes, a partir do interesse particular, acaba que, por fim, relegar ao Estado o seu reconhecimento como fonte e à sua tutela jurisdicional enquanto direito exclusivo entre partes.

Na clássica doutrina espanhola, esse poder negocial é tido como um dos “princípios fundamentais do direito moderno” (LOZ MOZOS, 1987, p. 435). Ele pode ser entendido como o “poder conferido à pessoa pelo ordenamento jurídico para que governe seus próprios interesses ou atenda à satisfação de suas necessidades” (DIEZ-PICAZO, 1994, p. 480).

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Porém, atualmente não se trata mais o negócio jurídico como uma maxi-mização de liberdades sem responsabilidades. A “autonomia privada não é um valor em si”, como ressalta Perlingieri (2007, p. 277), mas um valor que confere responsabilidade à pessoa perante o Estado.

Assim, o espaço privado dos interesses individuais, passa a ser um espaço de liberdade com responsabilidade, cujo alcance dos atos particulares são privados em essência, mas porventura potencialmente públicos, em suas consequências.

Para Lisboa (2012, p. 105), “a concepção de contrato evoluiu, podendo a relação negocial vir a se tornar um autêntico instrumento regulador de interesses não apenas individuais, mas transindividuais.”

Logo, o conceito de contrato ou negócio jurídico, aqui entendidos como sinônimos, ganha uma nova significação e o Estado, antes banido da esfera privada, agora, pode atuar na defesa de interesses transindividuais, que porventura sejam atingidos a partir das tratativas privadas.

Segundo Barroso (2008, p. 47):

Uma ideologia político-jurídica orientada a alcançar a cidadania e a justiça ambientais, enquanto novas dimensões da teoria contratual, precisa conseguir a inserção no ordenamento jurídico vigente de um aparato normativo adequado para condicionar a liberdade contratual em virtude da preservação e conservação do meio ambiente para as presentes e as futuras gerações.

Essa nova concepção de autonomia privada não retira a liberdade de contratar dos indivíduos, mas possibilita, como afirma Lorenzetti (1997, p. 14), que o Estado dê atenção especial a esses tipos de negócios, nos quais pode haver consequências não somente privadas.

Assim, constitui-se um novo espaço de atuação do Estado na esfera privada, um meio contemporâneo de garantia da liberdade contratual, que não visa restringir a autonomia privada dos indivíduos, mas apenas restabelecer o equilíbrio contratual desses para com a sociedade, quando da realização de negócios jurídicos que envolvam questões de interesse transindividual.

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2.2. o conteúdo do negócio jurídico e as externali-dades

O conteúdo é a face interior do negócio, seus aspectos intrinsecamente considerados. O seu tipo interior regrado. “O elemento central e propriamente característico do negócio, é o conteúdo da declaração ou do comportamento” (BETTI, 2008, p. 300). Ele reflete o preceito de autonomia privada emanado da vontade a regular os efeitos buscados pelas partes no negócio.

Quando se trata de declarações ou comportamentos no campo do Direito Privado, têm-se os mais diversos conteúdos voltados ao exercício da circulação de riquezas e patrimônios. Trata-se da função constitutiva negocial, que lhe é peculiar e insubstituível.

Na realidade, o que o indivíduo declara ou faz com o negócio, é sempre uma regulamentação dos próprios interesses nas relações com outros sujeitos: regulamentação, da qual ele compreende o valor socialmente vinculante, mesmo antes de sobrevir a sanção do direito (BETTI, 2008, p.300).

Como dito anteriormente, ao regular seus próprios interesses individuais, as partes podem, contudo, transcender essa esfera e atingir a interesses transindividuais, mormente quanto passem a tratar sobre questões correlatas à função social da propriedade, o uso de recursos naturais e ao consumo de produtos e serviços.

Nessas situações, o conteúdo do negócio jurídico sustentável avança para além daquilo que caberia somente ao interesse das partes, ao atingir o espaço dos bens públicos, dos interesses difusos, muitas vezes local daquilo que ainda hoje é considerado enquanto “externalidade”, decorrentes das relações privadas.

Para se mudar essa configuração, o preceito de autonomia privada é elevado da esfera particular para a esfera pública através da caracterização de que as “externalidades” devem ser valoradas pela da ordem jurídica e são parte dos negócios.

Desse modo, quando se busca um preceito autonomia privada com repercus-são na ordem pública, há que se verificar os efeitos das externalidades do negócio perante a sociedade, em primeiro lugar. Isso representaria uma nova consciência de responsabilidades à liberdade de contratar, que, uma vez entendida como parte

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da função social do negócio, demandaria o surgimento do interesse público sobre o privado.

Para Betti (2008, p. 301), todos os atos que em face da vida social e da ordem jurídica tenham a expressão necessária para desempenhar a função econômico-social do contrato, estão entre os que devam ser determinados na realização do negócio jurídico.

Essa valoração funcional social e econômica de toda a “experiência jurídica” em volta do negócio, estava na proposta de criação do Código Civil brasileiro, conforme ressalta Reale (2003, p. 76):

Isto posto, é a fonte negocial que se desenvolve no plano das relações civis, justificando-se, por esse motivo, o tratamento privilegiado que lhe foi dado pelo novo Código Civil, o que tem escapado a comentaristas situados apenas no âmbito do Direito Privado, sem a visão ampla de toda a experiência jurídica.

A essa ocorrência, de responsabilidade negocial ampliada, Lorenzetti (1999, p. 574) atribui a ideia de “função ambiental privada”, entendida como a “delegação de funções estatais na atividade privada, mediante a indicação de uma finalidade e o estabelecimento de direitos e deveres encaminhados ao seu cumprimento”.

Logo, das declarações dos negócios voltados às tratativas de sustentabilidade pode-se extrair o conteúdo preceptivo valorado que legitima a tutela ampla do negócio jurídico pelo Estado. Por conseguinte, ao se cumprir sua função social, essa relação jurídica negocial gerará as obrigações sustentáveis estabelecidas pelos contratantes, inovando no campo tradicional dos conteúdos dos negócios jurídicos, pelo reconhecimento das externalidades. Para que isso ocorra, o negócio deverá apresentar certas características, que o tornam hábil a influenciar a prevenção e proteção ambiental, como será observado a seguir.

2.3. caracteres do preceito da autonomia privada

Aqui interessa identificar por quais características um contrato possa ser caracterizado enquanto negócio jurídico de sustentabilidade e daí resultar em repercussões para além dos interesses individuais.

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Segundo Betti, o preceito da autonomia privada constitui o conteúdo do negócio jurídico. Este preceito possui uma série de características cuja falta pode determinar a inexistência ou nulidade do negócio jurídico, que são:

a) concretude: atinência a determinados interesses sujeitos à esfera de poder dos particulares, suscetíveis de transmissibilidade entre si;

b) reconhecimento social: reconhecimento da relação por parte dos de-mais indivíduos;

c) vinculação: estabelece uma vinculação entre os indivíduos que parti-cipam do negócio no campo social, fato juridicamente relevante que, devido a sua valoração social, tem sua recepção pela ordem jurídica (BETTI, 2008, p. 311).

A partir destes caracteres, é possível se estabelecer uma análise sobre o que deverá conter os preceitos dos negócios que são suscetíveis de ter relevância em termos de sustentabilidade, reconhecida socialmente.

Inicialmente deve-se observar que os negócios jurídicos de sustentabilidade demandam requisitos de validade do ato, para além daqueles estabelecidos no Código Civil. Assim, englobam também, os requisitos de validade das leis ambientais, para os quais, o negócio jurídico está direcionado.

Exemplo disso está no previsto pela Lei n. 9.985/2000, na criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). Essa lei estabelece regras para a criação de unidades de conservação, limitando o uso da propriedade e visando a proteção do ambiente nela disposto (FIORILLO, 2012, p. 100).

Nesse sentido, o negócio jurídico sustentável, que criar uma Reserva Parti-cular do Patrimônio Natural (RPPN), deverá seguir os trâmites do artigo da presente lei.2

2 Art. 21. A Reserva Particular do Patrimônio Natural é uma área privada, gravada com perpetuidade, com o objetivo de conservar a diversidade biológica.

§ 1o O gravame de que trata este artigo constará de termo de compromisso assinado perante o órgão ambiental, que verificará a existência de interesse público, e será averbado à margem da inscrição no Registro Público de Imóveis.

§ 2o Só poderá ser permitida, na Reserva Particular do Patrimônio Natural, conforme se dispuser em regulamento:

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Logo, o negócio jurídico adquire sua concretude quando atende aos requisitos para a sua exigibilidade previstos não somente nos requisitos de validade do negócio jurídico, mas em outras legislações aplicáveis à área da sustentabilidade.

Em segundo lugar, o reconhecimento social para exercer o “poder de au-tonomia” está na ordem de quem detém o direito subjetivo, “poder individual”, de propriedade ou posse, para dispor do bem perante a coletividade, cujo interesse concreto está inserido no campo da autonomia privada.

Para Betti (2008, p. 311), essa legitimação nasce da consciência social, pois ela é quem, primeiramente, atribui um “poder individual” sobre determinado bem. O reconhecimento social serve “para justificar a produção da eficácia do negócio, a cargo das partes nas suas recíprocas relações.”

Quando se opera um negócio jurídico de sustentabilidade, o reconhecimento social é essencial para se enquadrar esse negócio na seara dos “mercados verdes”. Esse uso dirigido do direito proprietário requer que seus titulares devam expressar e publicizar adequadamente suas declarações de vontade, motivadas por fins sustentáveis.

Essa clareza e publicidade de intenções é requisito essencial da existência dos “mercados verdes”, superando-se a ideia clássica de ausência de valor, “res nullius” ou de “terra de ninguém”, quando o contrato refere-se a objetos de interesse difuso.

Por razões históricas e sócio-culturais os direitos de propriedade sobre muitos recursos naturais em países em desenvolvimento são mal definidos, não são garantidos nem assegurados por lei, e em inúmeros casos ausentes (PANAYOTOU, 1994, p. 50).

Em terceiro lugar, por consequência, quando as partes usam de seu “poder individual” para exercer o “poder de autonomia privada”, a formação da

I - a pesquisa científica; II - a visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais; III - (VETADO) § 3o Os órgãos integrantes do SNUC, sempre que possível e oportuno, prestarão orientação

técnica e científica ao proprietário de Reserva Particular do Patrimônio Natural para a elaboração de um Plano de Manejo ou de Proteção e de Gestão da unidade.

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vinculação obtida entre as partes resultará num preceito dirigido publicamente à temática ambiental. Note-se para o fato de que será por meio dessa publicidade do preceito contratado, que a ordem jurídica o determinará como fato jurídico relevante (PERLINGIERI, 2007, p. 279).

Surge então, a partir daí, não só a vinculação, mas também a função social voltada ao cumprimento do preceito. São novos espaços de responsabilidade jurídica a partir das regras contratadas, como já visto anteriormente. “O que elas devem declarar, e de que têm o ônus de estar conscientes, é o regulamento de interesses a dispor para o futuro: aquele regulamento que, no comércio, é conhecido pelo nome de ‘negócio”. (BETTI, 2008, p. 313)

Para Panayotou (1994, p. 48), essa vinculação contratual dirigida ao valor da sustentabilidade gera a segurança necessária para a existência dos “mercados verdes”, pois permite à sociedade o conhecimento sobre o negócio feito sobre “direitos de propriedade bem definidos, exclusivos, seguros, transferíveis e garantidos sobre todos os recursos, bens e serviços.”

Isso permite que o negócio adquira relevância perante o Estado, traduzindo um conteúdo juridicamente exigível no campo da autonomia privada, quando há reflexos difusos para toda a sociedade.

Logo, ao atender aos caracteres descritos por Betti, tal negócio jurídico de sustentabilidade expressa a importância do seu objeto de contratação ser um bem, que passa a não ser “público e não é privado”, mas agora, transindividual, como bem alude Fiorillo (2012, p. 59).

Em suma, o preceito da autonomia privada para ser validado por valores de sustentabilidade requer a presença dos caracteres da concretude, reconhecimento social e vinculação. Uma vez declarada, a vontade cede à objetividade e passa a gerar socialmente interesse pelo negócio realizado, cujo preceito passa a ser obrigatório e independente, para além do interesse privado contratado.

2.4. a responsabilidade e o elemento subjetivo do ne-gócio

Como o negócio jurídico é um ato consciente de liberdade humana com relevância social, dele nascem consequências, onerosas ou não, as quais o agente

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livremente quis se submeter perante o mundo social, num ato de completa auto-responsabilização. Se o ato de uso da liberdade na relação negocial gera um dever, pode-se dizer que liberdade e responsabilidade são correlatos na dinâmica negocial prévia das partes.

Liberdade, ou seja, iniciativa consciente, antes do ato; auto-responsabilidade, ou seja, necessidade de suportar as consequências, depois de realizado o acto vinculativo, sem outro limite correctivo além da boa-fé (BETTI, 2008, p. 315).

Ao se tratar da noção de responsabilidade, a partir do pensamento de Betti é possível entender que, ao se dispor livremente sobre valores sustentáveis no negócio jurídico, as partes assumem o dever de cumprir com o preceito proposto, já que o efeito do negócio vincula o seu ofertante, contra o qual será exigida a conduta oferecida.

A responsabilidade já existe no ato constitutivo do negócio, pois a ideia é de que a vontade de se responsabilizar por algo dever estar presente na mente (consciência) do declarante, no momento em que fez uso de sua liberdade, para contratar, voltando-se às questões ambientais.

Esse elemento subjetivo está presente no negócio jurídico de sustentabilidade como algo a mais, pois a vontade usada livremente para a constituição de um dever, nesses casos, transcende o que se espera na seara dos interesses privados. Uma vez emitida a declaração, só restará ao sujeito questionar erros de emissão ou significado e não mais a sua vontade ambiental manifesta, para a qual surgirá o dever de, por ela, responder, privada e publicamente.

Na determinação do elemento subjetivo do negócio jurídico não se trata de fazer uma descrição psicológica completa da atitude normal do sujeito, mas de isolar os aspectos dessa atitude que sejam relevantes para o tratamento jurídico (BETTI, 2008, p. 313).

Nesse sentido, com a declaração emitida e liberta da vontade das partes, surgirá o “princípio da inalterabilidade contratual”, que não mais permita às partes fazer alterações de suas cláusulas, observando-se a segurança negocial (LISBOA, 2012, p. 83). Essa configuração declarativa é de extrema importância ao se tratar do nascedouro negócios geradores de interesses transindividuais.

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O elemento subjetivo do negócio é formado em três fases ou momentos, que são:

a) forma: na forma é relevante a vontade de declarar ou de comportar-se, não importa a materialização do ato, o que importa é que, com aquele ato, o indivíduo quis conscientemente expressar a sua vontade para a realização daquela determinada espécie de negócio;

b) conteúdo: isto é, ao preceito da autonomia privada, deve corresponder, no agente, a consciência do seu significado e valor, ou seja, é preciso que o declarante tenha consciência do significado objetivo do conteúdo da sua declaração emitida, seu valor e suas consequências, a noção do surgimento da auto-responsabilidade pelo que foi contratado, a noção de responsabilidade pessoal pelas próprias atitudes que geram consequên-cias que se podia prever e medir;

c) causa: corresponde, no agente, a orientação da vontade para um escopo prático, que é uma tomada de posição vinculativa a respeito de certos interesses e se identifica, normalmente, com a realização da função típi-ca (causa) do negócio no caso concreto, mas que, por via normal, pode também divergir dela (BETTI, 2008, p. 319-321).

São esses os espaços da vontade anterior à declaração, que Betti sinaliza serem essenciais à legitimidade do negócio jurídico de sustentabilidade: na especificação da forma, do conteúdo e da causa que move o contrato.

O indivíduo deve ter consciência sobre o que dispôs e quais serão seus deveres a mais a partir daí, afastando-se aí quaisquer formas de reserva mental contra o negócio ou contra a outra parte, já que o que importa é a objetividade da declaração ou do comportamento manifestado.

Em destaque, o maior grau de consciência volitiva é reservado à causa do negócio, seu escopo prático, aquilo que é de mais essencial ao se tratar de sustentabilidade.

Quem, voluntariamente, pratica um ato de autonomia privada, dando-se conta do significado que ele tem segundo a consciência

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social, reconhece, por isso mesmo, em regra – como ensina a experiência –, o valor vinculativo daquilo que faz ou declara. A avaliação do caráter vinculativo é imanente à consciência do significado. Pelo que basta essa consciência, e nada mais é preciso, para referir o conteúdo e significado do ato ao seu autor (BETTI, 2008, p. 327).

Para Milaré (2013, p. 89), nos “contratos ambientais” essa consciência social seria uma forma de “hipoteca social” sobre os títulos de propriedade, que são estabelecidos sobre recursos naturais e perante os quais há um interesse maior que o individual, sendo seus detentores apenas “gestores desse patrimônio”.

Essa “hipoteca social” é preconizada também na redação do artigo 1.228 do Código Civil, ao tratar sobre a propriedade, diz que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, desde que essas ações atendam:

§ 1.º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

O Código reforça essa “hipoteca social”, ao transformar o negócio jurídico de sustentabilidade em “um instrumento de interesses difusos e coletivos, além dos individuais nele explicitados, caso terceiros indeterminados venham a ser representados” (LISBOA, 2012, p. 105).

Logo, ao se conjugar algo a mais enquanto elemento subjetivo dos negócios jurídicos de sustentabilidade, há que se assegurarem condições plenas para que as partes possam então, ter clareza da responsabilidade por sua contratação voltada a essa temática.

Trata-se de um espaço em que o negócio jurídico possa ser elaborado em sobreposição aos interesses individuais ou com o direcionamento dos mesmos à declaração ambiental, reforçando-se a consciência sobre a responsabilidade e a liberdade, enquanto reforços do elemento subjetivo do negócio jurídico.

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3. a forma dos negócios jurídicos de sustentabili-dade ambiental

3.1. a importância da forma para emílio betti

Todos os atos requerem uma forma exteriorizada para a sua realização, que pode ou não ser prevista na lei, sendo que o atual Código Civil brasileiro traz a seguinte redação: “Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”

A forma pode ser entendida como qualquer meio de exteriorização de negócio jurídico, a maneira como ele é concebido e se apresenta como existente: “é a sua figura exterior.” A forma tem grande importância para a vida e comprovação da relação jurídica negocial.

Para Betti (2008, p. 244), os atos só podem ser reconhecidos através da forma, a vontade, enquanto fenômeno meramente psíquico, não tem relevância jurídica e, desde que se concretize em um manifesto qualquer, identificável pelos demais indivíduos, acabará por gerar efeitos jurídicos.

A existência de uma classificação de negócios jurídicos, em formais e não formais, não deve gerar a falsa ideia da existência de negócios jurídicos destituídos de toda e qualquer forma.

A autonomia privada garante aos indivíduos a escolha da melhor, mais conveniente, ou possível forma para a realização de um negócio jurídico, desde que esteja de acordo com os requisitos de legalidade impostos pelo ordenamento jurídico, e possibilite tornar o ato externamente reconhecido pelos outros.

Dentro dessa configuração, Betti distingue os negócios jurídicos em: atos dependentes de “forma taxativa ou solene”, onde a lei exige determinada forma, e atos de “forma livre”, onde cabe às partes a sua escolha.

Mas uma forma que satisfaça, ainda que de maneira mínima, a exigência fundamental da recognoscibilidade por parte de outros, é um elemento de que nunca pode prescindir-se: exige-se em todos os casos, e também na chamada atitude omissiva (§ 14) (BETTI, 2008, p. 246).

Quando se fala em forma, deve-se atentar para os chamados instrumentos da “forma”, que são aqueles atos que tornam possível o reconhecimento da conduta do indivíduo dentro do meio social em que esta se produziu.

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Estes instrumentos da “forma” são o comportamento e a declaração, sendo essa última diferenciada da manifestação, que é “termo genérico” adotado para identificar a exteriorização da vontade.

Pontes de Miranda (2004, p. 93) toma a manifestação como um com-portamento, discriminando-a da declaração. Para ele, o ato de manifestar implica na realização de algo que expõe a intenção do indivíduo, enquanto que, o ato de declarar implica na expressão verbal da intenção.

Em Betti (2008, p. 245), o comportamento não pode ser confundido com a manifestação, pois deve ser entendido como aquele “ato simples, subjetivo e individual, no qual o indivíduo tacitamente emite o preceito de autonomia privada decorrente de sua vontade.” No mesmo sentido, a declaração deve ser entendida enquanto “ato complexo, objetivo e social, a qual requer uma orientação consciente e expressa do autor em revelar o preceito de autonomia privada para os outros membros da sociedade.”

A “forma” seria como o negócio jurídico se apresenta perante o meio social, enquanto o comportamento, um agir ou omitir-se, e a declaração, a expressão linguística da vontade. São esses os instrumentos intrínsecos para essa exteriorização.

Ao se pensar em um negócio jurídico de sustentabilidade, essa diferenciação proposta por Betti é útil, tendo em vista que a declaração ganha relevos de importância, pois exige a exposição consciente e determinada daquilo que o contratante deseja obter no negócio. Na medida em que as partes desejarem inte- grar valor sustentável ao negócio, ele deverá ser declarado para fins de obrigato-riedade de seu cumprimento. Na prática, isso implicaria que, um contratante, ao expressar seu comprometimento com valores ambientais deverá, no espaço de formação do contrato, dispor expressamente do alcance específico desse negócio.

3.2. para além da declaração: o comportamento en-quanto negócio jurídico de sustentabilidade

Como dito anteriormente, um negócio jurídico de sustentabilidade, para ser reconhecido pelos outros através da forma, requer a opção expressa pela declaração.

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Nota-se que Betti não se utiliza da expressão “declaração de vontade”, pois para ele, a declaração visa o conteúdo preceptivo que tem a vontade somente como gênese, com nascedouro, mas da qual se desvincula tornando-se algo próprio, objetivo.

Betti segue pela concepção “objetivista” ou “teoria objetiva” do negócio jurídico, o qual teria uma função definida: “qual seja a de permitir a autorregulamen- tação da vida privada por meio de preceitos particulares, aos quais, o ordenamento jurídico emprestaria força de lei” (MONACO, 2008, p. 102).

Na declaração, o pensamento íntimo se externa e se desprende do emissor através de uma expressão objetiva que se torna perceptível e apreciável no mundo social, ou seja, a declaração, entendida enquanto ato consciente com função comunicativa, destinada a levar ao conhecimento social a ocorrência de um negócio jurídico (da lei formalizada entre partes).

Por outro lado, o comportamento também pode vincular, mas para tanto, há que ter claro o seu preceito. Cita como exemplo, Betti (2208, p. 251), o caso da garrafa lançada ao mar (comportamento) com uma promessa de recompensa (declaração) em favor daquele que a encontrar (comportamento); se a garrafa for encontrada, quem a encontrou tomará conhecimento de seu conteúdo, assim como, o meio social, tornando perfeito o negócio jurídico bilateral proposto; mas se a garrafa nunca for encontrada, o negócio bilateral nunca será aperfeiçoado, destacando a irrelevância social e jurídica desta promessa.

No exemplo, procura-se destacar a possibilidade da ocorrência do negócio jurídico unilateral por comportamento (abandono da coisa) ou achado da coisa, formados exclusivamente por comportamentos (sem declaração). Reconhece que o agente poderia realizar um comportamento tal forma que seu ato provoque como resultado uma modificação factual de reconhecida relevância da realização de um negócio jurídico (por exemplo, o simples comportamento no abandono de coisa).

No exemplo da garrafa jogada ao mar, tem-se que aquele que abandona a coisa, busca desvencilhar-se de sua propriedade, livrando-se dela (abandono).3 Reconhece-se que, neste caso, basta o comportamento de quem abandona a coisa

3 Vide art. 1.275 do Código Civil brasileiro.

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(ocorrência do fato objetivo de conduta), mesmo que ninguém mais (meio social) venha a tomar conhecimento deste ato, para que haja a perda de sua propriedade, pois se trata de um negócio jurídico unilateral.

Na esfera dos negócios jurídicos de sustentabilidade, esse comportamento de abandono é relevante na esfera do descarte e da reciclagem e ganha conotações maiores em termos de dano ambiental. Tais repercussões transcendem a esfera civil, na qual a perda da propriedade é a única sanção privada aplicável para quem a abandona. Adentram ao campo da responsabilidade pela “externalidade”, cujo custo ambiental é evidentemente distribuído a toda a sociedade, quando algo é “simplesmente” jogado fora (PANAYOTOU, 1994, p. 53).

