DADOS DE COPYRIGHT · velha prima que cosia, o ruído que faziam os ferros de engomar sobre as...

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"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."

ContosPátrios

OlavoBilaceCoelhoNettoFranciscoAlves

1931

1.AFronteiraCoelhoNetto

Noitealtaemorna:o rio rolavavagarosamenteassuasgrandeságuas,eavenerandaseiva,de

troncosvirgens,enchiaasolidãocomoseumurmúriosolene,quandochegouaopovoadoumcavaleiro.Oanimal,queelecavalgava,humildeearquejante,denunciavaumlongoedesabridogalope:eapressacom que saltou da cela á porta da primeira cabana, fechada e silenciosa, fazia suspeitar que algumacontecimentograveo levavaaempreender tãoarriscadaviagem,atravésdaflorestapercorridapelosanimaisbravios.

Bateu com força e, como não lhe respondessem, bateu de novo: falaram.— Abre!— bradouimperativamente.Logorangeuoferrolho,enumraiodeluzapareceunolimiardaportaavalidafiguradeumsertanejotrazendoapenassobreocorpoumacamisolaamplaquelhechegavaaospés.

— As nossas terras vão ser tomadas: — disse o recém-chegado, antes mesmo de saudar osertanejo.—Vimporessasmatasatodogalopeparaverseaindachegavaatempodeprevenir-vos.

—Vãosertomadas!—exclamouooutro,pasmado.—Sim.Estrangeirosefetuaramumdesembarqueevêmpelafloresta,armados.—Eentão?Quehavemosdefazer?—Armemo-nos.—Quantossãoeles?—Nãosei:onúmeropoucoimporta,onecessárioéquenosdefendamos.—Eseelesforemmuitosuperioresemnumero?— Não importa. Se eu aqui vivesse isolado, da porta da minha cabana faria fogo sobre os

invasores até cair atravessado por uma bala. Somos ao todo vinte e três homens, eles são talvezduzentos...masvamos!Arma-teevem:acordatuamulhereteufilho,euvouprevenirosmais.

Osertanejoestevealgum tempohesitante.Omurmúrioda florestacresciacomovento,dando,porvezes,ailusãodetamboresrufados,aolonge.

—Elesaívêm...—Elesaívêm:nãohátempoaperder!Semorrermos,todososnossoscorposficarãomarcandoa

fronteiradaPátria.Pelasnossasossadasepelascinzasdasnossascabanas,osquevieremmais tardeconhecerãoolimitedoBrasil.Vamos!Falta-nosumabandeira; temos,porém,océu,ograndecéu;eochoroassustadodenossosfilhosexcita-nosmaisdoqueosclarinsdeguerra.Vamos!

—Vamos!—bradouosertanejo,correndoabuscarasuaarmadecaça.Quando luziu amadrugada formosa, todos os homens do povoado estavamde pé, de arma em

punho,entrincheirados,esperandooinvasor.Asmulheresintrépidas,quenãohaviamqueridodeixarosmaridos,apertavamaocoloosfilhos

quedormiam,etodososolhosestavamcravadosnocaminhoondedeviamaparecerosestrangeiros.Era quase meio dia, o sol abrasava, quando os primeiros soldados surgiram tranqüilamente,

pisando comorgulho a terra que julgavamabandonada: á frente caminhava o oficial garboso, fazendobrilharaosolaespadanua.Masumgritoatroou:—“VivaoBrasil!”—elogoumadescargaretumbouno silencio. Os invasores, surpreendidos, recuaram: eram em numero muito superior ao dos quedefendiamaterranatal,postoquecincod’elesjáescabujassemnosoloalcançadospelasbalascerteirasdossertanejos.

Ressoaramclarins, e, em filacerrada,os invasoresavançavam:novadescarga,porém, fezqueretrocedessem,deixandonocamponovosmortos.

Enãoviamoinimigo;davamtirosaoacaso,aterrados,comosesebatessemcomosobrenatural,

até que uma nova descarga os colheu, sendo atingido o oficial, que rolou por terra moribundo.Desanimados,osinvasoresrecuavam,sempreatirandoaoacaso,sempreperseguidospelasbalasdosquedefendiamaterradapátria,atéquealcançaramosbarcoseprecipitadamentepassaramáoutramargem.Delonge,então,atravessandoaságuas,viramaparecerosheróisquesehaviambatidoentrincheiradosnasprópriascabanas,tendoaoladoasmulheres,osfilhos,osvelhospaisqueosanimavam.Easelvagrandeevenerandapareciaaplaudirosseusfilhosvalentescomasuagrandevozmurmurosaeconstante.E até alta noite, enquanto abriam covas para enterrar os inimigos mortos, bradavam delirantemente,vitoriosamente:— Viva o Brasil! — contentes por haverem defendido a fronteira, da qual eram osguardasfieis,contrasasmãosrapazesdoestrangeiro.

2.MãeMariaOlavoBilac

Éaindaesta,nofimdeminhalongavida,tãocheiadealegriasedetristezas,arecordaçãomais

fundaqueguardodentodaalma.Fechando os olhos, paramais claramente evocar amemória dos dias daminha infância, vejo

logo,nitidamentedesenhadapelaminhasaudade,adocefiguradavelhamãoMaria.Tãovelha!...Quandonasci,jáoseucabeloencarapinhadoembranquecia.Aindaviveucomigounstrezeanos.Enuncaninguémmesoubedizerondemorreu,eondefoidormiroúltimosonooseucorpodevelhaescrava,alquebradoporquaseumséculodecativeiroedetrabalho.

***

Comprar e vender escravos era, naquele tempo, uma coisa natural. Ninguém perguntava a um

negro comprado o seu passado, como ninguém procurava saber de onde vinha a carne com que sealimentavaouafazendacomquesevestia.DeondevinhaavelhaMaria,quando, logodepoisdemeunascimento,meupaiacomprou?Seiapenasqueeraafricana;etinhatalvezumpassadoterrível:porque,quando a interrogavama esse respeito, umgrande terror lhedilatavaosolhos, e as suasnegrasmãosreluzentesecalejadaseramsacudidasdeumtremorconvulsivo.

Conosco,asuavidafoiquasefeliz.Nacidade,ocativeiroerainfinitamentemaisbrandoquenaroça.Aqui,sehaviamenostrabalhosemtréguas,nãohavia,aomenos,ochicotedofeitor.Láfora,sim!láfora,eraalabutaestalfantedocafé,osdiasterríveissobosolimplacável,acomidapoucaeocastigomuito.Maria,quandoeuàsvezeslheperguntavaoqueeraaroça,ficavacalada,olhandoochão,comoseestivesserevendocomhorrorotormentod’essavidaantiga.Umdia,despiuameioacamisadealgodãogrosso, emostrou-me as costas e o peito. A pele preta estava de espaço a espaço cortada de largosvergões,cicatrizes,sinaisdequeimaduras.Eu,comosmeusinocentesolhosdeseisanos,olhavaaquilosem compreender. “Como foi isso, mãe Maria?”. “Maldades dos homens, sinhozinho, maldades doshomens...”.Certanoite,comoelamecontasseumahistóriaemquesefalavadecriançasroubadasaospais, perguntei: “Você nunca teve filho, mãe Maria?” A pobre negra limpou uma lágrima, e nãorespondeu:mudoudeconversa,econtinuou,comasuameialínguaatrapalhada,acontarahistória,—umadessas compridashistóriasda roça, emquehá saci-pererês e caiporas, almasdooutromundoeanjosdocéu.Eeuolhava-a,comumasecretamágoa...Nãoquecompreendessebemaquilo:masaminhainteligênciadecriançajáadivinhavaumapartedaqueladolorosavidadecativa.

Como aindame lembro dessas noites!... Era na sala de jantar, que tinha uma grande varanda,deitandopara o quintal.Estou aindavendoo velho sofá demadeira negra emquemeupai dormia asesta,alongatábuadeengomaremqueasmucamaspassavamaferroaroupabranca,epertodamesaemque ardia o grande lampião de azeite, minha mãe imóvel e pálida, na sua feia e enorme cadeira deparalítica.

Moçaainda,ficaraelaassim,logodepoisdetereuvindoaomundo.Comoaperdimuitocedo,nãomelembrobemdela:apenasseiqueerabonitaequenãofalavanunca.Olhavaparamim,parameupai,paraasescravas,comumolharapagado,deloucaresignadaemansa.

Assim,avelhaMariafoiminhaverdadeiramãe.Haviaaindaemcasaumasenhoraidosa,primademeupai,queeraquemdirigiatudo.Essa,porém,apenastinhatempoparagovernarasescravas,fazerdoces, e cuidar das costuras e das roupas engomadas.—BoamãeMaria! era ela quemme aturava...Quando eu não queria obedecer, procurava fingir-se zangada, e ameaçava-me: “Nhô Amancio! Nhô

Amâncio!”Eacalmava-me,porfim,prometendo-meumanovahistória.Sentava-senochão,cruzavaaspernas, e começava.Ouvia-se apenasna salao ressonardemeupaiquedormia a sesta, opigarrodavelhaprimaquecosia,oruídoquefaziamosferrosdeengomarsobreastábuas,eavozarrastadademãeMaria,falandodesaci-pererês,decaiporas,dealmasdooutromundoedeanjosdoSenhor.

Todo aquele enredo fantástico, em que passavam bruxas cavalgando cabos de vassouras,príncipesqueroubavamprincesas,arcanjosquedesciamdocéuparacurarasferidasdosescravosnotronco, negras aleijadas, que invocavam o diabo, à meia-noite, no meio do mato, e eram afinalarrebatadas por ele, numa nuvem de fogo e enxofre,— tudo aquilo se atropelava na minha cabeça,cansando-me,dando-mearrepiosevertigensdemedo.

Daíameiahora,pesavam-measpálpebras.Aosmeusouvidos,avozdeMariachegavacadavezmaisfraca:atéquequasesumiadetodo,pareciavirdelonge,demuitolonge,vagaeindistintacomoumeco.Eudeixavacairacabeçasobreo seucoloedormia.Eeraelaquem,carinhosamente,me levavaparaacama,eraelaquemmedespia,e,obrigando-meaficardejoelhos,tontodesono,mefaziarepetiroPadreNosso,estropiadopelasualínguadeafricana.

***

Quandotivedeirparaocolégio,—uminternatosériodeondeosalunossósaíamumavezpor

ano,— chorei muito tempo, abraçandoMãeMaria, agarrado à sua grossa saia de riscado azul. Elachoravatambém,chamando-meseufilho,beijando-me,consolando-me:

—Vai,NhôAmâncio!vai,meufilho!vaipraserhomem!vai,NhôAmâncio!asuanegravelhaficarezandoaNossoSenhor!avelhaficarezando!

Pelamãodemeupai,fuipelarua,soluçando,soluçando.

***Oh! os primeiros dias de internato!Que casa!As salas,muito altas emuito claras, tinhamum

silêncioquedavamedo.Entreasbancasdeestudo,opadreFranciscopasseava,batendocomforçaostacõesdossapatos,fungandopitadasderapé.Eu,comamortedaalma,lembrava-medacasa,lembrava-medavarandaquedavaparaoquintal,deminhamãeimóvelnasuaenormeefeiacadeiradeparalítica,davelhaprimaquecosturava,edemãeMaria...demãeMaria!...edassuasmãoscalejadasereluzentes!e do seu cabelo encarapinhado! e da sua voz! e das suas histórias! E as letras do livro iam-seconfundindoedançando,vistasatravésdaslágrimasquemeembaciavamosolhos.

Mas passou a primeira semana, passou o primeiro mês, passou o primeiro trimestre. Crieiamizadeaoscompanheiros.Eaminhasaudadefoidiminuindo,diminuindo,diminuindo...

Quandooprimeirosemestrefindou,jámãeMaria,esuaface,esuacarapinha,eassuasmãos,easuavoz,eassuashistórias,meapareciamindistintamente,comonofundodeumpassadoremoto.Ànoite,quandomedeitava,depoisdoexercícioviolentodacabra-cegaedabarra,osono jánãomedeixavapensarnaquelaque ficara rezandoaNossoSenhorporNhôAmâncio.NhôAmânciosóse lembroudemãeMariaquandoasfériaschegaram...

“Ah!NhôAmâncio!—diziaapretachorando,de joelhos,beijando-measmãos—comoNhôAmâncioestácrescidoebonito!”

Umanodecolégiobastaraparametransformar.E,agora,euapareciaàvelhaama-seca,comoumnovosinhô-moço,—umsinhô-moçoquetinhaonzeanos,quejásabialereescrever,quejásejulgavaumhomem,equeàshistóriasatrapalhadasetolasdemãeMariapreferiaamalhaeaginástica.

Avidadacasaeramesma.ApenasmãeMaria,nãotendoagorasinhô-moçoparacriar,passaraatratardalavagemdaroupa.

Eeranoquintalqueestavaagoraquasesempre,desaialevantada,patinhandonaáguadabarreia,indodecoradouroacoradouro,—umpoucomaisvelha,umpoucomaistrôpega,masaindarobusta.

Foiduranteessasfériasquesedeuocaso,cujarecordaçãoaindahoje,nofimdaminhalongavia,tãocheiadealegriasedetristezas,éamaisvivadasqueguardodentrodaalma.

***

Uma tarde, mãe Maria lavava roupa no quintal. Desci. Ao fundo, ficavam os cercados das

galinhas. Comecei a atirar-lhes pedras. Mãe Maria protestou logo: “Nhô Amancio! que maldade,menino!deixaosbichos,NhôAmancio!”Euria,econtinuava.

Entre mim e os cercados do galinheiro, ficavam os coradouros. As pedras passavam sobre acabeçadavelha.

— “Nhô Amâncio! Nhô Amâncio! Deus castiga, Nhô Amâncio!”— repetia a preta, mas semgritar, receandoquemeupaiaouvisse.Eeu ria, econtinuava.Correuentãopara mim...Eu ria.Easpedraspassavamporelas,rentesalgumas,nadireçãodoscercados.

Nãoseicomofoi...Vi-acambalearecair,levandoasmãosàcabeça,deondeosanguecorriaosborbotões.Sentinocoraçãoumapancadaseca,dolorosa.Umanuvemdeprantomecresceunosolhos.Corriparaavelha,comagargantasufocadadesoluços.

Umapedrada lhequebrara a cabeça: e o sangue ensopava a sua carapinhadura, já quase todabranca.Principiei a gritar, alucinadamente.E ela, trêmula, desfalecida, apertando a ferida comamãomanchadadevermelho,murmurava:

“Nãogrita,NhôAmâncio!nãogrita!nãofoinada!nãogrita,queSinhôouve!”Mas eugritava.Todoo antigo afeto esquecido renascia ali, diantedaminhavelhamãeMaria,

todabanhadaemsangue,feridapormim.Todaacasaacudiraaosmeusgritos.Vijuntodenósmeupai,aprima,asescravas.Entãotivemedodocastigo...