Para Braga (2007), a externalidade, no caso dos resíduos e seu descarte enquanto comportamento, revelam a existência de “responsabilidade pelo fato do produto” aos seus fornecedores (produtores e engarrafares, no exemplo), tendo em vista que, ao colocarem tais produtos no mercado, assumem também a responsabilidade por seu descarte descompromissado, cujo depósito final será a contaminação da natureza.

Nesse sentido, o comportamento de jogar a garrafa ao mar está em gerar impacto ambiental, para além do mero abandono civil e isso requer uma percepção jurídica desse fenômeno. São desdobramentos complexos a revelar uma cascata de negócios jurídicos em curso, desde a produção até o abandono e porventura seu recolhimento do mar e destinação à reciclagem, a partir da aplicação do princípio do poluidor pagador.

Com esse raciocínio, os comportamentos como o de abandono, enquanto externalidades, ganham relevo nos negócios jurídicos, na medida em que tais comportamentos geram obrigações em prol da sustentabilidade a serem assumidas pelos fornecedores envolvidos na relação de consumo e, por consequência, ao consumidor, que terá o preço acrescido durante a compra por tal responsabilização, quando colocada em prática.

Logo, não só a declaração é essencial à “função constitutiva” do negócio jurí-dico, mas certos tipos de comportamento civis também podem ter reflexos difusos no meio social, algo de que lhes cabe o reconhecimento e maior aprofundamento.

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3.3. proposta, oferta e as rotulagens nos negócios jurídicos de sustentabilidade

Na declaração, a emissão da vontade deve se dar de forma adequada, portanto, há uma questão de ordem linguística, que varia de sociedade para sociedade, devido ao grau de evolução histórica e cultural. Reputa-se, como ônus do declarante, um mínimo de “univocidade e clareza”4 de sua declaração, pois é dele a responsabilidade de suportar as consequências de suas proposições negociais, conforme a forma e o modelo de sua comunicação sejam escolhidos (BETTI, 2008, p. 255).

Em certos negócios jurídicos de sustentabilidade, há uma declaração prévia que pode interessar às partes, a respeito do uso de certificações, rótulos ou selos. Nesses casos, podem as partes, de comum acordo ou não e assumindo o risco de tal conduta, acolher essa linguagem negocial, colocando-a de forma estilizada nos produtos e serviços, estimulando assim, a negociação.

Em termos de negócios jurídicos de sustentabilidade, a “rotulagem ambiental” ganha sinônimos de selo verde ou ecológico e tem por funções permitir a “certificação de produtos” que durante seu ciclo existencial produzem menores impactos ao ambiente (VALLE, 2004, p. 140).

A presença declarativa de uma “rotulagem ambiental” configura elemento da oferta, ao demonstrar que o proponente possui, em sua exposição pública, a preocupação em minorar os impactos ambientais de sua atividade. Nesse sentido, a “ecorrotulagem” informa ao consumidor sugerindo “maior responsabilidade e compromisso social e ambiental”, buscando incentivá-lo, por tal diferenciador, a optar pelo contrato com esse ofertante ou proponente (CORTEZ, 2009, p. 39).

Trabucchi (1995, p. 630-632) traz a noção clássica de que a oferta civil, assim como a oferta de consumo, diferenciam-se da proposta por serem destinadas a pessoas incertas (ad incertam personam), enquanto a segunda requer, em regra, um destinatário certo. Isso se confirma no artigo 429 do Código Civil, onde a oferta equivale à proposta não receptícia, dirigida a qualquer indivíduo, buscando divulgar o interesse do ofertante na realização de negócios jurídicos.

4 Atualmente, a univocidade e clareza são imperativos de ordem pública no atos negociais de consumo, vide art. 46 e 47 do Código de Defesa do Consumidor brasileiro.

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Quanto aos efeitos da oferta, “nada mais fez o art. 30 da lei do consumidor do que explicitar o que o direito privado e sua doutrina defendiam secularmente”, ou seja, reconhecer o caráter vinculante há muito atribuído à proposta civil (VENOSA, 1993, p. 82).

Em regra, nas ofertas ou nas propostas, as declarações de valores sustentáveis, receptícias ou não, refletem negócios jurídicos unilaterais, nos quais, de per si, o simples ato de declarar já basta, vinculando o ofertante ou proponente pelas informações nela contidas. O importante é que essa vinculação se estende, então, à rotulagem ambiental.

Nos negócios jurídicos, nos quais o proponente ou o ofertante assumam valores sustentáveis, tais qualidades é que passam a serem exigíveis dos seus produtos, serviços ou em relação às próprias qualidades da pessoa que oferta.

Na prática, ante a uma pessoa jurídica dotada de certificação ambiental, a existência do negócio jurídico estará condicionada, mesmo no silêncio das partes, à comprovação daquelas qualidades declaradas pelo proponente, pois, certificações, a exemplo da ISO 14000, têm uma força de autoridade no mercado para além da força da lei, ao creditar uma determinada característica ao seu detentor (MILARÉ, 2013, p. 61).

Há casos em que, para se garantir que haja o efetivo conhecimento alheio da declaração, se faça necessário o uso de documentos indicando detalhes da sustentabilidade aplicada, possibilitando assim, uma comprovada certificação prévia daquilo para o qual se busca negociar. “Então, a expressão documentada consiste, antes de mais, em escrever, isto é, em formar o documento, o qual, na medida em que representa a expressão constitutiva do negócio, representa, também, o ato da sua formação”. (BETTI, 2008, p. 264)

O uso declarativo por meio de formas entendidas como certificações, rótulos e selos ambientais, apesar de ser antecedente ao “processo formativo da declaração” passam a compor seu conteúdo, a partir do momento em que façam parte dos mecanismos diferenciadores que estimulam a realização do negócio jurídico, gerando vinculação em quem a divulga e sua responsabilidade ambiental pela condição publicizada e pela qualidade garantida.

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3.4. negócios jurídicos de sustentabilidade por meio de condições gerais de contratação

A declaração, em termos de negócio jurídico, atua como poderosa força geradora de normas no universo jurídico. Desta feita, todo negócio jurídico se perfaz através de uma declaração visando à autorregulamentação de certo efeito: criando, resguardando, transferindo, modificando ou extinguindo uma relação jurídica.

Essa autonomia de agir ou omitir-se dentro dos limites legais permite a aplicação da Teoria Tridimensional do Direito de Reale (2003, p. 179), ao se imaginar que o fato valorado, sobre os quais as partes autorregulamentaram seus interesses, gera a regra sustentável particular. Isso expressa a capacidade própria da sociedade em regular seus valores sustentáveis em contrato, no qual, os indivíduos farão, então, uso da autonomia privada para declarar normas aplicáveis no âmbito privado.

Dentro da esfera de liberdade contratual do indivíduo, o assunto ganha relevância para os negócios jurídicos de sustentabilidade, quando surgem as chamadas condições gerais de contratação.

Para Lobo (1991, p. 24), o Brasil segue a teoria francesa “unitarista”, que engloba num único conceito os contratos de “adesão” e as chamadas “cláusulas contratuais gerais” ou “condições gerais dos contratos.” São faces instrumentais do mesmo instituto, no qual as condições gerais são o gênero e os contratos de adesão a espécie e podem ser entendidas como uma forma de regulação predisposta para o futuro e “destinada a integrar de modo uniforme, compulsório e inalterável a cada contrato de adesão que vier a ser concluído entre o predisponente e o aderente”.

Segundo Lisboa (2012, p. 428), tratam-se das “convenções coletivas de proteção ao meio ambiente”. Nelas, pessoas físicas ou jurídicas, reunidas, celebram “negócios jurídicos nos quais se observe a preservação do meio ambiente, bem como a sua recuperação”, ou mesmo inibam condutas futuras, naqueles espaços, que sejam atentatórias à sustentabilidade.

Assim, poderão os locatários de imóveis vir a se comprometer a manter as áreas dos mesmos com um percentual mínimo de verde. Por caminho semelhante, a associação dos proprietários poderá

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vinculá-los ao plantio de árvores nas áreas previamente destinadas [...] A convenção coletiva do meio ambiente tornar-se-á, assim instrumento utilizado pela sociedade civil para resolução de problemas insatisfatoriamente resolvidos pela Administração Pública (LISBOA, 2012, p. 428).

Ao tratar das possibilidades da declaração em dois tipos, a leitura de Betti colabora no entendimento daquilo que possa ser estabelecido em sede dessas condições gerais ou convenções coletivas:

A declaração, como se viu, é um ato cujo evento se concretiza sempre no espírito alheio, ora apelando só para a consciência, ora também para a vontade do destinatário, conforme tenda apenas a informar, a dar, a conhecer um fato, ou pretenda apontar a orientação de uma conduta: em suma, a um docere ou a um iubere (BETTI, 2008, p. 289).

Além dessas duas possibilidades, ou serem “declarações dispositivas”, com conteúdo destinado a criar regras (“iubere”); ou as “declarações enunciativas”, com conteúdo destinado a informar e esclarecer (“docere”), existem certos tipos mistos, segundo Betti, de declarações enunciativas, com conteúdo dispositivo, o que acaba por caracterizá-las também por negócio jurídico, mas enquanto ato complementar a regulamentar outro negócio jurídico de existência anterior. A exemplo, resoluções condominiais destinadas a regulamentar o estatuto do condomínio.

Aqui o reconhecimento, embora conservando a estrutura de uma declaração representativa unilateral, assume uma função dispositiva, no sentido de preservar e revigorar a relação preexistente, subtraindo-se à prescrição ou à relevância direta da causa, sem, todavia, absorver e sub-rogar nela o fato constitutivo (BETTI, 2008, p. 289).

Nota-se que a função da declaração, assim como seu veículo de exposição, se altera de acordo com o seu conteúdo. Desta feita, uma declaração enunciativa, que tem conteúdo meramente informativo, poderia ser exteriorizada em qualquer veículo comunicativo, tal qual um jornal, assim como cartaz ou placa sugerindo o consumo consciente, como se faz nos quartos de hotéis, nos quais se incentiva a reutilização de toalhas, economia de energia etc.

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Uma declaração dispositiva, por outro lado, terá uma função regulamentar e ensejará um contrato. “A diferença de conteúdo importa, também, uma diferente função da declaração, como forma, relativamente ao conteúdo” (BETTI, 2008, p. 299-300). Assim, como exemplo nos quartos de hotéis onde se afixam as regras sobre a proibição de certos comportamentos no uso das instalação, como fumar, por exemplo.

Após a determinação das condições gerais ou convenções coletivas, o comportamento passar a produzir efeitos entre as partes, incluindo mesmo o silêncio (omissão) para efeitos jurídicos. No atual Código Civil brasileiro: “Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.”

Nesse sentido, o negócio jurídico de sustentabilidade, prévio, pode regular todos os comportamentos futuros, que, naquele espaço proprietário ocorrerem, como se um costume houvesse sido estabelecido pelos usos das partes, mesmo antes de se saber quais serão essas partes.

Semelhantemente, se um livreiro costuma, há muito, enviar a um cliente as novas publicações e o cliente tem o hábito de comprar e pagar as obras não restituídas dentro de um certo prazo, o fato de não ter evolvido ou recusado expressamente um livro, importa, para o cliente, em relação ao livreiro, as mesmas consequências de uma explícita escolha do livro (BETTI, 2008, p. 276).

O importante aqui, ao se tratar dos negócios jurídicos de sustentabilidade, estipulados por meio de condições gerais ou convenções coletivas, é que para além dos interesses individuais, gera-se uma declaração dispositiva que vincula não somente as partes contratantes, mas todos aqueles que porventura tenham atuação sobre aquele determinado território negociado e sobre os interesses transindividuais envolvidos naquela negociação.

4. conclusões

A capacidade normativa (autonomia privada) dos negócios jurídicos não importa numa liberdade incondicionada, pois ela estará limitada à função social do contrato e por, conseguinte à função social da propriedade.

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Ao se cumprir sua função social, a relação jurídica negocial pode abrigar conteúdos em prol da sustentabilidade, inovando no campo tradicional dos conteúdos dos negócios jurídicos. Tal inovação contratual permite aproximar, por meio dos negócios jurídicos, a proteção estatal aos interesses transindividuais.

Constitui-se esse tipo de intervenção num meio contemporâneo de garantia da liberdade contratual, que não visa restringir a autonomia privada dos indivíduos, mas apenas restabelecer o equilíbrio contratual destes para com a sociedade, quando da realização de negócios jurídicos que envolvam questões ambientais.

Ao tratar dos elementos presentes no preceito de autonomia privada, Betti estabelece os aportes necessários para que se possa, a partir da objetividade das declarações, visualizar como os interesses transindividuais podem a influir no negócio, quando então, surge a lei entre partes e o negócio passa a ser obrigatório exigível pela coletividade.

No negócio jurídico de sustentabilidade, essa teoria proposta por Betti ganha relevo, tendo em vista que a declaração ganha importância, na razão em que as partes desejarem integrar valores sustentáveis ao negócio, o qual poderá ser declarado na forma de uma cláusula contratual especial.

Uma vez declarada e atendendo a caracteres específicos, a vontade cede à objetividade e aos interesses da sociedade. Nesse sentido, a valoração do preceito da autonomia privada, quando há em jogo valores sustentáveis no negócio jurídico, legitima o reconhecimento social do interesse transindividual sobre objeto contratado.

Comportamentos tidos por externalidades também passam a ganhar relevo nos negócios jurídicos. Dessa maneira, não só a declaração é essencial à função constitutiva do negócio jurídico, mas certos tipos de comportamento também podem ter reflexos sustentáveis no meio social.

A rotulagem ambiental é antecedente ao “processo formativo da declaração”, mas a partir do momento em que passa a fazer parte dos mecanismos diferenciadores que estimulam a realização do negócio jurídico, geram vinculação negocial.

Ao se tratar dos negócios jurídicos de sustentabilidade, estipulados por meio de condições gerais ou convenções coletivas, é que a autorregulamentação dos interesses individuais gera uma declaração que vincula não somente as partes

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contratantes, mas todos aqueles que porventura tenham atuação sobre aquele determinado território autorregulado.

Com isso, o negócio jurídico que visa realizar objetivos da sustentabilidade, ao mitigar impactos das realizações humanas sobre o planeta, pode ser um importante instrumento de efetividade de interesses transindividuais, para além de valores estritamente privados das partes contratantes.

5. referências

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i encontro de internacionalização do conpedi

volume 13 319

responsabilidade civil por danos ambientais no brasil e espanha: uma

análise crítico-comparativa na busca da melhor doutrina jurídica capaz

de promover o desenvolvimento sustentável

Elcio Nacur Rezende1

Kiwonghi Bizawu2

Especiais agradecimentos à CAPES (Coordenação de Aper-feiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo apoio financeiro recebido pelo autor Elcio Nacur Rezende na participação deste evento na cidade de Barcelona/Espanha.

Resumo

Apresenta-se um estudo comparado da Responsabilidade Civil por Danos Ambientais no Brasil e na Espanha. Portanto, o texto faz o cotejamento da questão jurídica dos dois países, apontando as coincidências e divergências normativas entre os ordenamentos positivados, bem como, da doutrina e jurisprudência emanadas de seus juristas e tribunais. Mais que apenas apresentar simplesmente um estudo de Direito Comparado este trabalho busca construir uma teoria capaz de proporcionar ao legislador fundamentação jurídico-teórica para a construção de normas que imputem ao degradador ambiental uma severa e inarredável responsabilidade civil sem, contudo, imputar-lhe indevidamente qualquer sanção reparatória ou até mesmo punitiva sem firme fundamentação na Ciência do Direito. Aponta-se a imprescindível elaboração da teoria na medida em que o almejado Desenvolvimento Sustentável funda-se, também, no necessário investimento econômico sem, absolutamente, gerar insegurança

1 Mestre e Doutor em Direito. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara.

2 Mestre e Doutor em Direito. Pró-Reitor de Pós-graduação da Escola Superior Dom Helder Câmara.

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jurídica ao investidor quando este exerce atividade que, potencialmente, causa risco ambiental.

Palavras-chave

Responsabilidade Civil por Danos Ambientais; Direto Comparado; Brasil-Espanha.

Abstract

It presents a comparatives study of Civil Liability for environmental Damage in Brazil and Spain. Therefore, the text is read back from the legal issue of the two countries, pointing out the similarities and diferences between normal positivized system, as well as the doctrine and jurisprudence emanating from their lawyers and courts. More than just simply presenting a study of comparative law this work seeks legislator legal-theoretical foundation for building standards dealing with the responsible for environnment degradation a severe and unwaring liability without however, acuse him of any undue remedial or punitive sanction even without a firm foundation in the Science of law. It points out the essencial elaboration of the theory in that the desired Sustainable Development, also based on the necessary economic investment without absolutely create legal uncertainty for the investor when he exercices activity that potentially causes environnmental risk.

Key words

Liability for Environnmental Damage; Comparative Law; Brazil-Spain.

1. introdução

A Responsabilidade Civil Ambiental no Brasil é tema tormentoso na doutrina e jurisprudência, uma vez que as Teorias do Risco Integral e do Risco Criado ainda não foram aceitas, de forma unânime, pelos estudiosos do tema.

Ora consagra-se entre os doutrinadores a possibilidade de rompimento de nexo causal como meio de possibilitar a improcedência de ações de responsabilidade civil contra eventuais degradadores, isto é, consagra-se a Teoria do Risco Criado, ora, inadmite-se as excludentes de ilicitude (fato exclusivo de terceiro, força maior e fortuito) como razão para impedir a condenação civil ambiental.

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A Lei 6.938/81 denominada “Política Nacional de Meio Ambiente” cuidou do tema no artigo 14, §1º. Todavia, embora tenha afirmado que a Responsabilidade Civil por Danos Ambientais é Objetiva, isto é, independe da demonstração de culpa daquele que por um comportamento, positivo ou negativo, degradou o meio ambiente, não resolveu a questão mais interessante, qual seja: se é admissível as excludentes de responsabilidade clássicas, vale dizer, se a Teoria do Risco Integral ou a Teoria do Risco Criado foi a eleita.

Nesse quadro, demonstraremos como se encontra atualmente essa questão no Brasil e na Espanha a partir de uma análise de legislação comparada e doutrina, demonstrando que a imputação indevida de Responsabilidade Civil é, inexoravelmente, elemento desestimulador do investimento econômico e, portanto, afronta o almejado Princípio do Desenvolvimento Sustentável.

2. responsabilidade civil por danos ambientais

O termo “responsabilidade” significa o dever de responder pelas consequências advindas de seus atos.

Assim, quando atuamos positivamente de forma indevida (fazendo) ou negativamente (deixando de fazer algo que nos é imposto) devemos arcar com as consequências.

Conclui-se, portanto, que o conceito de responsabilidade não é eminen-temente jurídico e sim jus-filosófico, como explica Barretto:

Quando falamos em responsabilidade estamos fazendo referência a dois tipos de conceitos: um moral e outro jurídico. Em ambos, entretanto, encontra-se a idéia de que os seres humanos consideram-se uns aos outros como agentes morais, ou seja, seres capazes de aceitarem regras, cumprirem acordos e de agirem obedecendo a essas determinações. Em torno desses compromissos, é que se constitui o tecido de direitos e obrigações regulatório da vida social humana, que tem na pessoa o seu epicentro. (BARRETO, p. 159)

A vida social é objetivada através de atos individuais, que expressam a vontade do indivíduo, agente moral dotado de racionalidade e autonomia. Por

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essa razão, os atos humanos caracterizam-se por uma necessária dimensão de responsabilidade, que se constitui no eixo das relações sociais e as torna possíveis e previsíveis. A responsabilidade constitui-se, assim, na categoria central do sistema social e jurídico e serve como parâmetro de imputação dos atos individuais. O tema da responsabilidade, por perpassar a multiplicidade dos atos humanos pode ser analisado sob três perspectivas diferenciadas: a responsabilidade moral, a responsabilidade jurídica e a responsabilidade coletiva (BARRETO, p. 319).

No que tange ao Direito Ambiental, ramo jurídico desse trabalho, entende-se por Responsabilidade Civil a consequência jurídica advinda da degradação ao Meio Ambiente.

Destarte, todo aquele que prejudica o equilíbrio atmosférico, aquático, a fauna, flora, topográfico, dentre outros elementos, quer no meio urbano ou rural deve, implacavelmente, responder juridicamente por sua ação ou omissão.

Ressalte-se que a assertiva do parágrafo anterior se mostra eminente diante da magnitude da valoração que o Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, previsto constitucionalmente, deve ser concebido por todos aqueles que prestigiam a Dignidade da Pessoa Humana. Com efeito, dispõe o artigo 225 da Constituição brasileira:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

Além da questão da prejudicialidade difusa, o dano ambiental possui várias outras características que o diferenciam do dano civil propriamente dito, como já citamos em outro trabalho3:

a) Além de comumente difusos, excepcionalmente, ocorrem em prejuízo de uma coletividade determinada, ora, de forma individualizada. As-

3 Texto dos próprios autores in Responsabilidade Civil por Danos Ambientais no Brasil e em Angola: Um Estudo Panorâmico Comparado da Teoria do Risco Criado versus A Teoria do Risco Integral nos Ordenamentos Positivados do Brasil e Angola. CONPEDI, Florianópolis, 2013.

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sim, em circunstâncias normais, quando se verifica um dano ambiental hodiernamente toda a coletividade, de forma não identificável é vítima do comportamento, todavia, podem ocorrer situações onde o dano é suportado por um conjunto de pessoas com liame entre si (dano coleti-vo) como uma comunidade de pescadores que ficou impossibilitada de exercer sua atividade profissional em determinado lago poluído por cer-ta indústria. Não obstante, ainda é possível que o dano ambiental tenha vítima certa individualizada, como em uma situação que determinado fazendeiro sofreu uma perda em seu pomar causado por um fertilizante impróprio ao uso, impossibilitando a colheita;

b) O dano normalmente é indivisível, vale dizer, não se consegue identifi-car extreme de dúvida, a parcela de prejuízo sofrido por cada pessoa que suportou o dano;

c) Comumente o dano é irreversível, ou seja, a reparação das áreas degra-dadas, voltando ao estado anterior, nem sempre se faz possível com as tecnologias que dispomos;

d) Possui caráter transfonteiriço na medida em que normalmente não é possível a verificação exata das regiões que sofreram a degradação. Exemplo comum é a poluição atmosférica, que, certamente, não causa danos a uma localidade restrita em razão das características das corren-tes de ventos;

e) Tem efeitos cumulativos, uma vez que os efeitos da degradação não são estanques, pelo contrário, a os danos suportados pelo meio ambiente são somados aos que outrora foram gerados, propiciando um acúmulo de degradação contínuo;

f ) Dificuldade de se estabelecer um nexo causal. Com efeito, para se im-putar a responsabilidade civil ordinária, se faz necessário a demonstra-ção de Ato Ilícito, Dano e Nexo Causal. Esse último elemento trata-se do liame causa-efeito, isto é, da necessidade que a vítima do dano tem de demonstrar que o prejuízo sofrido foi decorrente da ação ou omis-são do suposto ofensor. Quando falamos de dano ambiental, tal prova muitas vezes é de impossível demonstração. Podemos exemplificar com

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o caso da Baía de Guanabara no Estado do Rio de Janeiro que se encon-tra, sobremaneira, poluída por uma série de fatores (derramamento de óleo das embarcações, despejo de esgoto sanitário, despejo de detritos dos estaleiros, despejo de lixo urbano, etc), sendo, portanto, impossível de se comprovar que o dano (degradação generalizada) foi consequên-cia de uma atividade específica.

Demonstra-se assim que o Dano Ambiental merece tratamento diverso que o Dano Civil, na medida em que o bem que se preocupa em proteger uma vez deteriorado aflige a todos e de maneira, comumente, irrecuperável.

Consequentemente, a Responsabilidade Civil em matéria ambiental não pode ser tratada nos mesmos padrões da responsabilidade civil estudada no Direito Civil, sob pena de se olvidar das características acima explicitadas que acarretam a necessidade de tratamento especial, construindo-se uma doutrina que possibilita mais facilmente a apuração da responsabilidade e a aplicação da consequência jurídica necessária, com o escopo de se alcançar o comando constitucional do Meio Ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos.

Prima facie para facilitar a imputação de responsabilidade civil ambiental ocorreu a consagração da Teoria da Objetivação da Responsabilidade que, em breves palavras, dispensa a perquirição de dolo ou culpa na imputação do dever de reparar e/ou indenizar pela degradação decorrente de sua atividade.

Com efeito, dispensando-se a comprovação de dolo ou culpa, facilita-se sobremaneira a condenação daquele que degradou, pois, a voluntariedade abominável do autor na provocação do dano ou mesmo a simples negligência, imprudência ou imperícia daquele que, lamentavelmente, provocou dano, não serão analisadas pelo julgador. Assim, basta que se demonstre a atividade (lícita ou ilícita), o nexo causal e o dano, que serão elementos suficientes para a condenação.

Nesse sentido a Lei 6938/81 que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente:

  Art 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas ela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:

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...

§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

Contudo surge uma questão tormentosa não pacificada na doutrina e na jurisprudência, qual seja: o Brasil adota a Teoria do Risco Criado ou a Teoria do Risco Integral.

Pela primeira teoria, caso um suposto degradador comprovasse que o evento danoso decorreu por culpa exclusiva da vítima (raro em matéria ambiental, graças a característica difusa do bem), fato exclusivo de terceiro, fortuito ou força maior, estaria, por imediata consequência, eximido de responsabilidade.

Por outro lado, pela Teoria do Risco Integral, ainda que se demonstrem as ex-cludentes de ilicitude descritas no parágrafo anterior, aquele que exerce qualquer atividade que, eventualmente, tenha liame com um dano ambiental, arcará com as consequências jurídicas.

3. as teorias do risco criado e do risco integral no direito ambiental brasileiro

Como já descrito, a Constituição Federal brasileira e a Lei 6928/81 que estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente não deixam dúvidas que em matéria ambiental dispensa-se a demonstração de dolo ou culpa na imputação daquele que degradou o Meio Ambiente.

Contudo, ainda que com esforço exegético, não se conclui, estreme de dú-vidas, se é admissível o fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima (como dito, quase inaplicável ambientalmente, uma vez que o Meio Ambiente é direito difuso) e o fato exclusivo de terceiro, como excludentes de responsabilidade, consagrando-se a Teoria do Risco Criado.

Parte da doutrina brasileira afirma que somente com a adoção da Teoria do Risco Integral o meio ambiente estará efetivamente protegido, uma vez que aquele

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que degradou o meio ambiente sempre será responsabilizado, ainda que comprove o fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro. Nesse sentido, não há sombra de dúvida quando Sergio Cavalieri Filho (2012, p. 154) ressalva a necessidade de proteger o meio ambiente, pois, para ele “Se fosse possível invocar o caso fortuito ou a força maior como causas excludentes de responsabilidade civil por dano ecológico, ficaria fora da incidência da lei a maior parte dos casos de poluição ambiental.”

Todavia, para Paulo de Bessa Antunes essa questão é bastante complexa, pois a responsabilidade objetiva desiguala a relação processual entre as partes, em vista da análise tão somente do fato e do nexo para que se estabeleça a obrigação de reparar o dano. Ele chama atenção para o fato de a responsabilidade por risco integral não se confundir com a responsabilidade derivada da só existência da atividade. Explica que não se pode admitir que um empreendimento que tenha sido vitimado por fato de terceiro passe a responder por danos causados por este terceiro, como se lhes houvesse dado causa. Responsabilidade por risco integral não pode ser confundida com responsabilidade por fato de terceiro, que somente tem acolhida em nosso direito quando expressamente prevista em lei.

Além de Cavalieri Filho sustentam que a Teoria do Risco Integral os autores Annelise Monteiro Steigleder, José Afonso da Silva, Luiz Fux, Edis Milaré, dentre outros.

Admitindo a Teoria do Risco Criado, além de Paulo de Bessa Antunes, os autores Toshio Mukai, Alvino Lima e o Ministério Público de São Paulo na sua Súmula 18, dentre outros,

Conclui-se, pois, que são sérias as discussões sobre a Responsabilidade Civil Ambiental, pois não se deseja jamais que haja qualquer dificuldade em se imputar o dever de reparar e/ou indenizar a quem degradou, nem tampouco, inexoravelmente, que se impute responsabilidade a quem não tem qualquer comportamento que em tese provocou ou poderia evitar determinado dano ambiental.

4. panorama da responsabilidade civil ambiental na espanha

A Constituição espanhola dispõe em seu artigo 45:

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Art 45.1 Todos tienen el derecho a disfrutar de un medio ambiente adecuado para el desarrollo de la persona, así como el deber de conservarlo.

45.2. Los poderes públicos velarán por la utilización racional de todos los recursos naturales con el fin de proteger y mejorar la caliad de la vida y defender y restaurar el medio ambiente, apoyándose en la indispensable soliaridad colectiva.

45.3. Para quienes violen lo dispuesto en el apartado anterior, en los términos que la ley fije, se establecerán sanciones penales o, en su caso, administrativas, así como la obligación de reparar el daño causado.

Na Espanha, de forma extremamente louvável, foi publicada em 2007 a Lei 26 que trata exclusivamente da Responsabilidade por Danos ao Meio Ambiente, dispondo no primeiro parágrafo do seu preâmbulo, assinado pelo Rei Juan Carlos I:

El artículo 45 de la Constitución reconoce el derecho de los ciudadanos a disfrutar de un medio ambiente adecuado como condición indispensable para el desarrollo de la persona, al tiempo que establece que quienes incumplan la obligación de utilizar racionalmente los recursos naturales y la de conservar la naturaleza estarán obligados a reparar el daño causado con independencia de las sanciones administrativas o penales que también correspondan.

Mas, precisamente, pergunta-se: lei espanhola admite a Responsabilidade Objetiva ou Subjetiva?

O artigo 3º da lei dispõe:

Artículo 3. Ámbito de aplicación.

Esta ley se aplicará a los daños medioambientales y a las amenazas inminentes de que tales daños ocurran, cuando hayan sido causados por las actividades económicas o profesionales enumeradas en el anexo III, aunque no exista dolo, culpa o negligencia.

Se presumirá, salvo prueba en contrario, que una actividad económica o profesional de las enumeradas en el anexo III ha causado el daño o la amenaza inminente de que dicho daño se produzca cuando, atendiendo a su naturaleza intrínseca o a la forma en que se ha desarrollado, sea apropiada para causarlo.

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i encontro de internacionalização do conpedi

Isto é, deixa claro que somente quando a atividade degradadora for econômica ou profissional e enumerada no anexo III4, admite-se a Responsabilidade Objetiva.

Nesse sentido Teixeira:

Por lo tanto, la responsabilidad objetiva está directamente involucrada con la peligrosidad de la conducta o actividad ejercida. En este sentido, el “Anexo III” enumera as actividades profesionales consideradas peligrosas por la Ley 26/2007; son así clasificadas porque por la naturaleza de su actividad es mayor el riesgo de que se produzca un daño ambiental y presentan un riesgo especial para la salud humana. (TEIXEIRA, 2013, s/p)

Tal fato é deveras preocupante, pois se sabe que a dinâmica das relações econômicas e sociais impossibilitam que se enumere, em rol taxativo, as atividades que potencialmente são ambientalmente nocivas ao meio ambiente.

Ademais, conclui-se que pela interpretação literal do artigo 3º, se a atividade não for empresária ou não esteja listada no anexo da Lei, a Responsabilidade será Subjetiva, ou seja, caso não haja dolo ou culpa não haverá condenação civil ambiental.

Reforça-se esta tese o artigo 3.2 que dispõe:

2. Esta ley también se aplicará a los daños medioambientales y a las amenazas inminentes de que tales daños ocurran, cuando hayan sido causados por las actividades económicas o profesionales distintas de las enumeradas en el anexo III, en los siguientes términos:

a) Cuando medie dolo, culpa o negligencia, serán exigibles las medidas de prevención, de evitación y de reparación.

b) Cuando no medie dolo, culpa o negligencia, serán exigibles las medidas de prevención y de evitación.

Portanto, a mesma lei também prevê hipótese de Responsabilidade Civil Subjetiva, como dispõe Teixeira:

4 Recomenda-se a leitura do Boletim Oficial do Estado que alterou o anexo em http://www.boe.es/boe/dias/2010/12/30/pdfs/BOE-A-2010-20049.pdf acesso em 25 maio 2014.

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Por otra parte, la Ley 26/2007 también ha consagrado la modalidad de responsabilidad civil que requiere la comprobación de la culpa. De acuerdo con el artículo 3.2, la responsabilidad subjetiva se aplica a los daños medioambientales y a las amenazas inminentes de que tales daños ocurran cuando son causados por las actividades económicas o profesionales distintas de las enumeradas em el “Anexo III”.

Ademais, a possibilidade do rompimento do Nexo Causal por excludentes de responsabilidade é prevista no artigo 4.4, que dispõe:

4. Esta ley no se aplicará a los daños medioambientales ni a las amenazas inminentes de que tales daños se produzcan cuando hayan sido ocasionados por alguna de las siguientes causas:

a) Un acto derivado de un conflicto armado, de hostilidades, de guerra civil o de una insurrección.

b) Un fenómeno natural de carácter excepcional, inevitable e irresistible.

c) Las actividades cuyo principal propósito sea servir a la defensa nacional o a la seguridad internacional, y las actividades cuyo único propósito sea la protección contra los desastres naturales.

Conclui-se, portanto, que mesmo quando a lei adota a Responsabilidade Objetiva, a mesma prevê a existência de excludentes de responsabilidade assim enumeradas:

1. Atos derivados de conflito armado, hostilidades, de guerra civil ou insurreição;

2. Fenômenos naturais de caráter excepcional, inevitável e irresistível, ou seja, fortuito ou força maior;

3. As atividades cujo principal propósito seja servir a defesa nacional ou a segurança internacional e as atividades cujo único propósito seja a proteção contra os desastres naturais.

Destarte, pode-se concluir que na Espanha, por hermenêutica literal:

1. A Responsabilidade Civil será Objetiva quando a atividade exercida pelo degradador estiver listada no Anexo III da Lei 26/2007;

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2. Ainda que haja Responsabilidade Objetiva, admite-se excludentes de responsabilidade, o que nos faz crer que o legislador adotou a Teoria do Risco Criado;

3. Por fim, quando a atividade do degradador ambiental não estiver listada no Anexo III da Lei 26/2007 será necessária a demonstração de dolo ou culpa para que haja condenação civil, portanto, adota-se nessas hipóteses a Responsabilidade Subjetiva.

5. panorama da responsabilidade civil ambiental no direito comunitário

No tocante ao Direito comunitário, vale observar que o Tratado de Roma, ato constitutivo da Comunidade Econômica Européia5, em 1957, não estipulava qualquer ação comunitária em matéria de meio ambiente até a década de 60, não havia nenhuma política comunitária ambiental desenvolvida e, menos ainda medidas preventivas e protetoras cm seus dispositivos legais contra o poluidor-pagador ou, ainda, sobre a responsabilidade ambiental relativa à prevenção e reparação.

Em uma comunidade dominada por questões econômicas, o primeiro programa de ação comunitária referente ao meio ambiente ocorreu em 1972, e hoje, no entendimento de Florence Simonetti (2008, p.67), “a ação comunitária é planejada e supervisionada pelos tratados e legislação ambiental da Comunidade, incluindo uma variedade de diversos atos, tendo por principal fraqueza a sua má aplicação nos Estados-membros.” (Tradução nossa)6

É importante, nessa seara, lembrar que o Tratado de Roma objetivava um processo de integração regional com a criação de um Mercado Comum,

5 Atualmente é conhecida como Tratado Constitutivo da Comunidade Européia, sendo um dos textos fundamentais da União Européia junto com o Tratado da União Européia.

6 “Aujourd´hui, l action de la Communauté est privée et encadrée par les traités et le droit communautaire de l environnement regroupe une multitude d actes hétérogènes, dont La principale faiblesse est leur mauvaise application dans les Estats-membres.” Vide SIMONETTI, Florence.Le droit européen de l environnement. In: Pouvoirs, revue française d´études constitutionnelles et politiques, nº 127,127- Droit environnement, p. 67-85. Disponível em: http://www.revue-pouvoirs.fr/Le-droit-europeen-de-l.html Acesso em: 28 maio 2014.

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estabelecendo uma união aduaneira assentada na livre circulação de bens, em primeiro lugar e, mais tarde, a livre circulação de pessoas, capitais e serviços, ocorrida com o advento do Ato Único Europeu (1986). Foi também implementada uma Política Agrícola Comum para evitar concorrências com mercadorias oriundas de outros Estados não membros da Comunidade Europeia. Inexistia uma base jurídica relativa ao meio ambiente no ato constitutivo da Comunidade Econômica Européia até o advento do Ato Único que entrou em vigor em 1987 para introduzir a noção de proteção do meio ambiente no tratado de Roma.

Frente às medidas ambientais divergentes adotadas pelos Estados-membros suscetíveis de prejudicar a livre circulação de mercadorias, tornou-se imperioso harmonizar as diversas normas ambientais nacionais para uma política comum de meio ambiente no âmbito comunitário.

É nesse contexto do Direito Comunitário com relação ao meio ambiente que se deve abordar a legislação ambiental espanhola à luz do Direito Europeu Ambiental no tocante à questão da responsabilidade civil por danos ambientais.

Daí a necessidade de analisar e interpretar a Diretiva 2004/35 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril de 2004, relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais.

Urge salientar que as diretivas e os regulamentos são componentes do corpo normativo do Direito da União Européia. De conformidade com a sua aplicação no âmbito comunitário,

As directivas (sic!)europeias fixam os objetivos a atingir pelos Estados-Membros, delegando nestes a escolha dos meios para o fazer e podem ter como destinatários um ou vários Estados-membros ou a totalidade destes. Para que os princípios estabelecidos nas directivas (sic!) produzam efeitos ao nível do cidadão, o legislador nacional tem de adoptar (sic!) um acto (sic!) de transposição para o direito nacional dos objetivos definidos na directiva (sic!).7

Quanto à sua aplicabilidade e incorporação no ordenamento jurídico na-cional dos Estados-Membros,

7 O que é uma directiva? Disponível em: http://ec.europa.eu/eu_law/directives/directives_pt.htm Acesso em: 28 maio 2014.

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As directivas (sic!) prevêem uma data limite para serem transpostas para o direito nacional: os Estados-Membros dispõem, para a transposição, de uma margem de manobra que lhes permite ter em consideração as especificidades nacionais. A transposição deve ser efetuada no prazo estabelecido na directiva (sic!).8

Importante ressaltar que a diretiva vem reforçar o projeto comum de integração e de harmonização da legislação e, de acordo com o Direito Comunitário, pode se afirmar que “as diretivas são utilizadas para harmonizar as legislações nacionais, nomeadamente com vista à realização do mercado único (por exemplo, as normas relativas à segurança dos produtos).”9

Partindo de uma constatação relativa à existência de “muitos sítios contami-nados que suscitam riscos significativos para a saúde, e a perda da biodiversidade”10, bem como a falta de ação resultando no “acréscimo da contaminação e da perda da biodiversidade no futuro”11, e, considerando a efetividade da prevenção e repara-ção de danos ambientais “mediante a aplicação do princípio do poluidor-pagador, previsto no Tratado”, a diretiva em tela, objetiva responsabilizar financeiramente o “o operador cuja actividade (sic) tenha causado danos ambientais ou a ameaça iminente de tais danos, a fim de induzir os operadores a tomarem medidas e a desenvolverem práticas por forma a reduzir os riscos de danos ambientais.” (UNIÃO EUROPEIA, 2004)12

No entendimento da mesma Diretiva 2004/35, (4), “Os danos ambientais incluem igualmente os danos causados pela poluição atmosférica, na medida em que causem danos à água, ao solo, às espécies ou aos habitats naturais protegidos.”

Desse modo, recomenda-se que a decisão relativa à reparação dos danos am-bientais leve em conta as condições locais, sem olvidar que tanto a reparação como a prevenção devem estar em “consonância com o princípio do desenvolvimento sustentável”, assim como faz jus o parágrafo 2º da aludida Diretiva.

8 Idem.9 Idem.10 Cf. Preâmbulo da Diretiva 2004/35.11 Idem.12 Cf. Diretiva 2004/35, (2).

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Como claramente se observa, a Diretiva em tela, para evitar qualquer am-bigüidade relativa à boa interpretação e à aplicação da noção de danos ambientais oriunda de outra legislação comunitária relevante, ressalta a importância de utilizar “critérios comuns e promover uma aplicação uniforme.” (UNIÃO EUROPEIA, 2004)13

Atento a isso, surge na Diretiva 2004/35, em seu artigo 7º, 1, a determinação de, os operadores identificarem “potenciais medidas de reparação e apresenta-las à autoridade competente, para aprovação (...).” Cabe-lhe, nesse caso, “decidir das medidas de reparação a aplicar, nos termos do Anexo II, se necessário, com a cooperação de operador em causa.” (UNIÃO EUROPEIA, 2004)14

Ao tomar essa decisão, a autoridade competente deve atender, nomeadamente, à natureza, à extensão e à gravidade das diversas situações de dano ambiental em causa, bem como às possibilidades de regeneração natural. Os riscos para a saúde humana também devem ser tomados em consideração.” (UNIÃO EUROPEIA, 2004)15

Importa também destacar que

Em relação aos danos ambientais, a presente directiva (sic) deve aplicar-se a atividades (sic) ocupacionais que apresentem riscos para a saúde humana ou o ambiente. Essas atividades (sic) devem, em princípio, ser identificadas por referência à legislação comunitária pertinente que prevê requisitos regulamentares em relação a certas atividades (sic) ou práticas consideradas como suscitando um risco potencial ou real para a saúde humana ou o ambiente.” (UNIÃO EUROPEIA, 2004)16

Oportuno destacar, consoante ao que já foi descrito quanto à prevenção e reparação de danos ambientais, a Espanha, sendo um Estado-Membro da União Europeia, está adstrita ao controle da aplicação do direito da União Europeia, inclusive o Direito Europeu do Meio Ambiente, tendo em vista a utilização de critérios comuns e a promoção de uma aplicação uniforme da Diretiva.

13 Cf. Diretiva 2004/35, (5).14 Cf. Diretiva 2004/35, art. 7º, 1.15 Cf. Diretiva 2004/35, art. 7º, 316 Cf. Diretiva 2004/35, Preâmbulo, (8).

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Percebe-se que não existe colisão de leis ou conflitos de leis no espaço entre a legislação comunitário e a legislação nacional espanhol. À luz da politica comunitária relativa ao meio ambiente e, sobretudo, aos danos ambientais e a responsabilidade civil ambiental, a Espanha, enquanto Estado-Membro da União Europeia, assegura, de acordo com a Diretiva 2004/35, a aplicação da responsabilidade relativa à prevenção e à reparação dos danos ambientais.

Ademais, o art. 16º da supramencionada Diretiva, destaca a relação com o direito nacional, uma vez que a mesma

(...) não impede os Estados-Membros de manterem ou adoptarem (sic) disposições mais estritas em relação à prevenção e à reparação de danos ambientais, incluindo a identificação de outras atividades (sic) a sujeitar aos requisitos de prevenção e reparação da presente directiva e a identificação de outros responsáveis.”

Além do art. 45, da Constituição da Espanha que reconhece aos cidadãos o direito de desfrutar de um meio ambiente adequado como condição in-dispensável para o desenvolvimento da pessoa, bem como a obrigação de utilizar racionalmente os recursos naturais e a conservá-los, nota-se a Lei 26/2007, como o marco normativo espanhol no tocante à responsabilidade civil por danos ambientais e a conservar a natureza sob pena de reparar os danos causados, sem prejuízo às sanções administrativas e penais. A responsabilidade ambiental é de caráter objetivo e ilimitado baseado nos princípios de prevenção e o de que “quem contamina paga.”

Tal dispositivo legal espanhol contempla os princípios do meio ambiente da União Europeia, tais quais, os princípios da precaução e da prevenção, de quem contamina, paga (repara), garantindo a restauração efetiva, a garantia financeira da responsabilidade ambiental.

Observa-se, outrossim, quanto à execução, que a diretiva 2004/35 dá margem aos Estados-Membros de “pôr em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva (...), bem como “comunicar à Comissão o texto das principais disposições de direito interno que aprovarem nas matérias reguladas” pela mesma.

Ressalta-se, no entanto, que a aplicação da Diretiva está vinculada às ativi-dades profissionais que venham a causar danos ou uma ameaça iminente de danos,

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no sentido de uma probabilidade suficiente que ocorra um dano ambiental em um futuro próximo. Nesse caso, a responsabilidade é objetivo pelos danos ou pela ameaça de danos que a atividade do operador possa causar a água, ao solo e às espécies e habitats naturais protegidos como estipulado em anexo II relativo à reparação dos danos ambientais e cujo objetivo da reparação primária é restituir os recursos naturais e/ou serviços danificados ao estado inicial ou aproximá-los desse estado.

Vale salientar que, além da reparação primária, existem também as reparações complementar e compensatória enquanto se aguarda a reparação em um sítio alternativo.

Cumpre registrar, contudo, que o poder para determinar a importância dos danos causados para serem considerados significativos é competência de cada Estado-Membro da União Europeia e se, os mesmos, podem afetar a saúde humana.

6. a necessidade da construção de uma teoria de res- ponsabilidade civil ambiental que promova o de-senvolvimento sustentável

Em um mundo em constância transformação, parece um paradoxo promo-ver, de um lado, um nível elevado da proteção do meio ambiente e da promoção de qualidade de vida e, do outro promover o progresso econômico e social, bem como assegurar um patamar elevado de emprego e o desenvolvimento equilibrado e sustentável.

O grande desafio atual é como cuidar, de um lado, do meio ambiente em uma sociedade assentada na promoção de macroeconomia cuja expansão fica, hodiernamente, vinculada à exploração de recursos naturais e à poluição do meio ambiente e, do outro, como proporcionar à coletividade a qualidade de vida tão almejada, pensando ao mesmo tempo na proteção do meio ambiente e no desenvolvimento econômico e sustentável, na prevenção e reparação de danos ambientais “em consonância com o principio do desenvolvimento sustentável.”

A responsabilização financeira do operador causador de danos ou ameaça iminente de danos por suas atividades é o princípio fundamental da Diretiva

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2004/35 no intuito de “induzir os operadores a tomarem medidas e a desen-volverem práticas por forma a reduzir os riscos de danos ambientais.”

Visa-se, na realidade, a proteger os interesses difusos, especialmente o direito à vida, sendo, nesse caso, o meio ambiente um direito humano que clama por uma proteção eficaz frente a qualquer atividade ocupacional ou econômica de caráter público ou privado, lucrativo ou não, suscetível de causar riscos para a saúde humana ou o ambiente, ou ainda causar danos às espécies e habitats naturais protegidos.

Defendendo o meio ambiente como direito à vida, Beatriz Souza Costa (2010, p. 114) observa:

É patente que o direito ao meio ambiente é essencial à sadia qualidade de vida. Com essa visão, deve ser considerado hoje um direito humano em qualquer lugar do mundo e sua preservação deve ser viabilizada pelo direito. (...) Necessita-se de regras coercitivas para preservar a herança humana. A responsabilidade civil objetiva, atualmente, impõe ao poluidor ou degradador a incumbência de recuperar o meio ambiente a seu status quo antes ou de fazer pagamento pecuniário em prol da natureza. O importante é que o meio ambiente não fique indene. (COSTA, 2010, p. 114)

Nota-se, sem embargo, que a proteção do meio ambiente é, doravante, uma preocupação de todos e exige, no entender de Leonardo Boff (1999, p. 124), indignado pelo comportamento de muitos empresários pela desumanização da sociedade industrial, uma convivialidade.

O que se entende por convivialidade? Entende-se a capacidade de fazer conviver as dimensões de produção e de cuidado, de efetividade e de compaixão; a modelagem cuidadosa de tudo o que produzimos, usando a criatividade, a liberdade e a fantasia; a aptidão para manter o equilíbrio multidimensional entre a sociedade e a natureza, reforçando o sentido de mútua pertença. (BOFF, 1999, p. 124)

Para Boff (1999, p. 124), “depois de termos elaborado a economia dos bens materiais, importa desenvolver, urgentemente, a economia das qualidades humanas.”

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As politicas econômicas e sociais devem ser acompanhadas por políticas de meio ambiente relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais, nos moldes da Diretiva 2004/35. Afinal, indaga Boff: “O grande capital, infinito e inesgotável, não é porventura o ser humano?”

Percebe-se que a responsabilidade ambiental é, antes de tudo, uma questão de conscientização e educação do próprio ser humano frente ao meio ambiente agredido em nome do crescimento econômico, enquanto, parte desse, pois, como assinala José Eli da Veiga (2010, p. 50), “o desenvolvimento terá pernas curtas se a natureza for demasiadamente agredida pela expansão da economia, que é um subsistema altamente dependente da conservação da biosfera.”