Mas a velha negra já tinha um sorriso nos lábios. E, olhandomeu pai, que indagava a causadaquilo, dizia: “Não foi nada, Sinhô, não foi nada! A negra velha escorregou no sabão, e quebrou acabeçanaspedras.MasNhôAmâncioacudiulogo.Nãofoinada,Sinhônãofoinada!”

....................................................................Quando, pensada a ferida, eu, a sós com ela, a vi salva e repousada,— caí nos seus braços,

pedindo-lheperdão,cobrindodebeijosaquela facequemeparecia tãobela, tãoclara, tão iluminada,comoafacedeumdaquelesanjosdoSenhor,dequeelamefalavanassuascompridashistóriasdaroça.Eela,chorandotambém:

“QueéissoNhôAmâncio?quefoiquemãeMariafez?...tinhaqueverqueNhôAmânciofosseapanharumsovaporcausadocangalhodeumanegravelha!...”

***

Daí a um ano, quando de novo voltei do colégio, ainda abracei mãeMaria. Vi-a e abracei-a

ainda. peloNatal, dois anos seguidos.Depois...mortomeu pai,mortaminhamãe, vendidos todos osescravosdacasa,—nuncativequemmedissesseondefoidormiroseuúltimosonoaminhavelhamãeMaria,alquebradaporquaseumséculodecativeiroetrabalho.

3.APartilhaCoelhoNetto

Cantava,eas lágrimas rolavam-lheemdois fiosao longoda facemagraepálida.Sofria,mas,

comoeraprecisoqueopequeninoadormecesse,cantava,indoevindo,devagar,embalandonosbraçosacriança.Omaisvelho—trêsanos—olhava-arisonhoe,dequandoemquando,cantarolava:“Estoucomfome,mamãe!Estoucomfome...”

E o pequenito, insone, muito esperto, a boquinha colada ao peito, sugava. “Estou com fome,mamãe...”:cantarolavaooutro.

Ia alta a manhã; mas, se o sol alegrava o quintalejo, que tristeza em casa! Viúva, tísica,desfigurada pela moléstia e pela fome, tímida demais para pedir esmolas, que havia de fazer adesgraçada:“Estoucomfome,mamãe”:cantarolavaomaisvelho.

—Espera,filho!Espera!Comoopequeninoadormecesse,amãefoipéantepé,edeitou-osobreumfofocolchãodepanos,

aumcantodacasa:eomaisvelho,seguido-a,cantarolavasempre:“Estoucomfome,mamãe...”—Nãofaçasbulha,filho:espera.E,acenando-lhe,passouàcozinha.Masquehaviadefazer?Ardia aderradeira acha: e amãe,osolhos rasosd’água,pôs-se a soprar a lenhapara atearo

lume,enquantoofilho,queselheagarravaàssaias,cantarolava:“Minhamãezinha...estoucomfome”—masjácontente,vendoqueachaleirinhafumegava.Àmesa,porém,quandoamãelheapresentouatigelaeopedacinhodepãodavéspera,opequenofitou-acomespanto:

—Sócafé,mamãe?—Só,meufilho...Opequeno,levandoacolheràboca,foirepelindoatigela,comumbeicinho,prestesachorar.—Nãochores:olhaquevaisaacordaromaninho!Espera!E,desabotoandoocorpinho,tirouoseiofarto,pojadodeleiteeespremeu-o,trincandooslábios

descoradosporondeaslágrimascorriamfioafio,e,entregandoatigelaaofilho:—Toma,enãofaçasbulha!Eopequeno,arregalandoosolhos,satisfeito:“Agorasim!”pôs-seacantarolar.Baixinho,então,amãelhedisse:—Enãopeçasmais,ouviste?ooutroéparaomaninho.—E

foi,péantepé,espiarofilhoquedormia.

4.UmhomemOlavoBilac

Desde a véspera, havia grande alegria no colégio. Fechadas as aulas, o saguão estava cheio de

canastrasemalas,jáarrumadas.Peloscorredores,numavozeriaalegre,andavamosalunos,emgrupos.Aquele severo edifício, que era o terror dos calouros, pelo seu silêncio e pela sua tristeza, durante aépocadostrabalhos,—estavaagoratransformado.Folhagensdemangueiraatapetavamaindaosalãodeestudo, cujas paredes desapareciam sob a profusão das bandeiras, das cortinas, dos arcos verdes.Realizara-seali,navéspera,adistribuiçãodosprêmios.Muitosalunostinhamjápartido.Osqueaindaesperavamqueosviessembuscar,tinhamosolhosbrilhantesdealegriaedeimpaciência.

Férias! Férias! Quando, depois da distribuição de prêmios, a sineta do colégio, num repiquefestivo, anunciou àqueles pequenos corações o fim da sua prisão de um ano, todos eles se dilataram,antegozandojáosdiasdeliberdadeedeventura,queosesperavamemcasa,juntodasfamílias,longedatristezadaquelesrefeitóriosedaquelesdormitóriosimensosefrios.

Mas,nomeiodaalegriageral,Jorge,ummeninodedezanos,encostadoaumajanela,meditava.Recebera os melhores prêmios. Lá os tinha, cuidadosamente guardados na mala. Lembrava-se daspalavrasdelouvorqueouvira,quandoodiretorlheentregaraosdoislivrosilustradoseagrandecoroade mérito. Mas lembrava-se também de que, ouvindo aqueles elogios do mestre e aquelas palavrasentusiásticas que saudavam os seu triunfo, sentia o coração apertado, cheio de uma grande tristeza, esomenteacustocontinhaaslágrimasquelhecresciamnosolhos.Todososoutrosvoltandodereceberosprêmios,passavamentreoscompanheiroscomafacecoradadeorgulho.Jorge,porém,ficara triste.Etristeestavaaindaagora,mais tristedoque, se, tendo recebido repreensõesemvezdeprêmios, fosseapontadocomoomaisvadiodoano.

Ninguémvieraassistiràsuavitória...Nosoutrosanos,vinhasempreseupai,umvelhoquechoravacomoumacriança,quandobeijavaofilho,aofimdessesdezmesesdeseparação.EJorgelembrava-sedas perguntas sem conta que lhe fazia então, das notícias que pedia damamãe, e damaninha, e dosanimaisdomésticos, e dos criados, e de toda aquelavidada casa, tão conhecida e tãoprofundamenteamada...

Mas,destavez,ninguémviera.Pelaprimeiravez,passaraJorge,no imensoe friodormitóriodocolégio,essaprimeiranoitedeférias,quecostumavaseraprimeiranoitedesuafelicidadeanual.

Eninguémvinha!Todososcompanheirossaíam.Nosaguão,iamdiminuindoasrumasdasmalasedascanastras.Poucosalunosrestavam...Ninguémvinha!—

Jorgefechouorostonasmãosedesatouachorar.Derepenteavozdeumbedelgritou:—Número36!Era ele! Jorgevoltou-se, deumsalto, correu, já certode ir ver seupai, já esquecidodoquanto

sofrera, já pronto para se atirar, como um louco, de encontro ao peito do velho. Mas deteve-se,assustado.Quemovinhabuscareraumdesconhecido,—umhomemaltoemagro,fisionomiadura,degestos secos, e de poucas palavras. Jorge despediu-se do diretor, e saiu com ele. Quis interrogá-lo.Soube apenas que o pai adoecera, emandara pedir ao seu correspondente no Rio de Janeiro que seencarregassedemandarparaaroçaomenino.Maisnada.

Enessanoite,numescuroefeioquartodecasadecomércio,Jorgenãodormiu.Sentia-setãosó!Tãosó!Umpressentimentocruellheenchiaaalmadeterror.E,demadrugada,quandoovieramchamarparatomarotrem,eleaindasoluçavacomacabeçaenterradanotravesseiro.

Comque alegria fizera emoutros anos essa viagem!O tremvoava, alucinadamente...mas Jorge

ainda o amaldiçoava, achando-o lento e aborrecido. E, respirando o ar fresco da manhã, vendo asmontanhasquepareciamgaloparemsentidoopostoaodotrem,pensavanosbeijoscomquecobriaafaceda mamãe, e no rodopio de júbilo supremo em que arrastaria a irmã, e nos dias calmos que seseguiriam...

Mas,nestatristemadrugada,atéocéueraoutro.Chovia.Umagrandemágoacobriaeafeiavaanatureza.Asárvoresmolhadas,gotejantes,vistasderelance,pareciaquechoravam.Jorge,cansadodanoite

deinsônia,adormeceu,aoladodocaixeirodacasacomercial,quefumava,indiferente,lendoumjornal.Houveumaparadabruscadotrem.Omeninoacordou.Ocaixeirosacudia-o.Tinhamchegado.Efoi

comocoraçãobatendoprecipitadamentequeJorgesubiuparaotrolyqueoesperavanaestação,efezaviagem,poraquelaestradatãoconhecida,—entreárvoresfamiliaresqueguardavamemcadafolhaumarecordação.

Naporteiradafazenda,ninguémoesperava.Ocancelarangeusoturnamente,surdamente...Aquelacancela!Aquelacanceladetravespintadasdeverde,atravésdasquais,nosoutrosanos,costumavaelevero rostoansiosodamamãe todo iluminadodeumsorriso,eacabeça fulguranteda irmãemqueoscabeloslourosbrilhavamcomooresplendordeumanjo...

Entrou.Dentrodoseucoraçãodecriançajáaverdadeterrívelestavapalpitando.Jáoseucérebrodedezanosadivinharatudo...porissonãoteveumapalavra,quandoviu,todacobertadeluto,amamãeque lhe abria os braços chorando. Precipitou-se nesse adorado seio, tremendo, com soluços que oafogavam.E,como,aoseu lado,amaninha tambémchorava,Jorge,comoumhomemfeito,começouaacariciar-lhe a face, dando-lhebeijos, dizendo-lhepalavras doces, que, daí a pouco, faziamameninasorrir,nasuainocentealegriadeseisanos...

Opaimorrera.Todaacasatinhaaindaopavoreoespantodessedesastrerecente.Jorgefoibuscar,dentrodamala,osseusprêmios,—osdoislivrosgrandes,ricamenteencadernados,eagrandecoroademérito.

Foiatéogabinetedopai.Láestavaasuasecretária,largaesevera.Sobreela,pregadoàparede,oretratodovelhosorria.Jorgecolocousobreamesaasrecompensasdeseutrabalho,comosequisessemostraraoretratodopaiquenãodesprezaraosseusconselhos.

Mas voltou-se, ouvindo um barulho de choro. Era a mãe que entrava, toda de luto, e que oabraçava,dizendo:

—Nãotemosmaisninguém,meufilho!Nãotemosmaisninguémnestemundo!Jorgeaprumouocorpo,e,comosolhosenxutoseabelafacetranqüila,perguntou:—Eentãoeu,mamãe?Eentãoeunãosouumhomem?Ehavianafaceenavozdessemeninodedezanosumatalresoluçãodeumatalcoragemquea

velhasenhora,jásemchorar,tevenoslábiosumsorrisodeorgulho.Beijouatestadofilho.Etraçando,comamãodireita,sobreele,umacruz,murmurou:

—Tuésumhomem,meufilho!Deusteabençoe,meufilho!

5.O“CabeçadeFerro”OlavoBilac

Nesseanode1782, emMinas,nomesmo lugar emqueassentahojea cidadedeDiamantina, as

autoridades de Portugal, monopolizando para a Coroa portuguesa o comércio dos diamantes, eramimplacáveisnoseudespotismo.

Entre os trabalhadores empregados na extração, amiséria era grande. Quase todos os escravossofriamfome,enquantopelassuasmãospassavammilhõesdepedras,quevaliamquantiasassombrosas,eiamenriquecerotesouroportuguês.

O trabalhoeraduro.Primeiro,eraprecisodescobriro trechodo rio,emcujo fundoseesperavaachar a jazida. Cavava-se ao lado dele um vale, forrado de tábuas unidas e calafetadas: Cercava-sedepois o rio: desviavam-se as suas águas para o vale. Então, secava-se o leito assim descoberto.Quebravam-seasrochasqueoforravam,tirava-seacamadainútildeterraseareias:evia-selogo,sobaformadeumcascalhofeioegrosseiro,apreciosamina,emquedormiamasgrandeserutilantespedraspreciosas.Muitasvezes,otrabalhoficavaperdido:nãoseencontravamdiamantesnaporçãoexploradadorio,eeraprecisorecomeçarmaislongeamesmaduratarefa.

Tratadoscomumrigorintolerável,privadosdetudo,sofrendopelamenorfaltacastigoshorrorosos,trabalhando sem cessar de sol a sol, os desgraçados entendiam-se com os contrabandistas, a quemvendiamosdiamantesquefurtavam.Asautoridadescondenavamsemprocessoosacusadosdessecrime.Oscontrabandistas,queeramconhecidospelonomedegarimpeiros,eramperseguidossemtréguapelatropa. Às vezes, desesperados, acossados pela patrulha da metrópole, os garimpeiros organizavamguerrilhaseresistiam.Corriaosanguedeparteaparte.

Osescravossuspeitoseramcondenadosàmorte,sumariamente.Nãoseabriamdevassas.Nãoseadmitiamdefesas.Bastavaumasimplesdenúncia.Alguns,amarradosatroncosdeárvores,eramsurradosatémorrer;outrosacabavamcrivadosdebalas;outrosexpiravamdefome,nofundodemasmorrassemar.

Em1782,era IntendentedosDiamantesJosédeMeirelles,homemcruelqueconseguiaseraindamais tiranodoqueos seus antecessores.Opovodava-lheonomedeCabeçadeFerro. Violento, fezpesarsobreMinasasuamaldade.Quemporessetempoviajavapelaregião,queficavasobodomíniodoCabeçadeFerro,via,deespaçoaespaço,corposnochão,varadosdetirodeespingarda,cadáveresdeenforcadososcilandonosgalhosdasárvores.EramasvítimasdoIntendente.

Mas não eram somente os suspeitos do crime de contrabando que sofriam o peso do seu ódio.Bastavaterpenadosofrimentodospobresescravosparaserconsideradocúmplicedeles.Acadeiadoarraialestavaconstantementecheiadeinocentes,cujocrimeúnicoeraoterdadoumpedaçodepãoaumtrabalhadorfaminto.OCabeçadeFerroeraonipotente.Quemousavacontrariá-lo,seescapavadamorte,eradegredadoparaaÁfrica,edeixavaafamílianamiséria,porquetodososseusbenseramconfiscadosparaoEstado.E,quandooIntendenteatravessavaopovoado,arrogante,desobrecenhocerrado,seguidodamultidãodeseusguardasarmados,oterrorcorriaasruas.Portasejanelasfechavam-se.NenhumolharatreviaafitaroolhardoorgulhosoSenhor,quetinhanasmãosodestinodetodoopovo.