Nesse caso, resta à humanidade construir uma teoria de responsabilidade ambiental, mudando de paradigma no tocante à aplicação do princípio de poluidor-pagador, para uma ética do humano, nos dizeres de Boff, abarcada na solidariedade planetária, evitando-se, pata tanto a irresponsabilidade degrada-dora do ser humano racional e irracional pela depredação do meio ambiente, uma vez que preservar os recursos naturais para as gerações vindouras, não é apenas uma questão de sustentabilidade, mas também uma questão de justiça e de equidade, bem como uma imperatividade ético-moral, pois saber cuidar é um comando que deve nortear o ser humano em seu agir comportamental para com o meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem salienta a Constituição da República de 1988, em seu art. 225, sendo “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” (BRASIL, 1988).

7. conclusões

Conclui-se que o Direito Ambiental brasileiro adota a Responsabilidade Objetiva em matéria ambiental, isto é, não se faz necessário a demonstração de dolo ou culpa para que haja responsabilização civil.

Não obstante, não existe norma admitindo ou não a possibilidade do rompimento do nexo causal como instrumento de se evitar a responsabilização civil.

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Com efeito, a doutrina jurídica brasileira se divide pela adoção da Teoria do Risco Integral, sendo esta defensora da tese da impossibilidade de se admitir excludentes de responsabilidade (fortuito, força maior e fato exclusivo de terceiro) ou pela adoção da Teoria do Risco Criado, esta última sustentando a possibilidade da evitação da condenação pela demonstração de tais excludentes.

Na Espanha a Responsabilidade somente será Objetiva se a atividade daquele que degradou estiver listada no Anexo III da Lei 26/2007, caso contrário somente haverá condenação se o dano foi decorrente de dolo ou culpa.

Não obstante, ainda que a Responsabilidade Objetiva seja admitida, poderá ser demonstrada as excludentes de responsabilidade previstas na Lei, adotando-se, portanto a Teoria do Risco Integral.

Para os autores, o sistema espanhol é mais evoluído que o brasileiro na medi-da em que existe norma específica tratando da Responsabilidade Civil Ambiental de forma detalhada e relativamente mais moderna que a brasileira. Todavia, não podemos admitir, em nenhuma hipótese a Responsabilidade Civil Subjetiva em matéria ambiental, uma vez que, comumente, a demonstração de dolo ou culpa é absolutamente impossível quando tratamos de dano ao meio ambiente.

Sugere-se, portanto, que a Responsabilidade Civil seja Objetiva em matéria ambiental, todavia, adotando a Teoria do Risco Criado.

Fundamenta-se a assertiva anterior no Princípio do Desenvolvimento Sus-tentável que exige o incentivo ao desenvolvimento econômico sem, contudo, jamais de olvidar do Meio Ambiente ecologicamente equilibrado.

Diante do exposto vimos que o ordenamento jurídico brasileiro admite, expressamente, a Teoria da Responsabilidade Objetiva em sede de matéria ambiental, dispensando, pois, a demonstração de culpa ou dolo do réu para que este seja condenado a indenizar ou reparar o dano decorrente de sua atividade.

Observamos que embora a responsabilidade seja objetiva, a doutrina e jurisprudência divergem quanto à adoção da Teoria do Risco Integral ou do Risco Administrativo nas demandas indenizatórias por dano ao meio ambiente, vale dizer, ora admitindo que o fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima e culpa exclusiva de terceiro elidam a responsabilidade (Risco Criado) ora afirmando que não (Risco Integral).

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sistema constitucional tributário brasileiro: inflexões sobre assimetrias estruturais, antinomias normativas

e ambiguidade hermenêutica jurisprudencial

Antônio Carlos Diniz Murta1

Demetrius Nichele Macei2

Resumo

O trabalho se propõe a analisar não só as impropriedades do sistema constitucional tributário, sob o aspecto da técnica legislativa, mas, sobretudo o agravamento dessas impropriedades por parte das decisões da Suprema Corte do Brasil. O artigo se desenvolve por meio e exposição, por amostragem, de teses que foram objeto de legislação imprópria, e o Supremo Tribunal Federal igualmente não contribuiu para a sua melhoria, por meio de interpretação apropriada, mas sim trouxe ainda mais insegurança jurídica ao contribuinte brasileiro. O artigo aborda três situações: A substituição tributária progressiva, cuja Constituição Federal acabou por legitimar o chamado “fato gerador presumido”. Em seguida, aborda-se a polemica sobre a base de cálculo das taxas e finalmente o tema da aplicação do Princípio da Capacidade Contributiva ao imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA).

Palavras-chave

Sistema Constitucional Tributário; Assimetrias; Exegese.

Resumen

El estudio tiene como objetivo analizar no sólo las insuficiencias del sistema constitucional tributario, bajo el aspecto de técnica legislativa, sino sobre todo

1 Doutor em direito pela UFMG / Professor Titular - Universidade FUMEC.2 Doutor em direito pela PUC/SP / Professor do PPGD – Centro Universitário Curitiba

UNICURITIBA.

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agravado por las decisiones de la Corte Suprema de Brasil. El artículo desarrolla a través de la exposición por muestreo de las tesis que fueron objeto de una legislación inadecuada, y la Corte Suprema tampoco contribuyó a su mejora a través de una interpretación adecuada, pero trajo más incertidumbre legal a los contribuyentes brasileños. El artículo aborda tres situaciones: la sustitución tributaria progresiva, cuya Constitución federal finalmente ha legitimado el denominado “hecho imponible presunto” A continuación se analiza la controversia sobre la base de cálculo de las tasas y, finalmente, la cuestión de la aplicación del Principio de Capacidad contributiva al impuesto sobre la propiedad de vehículos de motor (IPVA).

Palabras clave

Sistema Constitucional Tributario; Asimetrías; Exégesis.

1. introdução

O fundamento de toda tributação brasileira se encontra no texto constitu-cional. Isto não representa novidade par ninguém. Mas, de forma inversa do que seria esperado, o texto constitucional, pelo menos no que se concebe quanto a intrincada e complexa teia normativa, conhecida como Sistema Tributário Nacional, não se sabe. se feito de afogadilho, precipitadamente ou mesmo sem a participação de tributaristas, revelou-se mal engendrado, prolixo, assistemático e muitas vezes confuso ou obscuro;

Tal constatação dificulta sobremaneira o ensino do direito tributário nas escolas de direito, a apresentação simplificada de seu teor ao público leigo e, sobretudo, sua aplicação pelo Poder Judiciário, autorizando, rotineiramente, decisões cujo lastro motivacional reside, muitas vezes, em juízo de valor cuja percepção se dá a partir de critérios ausentes do texto constitucional ou mesmo dissonantes de todo arcabouço teórico do direito tributário.

Não só o Poder Legislativo, quando, via assembleia constituinte, da concepção do texto constitucional vigente, incorreu em vários equívocos na sua redação original; e, posteriormente, ao contrário de se redimir de seus conhecidos e notórios erros redacionais, sejam na composição semântica

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e axiológica de seus artigos, sejam no ordenamento e posicionamento dos artigos componentes do Sistema Tributário, apenas agravou, se não em todas as oportunidades que teve (muitas coincidentes com a vontade do executivo em face de necessidade de caixa ou em razão de decisão do Supremo Tribunal Nacional - STF), em várias ocasiões, todo o entendimento e efeitos de seu substrato estrutural.

Isto se viu em várias emendas constitucionais, seja, dentre outras, aquela que criou a denominada Contribuição de Iluminação Pública, seja aquela que constitucionalizou – pelo risco crescente no Judiciário – substituição tributária progressiva.

No entanto, o que causa maior e considerável apreensão da comunidade jurídica e de toda a sociedade é ser, frequentemente, surpreendida com a exegese do Supremo Tribunal Federal – STF sobre os casos concretos que lhe são carrea-dos para julgamento.

Afere-se que aquela corte admite, passivamente, efetivos ataques à sua juris-prudência, desde que revestidos, de forma simulada para aparentar novidade, como emendas constitucionais, como nos casos da confirmação da consti-tucionalidade da progressividade fiscal do IPTU ou mesmo da constitucionali-dade da Contribuição de Iluminação Pública, por ser tributo originalmente cobrado como taxa, vocábulo simplesmente alterado para contribuição, ficando tudo como antes no quartel de Abrantes.

Não temos há muito tempo tributarista no STF, se limitando seus últimos e atuais integrantes a se aventurarem na interpretação tributária, trazendo mais escuridão do que luz na busca de dar a Constituição Federal melhor interpretação calcada não só na dinâmica e referência científica do direito tributário como, noutro giro, vedar ao executivo, através de subterfúgios e remendos constitucionais, afrontar suas (raras) decisões contrárias ao abuso do Poder de Tributar.

Nossa exposição, ressalta-se, por sua limitação formal, apenas apresenta a título de ilustração algumas hipóteses que entendemos referendar e situar, tanto a imperfeição normativa constitucional, quanto à sua potencialização pelos doutos Ministros do STF.

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2. substituição tributária progressiva. improprieda-de de sua alocação como limitação ao poder de tri-butar

2.1. limitações constitucionais ao poder de tributar

Os Princípios Constitucionais revelam normas de garantia dos direitos individuais e coletivos, expressos, inclusive, no próprio preâmbulo da Constitui-ção Federal. O texto constitucional de 1988 consagrou, como não poderia deixar de fazê-lo, os princípios tradicionais da história tributária brasileira, que se sucedem, com suas vicissitudes e modificações terminológicas, desde os primórdios da 1ª Constituição, ainda sob o Império brasileiro.

Não obstante as dificuldades de estabelecer a amplitude da definição de princípio, mormente sua repercussão na seara tributária, sua leitura e aplicação se matiza conforme a ótica de seu intérprete, conforme ensina Paulo de Barros Carvalho, ao afirmar que:

O vocábulo “Princípio” porta, em si, uma infinidade de acepções, que podem variar segundo os valores da sociedade num dado intervalo da sua história. No direito, ele nada mais é do que uma linguagem que traduz para o mundo jurídico-prescritivo, não o real, mas um ponto de vista sobre o real, caracterizado segundo padrões de valores daquele que o interpreta.3

Na verdade poderíamos defender o entendimento que qualquer princípio, implícito ou explícito, expresso em lei ordinária (fato raro) seja no texto constitucional (hipótese mais provável), deve servir como norte ao intérprete de um caso jurídico concreto que lhe é apresentado, uma vez que seria o ponto de partida para a apreensão e compreensão do conjunto ou do todo a ser apreciado e, finalmente, interpretado, conforme visão de Sacha Calmon Navarro Coêlho, in verbis:

O que caracteriza os princípios é que não estabelecem um comportamento específico, mas uma meta, um padrão. Tampouco exigem condições para que se apliquem. Antes, enunciam uma razão para a interpretação dos casos. Servem, outrossim, como pauta para a interpretação das leis, a elas se sobrepondo.

3 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2 ed São Paulo: Noeses, 2008.pg. 248.

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Pois bem, quando o princípio é constitucional, a sua aplicação é obrigatória. Deve o legislador acatá-lo, e o juiz, adaptar a lei ao princípio em caso de desrespeito legislativo...omissis...4

Em matéria tributária, os princípios visam, exclusivamente, restringir o poder estatal de tributar; com isso, assegurando os direitos fundamentais do sujeito passivo à segurança, ao bem-estar, planejamento familiar, à propriedade, atividade econômica e o próprio desenvolvimento sustentável do País, dentre outros. Nesta esteira, exempli gratia, foi instituído, o princípio da legalidade dos tributos que, por sua vez, influi na anterioridade e na anualidade. A eficácia desses princípios é extra-lege, sendo assim, não dependem de qualquer lei ordinária que os regulamente, podendo ser invocados a qualquer tempo. E mais, por serem cláusulas pétreas da Constituição, esses princípios não podem ser alterados nem mesmo por Emenda Constitucional.5

Já Hugo de Brito Machado cria um divisor de águas quando estabelece a possibilidade de algumas normas insertas no Sistema Tributário Nacional serem, efetivamente, cláusulas pétreas e outras, por simplesmente se inserirem em um contexto mais abrangente, quando ensina que:

Assim, como o direito é na verdade um sistema de limites, todas as normas que integram a denominada legislação tributária, em sentido amplo, são limitações ao exercício do poder impositivo. E todas as normas que, na Constituição, tratam da tributação, constituem limitações constitucionais ao poder de tributar. Tomada, assim, a expressão limitações constitucionais ao poder de tributar, nesse sentido abrangente, certamente não se pode dizer que essas limitações constituem cláusulas pétreas. Mas existem normas sobre tributação que, sendo limites, como são, dizem respeito aos direitos fundamentais.6

4 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pg. 93.

5 Artigo 60/CF – A constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direito e garantias fundamentais. Artigo 150/CF – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à

União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios6 In. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Limitações ao poder impositivo e segurança jurídica –

Pesquisas tributárias. Nova série :11, pg. 113.

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Abstraindo entendimentos distintos acerca de quais as limitações ao poder de tributar poderiam ser consideradas cláusulas pétreas e enfatizando a importância dos princípios na senda tributária, Luciano Amaro ressalta que

... alguns dos chamados princípios tributários não são, como dizíamos, meros enunciados gerais carentes de normatização posterior para acentuar sua concretude; são já proposições que atingem um grau praticamente exaustivo de normatividade. Por exemplo, o princípio da anterioridade é uma regra de precisão matemática; a lei ou foi ou não foi editada até o último dia do exercício, o que se apura segundo critério puramente cronológico, que já decorre do próprio enunciado constitucional do dito “Princípio”, sem que haja necessidade de uma norma que dê contornos mais nítidos à proposição7.

Por sua vez, ao contrário dos Princípios calcados no trinômio legalidade/anterioridade/ irretroatividade, a Constituição Federal nos apresenta princípios cuja exegese demanda do intérprete interlocução e ponderação mais cuidadosa considerando, especialmente, sua interpretação literal, descolada de uma situação concreta qualquer, cuja conclusão muitas vezes é inane.

Vejamos, por exemplo, o Princípio da isonomia tributária8. Este princípio nada mais nada menos é o princípio da igualdade – inserto no artigo 5º, inciso I, do texto constitucional – aplicado no campo das relações jurídico- tributárias.

Mas como dimensionar esta igualdade nestas relações? Tratamos neste campo do direito de inúmeras exações tributárias, derivadas de vários entes políticos autônomos cujo espectro de irradiação se volta para incontáveis hipóteses ou potencialidades tributáveis cujas respectivas leituras podem criar dificuldade das mais diversas para o intérprete da lei cotejado o caso concreto.

7 AMARO, Luciano. Direto tributário brasileiro. 12ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, pg. 110.

8 Artigo 150/CF – Sem prejuízo...omissis...é vedado ....omissis: II- instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente,

proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos..

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O mesmo raciocínio se voltaria para a interpretação do princípio que veda a limitação do tráfego por meio de tributos.9 Nesta limitação ao poder de tributar nos parece que o legislador constituinte deixou claro que a liberdade de ir e vir ou mesmo circulação jamais poderá ser cerceada ou mitigada por imposição tributária, seja ela de pessoas ou bens; entretanto a interpretação deste dispositivo constitucional exige o conhecimento dos vários e possíveis aspectos materiais de fatos geradores que poderiam, caso não restringidos, alcançar e impedir a mobilidade nacional.

Já em relação ao Princípio que veda a utilização do tributo com efeito de confisco nos deparamos com sutilezas terminológicas de difícil depuração.

Todo tributo é, na verdade, um confisco de parte da propriedade do sujeito passivo ou de quem ele substitua. O legislador não pretendeu vedar este tipo de confisco que continua valendo e prevalecendo nas relações entre quem paga (a sociedade) e quem recebe (o Estado).

O desiderato do legislador constituinte foi estabelecer vedação para um padrão de confisco que ultrapassasse determinados limites de, digamos, razoabilidade.

Neste sentido, focados no escopo dos Princípios que limitam o Poder de Tri- butar, mesmo que imaginássemos, por descuido ou desatenção, ter o legislador constituinte derivado (ou mesmo originário), na alteração ou formatação da composição de diretivas protetivas, dirigidas ao sujeito passivo tributário, es-truturadas no sentido de proteger ou blindá-lo contra o abuso do Poder Tributário, não se pode conceber que, através da Emenda Constitucional nº. 3, de 1993, as denominadas “Limitações ao Poder de Tributar” pudessem ser ampliadas, através da criação de do parágrafo 7º, do artigo 150, possibilidade de instituição, via lei ordinária, de substituição tributária, com fato gerador presumido, onde o substituto tributário – responsável por substituição – se obrigasse a pagar tributo por “presunção”

Sabedores que o pagamento do tributo deveria – até então – ocorrer quando da constatação (fato impositivo) da hipótese de incidência - fato gerador in abstrato da obrigação tributária - e, nunca, sob a projeção de sua possível concretude.

9 Artigo 150/CF – Sem prejuízo...omissis....é vedado...omissis: V- estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais

ou intermunicipais, ressalvado a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público.

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A denominada Substituição Tributária Progressiva, consagrada neste dis-positivo, já foi confirmada como constitucional (não se sabendo o real significado disso já que o Princípio da Legalidade se viu derradeiramente maculado) pelo STF. Entretanto, sabedores que a cobrança antecipada de um tributo, antes da possível, mas incerta ocorrência do respectivo fato gerador, nada, absolutamente, tem (mesmo que a benefício da fiscalização sobre impostos sobre o consumo) de limitação ao Poder de Tributar; e sim, justamente, o oposto, na medida em que alberga exação sem fato (mesmo que possível e sujeito a ressarcimento); sinalizando posterior expansão da tributação sob presunção (imagina-se a presunção de renda, propriedade, etc.) impinge ao sujeito passivo insegurança e totalitarismo tributário e jamais, como se enquadrou, de forma, inclusive, desrespeitosa e sarcástica, como limitação ao Poder de Tributar.

Nada se limita com dispositivo. O que se faz que expandir o arbítrio do Estado e ferir de morte do Princípio da Legalidade cuja base de sustentação residiria na cobrança do tributo apenas na sequência do implemento, real e concreto, de seu respectivo fato gerador. Por meio das novas perspectivas constitucionais traça-se interpretação constitucional, buscando a efetividade aproximada da verdade e da realidade constitucional.

3. base de cálculo das taxas e impostos. vedação de sua identidade nos termos do artigo 145, & 2º, do texto constitucional. as súmulas 19 e 29 do supremo tribunal federal

3.1. base de cálculo dos impostos

Uma vez sabedores que a base de cálculo de um tributo é o indicativo indispensável para aferição não só de seu fato gerador como, na sequência, o próprio valor do tributo a recolher, vejamos como, então, extrair da denominada espécie tributária imposto, o referencial essencial de sua base de cálculo.

Ao contrário das taxas ou mesmo da contribuição de melhoria, cuja natureza jurídica como espécie tributária é inegável e, também, por serem classificados como tributos de competência comum10 dos entes federados, os impostos são

10 Muito embora sejam de competência comum, a eventual instituição de contribuição de melhoria dependerá de valorização imobiliária privada causada por obra pública. Neste

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enumerados taxativamente11 (numerus clausus) e o exercício de sua competência está rigidamente definido conforme plano de partilhas constitucionalmente previsto.

A União Federal, a teor do artigo 153, da CF, poderia instituir impostos sobre importação, exportação, renda, operações financeiras, propriedade imobiliária rural, produtos industrializados e, finalmente, grandes fortunas.

Por sua vez o Estado Membro, conjuntamente com o Distrito Federal, a teor do artigo 155, da CF, poderia instituir imposto sobre transmissão, mobiliária ou imobiliária, causa mortis e doação, propriedade de veículo automotor e, finalmente, circulação mobiliária e certos serviços como de comunicação e transportes.

Derradeiramente os Municípios, a teor do artigo 156, da CF, poderiam ins-tituir impostos sobre transmissão imobiliária, por ato oneroso; serviços, conforme hipóteses previstas em lei complementar e, finalmente, sobre propriedade imo-biliária urbana.

Percebe-se que, sem embargo da divisão e classificação feitas pelo Código Tributário Nacional, os impostos previstos tem, genericamente, como estrutura econômica, a renda (IR ou IOF), consumo, através da transmissão mobiliária por ato oneroso (ICMS,IPI, II E IE) ou mesmo prestação se de serviço (ICMS ou ISS), transmissão imobiliária, por ato oneroso ou gratuito (ITCD ou ITBI) e o patrimônio (IPTU, ITR, IGF e IPVA).

Em suma todos os impostos descritos perpassam uma demonstração, mínima que seja, de capacidade econômica ou contributiva, independentemente de qualquer ato ou ação do Estado em favor ou em relação ao respectivo sujeito passivo da obrigação tributária. Tem-se em mira símbolos que denotam aptidão para pagar tributo. No caso pagar impostos. Quem tem renda (sem embargo neste caso e nos

sentido somente o ente federado responsável, direta ou indiretamente, pela referida obra terá competência legislativa tributária co-respectiva por sua instituição. No mesmo contexto podemos conduzir as taxas (seja qual for a modalidade em discussão). Hipotética instituição de taxa dependerá, como precedente, de competência administrativo-material, outorgada pela Constituição ao ente federado a, por exemplo, prestar serviço ou exercer Poder de polícia.

11 Sem embargo do rol de impostos ser taxativo no texto constitucional não podemos olvidar a possibilidade – ainda não exercida sob a égide do texto constitucional de 1988 – de exercício, privativo pela União Federal, da conhecida competência residual e a extraordinária conforme prevê o artigo 154 e seus incisos.

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demais de eventuais imunidades ou isenções em razão de condição socioeconô-mica), consome ou tem patrimônio, revela, aos olhos do Estado tributante condição de pagar tributo.

Em outras palavras, quando identificamos um imposto qualquer, devemos, se respeitada minimamente a sua natureza jurídica e ratio legis, mormente a vista da previsão hialina do dispositivo constitucional em comento, cuja matriz axiológica é taxativa no sentido de ter referencial distinto das taxas, constatar fundamento matriz calcado em demonstração de riqueza ou capacidade financeira para arcar com o pagamento de tributo independente do que o Estado possa lhe propiciar imediata e diretamente.

3.2. base de cálculo nas taxas

Compulsando a doutrina ou mesmo a jurisprudência correlata, nos parece haver um relativo senso comum quanto à dosimetria, aferição ou dimensão da base de cálculo das taxas.

Tratando-se de um tributo tido como vinculação à uma ação estatal, seja ela prestacionai (no caso daquelas de serviço), sejas, simplesmente uma atividade administrativa fiscalizatória (exercício do poder de polícia), tendo-se em vista ter. num caso ou no outro, caráter compensatório, ressarcitório ou meramente indenizatório, o fundamento para a quantificação do valor a pagar, pelo sujeito passivo elencado na lei instituidora, deverá, inapelavelmente, perpassar, o denominado “custo” da atividade estatal.

Neste sentido ensina Carrazza;

Portanto, a taxa de serviço deve ter por base de cálculo o custo ainda que aproximado, do serviço público prestado ou posto à disposição do contribuinte. Do mesmo modo, a lei que instituir a taxa de polícia deverá tomar por base de cálculo do tributo “um critério proporcional às diligências condicionadoras dos atos de polícia, já que estes nenhum conteúdo econômico possuem. Logo, a base de cálculo da taxa de polícia deve levar em conta o custo das diligências necessárias à prática do ato de polícia. Esta é a sua base de cálculo possível, constitucionalmente exigida.12

12 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros editores, 1993, pg. 282.

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Partindo desta definição da base de cálculo, conhecido e repetido quase sempre pelos doutrinadores, não haveria qualquer espaço ou oportunidade de apresentar uma nova perspectiva sobre a questão, já sedimentado estaria sua delimitação teórica. Entretanto, acreditamos, em face da realidade social, política e econômica nacional conjugada com as inúmeras taxas existentes do direito positivo, não importando em qual esfera político-federativa e, finalmente, com a jurisprudência sobre a matéria, este conceito, objetivo e claro, não resiste mais a críticas mais aprofundadas.

Interessante notar que mesmo a doutrina, tradicional e arraigada de previsibilidade teórica, partindo do princípio que a medida de valor monetário da taxa (prestação pecuniária) equivaleria ou corresponderia ao dispêndio estatal, apresenta controvérsias quanta à existência de base de cálculo ou mesmo alíquota para as taxas.