Essatiraniajáduravatrêsanos,quando,porocasiãodesecelebrarumafestareligiosanoarraial,veioparapregarosermão,naViladoPríncipe,umsacerdotemodesto,—homemderaravirtude,cujapalavraardenteestavasemprecheiadebênçãosparaoshumildesedemaldiçõesparaosorgulhosos.Erao vigário Brandão. Ninguém imaginaria, vendo-o pequenino, fraco, de olhos postos no chão, tãopobrementevestidoquecausavadó,seraqueleohomemquenuncareceariadizeraVerdade,porterrívelquefosse,aosgrandesdaterra.Opovo,quandooviuchegar,acolheu-sesobsuaproteção.

O vigário viu os arredores do povoado cobertos de cadáveres sem sepultura; viu as casas dossuspeitosincendiadasporordemdoIntendente;viuacadeiacheiadeinfelizes,quegemiamsobopesodosferros,vítimasquasetodosdeacusaçõesinfundadas;e,compalavrasduras,queoamordajustiçainspirava, intimouoCabeçadeFerro a respeitar as leisdaHumanidade.O Intendente sorriu.Ea suacrueldadeaumentou.

Chegouodiadafesta.A igreja, cheia de povo, resplandecia de luzes. Quando o vigário ia falar, entrou o Intendente;

seguia-oasuaguarda:eoimplacáveltirano,arrogante,caminhavadeolhoserguidos,dominandocomasuapresençatemerosaamultidãoquetremia.

O vigário começou a falar. A sua voz clara e colérica tinha uma majestade divina. Falou dosmagistradosqueapenasparaoprimirospequenoseospobressabiamusardopoderqueavontadedeDeuslheconfiara.

OseuolharnãoseafastavadopontoemqueestavaoIntendente,eoseugesto,dirigidoparaele,apontava-ocomoocausadordadesgraçadasfamíliascondenadasàorfandadeeàfome;lançava-lheemrostooassassinatofriodetantosinocentes;condenava-oavagarsozinhonaterra,fadadoaumavelhicedeangústiasederemorsos,parapagarasuadesumanidade:edescrevia,aovivo,osofrimentodosquejaziam no fundo de masmorras escuras, dormindo sobre a lama, gemendo de sede, com os corposchagadospelapressãodascadeiasdeferro...

Opovotodo,imóveldeassombro,diantedetamanhaaudácia,escutavaemsilêncio.OCabeçadeFerro,comasfacesacesasdecólera,tremianasuacadeira.Levantou-se,cruzouosbraços,eencarouopregador.

Duranteminutos, que pareciam séculos, esses dois homens— um, todo poderoso, temido, rico,arrumado,cercadodetropa,representandoaautoridadedespóticadeElRey—eooutro,fraco,pobre,semarmas,semsoldados, tendoapenasporsiaVerdade,—longamentese fitaramemsilêncio.Foiohomempoderosoquecedeu.

O Intendente baixou os olhos, com todo o corpo abalado de um tremor convulsivo. O povomurmurava.Eopadre,semtirarosolhosdocriminoso,clamava:

—MinistrodeSatanás!Comoaferrolhasmíserosinocentesnessehorrívelcalabouço,quandooseucrimesófoiteremtiradodaterraostesourosqueaProvidênciaaliocultou,paraqueigualmenteatodososhomensservissem?Umdia,a inocênciaclamarácontra ti,no tribunaldivino, longedaspaixõesdomundo:eamaldiçãodeDeuspesarásobreatuacabeça!

Houveummovimentogeralnamultidão.ViramtodosqueoIntendente,decabeçabaixa,trêmuloeabatido,seencaminhavaparaaportadaIgreja.Seguiam-noossoldadosdasuaguarda:eopovoabriaalasparadeixarpassar,humilhadocomumréu,aqueleque,haviapouco,passarasobranceirocomoumdeus.

Houve ainda quem temesse que, ao sair dali, o Cabeça-de-Ferro fosse preparar a sua vingançacontraoatrevidoqueoinjuriara,cobrindodeopróbrioedevergonha.

Mas,nodiaseguinte,soube-senoarraial,comalívio,quetodososqueestavampresosinjustamentetinhamsidopostosemliberdade;queoscadáveresquejaziamnosarredoressemsepultura,servindodepasto aos corvos, tinham sido enterrados; e que a sorte dos criminosos, nos calabouços, tinha sidosuavizada.E,deentãoporadiante,todoopovorespirou,vendooIntendentereconciliadocomajustiçaecomahumanidade.

Porque,quandooamordoBemedaVerdadepalpitamnavozhumildedeumjusto,essavoz,porsisó,ébastanteparailuminarepurificaraalmaendurecidadeumtirano...

6.APátriaOlavoBilac

Opai,velhosoldadoqueavidadasguerrasalquebrara,gostavadelembrar,ànoite,quandotoda

famíliasereunianasaladejantaremrodadagrandemesaantiga,osepisódiosdascampanhasquevira.A mulher não ouvia com prazer aquelas histórias de cargas de cavalaria, de emboscadas, de

assaltos,tãocheiasdesangueedehorror.Quandoovelhorecordavaaqueletempo,comoscotovelosnamesaeocigarronocantodaboa,—elareviviaaangústiadosdiaspassadosnasolidão,semnotíciasdomaridoqueláandavanoParaguai.Viatodaaagoniadaquelesseisanosdesobressaltoechoro,daquelasnoitesemquenãopodiadormirsemveremsonhosomaridoestendido,retalhadodegolpes,numapoçadesangue, semconfissãoesemumcarinho,entreosmontõesdecadáveres, sobreosquaispassavam,semrespeito,aspatasdoscavalos,noardordabatalha.Lembrava-sedaansiedadeedomedocomqueesperavaocorreio,naquelasamaldiçoadastardesdedesespero.Quandonãovinhamcartas, logoasuaalmaadivinhavadesgraças.Imaginavaomaridoprisioneiro,entreosparaguaios,sofrendotratosduros,chorando lágrimas de vergonha e de raiva.Quando o carteiro lhe entregava um envelope fechado,—quantosminutosficavaelaamirarearevolvernasmãosaquelepedaçodepapelquevinhadoqueridoausente,equetinharecebidoosseusbeijoseassuaslágrimasdesaudade!

Porfimabriaacarta.Aprincípionãopodialer.As letras se baralhavam, atrapalhadas. Tremia-lhe nos dedos o papel. Tinha de repousar um

pouco:e,quandoconseguiaterminaraleitura,ficavaabatidaesemconsolodiantedaquelasnotíciasquenãovariavamnunca.Erasempreamesmacoisa:nãosesabiaquandoacabariaaguerra;masDeusvelavaporele;eraprecisoassegurar,conquistandoumbomposto,umfuturofelizparaosfilhos;alémdissoaPátriaestavaacimadetudo...

Ela amarrotava a carta... a Pátria!Que era a Pátria, para valermais do que ela,mais do queaquelasduascrianças,quedormiamali,estreitamenteunidas,numsóberçopequeno,—pobresinocentesquetalvezaessamesmahorajáestivessemsempai?Ientãocontemplarosfilhos,ealificavachorando,horasinteiras...

Quandoopaivoltoudaguerra,vinhamajor.Foraferido.Perderaumaperna.Amulherabençoouessa desgraça.Aomenos, assimmutilado, ficava ele posto àmargem, dispensado de voltar àmesmaexistênciadeperigosecanseiras.Podiamvivermodestamentecomseusoldo.Qualqueroutro trabalholevedequesepudesseencarregar,dar-lhe-iaosuficienteparaeducaros filhos.Carlos,omaisvelho,preparar-se-iaparaqualquerprofissãohonrosaetranqüila(nuncaaprofissãodopai):—eAlice,amaismoça,casaria, seria feliz...eaboamãe jásorria,prevendoparasuavelhiceessa felicidadeabsoluta:todafamíliareunida,calmaelivrededesgostos,numavidasemluxosmassemprivações...

Agora,porém,quandoovelhomajor,duranteosserõesdomésticos,começavaacontarosseusepisódios de campanha, amulher estremecia.Recordava-se dos sofrimentos passados, e ansiosamenteolhavaofilho,Carlos,jámocinhodeanos,queescutavaopai,abrindomuitoosolhos,emqueoprazerdeouviraquelasfaçanhasacendiaumbrilhodefebre.

O velho falava. Contava como, um dia, surpreendidos por mais de cem paraguaios em umaemboscada, ele e mais dezenove brasileiros se tinham defendido como leões, conseguindo, por ummilagre de intrepidez e de calma, destroçar os inimigos. No entusiasmo da narração, o velhotransfigurava-se.Oseubraço,estendidonoar, indicavaosgolpesdeespada.Asuavozimitava,oraoruídocontínuoesecodafuzilaria,oraoestrondoroucodoscanhoneiros.Diantedele,Carlos, tambémtransfigurado,bebiaassuaspalavras,cominveja,respirandoacusto,agitando-senacadeira.Alice,quetinhaentãodezanos,admiravaopaieoirmão:eosseusolhosespantados,dilatadospelomedoquelhe

faziamessascoisasdeguerra,iamdovelhoaomeninoedomeninoaovelho.Eamãequaserebentavaemsoluços,vendoaalegriadofilho.

Era aquele, há muito tempo, o seu maior receio... Pobre mãe! Desde o tempo em que, opequenino,Carlos,comoasoutrascrianças,apenasdeviapensarembonecos,—omeninomanifestavaumagrandepredileçãopelascoisasdavidamilitar.

Ficavahoras inteiras contemplandoas fardasdopai: e, ànoite, deixandodeestudar, fechandosobre amesaas suasgramáticas eos seusdicionários, era eleoprimeiro apedir aovelhomaisumadaquelasnarraçõesqueoembriagavam.Àsvezesiaamãesurpreendê-lo,nasaladevisitas,extasiadodiantedopequenoarmárioenvidraçado,ondeomajorguardavaasrelíquiasdesuaglória:aespada,asdragonas,asmedalhasdeoutroebronze,ascondecoraçõesesmaltadas,e,entreessesatestadosdasuacoragem,abalaquelheatravessaraaperna,nocombatedeHumaitá.

Quandofoiprecisoescolherumacarreira,Carlos,semhesitação,declarouquequeriairparaaEscolaMilitar.Ovelhoexultou.Amulher,resignada,nãoteveprotesto.

Os anos correram.Alice, jámoça, casou comummilitar. E a boa senhora viu assim toda suafamíliasubmetidaàquelaexistênciaqueodiava.

Umanoite,conversavamosdoisvelhos,sós,naquelamesmasaladejantaremquetinhamfeitoexplosãoosprimeirosentusiasmosdeCarlos.Falavamdo filho.—Não te aflijas,mulher!—diziaomajor.—Hoje,andatudoempaz.OBrasilnuncamaisteráguerras:istoéumageraçãodemolengas.Queperigo corre o nosso rapaz? Formar-se-á em engenharia militar, terá bons empregos, e morrerá develhice.Nãoteaflijas,queoBrasilnuncamaisteráguerras!

Neste momento, bateram à porta. Vinham dizer à família que Carlos morrera, vítima de umdesastre, na Escola. Experimentava uma espingarda. Puxou o gatilho, julgando que a arma estivessedescarregada.Haviadentroumabala,quelhevarouopeito.

Omajorsobreviveupoucoaessedesastre.Morreuumanodepois.Eaviúvaconcentroutodaasuaafeiçãonumneto,filhodeAlice.Eumdia,vendoessepequeninobrincar,fingindodesoldado,comumabarretinadepapeleumaespadadepau,avelhamurmurou:

—Tambémesteamaavidadesoldado!...SeráoqueDeusquiser!

7.O“Rato”CoelhoNetto

Viviadeesmolasnumestreitoeúmidoquartodeestalagem,ondemalcabiamosmóveis:acama

ondejaziaprostradaamoléstia,umapequenamesa,duasvelhascadeiraseumaarca.Acompanhava-aofilho, um rapazola de nove anos, sadio e robusto, de uma tal viveza que todos na estalagem não oconheciamsenãopelaalcunha:oRato.

Eraumdosprimeirosqueacordavame,aindaescuro,faziatodaalimpezadoaposento,mudavaaáguanasbilhas,deixavaaoalcancedamãodaparalíticaacafeteiraeopão,esaíacantarolando.Saía,porqueamãe,julgando-oaindatenroefracoparaotrabalhoenãodispondoderecursosparamanter-se,pediraumatestadoaomédicoque,pormisericórdiaatratavae,entregando-oaopequeno,dissera:—Vaieficaàportadasigrejas:eaosquepassaremmostraessepapelepedeumaesmolaparatuamãe.

O pequeno saiu, e, à noite, tornando à casa com algumas moedas, entregou-as à mãe; mas, nomesmomomento,rompeuempranto,atirando-se,soluçante,sobreavelhaarca.

Aparalítica,atribuindoaangústiadacriançaàquantiaescassaquetrouxera,procuroupalavrasdeconsolo:—Nãochores,meufilho.Hásdesermaisfelizamanhã;oquetrouxestebastaparapassarmosodia.Deusserápornós.Nãochores.

Opequeno,porém,longedeconsolar-se,afligiu-seaindamais;e,ànoite,aparalíticaquevelavaouviu ainda durante algum tempo os soluços do filho. De manhã, porém, cedo, como de costume,levantou-se,e,depoisdoserviço,foibeijaramãoàvelhaenferma,epartiu.

Eratarde,quasedezhorasdanoite,quandooRatoapareceunaestalagemcantarolando.Amãe,quepassaraodiacheiadecuidados,maloviuentrarfaloucomcertaseveridade:

—Ah!Meufilho,aquehorasvens?Muitodevesteresmoladoparaquesóàsdezhorasdanoitevoltesacasa!

ORato,porém,risonho,beijouamãodaenferma,e logo,metendoasmãosnosbolsos,pôs-seatirarmoedasenotasatirandotudoparacimadacama.Aparalítica,sorrindo,disse:

—Então,bemtedisseeuquehojehaviasdesermaisfeliz,meufilho...—Sim,minhamãe,fuimuitomaisfeliz,principalmenteporqueninguémmeinjuriou.—Como!Poishouvealguémqueteinjuriasse,filho?—Sim,minhamãe,ontem.Comoasenhoramehaviaordenado,fuificaràportadaigreja.Quando

cheguei,jáhavialámuitospobres,unscegos,outrosaleijados;meti-meentreeleselogocomeçaramasinjúrias,porqueeueraumacriançasadiaefortequeiaparaalivadiar,quandopodiaestarempregandoomeutempoemalgumacoisaútil.Unsmandavam-meparaaescola,outrosparaaoficina;e,seapareciaalguém,vendo-meavançarcomopapelnamãoparapedir,empurravam-me,davam-mebeliscões,eumatirou-meumabordoadaàspernascomamuleta.

“Tudoisso,porém,fazia-merir;oquemefezchorarfoioquemedisseumvelhoquelevavaumpequenopelamão,umpequenodomeutamanho.”

“Quandoeulhepediesmola,eleolhou-mecarrancudo,meteuosdedosnobolsodopaletó,tirouumníquel e ficou algum tempoaolhar-me; depois vagarosamenteguardou amoeda e, puxandoomenino,dissebaixinho:—Verás,vaidaquidiretoparaataverna...—Opequeno,mamãe,olhou-medetalmodo,que eu senti o sangue subir-me ao rosto e as lágrimas saltarem-me dos olhos. Vendo-me chorar, opequenotevepenademimefalouaopai.Pararam,eeuenxugavaosolhos,quandoouviavozdomenino:—Toma!—Olhei, e vi que eleme estendia amoeda.Estivepara recusar,masolhava-me com tantameiguicequenãotiveânimo.Recebi-a,agradecieguardei.Logo,porém,queosvientrarnaigreja,tirei-adobolso,dei-aaumvelhocegoqueestavasentadopertodemim,edesci.Desciosdegraus,dispostoa

voltarparacasa,mamãe,maslembrei-medeti, lembrei-mequenadahaviaemcasaepenseiempedirtrabalhoemalgumlugar...”

“FoientãoqueencontreioVicentecomummaçodejornais,apregoando.Pedi-lhealgunse,fazendocomoele,fuivendendo,ecomtantafacilidade,quenãomeficouumsó.Ele,então,ficoudearranjar-memaiorquantidadeparahojeenãomentiu.”

“Passeiodiatodovendendojornais,primeiroosdamanhã,depoisosdatarde;eànoiteoVicenteconvidou-meparaacompanhá-loatéaportadoLiceu,ondeaprende,eondequeroquemamãemefaçaentrar,paraqueeunãoandeapediraosoutrosquemeensinemaapregoarasnotíciasdosjornais.Hojeganheimaisdoqueontem:eestoucontente,mamãe,porqueninguémmetomouporvadio.”

“Quando eu formais forte, irei para uma fábrica, e tu não terás necessidades, nem ninguémmefalarámaiscomodesprezocomquemefalouovelhoquemejulgoutãomal...”

A paralítica, com os olhos rasos d’água, tomou a cabecinha loura do filho junto ao colo, e,beijando-a,dissecomovidamente:

—Fizestebem,meufilho;fizestebem:ahumilhaçãoéapiordasafrontas.Fizestebem,meufilho,eeuteabençôo.

8.ORecrutaOlavoBilac

Eraumrapazdevinteedoisanos,criadoàsolta,nocampo.Desdepequenino,habituara-seàvida

aoar livre.Mal rompiaaaurora, jáeleandava,aosoleàchuva,descalço,pulandoecorrendo,comocabritomontês. Aos oito anos, já montava em pelo os cavalosmais bravos. Com essa existência deexercíciosfortes,fizera-seumcolosso.Tinhaafacecorada,oscabelosnegroseduros,umamusculaturapossante,espáduaslargas,pulsodeabaterumtourocomumsoco.

Nãoaprenderaaler.Foracriadopara,deenxadaempunho, lutarcomaterra,paralidarcomosbois,paraarcarcomos trabalhos fortesda lavoura.Nada tinhadeseu.Opai, aomorrer,deixara-lhe,comoúnicaherança,asaúde,aforçaeumaenxada.Eeracomissoqueelevivia,indoderoçaemroça,àprocuradeemprego.Eempregosnuncalhefaltavam,porquenãohavia,emtodaaquelaredondeza,quemcommaisjustiçaganhasseopãodecadadia.Erasempreoprimeiroasairparaotrabalho,eoúltimoarecolher.

Nunca ninguém o vira triste. Com o grande chapéu desabado, atirado para a nuca, ou estivessecurvadosobreaterracavando-a,oupelaestrada,aosolardente,viesse,deaguilhadaempunho,guiandoos bois morosos, — o Anselmo cantava sempre, com a sua larga voz alegre, que animava oscompanheiros,etornavamaisleveacanseiradatarefa.Osvelhos,quandooviampassar,perguntavamsempre:“Comovaiessamocidade,Anselmo?”Enãohaviaquemnãooamasse.

Também,nãotinhadinheirojunto.Oqueganhavagastava.Ninguémcomoelesabia,nasnoitesdefesta,tirardaviolaasmodinhasternas.Eerafeliz,semambições,contentando-secomtãopouco.

Quando chegou ao sertão a notícia da guerra do Paraguai, o terror ganhou toda aquela gentesimples,paraquemomundoselimitavaàquelasléguasdeterra,decujoslimitesnuncahaviasaído.Orecrutamento!—falava-senisso,comonamorte,comespantoemedo.

Dizia-sequeninguémseriarecrutado.Masaalmadesconfiadadocaipirabemadivinhavaqueessadeclaraçãodasautoridadeseraumaastúcia...Soube-seumdiaquechegaraaolugarumdestacamentodesoldados, comandados por um cabo. Houve quem fugisse. Anselmo não fugiu. Mas quando se viurecrutado,umdesesperoterrívellheencheuocoração.

Não era covarde!Muitas e muitas vezes ele, sozinho, lutara contra dois e três... nas brigas dearraial,nuncafugiradasfacas,quealumiavamnaescuridão.Nãosabiadeperigoqueoamedrontasse.Ecostumavadizerquesótinhamedodesimesmo,daquelegênioarrebatado,quenãoaturavaafrontas.Nãoera covarde, não: o que o desesperava era o abandono forçado daquela existência, em que nascera ecrescera, o apartamento daqueles lugares amados, daquele trabalho que era um hábito velho, daquelagentetodaqueeraasuafamília,asuagente,oseupovo.Paraasuaalmaincultaeprimitivadefilhodaroça, a Pátria não era oBrasil: era o pedaço de terra que ele regava com o suor de seu rosto. Foradaquilonãohaviamaisnada.Quetinhaelecomorestodomundo?Porquehaviaeledevestirumafarda,eirmorrerabandonadoedesconhecido,semumaamizade,semumasimpatia,numaterraestrangeira,porcausadegentequenuncavira,porcausadequestõesquenãoentendiaequenãoeramsuas?

Nuncasaíradoseusertão.Aosvinteedoisanos,aindanão imaginavaoqueseriaomar.Seosparaguaiosviessematésuasroças,entãosim:eleeosoutrossaberiamrepelirosinvasores;seriaoseudever,adefesadoseuganha-pão,doseutrabalho,dosseushábitos.Mas,irdefenderaCorte,irdefenderoSul,irdefenderoImperador!...quetinhaelecomtudoisso?

Todasessas reflexões lhepassavampelacabeça, ànoite, recolhido, comumadúziadeoutros, àcadeiadolugar,comosefosseumcriminoso...ejá,antesdepartir,tinhasaudadesdaquelecéuquerido,daquelesmatostãoconhecidos,daquelagentecomquemsecriara.Etinhamedo,—tinhamedo,eletão

valente!—demorrercrivadodebalasparaguaias,longedosseus...depois,aoseucaráterindependente,àsuaalmalivrerepugnavaaescravidãodavidamilitar.Nãotervontadeprópria,sergovernadocomumamáquina,caminharparaamorteaosimplesacenodeumchefe,semverautilidadedessesacrifício,—tudolhepareciaumagrandedesgraçaeumaterrívelinjustiça.

NodiaseguinteosrecrutasseguiramparaoRiodeJaneiro.Haviapressa.AguerraiaacesaaoSul,eoBrasilprecisavadasvidasdetodososseusfilhos.OscompanheirosdeAnselmoiam,comoele,coma alma enlutada de tristeza. Também como ele, não compreendiam a violência do recrutamento, nemreconheciam à Pátria o direito de assim se apoderar da suamocidade, para a atirar aos horrores docampodebatalha.

Triste viagem!Alguns, homens feitos, robustos e valentes, choravam como crianças.A gente dolugarassistiuàpartida.

Haviamães que amaldiçoavam a guerra, gritando, torcendo os braços desesperadamente.Havianoivasquedesmaiavam.Quantosdaquelesvoltariam?...

AchegadaaoRiodeJaneirofoiumatortura.Osrecrutasestavamtontos,comaquelebarulho,comaquelemovimento.Comoestava longea tranqüilidadedavida rústica!Eque rigor, eque tormentonoquartel!Naprimeiranoite,quandoseviu,jáfardado,estendidosobreaduratábuadatarimba,Anselmoteveumarevolta.

Sentiudesejosdefugirdali,aindaqueparaissofosseprecisomataralguém.Agitava-se,sacudia-se, mordia os pulsos, afogava na garganta os gritos de cólera e as imprecações. Por fim, essa criseterminou por um choro convulsivo.Dormiu, cansado: e ainda era noite escura, quando o acordou umtoquedeclarim.Eraahoradoprimeiroexercício.

Começou então a sua aprendizagemmilitar.O oficial inferior, que comandava asmanobras, erabrutal.Asuavoztinhaasperezasqueofendiamcomobofetadas.Quandoumdosrecrutaserrava,dizia-lhepalavrasduras,insultospesados.Umavez,comoAnselmonãooouvisse,porqueestavapensandonasuaroçatãocalmaetãobonitaaessahoradesolardente,ooficialdeu-lhenopeito,comafolhadaespada,umapranchadaforte.Orapazsentiuosanguesubiràcabeça.Masainfelicidadejáotornarasubmisso.Conteve-se,eobedeceu.

Já no terceiro dia, porém, sentiu-se mais resignado com a sua sorte. Familiarizara-se com osexercícios. Já se ia habitando ao rigor da disciplina. Já se interessava pelas manobras. Já prestavaatenção às vozes de comando. Já ia compreendendo que, sem a brutalidade do comandante, nada sepoderiaconseguirdehomenscomoele,quenuncatinhamvistoaquilo,ecujainteligênciaerarefratáriaàcompreensãodaquelaspalavrasedaquelesmovimentoscalculados.

Depois,noquartel,começouaconvivercomossoldadosantigos.Tomoupartenasconversas,quesetratavamno“corpodaguarda”.Eprincipiouaoperar-senoseuespíritoumatransformaçãoradical.Aconvivência fazia-o sentir por aqueles homens um afeto de irmão. E tanto ouvia amaldiçoar osparaguaios,queprincipiouaamaldiçoá-los também,odiando-osde longe.Viaagorabemoenganoemqueestava,quandoacreditavaqueaPátriaeraoseusertão,enadamais.Aqui,tãolongedosertão,vinhaacharomesmocéu,amesmalíngua,quaseosmesmoscostumes.Emtornodele,sósefalavanaguerra.Lopes era odiado.Lopes aparecia aos seus olhos comoummonstro, cuja única ocupação eramatar etorturarosbrasileiros.Eumdia,Anselmosurpreendeu-seadizer,comosolhosbrilhantesdeódio:“Ah!Quandochegaráodiadeirmosdarcabodaquelemalvado!...”

Odiachegou.Oseubatalhãoiapartir.Diadesol.Ninguémreconhecerianaqueleesbeltomoçoquealiia,marchandocomgarboentreosoutros,obisonhocaipira,quetantarepugnânciatinhaoutrorapelascoisasdaguerra.

Anselmomarchava.E,aocompassodamarcha, iacantandobaixinho,entredentes,umadaquelasmesmas alegres modinhas da roça, que a sua voz soltava na imensa extensão dos campos, quando,curvado sobre a terra, a cavava, ou quando, pela estrada ao sol ardente, vinha, com a aguilhada ao

ombro,guiandoosboismorosos.As ruasestavamcheiasdepovo.Das janelas, senhorasacenavamcomos lenços.Umabandade

músicaprecediaobatalhão.Tocavaumamarchadeguerra.Osinstrumentosdemetalgiravamalto,entreaspancadassecasdos tambores.Quesol!Queentusiasmo!Anselmotremia.Parecia-lhequeo inimigoestavaaliperto,aoalcancedasuaespingarda:parecia-lhequeiaencontrar,aodobrarumaesquina,osexércitosparaguaios.Eambicionavacairimediatamenteemplenocombate.

Nocais, amultidão abria alas.Equandoobatalhão estacou, quando se calou amúsica, opovoprorompeuemvivas.Àespera,perfilados,muitosoficiais,cujasfardas,cobertasdegalões,brilhavamaosol,examinavamatropadisciplinada,bemdisposta,garbosanoseufardamentonovo.Derepente,amúsica tocou os primeiros compassos do hino nacional. Um vento brando, vindo do mar, agitou abandeira brasileira, que estava no centro do pelotão. A bandeira desdobrou-se, palpitou no ar,espalmada,comummeneiotriunfal.PareciaqueosímbolodaPátriaabençoavaosfilhosqueiampartir,paradefendê-la.

E,então,ali,aidéiasagradadaPátriaseapresentou,nítidaebela,diantedaalmadeAnselmo.Eele,compreendendoenfimqueasuavidavaliamenosqueahonradasuanação,pediuaDeus,comosolhos cheios de lágrimas, que o fizesse um dia morrer gloriosamente, abraçado às dobras daquelaformosabandeira, todaverdeedourada,verdecomooscampos,douradacomoasmadrugadasdasuaterra.

9.OVelhoReiOlavoBilac

Houve,emtemposquejávãolonge,umreipoderoso,senhordemuitospovosedemuitasléguasde

terra. Ainda que viajasse sem cessar por muitos anos a fio, não conseguia ele correr todos os seusdomínios.Etodosospovosotemiam,porqueeraconhecidadetodoomundoafamadassuasriquezas.Demês a mês, chegavam a seu palácio os emissários dos súditos, trazendo-lhe, com as homenagensdeles,ospresentesriquíssimos:marfimepérolas,ouroediamantes,sedaserebanhos.Eosseusceleirosestavamtãoabundantementeprovidosdegrãos,queelepoderia,numaépocadefomegeral,abri-losatodososseusvassalos,quenãotinhamconta,alimentando-osfartamentedurantetodoumano.

Essepodersemlimiteseessariquezasemtermohaviamembriagadoaalmadovelhorei.Jánãosesuponhahomem,masDeus.Tantagentevia, a seuspés, adorando-o,queo seucoração sehabituaraadesprezar a humanidade, imaginando que ela só fora feita para o servir e temer. Só se lembrava dossúditosparaosoprimir.Aumentavaimpostosealargavaasprisões.Easuamãodireita,quetantagentepodia fazer feliz, distribuindo esmolas e bênçãos, somente servia para assinar sentenças de morte.Condenavaàpenaúltimacemhomens,semleraomenososseusnomes.E,seoslia,esquecia-osdaliaumminuto,parasópensarnafebredefestasedeloucuras,emqueempregavaasnoitesedias,eemqueperdiaasaúdeeaalma.

E sucediam-se as festas. Do escurecer ao alvorecer, o seu palácio, imenso como uma cidade,suntuosocomoumtemplo,resplandecentedeluzescomoumcéuestrelado,ecoavaobarulhodasdanças,damúsicaedotinirdoscopos.

Umdia,noesplêndidoterraçoemquecostumavadormirasesta,ovelhoreitinhadiantedesiumalistadeacusados.Nãosabianemqueriasaberquemeram,seeraminocentesoucriminosos,se tinhamcometido alguma falta, ou se eram apenas homens ricos, cuja fortuna os seusministros cobiçavam. Epreparava-separa,comindiferença,assinaralista,quandosedeteveaolharummomentoofilhomaismoçoquebrincavajuntodele.