Geraldo Ataliba defendeu que, para algumas taxas, não haveria alíquota:

As taxas nem sempre tem alíquotas. Na verdade, não se trata de “atribuição ao estado pela lei, de parcela de riqueza alguma”. Esta explicação não é aplicável às taxas, cujo princípio informativo é totalmente diverso: decorre da Constituição, em seu art. 145, inc. II, que o princípio regente da taxa é a remuneração.13

Por sua vez Hugo de Brito Machado defende que apenas, excepcionalmente, haveria base de cálculo ou alíquota para as taxas, chegando a afirmar hipóteses de taxas onde haja a aplicação apenas de alíquotas:

As taxas geralmente são estabelecidas em quantias prefixadas. Não se há de falar, nestes casos, de base de cálculo, nem de alíquota. Mas pode ocorrer que o legislador prefira indicar uma base de cálculo e uma alíquota. Pode ainda ocorrer que a determinação do valor da taxa seja feita em função de elementos como, por exemplo, a área do imóvel, como acontece com a taxa de licença para localização de estabelecimento comercial ou industrial. Nestes casos, é possível dizer-se que o cálculo é feito mediante aplicação de alíquota específica.14

13 Ob. cit., pg. 104. 14 Machado, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. São Paulo: Malheiros editores: 1998,

pg.. 329.

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Percebe-se, apenas a título de ilustração, que luminares do direito tributário brasileiro não se acertam quanto à existência, necessária, de alíquota e base de cálculo para as taxas.

No entendimento, a reboque da doutrina prevalente, é no sentido da exis-tência, indispensável e estrutural, tanto de um quanto do outro elemento na com-posição e integração econômico-material para desaguar no tributo a pagar.

Sabedores que, dentro da classificação dada aos tributos, nos deparamos com aqueles tidos como tributos variáveis, tendo como regra os impostos que exigem em sua quantificação composição da base de cálculo (referência de capacidade contributiva, como renda, consumo ou patrimônio) com a alíquota (via de regra percentual). A alíquota, enquanto percentual, será quase sempre fixa- com exceção nos impostos progressivos – no entanto, aplicada a uma base de cálculo mutante, crescendo ou decrescendo, haverá variação ou alteração no tributo a pagar. Denominar-se, também, este fenômeno de proporcionalidade conforme seja a dinâmica da base de cálculo correspondente. Se o valor do imóvel é maior, maior será a base de cálculo, maior será, portanto, o tributo a pagar. Tal raciocínio valeria, feitas as devidas adequações, para o valor da renda (IR ou das operações industriais ou comerciais - IPI e ICMS).

Já os tributos fixos, tendo a doutrina nos exemplificado tais hipóteses, sobretu-do quando nos deparamos com as taxas, são tributos que são tabelados ou cujos valores são, sem qualquer mudança numérica, são correspondentes a determinado ato ou fato. Esta descrição se adéqua perfeitamente a várias hipóteses de taxa onde o valor a pagar corresponde, de forma direta, a serviço a prestado ou disponível. Mas devemos atentar para outras inúmeras hipóteses onde a taxa terá uma faceta que demonstrará efetiva e nítida variabilidade. Tal constatação se dará na medida em que a dinâmica do serviço prestado ou mesmo o poder de polícia efetuado se mostre em maior volume ou frequência. Assim sendo o valor da taxa poderá ser fixo ou variável ficando a mercê das contingências de sua configuração jurídica.

Diante do quadro exposto, constatada a existência de tributos variáveis (impostos15 ou taxas) e fixos (taxas), entendemos, no caso das taxas, sempre

15 Não podemos olvidar que mesmo das hipóteses dos impostos, normalmente variáveis, sendo proporcionais e, eventualmente, progressivos, nos deparamos com a figura do ISS/QN

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ocorrer a base de cálculo e alíquota. Isto se dá pela necessidade intransponível de quantificar o valor a pagar a partir de elementos, definidos e esclarecidos pela doutrina, assecuratórios de efetivo valor a pagar nos moldes da lei tributária instituidora da taxa.

Vejamos, no caso da hipótese de taxa fixa. Os emolumentos cartoriais são um exemplo clássico disso. O STF há muito entende por sua natureza de taxa. Para dada ato do tabelião ou oficial de registro, pagar-se-á um valor respectivo informado expressamente em uma tabela criada, por lei, para isto. Se for o reconhecimento de firma, pagar-se-á x reais; se for autenticação de documento, pagar-se-á x reais; e assim por diante. Qual seria, então, a base de cálculo e alíquota nestes casos? Será apenas uma questão de correspondência entre o serviço e o valor cobrado pelo mesmo. Se o serviço é reconhecer firma, considerando ser este o fato gerador da taxa de serviço e o seu aspecto dimensível se espelhar nesta materialidade, a base de cálculo será justamente este ponto de partida: o reconhecimento de firma. No entanto, apenas isolar e identificar a base de cálculo não seria suficiente para os objetivos almejados. Teríamos, então, que buscar uma alíquota. Esta alíquota seria um valor, certo e determinado, previsto na respectiva tabela de emolumentos, correspondente ao serviço prestado (reconhecimento de firma). Em resumo, para cada serviço cartorial um valor associado em reais. O serviço hipotético faria as vezes de base de cálculo e o valor correspondente em reais faria as vezes de alíquota.

Já no caso das taxas tidas como variáveis, por se mostrarem proporcionais ao volume, densidade, dificuldade, frequência, interesse administrativo ou social ou até mesmo por exercer papel, que não é natural, mas não é proibitivo, de extra fiscalidade, poderíamos elencar hipóteses mais voltadas à taxa de polícia.

Na taxa de serviço, onde a fixação ou tabelamento de valores tem recepção natural por sua natureza, ou seja; para cada serviço x pago Y, a variabilidade não teria tanta pertinência como na taxa de polícia. A taxa de polícia é paga para sustentar um aparato fiscalizatório. Isto não se nega. No entanto, muitas vezes, a fixação em valores fixos desta taxa é contraproducente. Poder-se-ia pagar

fixo onde haverá uma tabela de valores a pagar conforme, por exemplo, sejam o número de profissionais de uma sociedade que preste serviços.

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X reais por um alvará de localização ou por uma vistoria veicular, mas como estabelecer, via pauta de valores, um engessamento de valores de taxa a pagar quando a sustentação da fiscalização se voltará para atividades de enorme impacto ambiental, social e econômico. Nestes casos valores fixos são impróprios. Deverá haver necessariamente mutabilidade quantitativa da taxa de polícia conforme seja maior ou menor o campo ou atividade fiscalizada. A aferição – variável – da taxa exigiria, outrossim, base de cálculo e alíquota. A base de cálculo não seria erigida conforme número de vezes ou frequência fiscalizatória da administração pública, ao exercer seu poder de polícia. Tal raciocínio se dá, sobretudo pelos nuances da atividade administrativa que depende não só do comportamento dos servidores públicos, mas também de dificuldades sazonais das mais variadas na realização de seu trabalho. Não se pode conceber, no âmbito do exercício – regular ou não – do poder de polícia, estabelecer-se, em todo universo fiscalizável tabelamento de valores. Por isso, a dinâmica da variabilidade.

E quais seriam, de fato, os critérios informadores da base de cálculo e alíquota nas hipóteses de taxas variáveis? Aí teríamos uma dificuldade, aparentemente, instransponível, para assentar a questão. Trataremos disto, com mais cuidado, em outro momento. Mas, para efeito de ilustração, poderíamos, a partir do entendimento do STF, sumulado, afirmar que elegeríamos um componente ou elemento da composição ampla de possível fato gerador de imposto, para firmar ou determinar o valor a pagar. Não haveria alternativas para sustentar a variabilidade das taxas. Porquanto haja movimento de consumo, faturamento, renda ou mesmo porquanto haja maior propriedade ou serviço privado prestado, haverá uma associação com valor de taxa a pagar (proporcional). O volume de circulação de bens poderia ser considerado, em uma empresa qualquer objeto de dada fiscalização (poder de polícia) a base de cálculo que, na sequência, corresponderia, a um valor em dinheiro (alíquota). Quanto maior o volume (base de cálculo), maior a alíquota (ou número de alíquotas). Esta questão pode ser das mais tormentosas dadas à proximidade desta equação da quantificação da taxa a pagar – mormente a identificação da base de cálculo – com a sistemática correntemente utilizada para os impostos onde, todos sabemos, por expressa vedação constitucional, não pode haver estrita correspondência.

Por todo exposto, ratificamos o entendimento que para todo tributo, vinculado ou não vinculado, variável ou fixo, haverá sempre base de cálculo e alíquota.

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3.3. possíveis limites da base de cálculo das taxas

Verificam-se várias controvérsias, mormente na jurisprudência, quando se discute a base de cálculo das taxas. Estas aporias teriam mais campo na jurisprudência por conta da doutrina – formada, sobretudo, por aqueles que pretendem, com todo o direito, vender seus serviços a potenciais clientes – direcionada, exclusivamente, a firmar o entendimento de que as taxas, quando da formação de sua base de cálculo, teriam como pressuposto, única e exclusivamente, o que se denomina, o custo estatal.

Neste sentido Humberto Ávila quando predica os requisitos determinantes da formação da base de cálculo das taxas:

a) Critério da equivalência: o valor da taxa deve manter uma relação pro-porcional com a atuação estatal, no sentido de que a atuação estatal au-mente na mesma proporção do aumento do elemento legal indicativo da atuação estatal;

b) Critério da cobertura geral de custos: as receitas totais auferidas pelo Estado, em cada período, pela cobrança da taxa não podem ultrapassar os custos totais decorrentes da atividade administrativa vinculada à ta-xa.16

Na mesma trilha nos dizia Geraldo Ataliba:

Efetivamente, se a h.i. da taxa é só uma atuação estatal, referida a alguém, sua base imponível é uma dimensão qualquer da própria atividade do estado: custo, valor ou outra grandeza qualquer (da própria atividade).17

No entanto, esta questão não nos parece tão pacífica e tranquila assim, A primeira vista, por se tratar de tributo vinculado a uma prestação estatal, no caso considerando a taxa de serviço, imaginar-se-ia que o valor da taxa tem que ser condizente – o chamado custo estatal – com o efetivo ou, digamos, aproximado, custo estatal para prestar o serviço ou coloca-lo ou mantê-lo disponível.

16 ÁVILA, Humberto. As taxas e sua mensuração. São Paulo: Revista Dialética de Direito Tributário, n 240, pg. 44.

17 Ob. ct, pg. 133

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Afirmar-se, pura e simplesmente, que o custo da taxa (base de cálculo) equivale ao custo da atividade estatal é desprender-se da realidade socioeconômica. Imaginar que, cumprindo o princípio da estrita legalidade, seja pelo comando do artigo 150, inciso I, do texto constitucional, seja pela dicção do artigo 97, inciso IV, do CTN, que o legislador ordinário, ao elaborar, propor, discutir e, finalmente, aprovar uma lei que institua uma taxa de serviço, o faço considerando, milimetricamente ou matematicamente, equivalência, ponto a ponto, dos gastos estatais para prestar serviço público ou colocá-los a disposição e o que será lançado e cobrado de seu sujeito passivo, é ignorar a realidade do processo legislativo nacional, é ignorar o contexto político da eventual criação de uma taxa ou mesmo ignorar que tal fórmula de equivalência financeira se mostra absolutamente irreal.

Por isso, alguns autores já comungam o entendimento, encampado pelo STF, no sentido de albergar-se, quando da composição pecuniária valorativa da base de cálculo das taxas, critérios como razoabilidade de sua final quantificação.

Isto ocorre por uma série de razões. Dentre elas a impossibilidade concreta de equivalência entre o que se cobra a título de taxa, sobretudo a de serviço, e a dimensão global e integral do denominado custo do serviço. A dinâmica e sistemática de custo envolvidos na composição de uma taxa de serviço (ou de polícia) é por demais complexa e intrincada a permitir esta decantada equivalência, nem que seja por aproximação. Com raras exceções como na hipótese dos serviços cartoriais, pago por emolumentos cuja a natureza jurídica o STF já consagrou como sendo de taxa, prestados por trabalhadores vinculados a Consolidação da Legislação Trabalhista (CLT), o serviço público, ensejador da taxa de serviço, é prestado por servidores públicos, vinculados ao Regime Estatutário. As vicissitudes de sua remuneração é uma constante alternação de perdas e ganhos, muitas vezes motivada por injunções de ordem política ou mesmo determinada por movimentos grevistas. Se, na composição do preço das taxas de serviço, necessariamente, tem-se que levar em consideração a remuneração do servidor público que presta este serviço, como, então, poderá o legislador equacionar e determinar esta variável para uma continuidade de tempo mínima a dispensar alteração legislativa periódica a suscitar, inclusive, insegurança jurídica?

Por sua vez, considerando os gastos materiais (insumos, móveis, instalações, veículos automotores, transporte, uniformes, informática, etc.) associados ao

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serviço público prestado. Como dimensioná-los? A partir do resultado de licitação (seja sob qualquer modalidade) que poderá tomar tempo e ser questionada judicialmente? Os valores, neste quesito material, a serem estipulados na composição da taxa de serviço devem ser fruto de licitação realizada e finalizada, precedente ao processo legislativo ou em sua sequência. Se for precedente, como talvez entendam alguns, havendo quebra de contrato, por parte de eventuais vencedores, ou necessidade de nova licitação, os valores adrede estabelecidos seriam questionados. Se, então, se dispensasse a licitação, por sua morosidade e complexidade, pudéssemos trabalhar com preços cotados no mercado associados ao preço de bens já incorporados, após finda respectiva licitação, ao patrimônio público, também vislumbraríamos possíveis e variados problemas.

Bens públicos, adquiridos por licitação, devem ser utilizados para os fins propostos pelo respectivo edital de licitação. Não podem, pelo menos em princípio, ser desvirtuados e alocados para outros fins, mesmo que para mero efeito de composição da base de cálculo da taxa de serviço. O mesmo raciocínio valeria para a busca de cotação de preços no mercado. Seria uma situação inusitada um parlamentar, por ocasião da votação de dada taxa de serviço, apresentar, no plenário da casa legislativa, aos seus pares, cotação de preços de bens, a serem pretensamente utilizados quando da prestação de serviço público, suscetível até mesmo de ser obtido através de consulta na internet, via google. Em que mundo viveríamos? Deixando de lado a licitação e dando azo a cotação virtual para efeito da composição, no aspecto da materialidade de gastos, da base de cálculo das taxas.

Fazendo eco, de forma mais abreviada, a este sentimento, afirma Ives Gandra;

A doutrina define que o custo do serviço deve ser aquele que determina o valor da taxa. Mas também certo e incontestável que sua definição matemática de custo do exercício do poder de polícia em relação à arrecadação da taxa correspondente só pode ser aproximado em face de ser rigorosamente impossível, em qualquer taxa para tais fins, a correspondência rigorosa, até o último centavo, entre o custo operacional do serviço e o nível da arrecadação. Variável esta é variável aquela, pelos próprios impactos orçamentários correspondentes a inúmeros fatores, inclusive os impactos judiciais de decisões que podem alterar o

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nível de vencimentos de servidores, como, muitas vezes, tem ocorrido.

Não defendemos, aqui, o entendimento de que, na eventual deliberação legislativa quanto à composição da base de cálculo das taxas, ocorra liberdade total e discricionariedade absoluta ao legislador. Este pressuposto seria extremamente temerário. Mas, considerando, a intepretação jurisprudencial, sumulada pelo STF, podemos tirar algumas conclusões, in verbis:

Súmula vinculante 19. A taxa cobrada exclusivamente em razão dos serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis, não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal.

Súmula vinculante 29. É constitucional a adoção, no cálculo do valor de taxa, de um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não haja integral identidade entre uma base e outra.

Sabedores que na medida em que o texto constitucional, taxativamente e expressamente, veda o uso da mesma base de cálculo dos impostos para as taxas, conclui-se, por silogismo, que deve apresentar base de cálculo distintas.

No entanto, não podendo, por sua irracionalidade material e real, defender-se a tese que o custo estatal é os correspondentes da base de cálculo das taxas deveram buscar alternativas nesta difícil equação. Não poderá a base de cálculo das taxas se servir dos pressupostos da base de cálculo dos impostos. Ou seja, fato ou atos dos sujeito passivos (renda, patrimônio ou consumo), totalmente dissonantes das atividades que se pretenda fundamentar a cobrança da taxa.

Por isso, para o pesar da melhor doutrina e exegese da dicotomia existente entre taxas e impostos, o STF prestou um desserviço à interpretação – tida até então como inafastável – do disposto no & 2º, do artigo 145, do texto constitucional.

4. capacidade contributiva e ipva. a jurisprudência do supremo tribunal federal

4.1. capacidade contributiva nos tributos em geral

No estudo da aplicação do Princípio da Capacidade Contributiva aplicável aos tributos, em geral, serão utilizados a Constituição Federal e o Código Tributário

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Nacional, que classificam os tributos em impostos, taxas, contribuições de me-lhoria, contribuições sociais e empréstimos compulsórios. Analisar-se-á a aplicação do Princípio da Capacidade Contributiva à essas espécies tributárias. Traremos à baila sempre a visão de capacidade contributiva como espaço jurídico aberto pelos direitos fundamentais para a tributação, nomeadamente para a tributação exercida sobre o direito de propriedade, renda e o direito de livre exercício da profissão. Espaço jurídico esse, sempre limitado pelos princípios superiores da liberdade e dos direitos à propriedade e à profissão, sendo, pois, irrenunciável, o dever de sujeição da Capacidade Contributiva às Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar.

Diferentemente do que determinava o texto da Constituição de 1946, em seu artigo 202, que fazia expressa referência a “tributos”, como analisado no capítulo 2 desse trabalho, a Carta Constitucional de 1988, trouxe de forma expressa, que o princípio da capacidade contributiva informa diretamente apenas a tributação por meio de impostos.

O que interessa saber é se este preceito constitucional deve ser interpretado nesse sentido literal, ou se estenderia às demais espécies tributárias, norteando a criação dos demais tributos (taxas, contribuições de melhoria, contribuições especiais e empréstimos compulsórios).

Obviamente, o artigo 145, §1º, da Constituição Federal, não encerra mera diretriz programática, incapaz de produzir efeitos, seja junto ao legislador, seja junto ao juiz.

Ora, como deixar de reconhecer caráter jurídico a uma disposição constitucional, mormente quando “retira” do indivíduo parte de sua propriedade, renda ou fruto de seu trabalho? Como deixar de reconhecer a necessidade de buscarmos a aplicação contínua do Princípio da Capacidade Contributiva à todas as espécies tributárias mormente quando essa tributação atinge diretamente o poder de compra e de subsistência do indivíduo, restringindo, em termos a sua capacidade de aquisição de bens e produtos necessários a seu bem estar? Para perquirir o assunto será feita uma análise da aplicação do princípio da capacidade contributiva às diversas espécies tributárias, escolhendo algumas dessas espécies mais polêmicas.

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Não só quando forem atingidos bens e produtos do cidadão, mas quando a tributação tornar impossível o exercício, pelo contribuinte, dos direitos e garantias fundamentais e sociais expressos na constituição (saúde, educação, lazer, segurança, previdência social, maternidade, e tantos outros).

E é nesse panorama que devemos conjugar a aplicação do Princípio da Capacidade Contributiva as diversas espécies de tributos (impostos, taxas, contribuição de melhoria, contribuições sociais e empréstimos compulsórios), advogando, sempre, pela aplicabilidade de tal princípio a todos os tributos, sejam vinculados, sejam não vinculados a uma atividade estatal específica ou a um poder de polícia qualquer, diretos ou indiretos, reais ou pessoais.

No âmbito doutrinário, são três as correntes sobre o tema: a) a que admite a aplicabilidade do princípio apenas aos impostos, conforme literalidade da atual carta constitucional; b) outra que entende que o princípio deve aplicar-se, imperiosamente a todos os tributos, como determinava a constituição de 1946; c) uma terceira que advoga que o princípio é compulsório aos impostos e facultativo ás demais espécies tributárias.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao seu turno, é partidária da última posição listada, conforme se depreende do julgamento por seu Pleno, em sede do Recurso Extraordinário 177.835-1, quando assentada à constitucionalidade da aplicação do princípio às taxas, tendo em vista a inexistência de qualquer impedimento para a não aplicação da norma do art. 145, §1º para os tributos que não somente os impostos18.

4.2. capacidade contributiva e impostos

A tese da aplicação do princípio da capacidade contributiva, em relação aos impostos, é menos conflituosa, e encontra mais adeptos na doutrina brasileira, pois, além da expressa determinação constitucional, é na tributação por meio dos impostos que se tem facilitada a mensuração dos atributos do sujeito passivo do

18 ROHENKOHL, Marcelo Saldanha. O princípio da capacidade contributiva no Estado Democrático de Direito (Dignidade, Igualdade e Progressividade na Tributação). São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 196.

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ônus tributário, ficando mais notadamente marcado o caráter pessoal impresso no mandamento constitucional.

Ou seja, como princípio informador dos impostos, a capacidade contributiva imprime a tendência de personalização dos mesmos. Nesse tópico (aplicação da capacidade contributiva aos impostos), verificamos divergências na doutrina no que tange à aplicação do referido princípio aos impostos sobre o patrimônio e também sobre os impostos indiretos, motivo pelo qual analisaremos esses dois pontos polêmicos.

Os impostos, quando ajustados à capacidade contributiva, permitem que os cidadãos cumpram, perante a comunidade, seus deveres de solidariedade política, econômica e social. Os que pagam este tipo de exação devem contribuir para as despesas publicas não em razão daquilo que recebem do Estado, mas de suas potencialidades econômicas. Com isso, ajudam a remover os obstáculos de ordem econômica e social que limitam, de fato, a liberdade e a igualdade dos menos afortunados. É por isso que, em nosso sistema jurídico, todos os impostos devem ser progressivos. Por quê? Porque é graças a progressividade que eles conseguem atender ao Princípio da Capacidade Contributiva19.

Ressalte-se, aqui, que o imposto incide sobre a riqueza do contribuinte e não sobre a coisa ou o bem, não sendo o caso de obrigação propter rem.

Aliás, esse último já foi o entendimento adotado no Brasil que se tem notícia:

Com relação a muitos tributos, como é o caso do imposto predial, sucedâneo da antiga décima urbana, criada em 1808, que tinha o caráter de ônus real, ou ainda da taxa de agua, que o Poder Judiciário, por mais de uma vez, reconheceu como ônus da coisa, isto é do prédio a que se achava ligada a rede de abastecimento de água, e não da pessoa que a houvesse consumido. Eram tais tributos, não tanto obrigações propter rem mas verdadeira hipoteca legal sobre o imóvel20.

19 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 18ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 75.

20 BRANDÃO MACHADO. Apresentação do livro de Oswaldo de Moraes. Curso de legislação tributária. São Paulo: Saraiva, 1974, p. VIII

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Com muita força argumentativa, Conti opina pela aplicabilidade do Princípio a todas as espécies tributárias, especialmente pelos limites a elas impostos, quais sejam: proibição do tributo como confisco e não tributação do mínimo vital observe-se:

O princípio da capacidade contributiva é aplicável a todas as espécies tributárias. No tocante aos impostos, o princípio é aplicável em toda a sua extensão e efetividade. Já no caso dos tributos vinculados, é aplicável restritivamente, devendo ser respeitados apenas os limites que lhe dão os contornos inferior e superior, vedando a tributação do mínimo vital e a imposição tributária que tenha efeitos confiscatórios21

A determinação constitucional de incidência do Princípio da Capacidade Contributiva é expressa, quanto aos impostos, ficando notório o caráter pessoal impresso no mandamento constitucional.

4.3. o caso do ipva

O IPVA (imposto sobre propriedade de veículo automotor) é tributo de origem relativamente recente no direito positivo brasileiro; surgindo, para muitos, como sucedâneo da Taxa Rodoviária Única (TRU), outrora instituída e cobrada pela União Federal, no momento do licenciamento do veículo; e cuja receita era aplicada em obras para conservação de rodovias. As alterações introduzidas por Emenda Constitucional aboliram a TRU e instituíram o IPVA, conferindo aos Estados- membros e ao Distrito Federal sua competência. Desde sua instituição, como previsão de criação, o IPVA não foi regulamentado por Lei Complementar; e, uma vez ausente qualquer norma sobre seu padrão geral de criação no Código Tributário Nacional, deu-se liberdade aos Estados para legislarem, via lei ordinária, acerca da forma de sua tributação.

Deste modo, considerando a liberdade dada aos legislativos estaduais, diversas foram às disparidades encontradas nas legislações, sobretudo no que toca à incidência sobre embarcações e aeronaves.

21 CONTI, José Maurício. Princípios tributários da capacidade contributiva e da progressividade. São Paulo: Dialética, 1997, p. 65.

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O IPVA é um imposto, previsto no inciso III do artigo 155 da CF, com a denominação atual, foi introduzido em nosso ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional nº 27, de 28 de novembro de 1985, que acrescentou o inciso III ao artigo 23 da CF então vigente, atribuindo aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituí-lo e vedando “a cobrança de impostos ou taxas sobe a utilização de veículos”. Como dito, ele sucede a antiga TRU, instituída pelo Decreto-Lei nº 999 de 21 de outubro de 1969, “devida pelos proprietários de veículos automotores registrados e licenciados em todo o território nacional”.