Eraumprincipezinho louroebranco,deolhosazuise inocentescomoosdeumanjo.Ajoelhadosobre o mosaico precioso, que ladrilhava o terraço, estava inclinado para um aquário, e divertia-sevendodentrodeleospeixesdouradosquenadavam.Ovelhorei,comumsorrisoquelheiluminavaasbarbas,ficoumirandocomamoracriança,tãobelaetãocasta,filhadoseusangueedasuaalma.Etinha,esquecidonamão,apenafatal,decujobicopendiaavidadetantoshomens...

De repente, o principezinho teve uma exclamação aflita. O rei viu-o curvar-se mais sobre oaquário,emeternaáguaasmãozinhasansiosas.Eacriançaveioparaele,segurando,comaspontasdosdedos,algumacoisaquesenãovia,detãopequenaqueera.

—Olha,pai!Salvei-a!Iaafogar-se...salvei-a!Ovelhoreicurvou-separaveroqueofilhotrazianamão.Eraumamoscafeia,negra,pequenina,

miserável,nojenta.Tinhaasasasmolhadasenãopodiavoar.Oprincipezinhocolocou-anapalmadamãomicroscópica,evirou-separaoladodosol.Daíapouco,amoscareanimou-se,evoou.Acriançabatiapalmas:

—Nãofizbem,pai?Nãoéumcrimedeixarmorrerumacriaturaqualquer,porfaltadepiedade,pai?Disseram-mequeháhomensquesematamunsaosoutros...pai?Comoéquesepodeteramaldadedematarumhomem?

Eoprincipezinhofixavanovelhoreiosseusolhos,azuiseinocentescomoosdeumanjo.Nessatarde,ovelhoreinãoassinounenhumasentençademorte.

10.OmentirosoCoelhoNetto

Podiajurar!Riam-sedele.Mentiatanto,queninguémdavacréditoaoquedizia.Àsvezesqueixava-

sedemoléstias:e,longedeotrataremcarinhosamente,repreendiam-no,ameaçavam-no,quandonãolhedobravamosexercíciosdeescrita;e,pobrezinho!Muitasemuitasnoites,ardendoemfebre,debruçadoácarteira,copiavacompridasdescrições,—etudoporquementia.Osmesmoscompanheirosrepeliam-noquandoeleapareciacontandoumfato:

—Ora,saidaqui,mentiroso!Pensas,então,quesomotolos?Umamanhã desceu ao rio em companhia de outro Chovera abundantemente dias antes, e o rio

assoberbado,transbordara.Os doismeninos hesitaram algum tempo antes de tirar as roupas; omais velho, porém, nadador

intrépido,acoroçoouAndré,omentiroso:—Vamos,acorrentezaéinsignificanteenãoprecisamosirparaomeiodorio.Vamos!Animado,Andréatirou-seaorio;acorrenteza,porém,começouaarrastá-lo,desorteque,quando

elequistomarpé,aáguacobriu-lheacabeça.Ooutroboiavacantarolando.Derepenteouviuumgritoangustiado:—Ai!—Voltou-se,e,nãovendoAndré,teveumsobressalto;

logo, porém, considerando, sorriu: — Pois sim! Pensas que me enganas! — E continuou a nadartranqüilamente.MasAndrénãoaparecia: omeninoganhouamargem, lançouosolhosparaos cantos,desconfiando de que o companheiro se houvesse escondido em algumamoita para assustá-lo; vendo,porém,quenãoaparecia,correuaterradoparaocolégio,levandoatristíssimanotícia.Desceramcriados,e, atirando-se ao rio, procuraram o pequeno que as águas haviam arrebatado. E o companheiro, empranto,repetiacomsentimento:

—Eubemouvioseugrito,bemouvi,maselementiatanto...Diasdepois,apareceucobertodeervasehorrivelmentedeformadoocadáverdopequenoAndré;e

ocompanheiro,vendo-o,soluçouainda:—Coitado!Masfoiporculpadele.Mentiatanto!

11.ADefesaOlavoBilac

Nessetempo,jáacidadedeSãoSebastiãodoRiodeJaneirotinhaumapopulaçãodeduasmile

quinhentasalmas.LançaraEstáciodeSáosseusfundamentosem1565,juntodoPãodeAçúcar.Transferira-aMem

deSáparaomorrodoCastelo,efoidaíque,poucoapouco,afuturacapitaldoBrasilcomeçoudescer,ganhando terreno, alargando-se cada vez mais, povoando-se. Os Tamoios e os franceses não lhepouparamataques.Oprimeiros,senhoresantigosdacosta,protestavamcomarmasnamãocontraagentebranca,queassimtomavacontadoseuterritório,expelindo-osdele.OssegundosviambemqueproveitoresultariaparaaFrançadaocupaçãodessasfertilíssimasterras,cujapossejádavatantaglóriaetantolucro a Portugal. E a guarnição da cidade tinha resistido heroicamente a esses ataques. E até o seufundador,EstáciodeSá,lhederaosangueeavida,expirandoemdefesadela,feridodorostoporumaflecha.

Em1710,eraoRiodeJaneiroumagrandecidade,prósperaeinvejada.Emtornodela,alavourasedesenvolvia. Dentro, desenvolvia-se o comércio. E sua população laboriosa e pacífica, avessa aosexercíciosdeguerra,viviadescuidadaefeliz.Aguarniçãoerapequena.Poucossoldados,malarmados,bastavamparamanterodomíniodametrópoleeaautoridadedoGovernador.EragovernadorFranciscodeCastroMoraes,quejáporváriasvezesfizerasentiraogovernoportuguêsanecessidadedeproveracidadedemais sérios recursosdedefesa.Masnadase feznessesentido.EquandosesoubequeumaflotilhafrancesaseaproximavadoRiodeJaneiro,espalhou-se,pelopovo,umterrorjustificado.

Nãoerafalsaanotícia.Seisnaviosdeguerra,comandadosporDuClerc,desembarcarama11desetembroemGuaratibaumaforçademilsoldados,quemarcharamsemdemoraparaoRiodeJaneiro.Ogovernador, indeciso, perdia tempo. Nenhuma providência tinha sido tomada, e já no dia 18 a tropafrancesaacampavanoEngenhoNovo,prontaainvadircidade.FranciscodeCastrochamouemsocorrotodasaspovoaçõesvizinhas.Masaindaa sua tropa, emdesordem,não se tinhamovidodocampodoRosário, e já Du Clerc entrava, sem resistência. Todas as portas se fechavam. Toda a gente tremia,prevendooshorroresdosaqueedomorticínio.PareciaiminenteaperdadagloriosafilhadeEstáciodeSá.Elaque,tantasvezes,ameaçadaderuína,quandoaindafracaepequena,puderasalvar-se,graçasàbravura de seus governantes, — ia ser vergonhosamente tomada, sem uma gota de sangue, sem umprotesto,porumpequenodestacamentodetropasfrancesas...

Pela cidade deserta, num silêncio absoluto, caminhavamos soldados deDuClerc.O chefe, nãoquerendoperdertempoematacarascasasparticulares,contavachegaràAlfândegasemacharquemlheopusesseaoprojeto.

Eanteviaaglóriaqueparaseunomeviriadessaconquistagloriosadeumacidaderica,centrodopoderportuguêsnaAmérica,—conquistalevadaacabosemperdadavidadeumsódeseushomens.

Aexpediçãosabiaqueaguarniçãoportuguesaerapoucaesemrecursos.Alémdisso,arapidezdasmarchasnãopodiaterdadoaoGovernadorotemponecessárioparaarmaredisciplinarpaisanos.Maisainda:DuClercimaginavaqueaquelapopulaçãocomercialecalma,preocupadaapenascomosmeiosdeganhardinheiro,estariadispostaaaceitartodoequalquerdomínio,contantoquelhedeixasseintactaavida,preferindotudoaarriscar-seaosazaresdeumaresistênciaquepoderiaserduramentecastigada.

Porisso,marchavamosfrancesescomconfiança.Epareciammarcharporumcemitério,taleraaabsolutaquietaçãodasruasqueatravessavam.

Mas,quandochegaramàRuaDireita,umaaltagritadecóleraedeincitamentoaocombateatroouosares.Eviram,defendendoocaminho,umamultidãodemoçosqueosesperavaapéfirme.Nãohavia

umafardanassuasfileiras.TodasasfardasestavamaindanocampodoRosário,cercandooGovernador,quehesitavaevacilava,semseresolveracortaropassoaosinvasores.OsqueguardavamaruaDireitaeram todos moços. Quantos? Quatrocentos ou quinhentos, se tanto. Desiguais nas armas como novestuário,tinham-sereunidoàpressa,aocaso.Cadaumapanharaaprimeiraarmaqueencontraraàmão.Eramquasetodosestudantes.Nuncasehaviambatido,nãotinhamdisciplina;massabiamqueiammorrer,defendendoasuacidade,eessacertezadeumfimgloriosolhesacendianaalmaumacoragemsuprema.HaviamsidounidospelavozardentedeGurgeldoAmaral,ummoçotambém,queresolverasalvaroRiodeJaneiro,quandoosencarregadosdesuaguardaoabandonavamàsanhadoestrangeiro.Ealiestavam,paramorrer,semarredarpé.

Aexpediçãofrancesaparou,atônita,olhandoafalangedosmoçosestudantes.E,antesqueDuClercdesseosinaldoataque,jáelesoatacavam,desurpresa,arrojando-seirrefletidamente.Possuíamapenasuma ou outra espingarda. Por issomesmo, apressaram o ataque, que se fez à arma branca, com umabravura louca a que os impelia o desespero. Os francesesmal puderam resistir ao primeiro choque.Aquelamocidaderobustaealucinada,aqueoamordaPátriadavaforçassobre-humanas,combatiacega,delirante,semcuidarderegraseleisdebatalha.Osdoisexércitossemisturaram;separaram-sedenovo.Poucos minutos bastaram pra que, perdida a calma diante daquele assalto espantoso, vendo os seuscaíremretalhadosdegolpesterríveis,acolunadeDuClercfugisseemdebandada.

Então,acossadospelosestudantesvitoriosos,osinvasoresseencurralaramnumtrapiche,quehavianaextremidadedarua.E,logoosvencedoresestabeleceramemtornodelesumsítiorigoroso.

Nessemomento, oGovernador decidia-se a agir.Mas, quando chegou a sua tropa, jáDuClerc,assediadoeimpotente,pensavanomeioderecorreràgenerosidadedopovo,parasalvaravidadasuagente.Defato,nessamesmatarde,osfrancesescapitularam.

AmocidadedoRiodeJaneirosalvaraacidade.

12.ABorboletaNegraOlavoBilac

Madrugadadedomingonocampo,longedacidade.Logoàprimeiraclaridadedodia,saemosdois

decasa,comoLeão,seucompanheiroinseparável.OLeãoéquasetãoaltocomoeles.ÉumenormecãodaTerraNova,todonegro,depeloespesso,

de güela imensa. É o terror do lugar. Quando ele passa na estrada, acompanhando as duas crianças,rosnando ameaçadoramente, todos se afastam com respeito. E, assim seguidos de perto pelo Leão,HenriqueeLeonor estãomais livresdequalquerperigodoque se estivessemguardadospor todoumexército.

Amanhecerdedomingo.Longe, repicaosinodacapela,anunciandoasegundamissa.Aindanãosaiuosol.

Oventodamanhãsacodeasárvoresmolhadasdeorvalho.Nosgalhosaltos,trilamospássaros.Oarestácheiodoaromafortedosmatos.Passamhomenscantando.

E o sino da capelinha, cujo repique tem a alegria ruidosa de uma risada de criança, continua aanunciaramissa.

Mas,HenriqueeLeonorjáforamàprimeiramissa.Asduascriançasagitamnoarosseusgrandessacosdecaçarborboletas.Henrique,queéquemcarregaatiracoloabolsaemquevaiopãodamerenda,sabedeumlugaremqueháfloresdetodaespécie.Ficaparaládaigreja:éumapequenaclareiradentrodomato,atapetadadeumarelvafresca.Aí,ondeosolentralivremente,asborboletasvoam,todoodia,sugandoomeldasflores,vibrandoasasasrutilantes,azuis,vermelhas,douradas.Éparaláquevãoostrês.Leãotrotanafrente,pesadoeenorme,sacudindoagrossacaudanegra.Àsvezes,volta,vemlamberasmãosdascrianças,etrotadenovo,alegre,comalínguapendenteeasorelhasabanando.

Lávãoeles...osolaindanãosaiu.Mas,jáentreasnuvenscordefogo,nonascente,apontaumaclaridade viva, que ofusca.Das árvores, caem ainda, como diamantes soltos, os pingos do sereno. EHenriquediz,tiritando:

—Comofezfrioestanoite,Leonor!Etiritando,dizLeonor:—Coitado,coitadodequem,sendopobreenãotendocasa,tevedepassarestanoiteaorelento!...Elávãoostrês.Jápassaramaigreja,muitobranca,muitopobre,posta,noaltodeumaladeiraíngreme.Viram,na

pequenina janela, rodar o sino, cantando, cantando sempre. Viram muita gente, à porta, esperando opadre...eseguiram.Derepente,Henriquepara:

—Éaqui!—dizele,eapontaumapicadaabertanomato—Olha,Leonor,olha!Jáumaborboleta!Umaborboletagrande,azul,riscadadeouro,saía,dançandonoar.Leonorbatepalmas:—Quelinda!Quelinda!EHenriqueexclama:—Vaisverqueporçãodeborboletasháládentro,Leonor!Evãoentrar.ELeãoadianta-se,edádoispassosnocaminhoestreitoeescuro,rasgadonoseioda

folhagem.Masocãoestaca.Ecomeçaaladrar,aladrar,aladrar,furiosamente,pertodeumembrulhoque

estánochão.Ascriançasaproximam-se,abaixam-se.Èumembrulhodepanoseflanelas.Algumacoisaagita-sedentrodele.E,quandooLeãodeixadeladrar,ascriançasouvemumgemidomuitofraco,muitofraco, que sai da trouxa, toda ensopada de orvalho. Trazem-na para omeio da estrada, com cautela.Abrem-na.

Osoljásaiu.Quesol!Océu,todoazul,estáinundadodeluz.Osinocontinuaarepicar.Nosgalhosaltosospássaroscantam.

—Jesus!Éumacriança!—exclamaLeonor.É uma criança recém-nascida que está dentro do embrulho de flanela; é uma criancinha preta,

vagindo de manso, de manso, com os olhinhos fechados. Leonor, sentada no chão, põe no colo acriaturinhadepelepreta,ecomeçaaembalá-la,jácomaseriedadedeumamulherfeita:—Coitadinha!Coitadinha!