Dizia o inciso III do artigo 23 da Constituição de 1967, de acordo com a Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, in verbis: “Art. 23 ¨C Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: ....“III … propriedade de veículos automotores, vedada à cobrança de impostos e taxas incidentes sobre a utilização de veículos.”

O texto constitucional, de 1967, não determinava qual seria a área de atuação das normas gerais, entendendo-se que haveria necessidade de lei complementar dispor sobre fato gerador, base de cálculo e contribuinte, sendo que estes conceitos gerais estavam previstos no Código Tributário Nacional (CTN), considerado, sem qualquer controvérsia, lei complementar, bem como sobre os conflitos de competência e limitações constitucionais ao poder de tributar. Porém, não foi previsto o fato gerador, a base de cálculo e o contribuinte do IPVA pela referida norma, até por que o CTN é anterior à EC n.º 27/85, que previu o imposto.

O artigo 155, inciso III, da vigente Carta Política manteve-o na esfera de competência dos Estados e do Distrito Federal. Por sua vez o parágrafo 6º, do artigo 155 da CF/88, introduzido pela EC nº 42/2003, prevê que as suas alíquotas podem ser diferenciadas de acordo com o tipo de veículo e sua utilização, cabendo ao Senado Federal fixar-lhe alíquotas mínimas.

Em virtude da inexistência de disciplina específica no CTN, quedou-se obscura a questão da exigência prévia de lei complementar para sua instituição, gerando inúmeras discussões. Cada Estado edita a legislação própria sobre o IPVA e as alíquotas variam e apresentam, às vezes, feitio extrafiscal, sobretudo quando privilegiam utilitários ou veículos nacionais, porém isto é muito pouco na busca da justiça fiscal.

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Apesar de sua função essencialmente fiscal, o IPVA nunca obteve papel significativo no montante de recursos arrecadados pelos Estados. O ICMS e as transferências voluntárias da União são as principais fontes de recursos das unidades da federação, mesmo imputando o IPVA sobre embarcações e aeronaves com o potencial da frota brasileira em nítida ascensão;

A base de cálculo do IPVA é o valor venal do veículo e o seu fato gerador é a propriedade de veículo automotor. O fato gerador depreende de sua própria nomenclatura: a propriedade de veículo automotor de qualquer espécie podendo ser aeronaves e embarcações. Este tributo a princípio tem função fiscal, como dito, pois é este seu principal objetivo é a arrecadação de recursos financeiros para Estados e Municípios. É um tributo anual e em relação ao veículo novo, o fato gerador incide quando da sua primeira aquisição.

Como informado alhures, o STF tem jurisprudência consolidada, com base em interpretação consolidada, com base em interpretação histórica, entendendo o IPVA como sucedâneo da TRU, cobrada outrora apenas de veículos terrestres, quanto ã impossibilidade da incidência daquele imposto sobre embarcações e aeronaves.

Tal exegese, mesmo que acolhendo os argumentos quanto às dificuldades de fiscalização e arrecadação do imposto dos proprietários de embarcações e aeronaves, dado que os respectivos registros de suas matrículas se dão em órgão federais (Capitania de Portos e Departamento de Aviação Civil?), nos parece inconcebível alberga-se tributar o proprietário de um carro popular, comprado, com dificuldade, mediante financiamento e não fazê-lo de proprietários de aeronaves e embarcações cujo valor apresentaria cifras, frequentemente, milionárias, utilizando-se artifícios de interpretação, dissociados do mundo real e financeiro nacional.

Sabe-se que o maior símbolo de riqueza hoje, não só no país como no mundo, não se consubstancia em carros – por mais representativos de status que o sejam – mas por aviões e aeronaves. Se a medida da tributação, via impostos, se dá pela medida de riqueza ou, pelo menos a aparência dela, desprezar-se a tributação, via IPVA, de proprietários de aeronaves e embarcações, cuja finalidade é, rotineiramente, comodidade e deleite, é fazer tabula rasa do Princípio da “Capacidade Contributiva”.

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Configura-se, o entendimento do STF, inversão perversa de valores e objetivos quanto ao que almeja uma sociedade democrática e com justiça fiscal.

Afirmar que o imposto incide sobre a utilização do veículo (em meio terrestre, apenas, e não nos meios aquático e aéreo); e não sobre a sua propriedade de qualquer veículo automotor, suscetível de registro, é restringir-lhe sua abrangência constitucional. A Constituição Federal determina que o imposto seja gravado sobre a propriedade do veículo, gênero, tal como o define o dicionário Houaiss, isto é, com um “conceito geral que engloba todas as propriedades comuns que caracterizam um dado grupo ou classe de seres ou de objetos”.

O IPVA tem função fiscal, ou seja, arrecada recursos financeiros para que Estados e Municípios (após a repartição de receita) realizem seu papel maior: prover a sociedade de bens e serviços públicos. A atuação do Estado, além de reguladora, é também distributiva. Com recursos arrecadados por via tributária, fornece bens e serviços às camadas sociais menos assistidas e deixadas à parte do processo de produção, circulação e distribuição de riquezas.

Transparece aqui a função social deste tributo. Trata-se, portanto, de justiça tributária quando o IPVA recai sobre qualquer veículo automotor suscetível de registro e controle, mormente aqueles que são de maior valor,

O artigo 145, da Constituição Federal, reza que os impostos devem ter caráter pessoal e observar a “Capacidade Econômica do Contribuinte”; ou simplesmente a capacidade contributiva. Determina também que a progressividade seja obrigatória, permitindo a distinção da efetiva capacidade econômica do contribuinte. Promover a justiça tributária implica também aceitar que o Estado crie um sistema fiscal que, dentre outros requisitos, assegure que todos paguem seus tributos dentro da possibilidade de seus recursos, que é uma forma simples de exprimir o significado da expressão “Capacidade Contributiva”. Ora, com base em ambos os Princípios, a incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves certamente cumpriria critérios de justiça tributária, ampliando a hipótese de incidência do imposto. Trata-se de justiça tributária pois são as rendas com maior capacidade contributiva as destinadas à aquisição desses bens. Ao mesmo tempo, amplia a arrecadação para prover Estados e Municípios dos recursos que necessitam para fins de políticas sociais.

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5. conclusões

O Poder de Tributar, pelo menos no Brasil, é o campo predileto do labor constitucional. A um, por que o exercício da tributação é fundamental aos interesses do Estado, tanto para auferir as receitas necessárias à realização de seus fins, sempre crescentes; a dois, para utilizar o tributo como instrumento extrafiscal, técnica que o Estado intervencionista é pródigo. A três, porque tamanho poder há de ser disciplinado e contido em sua inarredável aptidão para expansão, sob os mais variados pressupostos e procedimentos.

O texto constitucional brasileiro, conhecido por seu caráter enciclopédico, sendo coerente na seara tributária verte e apresenta número exaustivo de artigos, parágrafos, incisos, alíneas e letras (novidade preocupante).

No entanto, inversamente do previsto, toda esta profícua tratativa normativa é caracterizada por suas contradições, incoerências e insubsistências termino-lógicas e sistemáticas.

Em seguida, dado ao Poder Judiciário o poder de aperfeiçoar os defeitos do Sistema e equacionar sua fragilidade redacional, seguidamente, ao julgar, apenas exacerba seus gravames e traz mais força ao caos institucionalizado pela Carta Constitucional que, apesar do conhecido tamanho, revela pequenez em conteúdo, pelo menos ou também, no tratamento tributário propiciado a sociedade brasileira.

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transdisciplinaridade, direito ambiental e democracia

Bruno Torquato de Oliveira Naves1

Émilien Vilas Boas Reis2

Resumo

O artigo, inicialmente, disserta sobre a modernidade. Reflete sobre o sur-gimento e as características da transdisciplinaridade e sua importância para o estágio atual do conhecimento no mundo moderno. Posteriormente, partindo de algumas ideias do filósofo Jürgen Habermas, o texto reflete sobre a democracia como um regime que permite a interface entre os diferentes saberes, já que pode ser compreendida como um espaço que permite o constante diálogo, na tentativa de se buscar soluções para a vida em sociedade. Em seguida, traz-se o conceito de modernidade reflexiva, por meio de Ulrich Beck, e a transformação semântica da “natureza”. Por fim, propõe-se o pensamento complexo como modelo de ação para o Direito Ambiental democrático, que assume um papel mediador e organizador na interação dos conhecimentos necessários ao enfrentamento da crise ambiental.

Palavras-chave

Modernidade; Transdisciplinaridade; Direito Ambiental; Democracia; Pensa-mento complexo.

Abstract

At first the article discusses the Modernity. Then reflects on the appearance and characteristics of transdisciplinarity and its relevance to the current state

1 Doutor e Mestre em Direito pela PUC Minas; Professor do Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara; Professor nos Cursos de Graduação e Especialização em Direito da PUC Minas e da Escola Superior Dom Helder Câmara; Pesquisador do CEBID – Centro de Estudos em Biodireito (cebid.com.br).

2 Pós-doutor em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal); Doutor e Mestre em Filosofia pela PUC-RS; Graduado em Filosofia pela UFMG. Professor de Filosofia e Filosofia do Direito do programa de graduação e pós-graduação em Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara (BH).

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of knowledge in the modern world. Subsequently, starting from ideas of the philosopher Jürgen Habermas, the text reflects on democracy as a system that allows the interface between the different areas of knowledge, as can be understood as a regime that enables constant dialogue, in the attempt to find solutions to life in society. Then brings up the concept of reflexive modernity, by Ulrich Beck, and semantic transformation of “nature.” Finally, it is proposed to complex thinking like action model for democratic Environmental Law, which assumes the mediating role and organizer in the interaction of the knowledge needed to face of the environmental crisis.

Key words

Modernity; Transdisciplinarity; Environmental Law; Democracy; Complex thinking.

1. introdução

As sociedades atuais, complexas como são, estimularam o convívio do diferente. Valores plúrimos, variedade de religiões, de ideologias políticas, de modos de pensar o mundo. Por essa razão, a democracia também teve que se reconstruir para abarcar um espaço para o diferente.

A consideração do diferente, por outro lado, também representou a valorização do eu, criando uma esfera individualista e de superespecialização do conhecimento. A fragmentação do saber científico trouxe avanços importantes. O domínio da técnica instrumentalizou o pensar e permitiu um aprofundamento inigualável do conhecimento. Todavia, criou, com frequência, uma conversa de surdos e cegos. Cada cientista debruça-se sobre o seu objeto de estudo, o analisa, formula princípios, mas não consegue entender nenhum outro conhecimento especializado.

A crise ambiental coloca em xeque esse saber científico, pois exige respostas que ultrapassam qualquer categorização. Intervenções pontuais são incapazes de solucionar graves problemas ambientais.

Então, surge em cena o Direito Ambiental. Mas diante desse panorama, qual o papel que o Direito Ambiental deve ocupar neste espaço do saber e da ação?

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Para tanto, analisar-se-ão algumas características da modernidade, colocando em destaque a razão instrumental, com o seu pensamento científico especializado. Em seguida, avalia-se o papel da transdisciplinaridade e, nesse contexto, a função que o Direito Ambiental deve assumir.

A transdisciplinaridade encontra amparo na democracia, que permite a in-terface entre os diferentes saberes. Com base em Habermas, enfrenta-se essa (des)construção da democracia, que sobreleva a importância do Direito e do Direito Ambiental.

Por fim, analisam-se as transformações semânticas de “natureza” e a importân-cia do pensamento complexo para o Direito Ambiental.

2. modernidade, transdisciplinaridade e direito am-biental

Historicamente, a modernidade está associada a três grandes eventos: a) as grandes navegações, que proporcionaram a descoberta do continente que viria a ser conhecido como América; b) a reforma protestante, que pluralizou o cristianismo, e c) a revolução científica, período conhecido por novas teorias e métodos científicos. Para Hanna Arendt (2007), o evento mais espetacular aos olhos dos que viveram os acontecimentos foi o ligado às grandes navegações, por outro lado, o evento mais inquietante a reforma protestante, e o que teve menos repercussão a revolução científica. Entretanto, mal sabiam aqueles homens que o terceiro evento possibilitaria transformações inimagináveis na natureza.

Justamente, pela sua capacidade de transformação, o método científico vai ser considerado o ideal para todas as instâncias. A própria razão passa a ser compreendida como “razão instrumental”. Para Vaz (2000, p. 194): “Entre as suas características fundamentais, encontra-se justamente o deslocamento da téchne do seu lugar periférico para o eixo central traçado pela linha que une a theoria ao kosmos pela mediação do discurso científico (logos)”. A técnica é a técnica de manipulação da natureza. Há, certamente, uma grande dificuldade da moral e do Direito acompanharem as transformações proporcionadas pela razão instrumental: “Por conseguinte, o logos da ciência experimental, na qual a praxis se exerce e que é o lugar de constituição do ethos transmitido pela tradição, que é profundamente

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remodelado pela razão científico-técnica moderna. Sobre ele se edifica a nova Natureza, que ocupa o espaço da antiga physis” (VAZ, 2000, p. 197).

A razão instrumental pode ser entendida como aquela capaz de quantificar todas as coisas. Assim, não é espanto algum que na modernidade haja uma relação intrínseca entre técnica, ciência e economia, conforme enfatiza Oliveira:

A modernidade é impensável sem a mútua imbricação de ciência, técnica e economia: sem a aplicação de métodos técnico-científicos, a economia moderna jamais teria alcançado o grau de eficiência, que a distingue de todas as economias precedentes, como, por outro lado, sem os interesses econômicos, o desenvolvimento técnico-científico na modernidade não pode ser pensado. A mercantilização universal é a radicalização da transformação de qualidade em quantidade, que caracteriza este tipo de racionalidade. Daí a idéia do “progresso” linear e indefinido, que se vai gerar na modernidade tendo como fundamento o quantificável: de agora em diante, o produto interno bruto constitui o critério básico para medir o progresso dos povos. (OLIVEIRA, 1992, p. 287)

Com as premissas colocadas, é possível perceber como o Direito e o Direito Ambiental podem também se render à razão tecnicista. A consequência pode ser tomar sempre o Direito como autossuficiente, como propuseram os positivistas, ou fazer uma relação apenas com a economia. Claramente, a relação entre Direito Ambiental e economia não pode ser vista como uma prática transdisciplinar, já que o cálculo econômico está inserido na reducionista razão tecnicista.

Outro efeito da modernidade é a fragmentação do saber. Problemas que antes eram objetos de estudo do generalista, ou seja, do sábio, serão analisados em novos campos do saber pelo “cientista”, figura acentuada após a revolução científica. A cada nova área em que o método científico for aplicado, uma nova área do saber será criada. História, Sociologia, Psicologia, Antropologia, Física, Biologia, Química, por exemplo, são áreas criadas ao longo dos últimos quatrocentos anos. E dentro de cada uma das áreas relatadas (e de tantas outras!) surgirão novas especialidades, e em uma dada especialidade serão criadas especialidades dentro de especialidades. Com o passar do tempo, as áreas do saber e as especialidades vão se afastando ao ponto de não mais dialogarem. A figura do especialista será enfatizada como nunca antes: “[...] a crescente e impactante superespecialização

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do conhecimento, gerando uma infinidade de disciplinas e especialidades, que em fins do século XX atingiram o limite do insondável (ninguém sabe hoje ao certo quantas elas são, estando longe de estar terminado o processo de divisão e multiplicação)”. (DOMINGUES, 2004, p. 7).

O arquétipo do “sábio” especialista é uma figura comum da época atual. É possível perceber situações inusitadas, por exemplo, um prêmio Nobel, especialista de uma especialidade, em seu discurso de agradecimento, ou em uma entrevista para uma revista qualquer, fala a respeito de áreas que não tem domínio ou formação adequada para se expressar em público. O máximo que consegue é repetir senso-comum, mas com ar de especialidade. Como disse Bertrand Russell: se o generalista sabe nada de tudo, o especialista sabe tudo de nada (RUSSELL apud DOMINGUES, 2004, p. 8).

A fragmentação do saber tem causado paradoxos que exigem novas posturas das diversas áreas. O conhecimento tem se tornado tão peculiar que os diferentes campos do saber têm dificuldade em se relacionarem. Se a divisão do conhecimento parece não ter fim, isso significa que novos métodos são extremamente necessários. Assim, a transdisciplinaridade é indispensável em meio aos problemas dos tempos atuais.

No caso do Direito Ambiental, pode-se perceber também como o dogmatismo se torna um dos entraves para a área. O modo como o Direito Ambiental deve pressupor diversas áreas, torna imprescindível o constante diálogo com outros saberes. Nesse sentido, aquele que lida com o Direito Ambiental deve ser, necessariamente, transdisciplinar.

Ocorre que, mesmo com tais constatações, muitas vezes o pesquisador é inibido de pensar de maneira que leve em consideração diversas áreas, sendo a própria Universidade e os órgãos institucionais entraves para o pensamento e a pesquisa transdisciplinar. Muitos ainda pensam o conhecimento como sendo classicamente divido em “humanas”, “exatas” e “biológicas”. E esses, por sua vez, divididos em microáreas.

A palavra “transdisciplinar” surgiu de um interessante percurso linguístico:

Primeiro, “interdisciplinar”, adjetivo, cuja primeira aparição na França é registrada pelo dicionário Robert em 1959, associado a

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“interdisciplinaridade”, substantivo registrado em 1968. Depois, “pluridisciplinar”, aparição registrada naquele país (Robert) em 1966, vinculado a “pluridisciplinaridade”, dicionarizado em 1969. Paralelamente aparece “multidisplinar”, cuja datação na França é algo imprecisa (Robert fala de “metade” do século XX e dá como exemplo uma frase do jornal Le Monde, empregada em fins de 1968). Por fim, aparece “transdisciplinar” assim como “transdisciplinaridade”, ainda não dicionarizados em francês, mas de uso corrente, como jargão por francófonos ilustres, a exemplo de Stengers e Piaget, este último vendo na ideia do “trans” o ideal do conhecimento e em sua prática uma espécie de utopia a ser perseguida no futuro (DOMINGUES et al, 2004, p. 9).

Autores, como Edgard Morin, buscam oferecer propostas de um pensamento transdisciplinar. Nos volumes denominados “O Método”, Morin critica o paradigma atual de mutilação do conhecimento, referindo a isso como sendo uma mutilação da própria sociedade. A solução para tal problema passa pela reorganização dos saberes. De acordo com o pensador francês:

Estou cada vez mais convencido de que os conceitos de que nos servimos para conceber a nossa sociedade – toda a sociedade – estão mutilados e conduzem a acções inevitavelmente mutiladoras. Estou cada vez mais convencido de que a ciência antropossocial tem de articular-se na ciência da natureza, e de que esta articulação requer uma reorganização da própria estrutura do saber. Mas a vastidão enciclopédica e a  radicalidade abissal destes problemas inibem e desencorajam, e, assim, a própria consciência da sua importância contribui para desviar-nos deles (MORIN, 1991, p. 13).

Para Ivan Domingues (2005, p. 26-27) as experiências transdisciplinares se caracterizam por: a) a aproximação de diferentes disciplinas e áreas do conhecimento; b) o uso de metodologias unificadas criadas a partir de diferentes áreas do conhecimento; c) preenchimento das áreas indefinidas do saber, gerando novas disciplinas ou servindo de trâmite entre as várias disciplinas, ficando aqui a área propriamente transdisciplinar.

No diálogo permanente entre as áreas do saber, pode-se chegar a importantes concepções. Em um jogo dialético entre os vários campos e disciplinas, cada saber pode contribuir para a outra, ora fazendo papel de tese, ora fazendo papel

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de antítese. A síntese surgirá desse frutífero diálogo, que requer abertura, não dogmatismo e desejo de saber.

Como dito acima, o Direito Ambiental é uma área que deve levar em consideração diferentes áreas do conhecimento, por isso é denominado como um ramo horizontal, por recobrir, como um manto, os demais ramos do Direito. Suas teias, no entanto, não se limitam a ficar no topo, mas interagem profundamente, influenciando e sendo influenciado. Daí se falar em Direito Penal Ambiental, Direito Tributário Ambiental, Direito Econômico Ambiental etc.

Suas teias também se espraiam por outras grandes áreas do saber, pois não haveria como se analisar questões de tão grande significância com perspectivas parciais. O problema ambiental exige esse diálogo entre as diversas áreas do conhecimento rompendo qualquer compartimentação.

A problemática ambiental é, provavelmente, a que melhor ilustra o pensa-mento de Morin (2003). O momento histórico atual é claro em demonstrar que a superespecialização científica não dá conta de enfrentar o problema. Por isso, o Direito Ambiental rompe as fronteiras entre o direito público e o direito privado e se vê obrigado a (re)unir as clássicas disciplinas jurídicas e contextualizá-las em um universo maior, em que a Biologia, a Geografia, a Sociologia e outras tantas áreas do saber se complementam em um todo único.

3. democracia e direito ambiental

Como ilustrado acima, o Direito Ambiental é, necessariamente, transdisci-plinar. Talvez nenhum outro regime seja mais benéfico para a transdisciplinaridade do que a democracia. Nesse ponto, seguem-se algumas ideias sobre democracia do pensador alemão Jürgen Habermas, para tal, deve-se fazer um percurso sobre alguns itens que se correlacionam com essa temática.

Habermas se insere dentro do que a tradição filosófica denominou “reviravolta linguística”, compreendida como o movimento em que “a linguagem passa de objeto da reflexão filosófica para a ‘esfera dos fundamentos’ de todo pensar, e a filosofia da linguagem passa a poder levantar a pretensão de ser a ‘filosofia primeira’ à altura do nível de consciência crítica de nossos dias” (OLIVEIRA, 2001, p. 12-13). A reflexão a partir do século XX passa a ter como base a reflexão sobre a

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linguagem, que pode ser vista como um “medium”, pois o próprio pensamento tem como base a linguagem.

O pensador alemão tem a preocupação, em suas reflexões, de ilustrar como ocorre a pretensão de entendimento entre ouvinte e falante, que Habermas denominará ação comunicativa, já que a linguagem é compreendida como ação. Assim, o indivíduo que age comunicativamente busca em seus atos de fala “pretensiones universales de validez y supone que tales pretensiones pueden desempeñarse” (HABERMAS, 1997, p. 300). O falante, com tal pretensão de validade, deve levar em consideração quatro pretensões universais: 1) expressar-se de modo compreensível; 2) dar a entender sobre algo (apresentar algo); 3) fazer-se compreender (manifestar uma intenção); 4) entender-se com os demais (gerar uma relação interpessoal). Tais pretensões possibilitam o entendimento, que é o “proceso de consecución de un acuerdo sobre la base presupuesta de pretensiones de validez reconocidas en común” (HABERMAS, 1997b, p. 301). Habermas denominará de Pragmática Universal o programa de investigação que busca construir a base universal de validade da fala.

O falante, que tem capacidade de comunicação, deve ter a preocupação em formular orações bem formadas que se referem à realidade:

- para elegir el contenido enunciativo de suerte que refleje o (cumpliendo determinadas condiciones de verdad) mencione una experiencia o un hecho (de forma que el oyente pueda compartir el saber del hablante),

- para manifestar sus intenciones de suerte que la expresión lingüística reproduzca lo que el hablante tiene en mientes (de forma que el oyente pueda confiar en el hablante),

- para ejecutar el acto de habla de suerte que cumpla normas reconocidas o responda a autoimágenes aceptadas (de suerte que el oyente pueda concordar en esos valores con el hablante) (HABERMAS, 1997b, p. 328).

Ou seja, a pretensão de compreensibilidade toma o proferimento como: a) verdadeiro (representação de algo do mundo); b) veraz (expressão de algo falado); c) correto (referência às perspectivas socialmente conhecidas).

Pode-se trazer também a noção habermasiana de “linguagem ideal”, em que os interlocutores têm pretensões de entendimento que podem ser aceitas

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ou recusadas. Em tal situação, os falantes e ouvintes não são constrangidos por influências e coações exteriores. Habermas (1997a) afirma que na “linguagem ideal” há uma exigência de simetria que pressupõe quatro requisitos de igualdade de oportunidades para todos os que participam dos atos de fala. São eles:

a) igualdade de oportunidades de todos os participantes de usarem os atos de fala, de maneira que possam sempre começar e continuar um discurso;

b) igualdade de oportunidades de todos os participantes com respeito à tematização de afirmações, recomendações, explicações e justificações, além de poderem criticar a validade das proposições, de maneira que nenhum ditame prévio fique de fora da tematização e da crítica;

c) igualdade de oportunidades de todos os participantes no que diz res-peito ao uso dos atos de fala representativos, ou seja, a possibilidade de expressarem suas atitudes, sentimentos e intenções, dado que a recípro-ca concordância dos agentes permite serem verazes uns com outros;

d) igualdade de chances de todos os participantes no que diz respeito ao uso dos atos de fala regulativos: ordenar, depor, permitir, proibir, por exemplo. A reciprocidade de expectativas de comportamento, com a renúncia a qualquer exclusão unilateral, garante a igualdade de chances de um falante iniciar uma ação e prosseguir com ela sem ser coagido.

Em outras palavras, a igualdade dos atores participarem do debate público, a igualdade de condições para o debate, a veracidade e a não coação são os elemen-tos da situação ideal da fala.

Com tais pressupostos, Habermas, em sua grande obra “Teoria da Ação Comunicativa”, ilustra como o agir comunicativo, voltado para o entendimento, deve estar presente no “mundo da vida”, para fazer frente à racionalidade econômica e burocrática (política) que adentraram em todas as instâncias sociais. Habermas tem a preocupação de descrever os tipos de ação que existem no “mundo da vida”.

No espírito da virada pragmático-linguística, Habermas enfatiza que a normatividade da sociedade está pautada na ação comunicativa:

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Si partimos de que la especie humana se mantiene a través de las actividades socialmente coordinadas de sus miembros y de que esta coordinación tiene que establecerse por medio de la comunicación, y en los ámbitos centrales por medio de una comunicación tendente a un acuerdo, entonces la reproducción de la especie exige también el cumplimiento de las condiciones de la racionalidad inmanente a la acción comunicativa. Estas condiciones se tornan accesibles en la modernidad - es decir, con la descentración de la comprensión del mundo y la diferenciación de distintos aspectos universales de validez (HABERMAS, 1999, p. 506).

Para ilustrar o que significa a ação comunicativa, baseado em uma nomencla-tura popperiana, Habermas (1999, 122-146) irá distinguir outros tipos de ações:

a) ação teleológica: orientada para uma finalidade, tem um objetivo (ação estratégica). São exemplos a economia e a sociologia.

b) ação normativa: orienta a relação em grupo, visando valores em co-mum. Espera-se uma obediência de todos em relação à norma.

c) ação dramatúrgica: autorrepresentação perante o público.

Sobre a ação comunicativa, nas palavras de Habermas:

Finalmente, el concepto de acción comunicativa se refiere a la interacción de a lo menos dos sujetos capaces de lenguaje y de acción que (ya sea con medios verbales o con medios extra-verbales) entablan una relación interpersonal. Los actores buscan entenderse sobre una situación de acción para poder así coordinar de común acuerdo sus planes de acción y con ello sus acciones. El concepto aquí central, el de interpretación, se refiere primordialmente a la negociación de definiciones de la situación susceptibles de consenso. En este modelo de acción el lenguaje ocupa, como veremos, un puesto prominente (HABERMAS, 1999, 124).

Com este arcabouço, Habermas é capaz de fazer uma distinção entre a ação comunicativa e a ação estratégica. Enquanto a primeira visa o entendimento entre os interlocutores, a ação estratégica será compreendida como aquela que visa o êxito dos participantes, que tomam decisões a partir de razões calculistas. As três primeiras ações explicitadas acima se encaixam nesta ação estratégica. (HABERMAS, 1999, p. 137ss).

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É claro que Habermas não tem a pretensão de que a ação comunicativa seja totalmente implantada na realidade. Mas se pode entender tal concepção como um norte para as relações sociais entre os atores capazes de comunicação.

Após explicitar a ação comunicativa, outro interessante ponto do estudo diz respeito ao conceito de “mundo da vida”. De forma geral, fazendo uma releitura de Edmund Husserl, Habermas compreende “mundo da vida” como o horizonte que permite os processos de entendimento, denominados ação comunicativa, além de conter a cultura, entendida como o depósito de convicções comuns (HABERMAS, 1992, p. 176).

Partindo das noções de sistema de Talcot Parsons e Niklas Luhmann, Habermas (1992, p. 176) afirmará que na modernidade a racionalidade econômica e política (com o dinheiro e o poder sendo medium) passam a ser coordenadoras de todas as ações. Tais esferas são desconectadas do mundo da vida, que buscam, estrategicamente, um fim que não é o entendimento. Em tais sistemas a linguagem é uma ferramenta para se atingir seus fins. No caso do sistema econômico, o consumismo e o individualismo se tornam parâmetros para as ações. Por outro lado, a instrumentalização e a burocratização tornam desconexa a política do mundo da vida.

Após tais considerações, pode-se afirmar que para Habermas o Direito entra como aquilo que pode, na tentativa de superar o dinheiro e o poder como instrumentais, possibilitar a integração social. Tal objetivo cabia à ação comunicativa. Mas como essa linguagem ideal está longe de ser realizada integralmente, o Direito passa a ter um papel fundamental na sociedade:

A circulação comunicacional do mundo da vida é interrompida no ponto onde se choca com o dinheiro e o poder administrativo, meios que são surdos às mensagens da linguagem coloquial; pois esses códigos especiais, além de se diferenciarem da linguagem coloquial, foram desmembrados dela. É verdade que a linguagem coloquial forma um horizonte de compreensão; em princípio ela é capaz de traduzir tudo em todas as linguagens. Porém ela é incapaz de operacionalizar eficientemente para todos os destinatários suas mensagens endereçadas ao comportamento. Para traduzi-las nos códigos especiais, ela depende do direito, o qual tem o contato com o dinheiro e poder administrativo. O direito funciona como uma espécie de transformador, o qual impede, em primeiro lugar,

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que a rede geral da comunicação, socialmente integradora, se rompa. (HABERMAS, 1997c, p. 82).

Ao se falar em Direito, adentra-se no aspecto que mais interessa a esse artigo em relação ao pensamento habermasiano: a democracia. Habermas parte do pressuposto que o Direito legítimo depende da democracia, e, assim, faz uma análise sobre o que compreende como tal regime. Nas palavras de Habermas:

A fim de obter critérios precisos para a distinção entre princípio da democracia e princípio e princípio moral, parto da circunstância de que o princípio da democracia destina-se a amarrar um procedimento de normatização legítima do direito. Ele significa, com efeito, que somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros de direito, num processo jurídico de normatização discursiva. O princípio da democracia explica, noutros termos, o sentido performativo da prática de autodeterminação de membros do direito que se reconhecem mutuamente como membros iguais e livres de uma associação estabelecida livremente (HABERMAS, 1997c, p. 145).

Fica mais claro o percurso até aqui. A legitimidade do Direito para Habermas depende da democracia, pois ela é o regime que permite, em um Estado laico, levar em consideração os diferentes tipos de discurso. Esta democracia é a deliberativa, na qual os cidadãos devem participar ativamente das decisões democráticas: “o processo democrático, na medida em que satisfaz as condições de uma formação inclusiva e discursiva da opinião e da vontade, justifica uma presunção de aceitabilidade racional dos resultados” (HABERMAS; RATZINGER, 2007, p. 29).

O Estado Democrático de Direito permite a participação ativa dos seus cidadãos. Mas também é possível que um indivíduo nada tenha a contribuir para o processo democrático, sendo, apenas, um destinatário do Direito. É uma escolha individual: “De destinatários do direito espera-se apenas que, no exercício de suas liberdades (e pretensões) subjetivas, não ultrapassem os limites legais. Deles se exige que obedeçam às leis obrigatórias da liberdade, mas de cidadãos que exercem o papel de co-legisladores democráticos, espera-se outro tipo de motivação e atitude” (HABERMAS; RATZINGER, 2007, p. 33-34).

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Com estas considerações é possível defender a democracia como sendo o regime propício também para o Direito Ambiental. A crítica que Habermas faz aos sistemas econômicos e políticos vai ao encontro de um dos grandes perigos do Direito Ambiental, que é se submeter a uma dessas duas áreas. Decisões políticas e econômicas continuam pautando as decisões jurídicas.

4. natureza e reflexividade

Segundo Giddens (1997), a modernidade reconstruiu a tradição e isso foi fundamental para legitimar a nova estrutura de poder que viria a dominar. A tradição, relativamente fixa e estável nas sociedades pré-modernas, passa a envolver processos ativos de reconstrução.

Com isso, a natureza, antes cenário bucólico e imperturbado, socializa-se. “A socialização da natureza significa muito mais que apenas o fato de o mundo natural estar sendo cada vez mais marcado pela humanidade.” (GIDDENS, 1997, p. 97) Não há uma natureza externa ao homem, mas existem diferentes representações da natureza, simbolismos linguísticos elaborados científica e culturalmente.

Essa nova representação da natureza é fruto do que Ulrich Beck denomina de modernidade reflexiva. A modernização reflexiva, segundo Beck, corresponde “[...]...teóricamente, aplicación a sí misma; empíricamente, autotransformación (mediante los procesos de individualización y globalización, por ejemplo); políticamente, pérdida de legitimidad y un vacío de poder.” (1999, p. 61) É a transformação involuntária das grandes estruturas da sociedade industrial, como uma espécie de efeito colateral da própria sociedade industrial. Seus efeitos são:

[…] en primer lugar, inseguridad; en segundo, politización; en tercero, una lucha por (nuevas) fronteras. Si se lo expresa en dicotomías, se puede decir: seguro – inseguro, político – apolítico, interior – exterior se pueden convertir en nuevos principios guías de la segunda modernidad, mediante los cuales se pueden formar o reconstruir estructuras y líneas de conflicto. (BECK, 2007)

A crise ecológica, por exemplo, não é um problema externo, mas uma crise institucional da própria sociedade industrial. O reconhecimento de que a sociedade industrial avança tecnologicamente e, com isso, produz seus próprios riscos é reflexivo. Por isso, na sociedade de risco:

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[...] o reconhecimento da imprevisibilidade das ameaças provo-cadas pelo desenvolvimento técnico-industrial exige a auto-reflexão em relação às bases da coesão social e o exame das convenções e dos fundamentos predominantes da ‘racionalidade’. No autoconceito da sociedade de risco, a sociedade torna-se reflexiva (no sentido mais estrito da palavra), o que significa dizer que ela se torna um tema e um problema para ela própria. (BECK, 1997, p. 19)

No Direito, essa modernização autoconfrontante da sociedade industrial revela-se por transformações mais profundas do que a mera elaboração de novos instrumentos de controle e segurança. “Os alicerces da sociedade industrial, com suas certezas científicas, foram desmoronando diante das incertezas e dos casuísmos produzidos no processo de modernização da sociedade.” (TESSAROLO; KROHLING; PERTEL, 2013, p. 281) As alterações trouxeram a percepção do Direito como discurso e da quebra do dogma da segurança jurídica.

Com a era das codificações imaginou-se que a observância da lei era garantia de segurança e, portanto, de justiça. O fetiche pela lei conduziu a uma corrida legislativa: devia-se antecipar à realidade, prevendo abstratamente as situações e evitando, assim, a insegurança da lacuna. Mas quanto mais se produziu, menor foi a sensação de segurança. O amontoado desconexo de leis era inseguro.

A instalação da sociedade de risco exige um Direito Ambiental democrático, aberto, que conviva com fontes múltiplas e partícipes diversos, no reconhecimento do pluralismo social e, consequentemente, jurídico.

5. direito ambiental complexo

A democracia deliberativa, concebida por Habermas, considera e integra as diferenças. É um regime que agrega, permitindo o convívio de iguais liberdades fundamentais.

A consideração da diferença, do plural, do complexo também faz parte da proposta de Edgar Morin (2003). Ele defende a valorização de um conhecimento não fragmentado, que permita que os seres humanos compreendam o mundo e a humanidade de forma contextualizada, abrangente e completa.

Morin afirma que “é preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento

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disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto.” (MORIN, 2003, p. 89).

Assim, a transformação do conhecimento se faz na sua organização e com ela o indivíduo toma consciência de que é parte de um complexo ou sistema.

O pensamento complexo é, necessariamente, transdisciplinar e faz com que os diversos conhecimentos colaborem entre si em um projeto de conhecimento comum, mas também com que o modo de pensamento organizador permeie todas as disciplinas a fim de conferir unidade a elas.

No que se refere diretamente ao Direito Ambiental, não se trata de justapor conhecimentos ou agrupá-los; nem em, somente, convocar peritos que possam isoladamente dar pareceres técnicos. O que se pretende é algo mais que a simples soma das partes, é uma interação entre os elementos, o que exige que o conhecimento jurídico não apenas considere a posição de outras ciências, mas se integre a elas de modo a formar um todo único.

Dessa forma, o complexo engloba várias dimensões e realidades, mas não como uma soma, e sim como uma unidade funcional que nasce das interações entre todas essas dimensões e realidades.

O sistema jurídico que se propõe ao Direito Ambiental não é um sistema dogmaticamente fechado e autossuficiente. Propõe-se um sistema capaz de perceber sua incompletude e de se abrir a um diálogo constante, que dê a ele algo que não se poderia inferir isoladamente dos conhecimentos fracionados.

A visão sistêmica da problemática ambiental propõe uma nova abordagem do conhecimento, um pensamento organizador, que será regido por um Direito Ambiental heurístico. Mas por que o Direito assumirá essa regência?

Pautado em Habermas (1997), poder-se-ia responder: porque o Direito ope-racionaliza para todos os destinatários o que a ação comunicativa não consegue. A linguagem jurídica e o procedimento do Direito são capazes de mediar as relações com o dinheiro e com o poder administrativo, algo que a linguagem coloquial não comporta. Além disso, o Direito baseia seus preceitos na coerção, permitindo uma eficácia que as normas morais não alcançam.

E o Direito Ambiental democrático, forjado na intersubjetividade e no discurso, é uma escolha transdisciplinar e, por isso, complexo. O reconhecimento

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dessa complexidade demonstra a necessidade de se tentar um diálogo constante com as ideias. Não simplesmente aceitá-las, mas adotar posturas críticas a ponto de interagir com elas, sendo modificado e modificando-as.

Ost situa a crise ecológica não como a destruição da natureza, mas como “a crise da nossa representação da natureza, a crise da nossa relação da natureza”. (1995, p. 8) Essa crise é frequentemente abordada de duas maneiras: por um modelo natureza-sujeito, defendida por biocentristas da deep ecology; e pelo modelo natureza-objeto, que considera “ambiente” como cenário dominado pelo homem. (OST, 1995)

Tal polarização, todavia, é parcial e simplista; enxerga os elementos sepa-radamente e não em sua interação:

[A] essas duas abordagens reducionistas e, em última análise, complementares, é necessário contrapor uma ideia da mediação, uma ideia do meio que assegura o «retorno do terceiro». [...] Porque é do terceiro e do «espaço intermediário», que é o seu espaço de criação, que vêm a vida, o sentido e a história. Para determinar este terceiro das relações homem-natureza, será necessário começar por elaborar um saber ecológico realmente interdisciplinar: não uma ciência da natureza, nem uma ciência do homem, mas uma ciência das suas relações. (OST, 1995, p. 16)

Este terceiro espaço emerge como o novo. Cabe agora valorizá-lo como um espaço de encontro de discursos, aproximando-o do contexto ideal de fala a que Habermas se refere e permitindo, nele, a atuação do Direito Ambiental.

6. conclusões

A democracia, como local de encontro das subjetividades, representa o respeito e a consideração do outro. O Direito exerce uma função primordial nesse processo, por mediar em seu discurso as relações entre sociedade, dinheiro e poder administrativo. E na questão ambiental não pode ser diferente. Diante da globalização e da lógica do mercado, natureza e dinheiro frequentemente têm um relacionamento tenso, em que a escolha de um pode representar o afastamento do outro.

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O pensamento complexo impõe ao Direito Ambiental não apenas a trans-disciplinaridade, mas a organização dos conhecimentos e o diálogo com outros conhecimentos, de forma sistêmica.

É esse o papel do Direito Ambiental no Estado Democrático de Direito: formular um discurso que se volte a este “espaço do meio”, não um direito do homem e não um direito da natureza, nem antropocêntrico nem biocêntrico, mas um Direito que se ocupe da relação homem-natureza. Foca-se na relação e não nos elementos que interagem.

Enfim, somente o pensamento complexo permitirá ao Direito Ambiental democrático assumir um papel mediador e organizador na interação dos conhe-cimentos necessários ao enfrentamento da crise ambiental.

7. referências

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a tutela ambiental e a proteção aos recursos ambientais no projeto do

novo código penal brasileiro

Tarsis Barreto Oliveira1

Suyene Monteiro da Rocha2

Resumo

A matéria ambiental ocupa o cenário político, seja em âmbito interno ou externo, há mais de quatro décadas. Os debates e embates na busca de mecanismos capazes de proteger o meio ambiente e, por consequência, a qualidade de vida humana têm sido um desafio político. A historiografia da tutela ambiental brasileira é singular, uma vez que a mesma se inicia na década de 1930, mas suas bases se consolidam com a edição da Política Nacional de Meio Ambiente em 1981. A partir desta, inúmeros instrumentos legais para uso, manejo, conservação e proteção ambiental foram editados, entre eles a Lei de Crimes Ambientais – Lei nº 9.605/1998, que disciplina as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, tendo sua regulamentação no Decreto nº 6.514/2008. Todavia, tramita atualmente no Congresso Nacional o Projeto de atualização do Código Penal Brasileiro: o PSL-236/2012, que traz entre as suas inovações o Titulo XIV – Dos Crimes contra interesses metaindividuais, com tipos penais do art. 388 ao 426, tendo como tutela o meio ambiente. A partir deste contexto, apresenta-se uma nova ordem para as sanções penais e administrativas por atos lesivos ao meio ambiente. O presente trabalho busca, de forma propositiva, construir uma visão crítica da temática ambiental, dentro do

1 Doutor em Direito Público pela UFBA. Mestre em Direito Econômico pela UFBA. Professor Adjunto de Direito Penal da Universidade Federal do Tocantins. Coordenador e Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT. Coordenador e Professor da Especialização em Ciências Criminais da UFT. Editor Científico da Revista de Direito da Escola Superior de Magistratura Tocantinense. Parecerista da Revista Jurídica da Presidência da República. Palestrante a autor de obras jurídicas.

2 Doutoranda em Biodiversidade e Biotecnologia da Amazônia Legal - Programa BIONORTE. Mestre em Ciência do Meio Ambiente – UFT. Professora Assistente na Universidade Federal do Tocantins. Professora da Especialização em Ciências Criminais da UFT e do Programa Mestrado Interdisciplinar Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos -UFT. Líder do grupo de pesquisa CNPq: Políticas Públicas Ambientais e Sustentabilidade.

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cenário trazido pelo projeto do novo Código Penal brasileiro, considerando-se, ainda, as peculiaridades da temática relativa ao meio ambiente.

Palavras-chave

Meio Ambiente; Tutela Penal; Novo Código Penal Brasileiro.

Abstract

Environmental matter takes on a political scenario, either in internal or in external perspective for more than four decades. The debates and conflicts in the search of procedures able to protect the environment, and thus, the quality of human life has become a political challenge. The historiography of environmental protection is singular, once it initiates in the decade of 1930, even though its grounds are consolidated with the edition of the environmental national policy of 1981. From that moment on, a great number of legal instruments regulating the use, management, conservation and environment protection were edited. Among them there is the Law of environmental crimes – Law n. 9.605/1998, which regulates penal and administrative punishments derived from conducts and activities harmful to the environment which was regulated through Law nº 6.514/2008. Neverthless, there is a Project still in Brazilian National Congress for the update of Brazilian Penal Code: PSL 236/2012, which brings two innovations: Title XIV – Crimes against metaindividual interests, with types from articles 388 to 426, having the aim to protect environment. In this context, it is presented a new order for penal and administrative punishments for acts considered harmful to environment. The present work aims, in a propositive way, build up a critical perspective of environmental matters, in the scenario brought by the new Brazilian Penal Code, considering also the particularities of the matters related to environment.

Key words

Environment; Penal protection; New Brazilian Penal Code.

1. tutela ambiental

O termo meio ambiente é, certamente, o mote de relevantes debates jurídicos na atualidade. As problemáticas que ora se apresentam nos meios de comunicação,

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via de regra, possuem conexão com as ações humanas e suas consequências na natureza: poluição atmosférica, resíduos sólidos, ausência ou excesso de água, aumento da temperatura, desertificação, desmatamento, etc., fatores esses que se sobressaem quando a historia nos evidencia que a proteção ambiental:

não faz parte da cultura nem do instituto humano. Ao contrário, conquistar a natureza, sempre foi o grande desafio do homem, uma espécie que possui uma incrível adaptabilidade aos diversos locais do planeta e uma grande capacidade de utilizar os recursos naturais em seu benefício (GRANZIERA, 2014, p. 22)

Apesar de todo o reconhecimento conferido à biodiversidade e a sua posição de destaque na manutenção da vida, as continuas ações de degradação ambiental são incomensuráveis, olvidando-se que: “Todos, direta ou indiretamente, são responsáveis pela degradação ou deterioração do meio ambiente” (BARBOSA, 2011, p. 33) seja empresa, governo ou sociedade, pois na era contemporânea o conhecimento circula na velocidade megabits, alegar o “(des)saber” é renegar a própria essência da sua existência.

Silva & Duarte Junior (2012, p. 61-62) refletindo acerca do modelo de desenvolvimento do século 21, ponderam:

Il est également indéniable que le modèle de développement qui guide les économies du 21ème siècle a constamment laissé de côté l’environnement, à la fois dans sa condition de droit fondamental visant la préservation de la biodiversité, comme expression d’un patrimoine commun de l’Humanité ou en tant qu’instrument de conservation de l’histoire et condition de la survie de l’être humain. C’est évident, d’une part, dans le grand développement économique, social, culturel scientifique, technologique de certains États et, d’autre part, dans les marques permanentes laissées par les catastrophes naturelles et par les accidents technologiques qui ont eu lieu au cours des dernières décennies.

O maior patrimônio de um país são os seus indivíduos, mas a maior riqueza que possui é o seu Patrimônio Genético, há o valor natural, paisagística, cultural, a se considerar. Mas há que se ponderar ainda, a cerca do valor econômico dos recursos naturais, estudos e pesquisas, a partir de recursos biológicos podem proporcionar o desenvolvimento de produtos inovadores capazes de gerar

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dividendos expressivos a empresas e países. Não há modelo matemático capaz de quantificar a potencialidade real de um patrimônio genético, haja vista o parco número de espécies conhecidas e estudas, ante a megadiversidade existente.

Neste turno, Ferrer (2012, p. 324) ao analisar os cenários políticos e sociais da Rio-92, considera que:

[…] los grandes temas ambientales que comprometen la salud del Planeta fue Río´92. Desde entonces, y aun antes, tenemos bien identificados los males que aquejan al ecosistema planetario, tenemos idea de cómo minimizarlos y corregirlos y qué debemos cambiar en nuestros comportamientos, individuales y colectivos, para hacer posibles las soluciones. En pocas palabras, sabemos con razonable exactitud que estamos haciendo mal y que es lo que deberíamos hacer para mejorar nuestra relación, en tanto especie, con la naturaleza.

Partindo de uma visão holística do sistema ambiental, Sirvinskas (2013, p. 639) conceitua patrimônio genético como o “conjunto de seres vivos que habitam o planeta Terra, incluindo os seres humanos, os vegetais e os microorganismos. A variabilidade dos organismos vivos é que permite a vida do ser humano na Terra.”

Dada a relevância do patrimônio genético, no qual os seres humanos estão incluídos, associa-se o desenvolvimento sustentável, que:

engloba a sustentabilidade nas diversas formas de desenvolvimen-to do progresso humano; podendo ser subdividida, tal sustentabi-lidade, a priori, em: sustentabilidade ambiental, sustentabilidade econômica e sustentabilidade sociopolítica. Um dos enfoques pro-porcionados pelo advento da sustentabilidade é a Terra vista sob uma nova perspectiva, como um planeta frágil, que inspira cuida-dos; sendo responsabilidade humana velar por ele. Neste sentido, toma-se a consciência de que é dever da humanidade proteger o planeta dos excessos cometidos pela própria humanidade (GON-ÇALVES, et al, 2013, p. 108)

Nos dizeres de Fiorillo e Diaféria (2012, p. 33) “por ser notória a característica difusa do meio ambiente, não há como nos furtamos ao tratamento responsável que este merece, em virtude da essencialidade da qualidade de vida para a manutenção do equilíbrio do ecossistema planetário”

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A proteção jurídica como forma de tutelar a manutenção dos recursos naturais e, por consequência, a existência humana tem sido um dos mecanismos em evidencia nas ultimas décadas, seja pelas conferencias internacionais realizadas3, seja pela quantidade de instrumentos normativos editados pelos países ao longo deste período.