Henrique,muitosério,estádepé.Henriqueéumhomem...sótem9anos,maséumhomem!Eumhomemnãodevechorar...masHenriqueestáchorando,olhaacriancinhapretaquevagedemanso,nocolo da irmã. OLeão, curvado, sem ladrar, sacudindo a cauda, com a língua pendente, está tambémolhandoarecém-nascida,comseusgrandesolhosinteligentesecarinhosos.

—Coitadinha!Coitadinha!—repeteLeonor.—Quemaldade!Quemaldade!—murmuraHenrique.EntãoLeonortemumaidéia:—Henrique,vamosfazerumasurpresaàmamãe!Vamoslevar-lheestapretinha!Henriquedáumsaltodealegria:—VamosLeonor!ELeonor levanta-se,acomodanocolooembrulhodepanose flanelas.Henriqueapanhaosdois

grandessacosdecaçarborboletas.OLeão soltaum latidode júbilo.E lávãoos três, correndo,pelaestradainundadadesol.

Adeus, borboletas azuis, vermelhas e douradas! Adeus borboletas de todas as cores, que estãobailandonoar,sobreasflorescheirosasedoces!Podeisbailaremsossego!Aquelesdoisgrandessacosde gaze, que vinham buscar-vos, voltam para a casa vazios! Deixam-vos em paz, os caçadores! NãopensaemvósLeonor, quevaicorrendo,correndo,segurandocomcautelaaqueleembrulho,dentrodoqual há uma criancinha preta que chora... não pensa em vósHenrique, que corre atrás dela, calado eofegante... não pensa em vós o Leão, que trota na frente, rosnando, enorme e pesado, com a línguapendente e as orelhas abandando... Podeis bailar em sossego! Hoje, Henrique não subirá, como ummacaco, aos galhos altos das árvores, para apanhar os frutos e os ninhos. Hoje, Leonor, cansada deapanhar borboletas, nãomerendará sobre a relva. Hoje,Leão não dormirá a sua sesta, ao sol, nessaclareiraabertanomato...

Lávãoostrês.Aindapassamuitagentequevaiamissa.Osinoaindaestálá,numrepiquefestivo,chamando o povo. Passa muita gente... Mas os três não dão bom dia a ninguém. Vão correndo, vãocorrendo,porquequeremfazerquantoantesumasurpresaàmamãe.Equandochegamàcasa,dizLeonor:

—Devagarinho!Devagarinho!Entram,comotrêsladrões.Acasaestácaladaequieta.Amamãeestácomcertezanacozinha.Na

varanda,Leonor senta-se, ajeita nos braços a criancinha, e fica a embalá-la, coma seriedade de umamulher feita. E Henrique e o Leão correm para a cozinha. E, enquanto o cão salta e late, Henriqueexclama:

—Mamãe!Mamãe!Venhaverumaborboletanegraquecaçamosnomato!Quandoamãechegaàvaranda,paraàporta,espantada.ELeonor,comavoztrêmula,pergunta:—Não é verdade,mamãe, que não podíamos deixarmorrer de fome esta coitadinha?Quemãe

malvada, mamãe! Quemãemalvada, que preta malvada a que abandonou assim esta filhinha! Não éverdadequemamãetambémvaisermãedela?

— É verdade, minha filha! — diz a mãe. — Foi Deus quem conduziu vocês... Fizeram bem!Fizerambem!Opãodanossapobrezahádechegarparamaisumfilho.

E tomounosbraçosacriancinhanegra,únicaborboletaqueHenrique,LeonoreoLeão caçaramnessedia.

13.OPároco(ContodeNatal)

CoelhoNetto

A noite, esparzida de astros, silenciosa emorna, corria triste, sem os rumores dos outros anos,quandoeravivoovenerandopárococentenárioquefaziadespertaraaldeiareligiosacomavozsonoradograndesinoecomosrepiquesfestivosdascampanilhas.

Ia passar despercebida a grandehorada alva redentora emque Jesusnasceu.Camposdesertos,choçasapagadas,eirasemudecidas;apenasumououtrocamponio,saudosodovelhotempo,abriaaportada cabanaparaolharosmurosbrancosdopresbitériovazio, oupassavapor entre as ramagens soboesplendor infinitodanoiteconsteladacomooespectroerrantedaalegriaextinta, tocandotristementeaviola.

Oluarescorriapelasárvoresalvoediáfano,tornandodeprataaágualisadeumlago,ondeogadodesciaabeber.Aigrejafechada,branca,muitobranca,eracomoumamiragemfeitapelaclaridadedoluar. Mas que diferença dos outros anos! Àquela hora as portas escancaram-se exalando o aromasantificantedosturíbulos,eocampoenchia-secomoclangordoshinosdopovoquesaudava,noberçodepalhasdopresépio,olouroJesusnascido,deitado,comsimplicidade,entreavacaeojumento.Quediferençadosoutrosanos!Quemtivesseouvidoapalavratrêmuladovelhopároco,narrando,aofimdamissa,diantedopequenoestábulo,omistériodeBelém:comonasceradeMariaSempreVirgemnumacreche,paraexemplodoshomens,Jesus,Reidosreis,aMisericórdiaSuprema,—teriasaudadesdiantedetamanhatristeza.

Noscurraisfechados,ogado,adivinhandoalúcidamanhã,mugiaprofundamente.Nocéupuríssimoresplandeciaradiosaaestrela-d’alva.

Umgalosolitáriocantouumquintalejo;logooutrosresponderamdosquintaisvizinhosedesítiosdistantes: e, súbito, o som profundo e grave do grande sino quebrou o silênciomelancólico da noitenatalícia,elogoromperam,embimbalhadaestrídula,todasascampanilhas,justamentecomonosoutrosanosquandoeravivoovenerandopároco...

Derepenteabriram-seasportasdascabanas;oscamponiosatônitosapareceramnassoleirasemlevesroupas,ascabeçasnuas,comlanternaserguidasalumiandoanoite.

Asportasdaigreja,abertasdeparempar,deixavamverointeriorresplandecentedeluzes.O espanto foi grande entre os rústico, e nenhum ousou aventurar um passo, posto que os sinos

continuassemasoarfestivamente.Foiumboiadeiroquemprimeirofalou:

—Deveseralguémdavilaquefazsoaràmissaparatrazer-nosrecordaçõesdopároco,fazendoquenãopasseemsilêncioanoitesantadeDeus!

Ossinosrepicavamamaisemais,ejá,emfrentedaigreja,haviaumaesteiradeluzdouradaqueossíriosalastravam.

—Sefôssemos?—propôsoboiadeiro.Voltaramtodosembuscadosgabõesedoscajados,ereunindo-se,comosolhossemprefitosna

igreja iluminada, foram seguindo em grupo cerrado, lentos, tímidos, parando de instante a instante,assustando-seaomínimoruído.

Iaàfrenteoboiadeiro,batendofortementecomocajadoparaanimaraturba.Longe,pelosquintais,aofrescordamadrugada,cantavammaisvivamenteosgalos.Derepente,umgritoatroounogrupo:oboiadeiro,queiaàfrente,caíradebruçojuntoàsescadas

daigreja,clamando.Nemumsóhomematreveu-seaavançarparaacudi-lo:esóquandooviramerguer-secomosbraçosalçados,brandindoocajadogrosseiro,foramcaminhando.

—Opároco!Opároco!—bradavaoboiadeiro,subindotremulamenteosdegraus.Eoshomens,que haviam corrido, extáticos, parados, balbuciavam, com os olhos postos no altar da igreja:— Opárocoquemorreu!Opároco!

ComeçavaamissadeNatal.Juntoaoaltar,revestidodoshábitosreligiosos,estavaumvelhinhopálido,inclinadosobreolivro

santo, as mão juntas, orando. À sua esquerda, fúlgido, com um esplendor sideral, um anjo de asascerradas,ajoelhado,agitavaumturíbulo;outro,àdireita,todonumgrandelimbodeluz,acolitava.

Nadaseouvia.Devezemvezooficiantevoltava-separaabençoaroscamponios,eassuaspupilasfulguravam.

Apoucoepoucofoi-seenchendootemplo;haviamontesdecajadosàporta.Osanjospassavamdeumparaooutrolado,semtocarosolo,aereamente,numadejosutil.Findaacerimônia,abençãodosacerdotecaiusobretodaascabeças:eele,lentamente,comonos

outrosanos,desceuparaomeiodaturba,e,flanqueadopelosanjos,fezaprédicaconsoladora,narrandoo poema da simplicidade, paternalmente, com a palavra pausada e meiga. Por fim, passando pelosgrupos,maispálidoqueoluarqueaindaalumiava,iadandoabeijaramãogelada;eviramtodososantoevenerandopadrealçarosbraçosemofertório;depoisvoltou-se,eficoumuitotempoaolharavila;eumalágrimasilenciosadesceu-lhepelafacebranca.Ajoelhou-se,curvandoafronte,etodosimitaram-no.

Quando os camponios levantaram os olhos, os sinos tinham emudecido no campanário, e, pelastábuasdotemplo,haviaestriasdouradasdesol.Opárocoeosanjoshaviamdesaparecido.

Entreolharam-seoscamponios;eoboiadeiro,tomandoocajado,indagou:—Deondeterávindo?Deondeterávindo?—Dotúmulo,decerto!—disseumavelhaatremer.—Docéu,—disseumpastorinho—nãoháanjosnaterra.—Maselechorou,—disseoboiadeiro,—enãohálágrimasnocéu.—Saudadestalvez!—faloualguémnogrupo.Entãooboiadeiro,fazendoosinaldacruz,suspirou:—Sehásaudadenocéu,bemtristedeveseravidaeterna!—Bemtriste!—suspiraramtodos.Eoboiadeiroajuntou:—Bem disse ele, antes de expirar, que havia de estar sempre conosco, acompanhando-nos em

nossasdoreseemnossasalegrias!Bemdisseeleantesdeexpirar...—Sempreestaráconoscoprotegendo-nosànossamesa,àbeiradonossoleito,juntoaosepulcro

emqueficarmos!—disseumsertanejo.Etodos,movidospelomesmosentimento,levantaramparaocéuosolhosagradecidos.Amanhãde

Jesusresplandecia.

***Eeisporquenão tempárocoa igrejadeS.JosédoMonte:ospresbitérioéocéu,eopárocoé

sempreomesmo,quedesce,emespírito,paraabençoarasalmaseascampinas

14.OBandeiranteOlavoBilac

Quando, em 1664, FernãoDias Paes Leme se embrenhou nos sertões deMinas, raros homens

civilizadoshaviampisadoessasregiõesquasedetododesconhecidas.Fernão Dias Paes Leme já era nesse tempo um velho. Tinha oitenta anos. Mas a idade não

conseguiraalquebraroseucorpo,nemenfraquecerdentrodasuaalmaintrépidaacoragemeaambição.Diziamque,noRioS.Francisco,abundavamesmeraldas.AterravirgemdoBrasiljádavamuitoouroemuitosdiamantes:masaindaninguémarrancarado

seuseioasbelasepreciosaspedrasverdes,queFernãoDiasPaesLemeiaprocurar,arrostandotodososperigos.

Perigosdetodasorte!...Asflorestasestavamcheiasdeferas:porém,maioraindadoqueadelas,eraaferocidadedosíndiosbrutos.Alémdisso,nasmargensdosrios,reinavamfebresassassinas.Comas enchentes, asplantas apodreciam,depositadasnas lezirias, e desfaziam-se emmiasmas.E tudo,—feras,selvagensefebres,—tudoconspiravacontraosexploradores,defendendoaregião,nãodeixandoqueacivilizaçãodelatomasseposse.

MasFernãoDiasPaesLemesópensavana realizaçãodoseugrandesonho.Sonhavapossuirasgrandes riquezasacumuladasnaquelas zonas longínquas.Passavam-lhepordiantedosolhos,quandoafebredaambiçãooalucinava,riosdepedraspreciosas,rolando,rolando,comumbrilhoquecegava.Jáse via senhor demontanhas de pedras verdes... E essa ambição o alimentava, abrasando-lhe o sangue,dando-lhe aos músculos um novo vigor e ao coração uma nova mocidade. Juntou um bando decompanheirosdecididos,eempreendeuaaventuraarrojadíssima.

Erammaisdequinhentos.Quase todos já tinhamexploradooutraszonasde território, eestavamhabituadosàquelarudeexist6encia,detrabalhossemfim,noitespassadasaorelento,debaixodasgrossaschuvastorrenciais,riscossemconta,dificuldadessemnúmero.Eramhomensqueessavidatornarasemi-bárbaros: convivendo comos animais ferozes e comos índios antropófagos, entendendo e falando osidiomasdeváriastribos,acostumadosanãotemeraodiosidadedospovoindomáveiseasinclemênciasdanaturezaprimitivadaAmérica, tinhamficadocorajososcomoessespovos, rijoseprimitivoscomoessanatureza.Quandoasecaabrasavaosmatos,osbandeirantes,paramitigarasedequeosagoniava,bebiamosanguedosanimaisquematavam.Comiamfrutas,cascasdeárvores,sapos,lagartos,cobras.

Nãotinhambússola,nãotinhamarmasaperfeiçoadas,nãotinhamremédios.Confiavamnasuaboaestrela,ecaminhavamaoacaso.Tinhamdevadeartorrentes,ladearpântanos,galgarserranias,atravessarflorestas virgens. E a ambição e a coragem de Fernão Dias Paes Leme guiavam esses aventureirosintrépidos.

Dezanosdurouaexpedição.Enquantocaminhavam,delutaemluta,batalhandocontraosíndios,osbandeirantes iam, nos arredores do Rio S. Francisco, lançando as bases de povoações, que são hojecidades.Aocabodessesdezanos,outrosbandostinhamvindojuntar-seaosprimeiros.Oitopovoaçõestinham nascido, com edificações, surgindo como por encanto do solo, ao simples influxo da energiasoberana deFernãoDiasPaesLeme.Quantidades fabulosas de arrobas de outro empó e de imensosdiamantes asseguravam aos aventureiros grande fortuna. E, quanto às esmeraldas que Fernão Diasbuscava,apenasumapequenaquantidadedelasforacolhida.Eovelhochefenãoseseparavanuncadasacoladecouro,emqueguardavaopreciosoachado.Nãoerasóovalordaspedrasoqueofaziaprezaraquelasacola:oquemaisosatisfaziaeraoorgulhodeTersidooprimeiroadescobriresmeraldasnasterrasdaAmérica.

Mas as forças o abandonavam. Esses dez últimos anos de vida tinham alquebrado o corpo do

heróico velho. Enriquecido o seu bando de aventureiros, fixadas várias famílias nas povoações quefundara, Fernão Dias Paes Leme recolheu-se a Guaicuí, aldeia que, graças aos seus esforços, sedesenvolviaeprosperava.

Aímorreuele,serenamente,semimaginaraglóriaqueestavareservadaparaoseunome.Antesdeexpirar,chamouofilho,econfiou-lheaguardadasacoladeesmeraldas.Recomendou-lhequetornasseaolitoral,e,emviagemparaametrópole,paralálevasseasprimeiraspedrasverdesfornecidaspelasjazidasdoBrasil.

O filho enterrou-o, piedosamente, em plena selva, no meio daquela admirável natureza cujossegredososseuolharatrevidoforaoprimeiroadevassar.Ocadáverdovelhobandeiranterepousaemlugarignoradohoje.NinguémsabeemquearredordeGuaicuí,pertodasmargensfecundasdoesplêndidoS.Francisco,estáaossadadeFernãoDiasPaesLeme,—ocaçadordeesmeraldas.Mas,amemóriadeleviveperpétuanasregiõesqueasuaousadiadesbravou.

Ofilhodoexplorador,guardandoasacoladeesmeraldas,nãosabiaquedecepçãooesperava:aspedrasverdeseramsimplescrisólitassemvalor.

Masoouroeosdiamantesadquiridos,duranteosdezanosdeexpedição,lhedavamumafortuna,capaz de consolar facilmente dessa desilusão. E, se Fernão Dias Paes Leme não teve a glória dedescobrir esmeraldas noBrasil, teve emcompensação a glóriamais alta de ter lançado a semente dacivilizaçãonossertõesdeMinasGerais,fazendooitocidadesrebentaremdeseusoloinculto.

15.Sumé(LendadosTamoios)

OlavoBilac

Foinaimensaefértilregiãodaságuasdemontanhaseareias,quevemdoEspíritoSantoatéoRiode Janeiro, que apareceu Sumé, o venerando velho, pai da agricultura, cuja memória foi tãocriminosamenteperdidapelaingratidãodoshomens.

Nessa larga faixa de terra, cujos cabos e promontórios rochosos invademomar, quase tocandoilhasfecundas,queverdejamaosol,entrebancosdeareia,—viviaumpovoforteevalente,respeitadonapazetemidonaguerra.EramosTamoios,cujascanoasguerreirasdominavamacosta,desdeocabodeS.ToméatéAngradosReis,guardandoasaldeias, formadasdecabanassólidas,cercadasdealtaspaliçadasinexpurgáveis.Quandoastribosvizinhasousavaminvadiraseuterritório,—ocantodopajéconcitavaos filhosdagrandenação.E,aosomdoschocalhosdepedras,dasbuzinasdemadeira,dostamboresedas flautasde taquara,—osgrandesexércitos tamoiosabalavamemhostescerradas,pararepeliroinvasor.Eanaçãonãodescansava,enquantoosinimigosnãofugiamaovalorosoembatedassuasarmasdegloriosas,—maçaspesadasfeitasdelenhodepalmeira,formidáveismachadoschatosdemadeiravermelha,flechasagudas,arcosdaalturadeumhomem.Maisdeumavez,assim,osGoitacazeseGoianazestiveramdevercastigadaasuaousadia.Quandoaguerrafindava,todaatribocomemoravacomgrandefestaavitóriadeseusfilhos.Eamúsicaeadançacelebravam,emtornodosprisioneirosquetinhamdesercomidosvivos,aderrotadosinimigos.Depoisvinhadenovoalivreearriscadaexistênciadapaz,—apesca,nascanoasligeirasquevoavamcomoasavesdomaràflordaságuas,eacaçadentrodosmatosbravos,povoadosdeferas.

Ora,umdia, emqueumagrandemultidãoda tribo,àbeira-mar,estava reunida,celebrandoumavitória,—viramtodosquesobreolargooceano,vinha,doladoemqueosolaponta,umagrandefigura,quemaispareciadedeusquedehomem.

Eraumgrandevelho,brancocomoaluzdodia,trazendo,espalhadanopeito,comoumatoalhadeneve, até os pés, uma longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar. E houve um grandeespantoentreosTamoios,vendoassimumhomem,comoeles,caminharsemreceiosobreasondascomosobreterrafirme.

EraSumé,enviadodeTupã{i}{ii}[1]{iii}, senhordoCéuedaTerra.ESuméoperavaprodígiosnuncavistos.Diantedele,osmatosmaiscerradosseabriamporsimesmos,paralhedarpassagem:aumacenoseu,acalmavam-seosventosmaisdesencadeados:quandoomafuriosorugia,umsimplesgestodesuamão lhe impunha obediência. A sua presença fazia abaterem as tempestades, cessarem as chuvas,abrandaremassecas.Eatéasferasquandooviam,vinhamsubmissamentelamber-lheospés,arrastando-se, de rojo, na areia. E os Tamoios, cativos de sua bondade, conquistados pelo assombro dos seusmilagres, tomaramSuméparaseuconselheiro.E todasas tardes,oschefesadiantavam-separaele,—enquantoemroda,mulheres,homensecriançasparavamaescutar,—vinhamcontar-lheahistóriadeseupovo,einterrogá-losobreassuascrenças,epedir-lheconselhoselições.

Ediziam-lheasuareligião:“Tupã,parafazerocéueaterra,criouasmãesparatudo.Osoléamãedodiaedanoite.Aluaéa

mãedasplantasedosanimais.Oshomensnasceram,eforammaus.Tupã,paracastigarasuamaldade,mandouqueas águascrescessemdesmedidamentee cobrisse tudo.Então,viram-seospeixesnadandoentreasfolhagensdasárvores,eostigresafogadosboiandosobreavastidãodasondascrescidas.Eoshomensfugiamdemonteemmonte.Eocéuseabriaemrelâmpagoseemquedasassombrosasdeágua.Masumvarão forte, queTupã amava,—umvarãode almagrande, que tinhaonomedeTamandaré,

salvouaraçaguardandodentrodeumacanoaosseusfilhos,elivrando-osdonaufrágioespantoso.EdeTamandarésaímosnós,guerreirosquenãotememosotrovejardasarmasdosinimigos,quandoofurorosassanha no campo de guerra,—mas que nos rojamos por terra, lembrando a antiga punição, quandoouvimos trovejar o céu, carregada de ameaças demaldição, a grande voz sagrada de Tupã, senhor ecriadordetodasascoisasedetodososseres...”

Suméamouaquelanação simples e sóbria, semvícios e sempecados.Louvou-lhe a bravuranaguerraeamodéstianapaz.Equistorná-lafeliz,ensinando-lheomeiodevivernaabundância.Eordenouquetodososhomensválidos,depoisdehaveremabundantementeprovidodecaçaedepescaascabanas,emqueasmulhereseascriançasficariam,seguissemcomele,paraobrigaraterraadar-lhesosustentodiário.

Disse-lhesSumé:“Agrandemãeéaterra:agrandemãegenerosa;bastaacariciá-la,bastaamá-laeafagá-la,paraqueelaseabralogoprodigamenteemtodaasortedebensedeventuras.”Masumpajé,velho sábio, conhecedor das coisas que o comum dosmortais ignora, observou: “Como pois, grandeSanto,atéhojesótemelatidoparanósespinhoserépteis?”ESumérespondeu:“Porqueatéhojenãoaamastescomfervoretrabalho.Cavai-aesuaisobreele:serasgaráagradecida,nãoparavosengolir,masparavosdarvidasnovas.Vindecomigoevereis!”

Seguiram-noeles.Eaterra,portodaaparte,eranuaeingrata.Matagaiscresposeimpenetráveissubiam do seu seio. E, dentro deles, as cobras silvavam, as onças uivavam: e toda aquela naturezaprimitivaerainimigadohomem,inimigasempiedade,queafiavacontraeleosdentesdesuasferaseaspontasagudasdosseusespinheiros.MandouSuméquedesbastassematerra,etivessem,paradestruirosmatos fechados, amesma bravura e omesmo vigor que tinham para destruir as hostes dos inimigos.Ordenou-lhedepoisqueamanhassemosolo,e,dando-lhessementesvárias,disse-lhesqueaslançassemsemcontasobreoseiodagrandemãeassimpreparado.

DestemodocorreuSumétodoolitoral.Eatrásdeletodososhomensválidosdatriboseguiam.Osdiaspassavam.Passavamosmeses.Passavamosanos.Edesolasol,afebredomesmotrabalhosacudiaaquelamultidão,queavirtudeeabondadedeumsóhomemarrastavamseduzidaecativa.QuandoSuméchegou à grande Angra, que fechava ao sul o domínio dos Tamoios, parou. E disse, reunindo ostrabalhadores:

—Étempoderetroceder...Idesvercomoaterravospagaemabundânciaeventuraasbagasdesuorquegastastesemseufavor!

Retrocederam.E,então,começouodeslumbramentoda tribo.Àmedidaqueseaproximavamdopontodepartida,viamaterramudada,demaisemmais,abrindo-seemfolhagensquenãoconheciam,emfrutosquenuncatinhamvisto.E,quandochegaramaograndeacampamento,asmulhereseascriançasdançavamecantavam.Osceleirosdatriboregorgitavam.Océupareciamaisbelo;maisbelopareciaomar;maisbelaanaturezatoda;porqueatribotodaviaagoraanaturezaatravésdessaalegriaqueéafilhada felicidade. Das sementes que o Santo Sumé fornecera, tinham nascido, em touceiras imensas, sbananeirasfartas;tinhamnascidooscaráseasmandiocas;tinhamnascidoosmilhosdeespigasdeouro;tinhamnascidososalgodoeiros,osfeijõeseasfavas...

Suménãoachoubastanteoquejátinhafeito:eensinou-lhesaartedefabricarafarinha,moendoamandioca:e revelou-lhesos segredosdanavegação,aperfeiçoandoas suas igaras rústicas,dando-lhesvelas,que,comoasasdepássaros,ajudassemavoarcomovento,elemosque,comocaudasdepeixes,asajudassemacortarondas.EtodaatriboabençoouSumé.Eemhonrasua,todasastardes,quandoopôr-do-solensangüentavaaságuas,ma tribodançava,aobatercompassadodos tambores,emtornodograndevelho,—filhoqueridodeTupã,paidaAgricultura,GênioprotetordosTamoios.

Masosanospassaram.E,comopassardosanos,passouagratidãodatribo.Ospajés,ciumentosdopoderdoSanto,envenenaramaalmadanação:“Como?Poisela,tãoforte,

que, em todo arredor, só seu grito de guerra bastava para amedrontar todas as outras nações, ficaria

sempresobodomíniodeumsóhomem,umestrangeiro,umhomemdepelebranca?”E o rumor da maledicência crescia em torno do Santo. E, em torno dele, a rede da intriga se

apertava.Eeleouvia,esorria.Easuagrandealma,todasabedoriaebondade,compreendiaeperdoavaa

ingratidãodasgentes.Uma madrugada, quando o Santo saía da sua cabana, viu formados todos os Tamoios, que

vociferavam,ameaçando-o.Etodoselesestavamarmados.Easfisionomiasdetodoselestranspiravamódioerancor.OSantoSuméquis falar.Não pôde.Uma flecha certeira, partida das fileiras dos ingratos, veio

cravar-senoseupeito.OSantosorriu.E,arrancandoodardodascarnes,atirou-oaochão,efoiandando,decostas,paraoladodomar.Então,oataquerecrudesceu.Assetasvoavam,àscentenas,aosmilhares,todasatingindooalvo.Sumé,comomesmosorrisonoslábios,iasemprecaminhandodecostasparaoladodomar,e,deumaemuma,iaarrancandodocorpoassetasquenãoomagoavam.

Quandochegouàpraia,entroupelaágua,cresceusobreela,sobreelaseequilibrou,e,sempredecostas,foifugindo,—esorrindo,semamaldiçoarosingratosaquemderafartura.

Etodaatribo,paralisadadeassombro,via,oscilandodelevesobreasondasqueonascerdosolensangüentava, ir diminuindo, diminuindo, até sumir-se de todo na extrema do horizonte, aquela docefigura,depelebrancacomoaluzdodia,trazendoespalhadasobreopeito,atéospés,comoumatoalhadeneve,alongabarbavenerável,cujapontaroçavaaáguadomar...

16.OTesouroCoelhoNetto

Já sem forças para lidar nos campos com os pesados ferros da lavragem, prevendo amiséria

próxima, Serapião saía todas as manhãs de casa firmado ao bordão, e vagarosamente percorria oscaminhosdosítio,chegandoatéondelhepermitiamaspernasfracas.

Repousavanas barrancas, à beira da águaou à sombrade alguma árvore, e ficava esquecidashoras, relembrando o tempo de sua mocidade, quando, brandindo uma foice, roçava o mato bravio,fazendoelesóatarefaquedoishomensdehojenãoseriamcapazesdelevaratermo.

Ecomoviviafeliz!Acasafarta,afamíliacontente,porqueaterracorrespondiacomabundânciadefloresedefrutosaoscuidadosdolavrador!

Agora, entretanto, as laranjeiras morriam carregadas de erva de passarinho, os cafeeirosdesapareciamabafadospelomato;nemumaraizdemandioca,nemumpédemilho;ovassouralinvadiaas terras, e as cobras, sentindo o abandono, cruzavamos caminhos ou dormiam ao sol, enroscadas, àbeiraaoantigoaçudeseco.

Todavia aquelas terras podiam levar vantagem às outras da redondeza, não só por seremmaisférteis,comoporquenelaviviamseisrobustosrapazes,omaisvelhocontandotrintaanos,omaisnovotendoapenasdezoito.

Filhos de Serapião, órfão de mãe, levavam vida ociosa, uns ás portas das vendas fumando,conversando,outrosemcasaestiradosnasredes,afinandoviolas,sempenadovelhopai,semcuidadosno futuro. Indolentes, para não saírem sem busca de trabalho, contentavam-se com amagra ração defarinha de milho que lhes dava uma negra, antiga escrava da família, que não quisera apartar dosertanejo.

De vez em quando, a muita instância, um saía a caçar, e, enquanto durava a carne do fumeiro,zangarreavamedormiam.

Serapião suspirava; mas, como meigo para os filhos, não lhes dirigia uma palavra áspera,lembrava-lhes apenas a fome, nos dias futuros, o frio, asmoléstias:mostrava-lhes o sapé da palhoçaapodrecido,oadobeesburacado,oscurraisvazios,e,nospoleiros,nemumgalosequerparaanunciarasmadrugadas.

Eles,porém,sempreestirados,respondiamcomaresignaçãodosfracosepreguiçosos:—Deuségrande,meupai...Sucedeu,porém,umagrandeseca,etodoosertãofoilastimosamentedevastadopelosol.Os que tinham bens acumulados puderam fazer face ao flagelo; os pobrezinhos, porém, esses

caminhavam noite e dia pelas estradas secas e poentas, batendo os matos, chafurdando nos pântanoslodososembuscadefrutoseraízes.Tudo,porém,osoldevastadorlevara.Ospássaroseramraros,enocamponemumapreásaltavaávistadocaçador faminto.Ogado, sedento,mugiaangustiadamente;eànoite, nos casebres, juntavam-se os bandos de infelizes rezando, em coro alfito, ladainhas demisericórdia.Serapiãoeosfilhossofreramcomoosmaisdesgraçados.