Hamady (2012, p. 126-127) faz uma crítica ao conjunto de instrumentos de proteção ambiental:

Les instruments juridiques de protection de l’environnement sont nombreux et divers. Il en existe une pléthore dont l’harmonisation reste à assurer. On compte, environ, 500 traités multilatéraux sur l’environnement. Chacun de ces accords prévoit, dans bien des cas, des mécanismes de mis en oeuvre sans qu’il existe nécessairement une articulation entre eux. C’est dire que le droit international de l’environnement est un ensemble désordonné d’instruments et d’institutions juridiques qu’il importe d’ordonner.

A historiografía da tutela ambiental Brasileira é escrita de forma mais contundente, em concomitância com a global, sendo a Conferencia das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, ocorrida em Estocolmo – Suécia, em 1972, o marco inicial desta história. O evento, as repercussões dos debates e o Relatório Brundtland trazem um novo enfoque para o âmbito político, que, de forma assimétrica, altera paulatinamente os olhares institucionais.

Construindo uma cronologia normativa brasileira pode-se traçar um panorama do tratamento dispensado ao meio ambiente pelo governo, antes da Conferência de Estocolmo, o que se observa com as seguintes regulamentações: Decreto nº 24.114, de 12 de abril de 1934, que aprova o Regulamento de Defesa Sanitária Vegetal; Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934 - Código de Águas, Estatuto da Terra - Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964; Código Florestal - Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, revogado recentemente pela Lei nº 12.651,

3 As principais Conferências Internacionais sobre meio ambiente são: Conferência sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, na Suécia, 1972. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – Rio-92, Eco-92 ou Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro - Brasil, 1992. A Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+10, em Joanesburgo, na África do Sul 2002. A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, 2012.

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de 25 de maio de 2012; Proteção à fauna - Lei nº 5.197, de 03 de janeiro de 1967. Observa-se que a tutela ambiental brasileira revelou-se precoce, tendo sido levada a efeito no inicio dos anos de 1930, na Era Vargas.

Apesar de normas protetivas ambientais terem seu inicio na década de 1930, a Política Nacional do Meio Ambiente - Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, é o marco da institucionalização da matéria ambiental no Brasil. A partir dela, iniciou-se um processo de organização e estruturação de uma política que fosse capaz de atender a essa nova demanda governamental, seja com a edição de leis ambientais, seja com a formação de órgãos e departamentos para a dinamização da proteção em voga.

Nesse sentido, corrobora Figueiredo (2013, p. 31):

No Brasil, desde a década de 1930 já existiam leis codificadas versando sobre o uso das florestas, águas e minas, isto sem falar de uma lei voltada exclusivamente à proteção do patrimônio cultural e de uma profusão de disposição voltadas à promoção do saneamento ambiental. No entanto, somente quatro décadas demais tarde é que começaria a se falar em legislação ambiental.

A Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), no artigo 3º e incisos, traz um conjunto de conceitos que fornecem as diretrizes na estruturação do direito ambiental, sendo esses o de meio ambiente, degradação da qualidade ambiental, poluição, poluidor e recursos ambientais.

Relevante evidenciar que o conceito de meio ambiente possui uma conotação mais extensiva que outrora, tendo a Constituição Federal de 1988 considerado subdivisões ao meio ambiente, revelando-se ele natural, cultural, artificial ou do trabalho.

Neste sentido, o meio ambiente pode ser compreendido na seguinte perspec-tiva: “meio ambiente natural – florestal, lacustre, marinho, fluvial, espeleológico; meio ambiente artificial, subdividindo-se em duas espécies: urbano e rural; meio ambiente cultural, dividindo-se em histórico, artístico, turístico, paisagístico, arqueológico, paleológico, religioso; e meio ambiente laboral, repartindo-se em trabalho urbano, trabalho rural e trabalho doméstico” (FIGUEIREDO, 2013, p. 68) . Para cada um desses elementos tem-se normas especificas que foram editadas

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para o uso, conservação e manejo dos recursos, a exemplo do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o Estatuto das Cidades, sanções penais e administrati-vas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, Política Agrícola, Política de Educação Ambiental, Política Nacional de Gerenciamento Costeiro, entre outras.

A matéria ambiental é interdisciplinar por essência, conectando-se um sistema interativo e autorregulador composto por aspectos físicos, químicos, biológicos e humanos, a fim de que se possa construir uma vida equilibrada e equânime a todos os integrantes do sistema planetário. Neste sentido, o direito ambiental se relaciona com outras áreas do saber de uma forma singular na construção de seus princípios, valores e conjuntos normativos, tais como ecologia, economia, biologia, geografia, química, urbanismo, engenharia, antropologia, sociologia, história e engenharia.

O Direito Ambiental, mais do que disciplinar o comportamento relacionamento ao meio ambiente, estuda as normas e os princípios que regulam a proteção do meio ambiente natural e de ambiente construídos ou artificiais.

O beneficiário da tutela ambiental, em um primeiro plano, é o meio ambiente, como um macrobem; os bens ambientais, microbens; e, em segundo plano, o beneficiário dessa proteção é o próprio homem (GRANZIERA, 2014, p. 09).

2. tutela penal ambiental

A proteção ambiental querer a convergência das diversas áreas do conhecimento. E no que concerne ao Direito em especifico, os diversos domínios desta ciência ocupam espaços que se interconectam na tutela dos recursos naturais. Em primeiro plano, o Direito Constitucional, por excelência. Por conexão, tem-se o Direito Econômico, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito Administrativo e Direito Penal.

Em uma sociedade de risco, na qual a percepção desse risco gerado é diferente, calcado nos princípios ambientais da precaução, prevenção e reparação, o Direito Penal possui instrumentos significativos na defesa do meio ambiente, tendo em vista o seu papel repressivo e educativo.

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A Carta Constitucional de 1988, em seu art. 225 § 3º, estabelece que

Art. 225. [...]

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.4

Tendo ainda o Brasil se comprometido quando da assinatura da Declaração do Rio, na Eco-92, instituindo, em seu artigo 13:

Os Estados irão desenvolver legislação nacional relativa à responsabilidade e à indenização das vítimas de poluição e de outros danos ambientais.

Os Estados irão também cooperar, de maneira expedita e mais determinada, no desenvolvimento do direito internacional no que se refere à responsabilidade e à indenização por efeitos adversos dos danos ambientais causados, em áreas fora de sua jurisdição, por atividades dentro de sua jurisdição ou sob seu controle.5

Sob esse espectro, novos valores são concebidos e constituídos originando um microssistema na consolidação do Direito Penal Ambiental. Com fulcro na tutela de direitos fundamentais e na obtenção de um bem-estar socioambiental para a coletividade, emerge uma nova política criminal.

As lesões ou ameaças de lesões que pessoas físicas ou jurídicas possam ocasionar ao meio ambiente, em todas as seus matizes constitucionais, constituir-se-ão no objeto de tutela do bem jurídico relacionado (meio ambiente ecologicamente equilibrado), sancionado pelo Direito Penal Ambiental.

Há uma ambivalência de instrumentos na tutela penal ambiental. Isso se dá pela fusão de dois objetos: o ambiental e o penal; assim há uma necessidade de harmonização principiologica e dogmática para uma melhor aplicabilidade dos tipos sancionadores.

4 Legislação de direito ambiental. Obra Coletiva de Autoria da Editora Saraiva com Colaboração de Antonio Luiz de Toleto Pinto, Marcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. São Paulo: Saraiva,2011, p. 12

5 Disponível em :<http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf> Acesso em: 14. jun.2014

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Todavia, o que observa é a ausência de linearidade na aplicabilidade dos princípios penais ambientais por parte dos julgadores, conforme de observa nos seguintes julgados:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME AMBIENTAL. AUSÊNCIA DE DANO AO MEIO AMBIENTE. CONDUTA DE MÍNIMA OFENSIVIDADE PARA O DIREITO PENAL. ATIPICI-DADE MATERIAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO.

1. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o prin-cípio da insignificância tem como vetores a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inex-pressividade da lesão jurídica provocada. 2. Considerando-se a inexistência de lesão ao meio ambiente (fauna aquática), tendo em vista a quantidade ínfima de pescado apreendido com o acusado, deve ser reconhecida a atipicidade material da conduta. 3. Agravo regimental improvido (RHC 32220 / RS - DJe 15/10/2012)

Neste primeiro contexto, o principio da insignificância penal foi aplicado em esfera ambiental alicerçado na inexistência de potencial lesão ao recurso natural.

No segundo julgado o que observa é a desconfiguração do principio da insignificância penal em matéria ambiental pela relevância do bem tutelado.

HABEAS CORPUS. CRIME AMBIENTAL. PESCA EM PERÍODO PROIBIDO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. ESPECIAL RE-PROVABILIDADE DA CONDUTA NO CASO CONCRE-TO. HABEAS CORPUS DENEGADO.

1. A aplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes contra o meio ambiente, reconhecendo-se a atipicidade material do fato, é restrita aos casos onde e a conduta do agente expres-sa pequena reprovabilidade e irrelevante periculosidade social. Afinal, o bem jurídico tutelado é a proteção ao meio ambiente, direito de natureza difusa assegurado pela Constituição Federal, que conferiu especial relevo à questão ambiental. 2. Não se insere na concepção doutrinária e jurisprudencial de crime de bagatela a conduta do Paciente, pescador profissional, que foi surpreendi-

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do pescando com petrecho proibido em época onde a atividade é terminantemente vedada. Há de se concluir, como decidiram as instâncias ordinárias, pela ofensividade da conduta do réu, a quem se impõe maior respeito à legislação ambiental, voltada para preservação da matéria prima de seu ofício. 3. E, apesar de terem sido apreendidos apenas 05 kg (cinco quilos) de peixe, nos termos da jurisprudência desta Corte Superior: “A quantidade de pesca-do apreendido não desnatura o delito descrito no art. 34 da Lei 9.605/98, que p une a atividade durante o período em que a pesca seja proibida, exatamente a hipótese dos autos, isto é, em época de reprodução da espécie, e com utilização de petrechos não permi-tidos.” 4. Ordem de habeas corpus denegada (HC 192696/SC, 5.ª Turma, Rel. Min. GILSON DIPP, DJe de 04/04/2011)

Freitas & Freitas (2012, p. 34) , por seu turno, apontam que: “A sanção penal em determinados casos se faz necessária não só em função da relevância do bem ambiental protegido, como também da sua maior eficácia dissuasória”. Já Bouloc, Lavasseur e Stefani6 reforçam a necessidade de o Direito Penal intervir minimamente na criminalização de condutas, tendo como base, precipuamente, a relevância dos bens jurídicos considerados.

Como se nota, a ausência de sintonia e linearidade entre a tutela ambiental e penal ambiental acaba por suscitar, comumente, posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários díspares. Essas diferenças somente podem ser equacionadas na ampliação do discurso técnico e jurídico sobre o tema, promovendo-se a uniformização dos princípios relativos ao meio ambiente, a adoção de instrumentos punitivos em sintonia com a máxima penal garantista e a crença no fortalecimento de um Direito administrativo sancionador capaz de levar a efeito instrumentos de punição efetivos aos violadores de ordem jurídica.

6 “Toutes les règles en usage pour les rapports entre les hommes ne sont pas également importantes pour l’ordre public; il est bon qu’aucune de ces règles ne reste sans sanction, mais ces sanctins ne doivent pas toujours être empruntées au droit pénal, ce dernier ne doit intervenir que dans les cas les plus graves. La première tâche qui s’impose aux pouvoirs publics est donc de déterminer quelles sont les prescriptions dont l’importance justifie ces sanctions exceptionnelles; c’est le problème de l’incrimination; il commande tous les autres. Que ces incriminations soient établies de façon coutumière ou par un texte, la lutte contre la criminalité, sur quelque plan que ce soit, ne pourra être organisée qu’ensuite.” BOULOC, Bernard; LEVASSEUR, Georges; STEFANI, Gaston. Droit pénal général. 14. ed. Paris: Dalloz, 1992, p. 17.

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3. a proteção ambiental no projeto do novo código penal brasileiro

O meio ambiente7, em suas diversas esferas, tem sido objeto nas últimas décadas de acentuada proteção conferida pelo Direito Penal.

A necessidade de tutela jurídico-penal do meio ambiente repousa na acentuada relevância e substancialidade do bem jurídico considerado, cuja proteção, legitimada por seu caráter universal, abarca interesses e valores que fundamentam a relevância da incidência do Direito criminal.

Não obstante reconhecer-se esta necessidade, não se crê na tutela penal como solução exclusiva para a proteção do meio ambiente. As disposições legislativas relativas ao meio ambiente, levadas a efeito nas últimas décadas, não obstante seus avanços na construção de regras e princípios norteadores da proteção ao meio ambiente, não foram capazes, por si só, de impedir sucessivas violações ao bem jurídico relacionado.

A par disso, observam-se na legislação ambiental inúmeras imperfeições de ordem técnica. Dentre elas, aponta Rosseto (2007, p.352) a ausência de sintonia com o Código penal. Isto se revela, segundo o referido autor, na desnecessidade de criação de determinadas circunstâncias de crime já previstas no Código Penal, tendo se olvidado o legislador pátrio que este se aplica subsidiariamente às demais legislações de ordem criminal, denominadas de extravagantes.

A isto se acrescenta, ainda, a utilização da técnica legislativa das denominadas normas penais em branco, assim entendidas como normas de conteúdo vago e impreciso, complementadas por outras normas de natureza jurídica (normas

7 Meio ambiente natural: aquele que existe por si só, independentemente da influência do homem. Exemplo: a atmosfera, a água (rios, mares, lagos etc.), a flora, a fauna, o solo. Meio ambiente artificial: aquele que decorre da ação humana. Exemplo: conjunto de edificações, prédios, fábricas, casas, praças, ruas, jardins, o meio ambiente do trabalho, enfim, tudo o que é construído pelo homem. (Obs.: mesmo que se localizem no meio de uma mata, por exemplo, serão considerados parte do meio ambiente artificial, visto que decorrem de intervenção humana no meio ambiente natural.) Meio ambiente cultural: constituído pelo patrimônio arqueológico, artístico, turístico, histórico, paisagístico, monumental etc. Também decorre da ação humana, que atribui valores especiais a determinados bens do patrimônio cultural do País. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação penal especial. V. 4. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 70-71.

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penais em branco homogêneas) ou não jurídicas (normas penais em branco heterogêneas), a fim de conferir àquelas legalidade. Para Gomes (2008,p. 223), não obstante a existência das normas penais em branco revelar-se necessária para a integração do ordenamento jurídico em função de realidade natural e socioeconômica extremamente complexa, por vezes a sua utilização no plano da legislação ambiental acaba por erigir estruturas normativas de natureza extremamente subjetiva, resultando na construção de tipos penais abertos, vagos e imprecisos.

Freitas & Freitas (2012, p. 37) ao analisarem a norma penal em branco e seu cabimento nos crimes ambientais afirmam ser de todo necessária. Assim como para Granziera (2014, p. 760), “a norma penal em branco, em certos casos consiste, na única alternativa juridicamente viável para estabelecer, com o necessário detalhe, um determinado tipo penal e assegurar o cumprimento da norma”. Sirvinskas (2013, p. 846) afirma que “a temática é polêmica tanto no Brasil como em outros países”.

As imperfeições visualizadas na Lei 9.605/98 (atual Lei de Crimes Ambientais) também se repetiram no Projeto do novo Código Penal. O referido Projeto, levado a efeito por questionada comissão de representantes, apresentou, findos os trabalhos em 2012, um Projeto bastante criticado por muitos juristas. Ditas críticas repousam não apenas na ausência de técnica legislativa, mas também na infelicidade do legislador ao esculpir dispositivos penais ausentes de lógica, substância e materialidade, mormente na construção de figuras típicas em flagrante descompasso com a moderna sistemática garantista.

Tais imperfeições do Projeto do Novo Código Penal também foram verificadas no que tange aos crimes ambientais, que estão disciplinados na Parte Especial no Título XIV - Crimes contra interesses metaindividuais, Capítulo I – Dos crimes contra o meio ambiente.

Note-se, por exemplo, a grande discrepância no tratamento conferido por nosso legislador aos seres humanos e aos animais. Não obstante reconhecer-se a necessidade de tutela jurídico-penal da fauna pátria, é nítida a disparidade de tratamento conferida no Projeto do Novo Código Penal aos animais, em detrimento dos seres humanos. Observe-se, por exemplo, a novidade legislativa

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trazida com o tipo do Art. 391 do Projeto, e seu confronto com o disposto no Art. 134 do Código Penal vigente, disciplinando o crime de maus-tratos:

Art. 391. Praticar ato de abuso ou maus-tratos a animais domésticos, domesticados ou silvestres, nativos ou exóticos:

Pena - prisão, de um a quatro anos.

Art. 134. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de  alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena – prisão, de um a cinco ano.

A mesma disparidade de tratamento é verificada ao se confrontar o tipo do artigo 391 do referido Projeto (criminalizando a figura da omissão de socorro a animal) ao Art. 135 do vigente Código Penal (omissão de socorro):

Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

Art. 394. Deixar de prestar assistência ou socorro, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, a qualquer animal que esteja em grave e iminente perigo, ou não pedir,  nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena – prisão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço a um sexto se o crime é cometido por servidor público com atribuição em matéria ambiental.

Do exame dos citados artigos verifica-se que as críticas repousam não apenas na eventual inconveniência de se criminalizar a omissão de socorro a animais,

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estabelecendo-se, frise-se, pena privativa de liberdade ao pretenso infrator, mas, em maior medida, à total discrepância na mensuração dos bens jurídicos comparados no que tange à intensidade da reprimenda (um a seis meses ou multa na hipótese de ter-se como sujeito passivo o ser humano) e um a quatro anos, sem a previsão de multa (na hipótese de ter-se como sujeito passivo um animal).

As discrepâncias aqui referidas (e muitas outras) revelam a construção normativa de um Código anacrônico e desprovido de adequada técnica legislativa, cujas imperfeições denunciam não apenas a ausência de suficiente conhecimento científico sobre a realidade ambiental, mas a utilização de mecanismos ideológicos que, longe de conferirem efetividade à tutela do meio ambiente, acabam por cumprir meramente uma função simbólico-estratégica de caráter procedimental.

4. a busca de uma tutela efetiva do meio ambiente

A crença na lei como mecanismo exclusivo de proteção ao meio ambiente constitui uma perspectiva ilusória e desprovida de concreção. Isso se verifica na constatação da ineficiência do caráter dissuasor da norma incriminadora ambiental, a repercutir na incidência cada vez mais frequente de violações aos bens juridicamente protegidos pela lei.

A esta ineficiência se acrescenta a construção de leis ambientais marcadas por um acentuado valor simbólico. Sobre este aspecto, pontua Epifânio (2008, p. 77):

O maior desafio que podem assumir os juristas para a futura proteção do meio ambiente passa, antes de tudo, por denunciar este fracasso e romper com a imagem de que, estabelecendo legalmente figuras de delitos ambientais, o Estado faz efetivamente algo pelo meio ambiente. Entre as medidas positivas a adotar, a nosso juízo, está a de promover a articulação de mecanismos jurídicos que, seja qual for o seu tipo, sejam realmente úteis no modelo de gestão ambiental que constitucionalmente nos foi outorgado.

Constitui tarefa inexorável superar a crença na lei como instrumento exclusivo de transformação. Barros (1996, p. 183) aponta a alteração do código de valores que determina a direção da economia, fazendo-a convergir para um sistema em que a sustentabilidade ambiental e a dignidade humana estejam presentes, sendo esta a condição básica para a sustentabilidade humana no planeta.

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Este é o desafio da construção de uma nova ética ambiental, consubstanciada, na visão de Araújo (1996, p.11), num dever de responsabilidade coletiva, alicerçada em um novo compromisso de corresponsabilidade entre os seres humanos como elemento construtor de um novo paradigma ecológico.

Esta nova crença representa, para Arantes (2011, p. 289), a superação do modelo antropocêntrico por uma perspectiva mais abrangente de vida, em que os interesses do mundo natural e dos seres vivos possam prevalecer, dado o reconhecimento do valor intrínseco que possuem..

Não se descura, neste novo cenário, o papel essencial a ser desempenhado pelo Poder Executivo, não apenas na fiscalização e proteção mais efetiva do meio ambiente, mas também, como lembrado por Carvalho (2008, p. 107-108), pelo compromisso em dar concretude e realizibilidade aos valores resguardados na Constituição, trazendo para o plano real e prático a tutela prometida dos bens jurídicos ambientais.

4. concluões

A responsabilidade na formação de espaços de convergência para a gestão, utilização e manutenção dos recursos naturais é coletiva, sendo estabelecida na ordem ambiental internacional e nacional a corresponsabilidade na formação das diretrizes das ações ambientais. A voz que ressoa em conjunto propicia a formação de novos espaços e horizontes mais profícuos no que concerne à proteção ambiental.

Neste sentido, a construção e consolidação de uma postura critica e reflexiva nas ações econômicas, desenvolvimento industrial, consumo, influenciam de forma direta no manejo dos recursos ambientais.

Coletivamente há um pensamento consolidado de que todos os delitos ambientais são penalmente mais gravosos que os delitos cometidos contra seres humanos, ou mesmo que todo dano ambiental é passível de detenção ou reclusão. São essas, certamente, assertivas construídas a partir de uma compreensão distorcida da realidade existente no plano normativo penal ambiental.

Todavia, a releitura, ou nova previsão normativa de tutela ao meio ambiente no novo Código Penal também não converge para o que se propõe o objeto em

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apreço, que é o meio ambiente. Isso porque as novas disposições em nada ou em muito pouco se fazem novas em usa tipologia, e as questões que grativam em torno da pena evidenciam uma hipertrofia na compreensão do objeto tutelado.

As 5 (cinco) seções presentes no Capítulo I “Dos crimes contra o meio ambiente” são as mesmas previstas na Lei de crimes ambientais – crimes contra a fauna, crimes contra a flora, da poluição e outros crimes, dos crimes contra o ordenamento urbano e patrimônio cultural e, dos crimes contra a administração ambiental. É certo que tipos novos foram criados, mas a maioria são repetições dos já existentes na Lei de Crimes Ambientais.

Com a leitura das disposições transitórias do projeto do Novo Código Penal – PSL 236/2012 se verifica a revogação da Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes ambientais) em seus artigos 2º, 3º, 6º ao 23, 26, 29 ao 69-A. Nesses termos, todos as tipificações previstas pela Lei de Crimes ambientais serão revogadas.

Deve-se ponderar que questões importantes no debate de construção do Direito Penal Ambiental não foram apreciadas pelos membros da Comissão de juristas que integram o referido projeto, a exemplo do uso de normas penais em branco, os tipos penais abertos em matéria ambiental, o conflito na aplicação da principiologia ambiental e penal. Isto se denota da mera repetição de diversos tipos previstos na Lei 9.605 /1998 (Lei de Crimes ambientais).

O que se verifica na maioria dos tipos previstos na Lei de Crimes Ambientais, em uma analise comparativa com as disposições previstas no projeto do Novo Código Penal para defesa ambiental, é a majoração da sanção a ser aplicada e a exclusão da multa.

Esses dois elementos carecem de uma melhor consideração sob a égide ambiental. A defesa dos recursos ambientais não está conectada a uma sanção majorada, mas sim a uma efetividade da pena prevista e da sanção aplicada. O que se vislumbra ao longo das quase duas décadas de existência da Lei de Crimes Ambientais é a fiscalização precária, os poucos programas de educação ambiental não formal, órgão administrativo com número de corpo técnico incipiente, ou seja, um sistema deficitário. Não será o aumento da pena que trará à coletividade a conotação da necessidade de se usar e resguardar os recursos naturais com responsabilidade, e, consequentemente, o cumprimento da proteção ambiental.

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Já no que tange às multas, essas possuem um caráter educativo/ disciplinar, apesar do ceticismo quanto à sua aplicação e funcionalidade.

A proteção do meio ambiente, o papel das diversas ciências, a função do Direito e do Direito Penal nesse complexo contexto sempre será objeto de debate e controversas. Posicionamento unanime, certamente, é o que não se obterá por um longo tempo. O entendimento, entretanto, é uníssono de que a manutenção dos recursos naturais é fundamental para a sobrevivência humana e que o uso, manejo, conservação das espécies são vitais para a sobrevivência planetária. Neste plano, a construção de um diálogo mais consistente na elaboração de um espaço de convergência entre as áreas do conhecimento para a formação e consolidação deste cenário se faz necessário.

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