Porque nada possuíam, nada lhe fiavam; de sorte que, enquanto duraram os dias tremendos, osinfelizeserrarampelastrilhas,catandoervas,procurandoraízes.Àsvezescaíamexaustosnapoeiradasestradas,gemendo,defadigaedefome;eemagreceramtanto,queosossosapareciamaflordapele.

Ovelhosofriacalado,emenos tormento lhecausavaafomedoqueamisériaemqueviviamosfilhos desalentados, pedindo a morte, preferível a tão duro e longo sofrimento. Afortunadamente,chegaramaságuasbenditas.

Chuvas torrenciais alagaram os campos, e com tal abundância, que os rios, assoberbados,

espraiaram; e as terras, fecundadas, entraram a produzir fazendo brotar a sementeira, explodindo emverdura.Nosítio,porém,sóaervabravaganhoucomasgrandeságuas:dilataram-seosvassourais,osapéalastrouabundantemente,e,comoaparecessemavesedastocassaíssemariscamenteaspacas,osrapazes, esquecidos do flagelo, voltaram à vida preguiçosa, buscando os alpendres das vendas, ouestirando-senasesteiras,navarandadapalhoçaesboroadapelotempo.

Serapião,porém,quisincitá-losaotrabalho, lembrando-lhesoquehaviamsofridoduranteomêsáridodesoalheiraepenúria;mascomod’antes,todos,auma,responderam-lhe:—“Deuségrande!”—Eumdeles desleixadamente ajuntou:—“Epara quenos havemosde estafar, se nunca chegaremos a serricos?Osquemenostrabalhamsãojustamenteosmaisfavorecidos.Sealgumacoisanostiverdeviràsmãos,nãoéprecisoqueavamosprocurar:aportaestásempreescancarada,entraporelaosol,entraporelaanoite;afortunapodeentrartambém...”

Ouvindopalavrastais,ovelhoergue-selentamente,tomouocajadoepartiu:eraaocairdatarde,osjuritisgemiam.Anoiteveio:apreta,paraafugentarosmorcegos,fezumfogodegravetos;e,emtornodachama,acocorados,reuniram-seosrapazes,atéqueumdeles,omaismoço,vendoaluaaltanocéu,edandopelaausênciadopai,perguntou:—Queéfeitodenossopai?Queandaráfazendo,ahorastais,láfora,aorelentodanoitefria?

Eoutro, comumfrêmitopressagio,disse,baixinhoeamedo:—Quemsabe senão lhe sucedeualgumdesastre?Étãovelho,malvêeandacomtantadificuldade...Quemsabesenãoroloudealgumaribanceira?

Ficaramalgumtemposilenciosos,osolhosfitosnalenhaquecrepitava;umdeles,porém,omaisvelho,ergueu-seresolutamente;efoimaisfortedoqueapreguiçaoamornocoraçãodomoço:

—Vamos!Nãopodemosficaraquiagasalhadosquandoonossovelhopai tremedefrio,egeme,talvez,estropiadonofundodealgumagrota.Vamos!—Etodos,levantando-se,travaramdoscajadosedisseram:—Vamos!

Saíram.Anoite,deumesplêndido luar, era luminosaepura: as estrelas alvasbranqueavamporentreaverduraeasárvorespareciamgalvanizadasdeprata.

Grandeeraosilêncio,apenasinterrompidoaquiealipelotrilardosgrilosepelochilrodealgumpássaroaninhado;longerolavamáguascomumperenemurmúrio.

Elesseguiam,orapelospedrouçosdoscaminhos,oramergulhadosnosapezalondulante,bradandosempre:—Meupai!—oeco,apenas,respondia.

Jáosrapazesfaziamestranhaseterríveisconjecturasacercadovelhosertanejo,quandoumdelesqueseavantajaraempassosgritoudelonge:

—Aqui!Aqui!— correram todos para o sítio de onde saíra a voz, e lá, com alvoroço, foramencontrarSerapiãosentadosobagalhadaprotetoradeumavenerandamangueira,sorrindocontente.

Os rapazes, reunindo-se em círculo, puseram-se a falar da imprudência do pai, e levantaram-nocarinhosamente,insistindocomeleparaqueosacompanhasseàcasa.

Serapião, porém, sorrindo sempre, apenas dizia, num grande contentamento: — Ah! Se vocêssoubessem... se vocês soubesse!— Os rapazes, intrigados com as palavras do velho, cercavam-no,perguntando:—Masqueé?Masqueé?Porquenãodizes?Quesegredospodesterparaseusfilhos?

—Deusmedêforçasparaguardá-losempre!Paraqueheidecontar-vostalsegredo:Nãohaveráamanhãumhomemqueonãoconheça,equandooconheceremoshomens...pobredemim!Seeuvosjulgassecapazdeguardá-lo,decertoqueaoutrosnãooconfiaria,—masdequemeservirásaberdesoquemedisseaIara{iv}[i]?

Ouvindo isso, os rapazes arremeteram curiosamente, e, apertando o velho, interrogavam-nocuriosos:

—Iara!EtufalasteaumaIara,pai?AumaIara,pai?—Sim,—disseovelhocomfingidatristeza,—jáquemeescapoupartesegredo,sabeiqueaqui,

debaixodestamangueiravelha,veiotercomigoumaiaradorio.—Umaiaradorio!...—Umaiaradorio.Todanua,tinhaapenasparacobrir-lheocolooscabelos,verdecomoolimo

das pedras; era branca como a espuma das cachoeiras, e os olhos, tinhammais brilho que a estrelad’alva...

—Tusonhaste,pai!—disseomaismoçodosfilhos.—PorDeus,quenãosonhei!Viumaiaradorio,afirmoejuro.Aindapodeisverocaminhoúmido,

daáguaquegotejavadosseuscabelosverdes.—Sim!Estãoúmidososcaminhos,porqueorelentodanoiteosumedece.—PorDeus!Estãoúmidosdasgotasquerolaramdoscabelosverdesdaiara.Emais:nãovosfica

bemessadúvida,meusfilhos,quandoévossopaiquemvosfala.Jávosmentialgumavez?—Nunca!—disseramtodos.—Entãochegai-vosbemparamim,bemperto;queeuvosfale,masqueoventodanoitenãoleve

alémumasódaspalavrasqueeuvosdisser,umasódaspalavrasquemedisseaiara.Chegai-vosbemparamim,bemperto!

Eosrapazesapertaram-seemvoltadeSerapião.—Agora,—continuouobomvelho,—juraiporDeusquenemumasódaspalavrasqueidesouvirpassarádosvossoslábiosparaosouvidosdeoutrem.

—Juramos!—Prestaiatenção,paraqueeunãomecansederepetir-vos.Estaterraqueocéualumia,—disse

commistérioovelho—estaterraquenóspisamosguardaumvaliosíssimotesouro.Quemoescondeufoiovelhopajédeuma tribo forte,quandoanossa terra foi invadidapelosdescobridores.Escondeu-oepartiu,internando-senasselvasnãodesbravadas,certo,porém,dequenãoforavistoenquantocavavaoesconderijoparaoseutesouro.Sehomemnãohaviaaespreita,—aiara,porentreastábuas,espiava,econheceosítioemqueseconservaariquezamaravilhosa.

—Etedisse?Eindicou-o,meupai?—acudiramtodososrapazescomambição.Ovelho,por´m,moderandoaspalavras,continuou:—Não,masprometeufazê-lonodiaemque

oscafeeiros,emvezdefloresdeprata,desabrochassemfloresdeouro.Osrapazesentreolharam-sepasmados.— Vejo que não acreditais nas minhas palavras, filhos; é natural: eu, mais velho do que vós,

tambémsorridaexpressãodaiara,efoiprecisoqueela,paraqueeuacreditassemedissesse:—Velho,nadaé impossível!Paraqueoscafeeiros,emvezde floresalvasquecostumam tocar sua rama,dêemfloresdacordoourobastaqueosnãoesqueçais,queosnãodeixaisabafadospelaervaperniciosa;bastaqueselheschegueaterra,queselhesdêoadubo,queselhesfaçaalimpezaemredordotronco,afimde que os aqueça o sol e as chuvas se entranharem até as suas raízes; isto feito, em pouco vereis oscafeeirosdourados,e,nessedia,euvireimostrar-vososítioondeopajéguardou,numaenormeigaçaba,otesourodatribo!

Os rapazes, entendendo-se com os olhos, suspiraram, e um deles, oferecendo arrimo ao pobrevelho,disse-lhe:

—Vamos,meupai.Fazfrio,anoitevaialtaeemcasaardeumlumequevoshádefazerbem!Ecaminharamvagarososatravésdoscamposiluminadospeloluarsilencioso.Aoamanhecer,porém,osrapazes,despertando,viramdesertoocatredovelhopai,elogo,tomados

deapreensões,ergueram-se:—Ondeteráidotãocedo?Queteráidofazer?—É a loucura d velhice que assim o faz andar desatinadamente,— respondeu omais velho à

perguntadomaismoço.—Melhoréqueovamosbuscaraocampoequeotenhamossemprejuntodenós,vigiadocomo

umacriança.

—Sim,vamosbuscá-loaocampo.Eforam.Nãoandarammuito,porquelogoouviramavozdeSerapiãoquecantava,eapancadaseca

deumaenxadabatendoaterra.—Trabalha!—exclamoumaravilhadoumdosrapazes.—Trabalha!disseramtodos;eembrenharam-se.Efetivamenteovelhotrabalhava,capinando,eitoacima,umaruadecafé.Osuorescorria-lhedafronte,ondeoscabelosformavampastas,osuorpingava-lhedabarba;eo

peito,queacamisaentreabertadesnudava,reluziaúmido.Vendo-o,osfilhosbradaram:—Oh!Quefazesaí,pai?Ovelhorisonho,comospequeninosolhosiluminadosdeumfulgorestranho,voltou-seesfregando

asmãos,comocabodaenxadaencostadoaopeito:—Quefaço?Poisnãovedes?Luto,averseconsigodespirdosmatosedasparasitasoscafeeiros

paraquesecumpraapromessadaiaradorio.Aomenosmorrereitranqüilo,sevosdeixaronecessárioparaquenãotenhaisumavelhicetristecomoaqueeuarrasto!

—Etu,só,queresdarcabodetanto?—Eusó,jáquemedeixaissó.Maisdepressaviriaotesouroàsnossasmãos,sefôssemostodosa

trabalhar;maisdepressaviriaafarturaeapaz;assimvirámaisvagarosamente,masquemedêforçasoSenhoresaúde,eeunãodormireicontenteenquantonãotiverdaiaraomelhordapromessa.

Ouvindo-ofalarassim,comtãoseguraconvicção,umdosrapazesdisseaooutro,emsegredo:—Quemsabeseoquejulgamosalucinaçãodevelhicenãoéverdade?Nãoémaisprudentenem

maisavisadodoqueeleomaisnotáveldosnossoshomensconterrâneos;ninguémoapanhoujamaisemfalsidade; todoslhepedemconselhos, todosoqueremouvir;e talnãoaconteceria,se lhepercebessemdesatinos,vindosdarazãoenfraquecida.Quemsabesenãoéverdade?

—Sim,quemsabe?—Falamtantodeencantamentos!Melhorseriatentarmos.Juntos,empoucotempo,daremosconta

datarefa,etalvezapareçamnoscafeeirosasanunciadasfloresdeouro.Equeregalo,seencontrarmosariquezadatribo!

—Melhordoqueofazendeiromaisrico...—Muitomelhor,porcerto!Jáovelhotornaraàterra,cantando,quandoosrapazes,concertados,desceramàcasa,rebuscando

entreosferrosesquecidososmelhores;etomandodeles,meteram-sepelosmatosdensos.Àtardecaíaocrepúsculonevoento,eovelhodesciaacaminhodacasa,quandoviu,comalegresurpresa,osfilhosemturma,trabalhando.Deteve-se;eaemoçãofoitãoforteemsuaalma,queaslágrimassaltavamviolentasdosolhosdosertanejo;equemporpertodelepassasseouviriaoquedissecomovidamente:—“Benditaiara!Benditaiara!”Efoi-secantarolando,risonhoefeliz,comaenxadanoombro.

No dia seguinte, ao luzir d’alva, Serapião erguia-se do catre, quando o mais velho dos filhosprocurou-o:

—Fica!—lhedisse;—nãoéprecisoquevenhasaocampo.Seforverdadeoquetedisseaiara,dentro em pouco verás limpos de toda a erva os cafeeiros. Somos mais robustos do que tu; fica edescansa.

Eovelhodisse:—Ide,equeDeusabençoeovossotrabalho;eufico,eparaqueainércianãomeamolenteocorpo

eoespírito, trazendoapreguiçaeospensamentostristes,voudistrair-mereparandoosestragosqueotempotemfeitonacabanaquenosabriga.Devolta,àtarde,trazeiosapéparasubstituirocolmoquemalnosresguardadaschuvaseeumesmocobrireiacabana.Éjustoquequemtrabalhadurmatranqüilamente,semqueasgoteirasofaçamandarcomoleitodumparaoutrosítio.Ide!EqueDeusabençoeovossotrabalho!

Eosrapazespartiram.Ovelhoficou,e,conformeapromessaquefizera,pôs-searetocarosmurosabertosemfrinchas;e

ánoitinha,quandoosfilhosentraram,mostrou-lhesotrabalhoquehaviafeito,eelesentregaram-lheosfeixesdesapéquehaviamcortado.;esentaram-seàmesa,comendocomapetiteesatisfação.Ovelho,sempreaofimdorepasto,diziaàmaneiradeoração:“Aiaradeveestarsatisfeita;dentroempoucoteráperdidooseuencanto”.

Eassimpassouoano.Os rapazes,porvezes,desanimavam;mas semprehaviaum,maisambicioso,queacoroçoavaos

outros:—Que! Pois agora que vai em tão bom seguimento o trabalho, é que vocês querem deixá-lo?

Vamos!Quemsabesejánãoestãoabotoandoasfloresdeouro?E,assimexcitados,tornavamtodosàterra.Eveiootempodascolheitas.Omilhoeascanasfaziamumextensomardourado,aosol;osarrozaisalastravamosalagadiços

comumfino tapetedeveludoverde;omandiocalcobriacoma sua ramaasencostasoutrora secas;ofeijão, enroscando-se nos pés de milho, subia tanto, que se confundia com as espigas louras; e tudoprometiaumacolheitaabundante.

Osrapazessuspiravam:“Estavamcarregadosdefloresoscafeeiros...ah!Masnãoeramdeouroasflores.Dequelhesserviriatantoesforço,aosol?

—Perseverança,meusfilhos!Perseverança!—asfloresdeourohãodevir,asiarasnãomentem.Vamos tratar de recolher os primeiros presentes da terra. E começaram a colher; mas eram em talabundânciaosprodutos,queosrapazestiveramnecessidadederecorreraosvizinhos,alugandocarrosegado para transportar os frutos; e, como todos viam a prosperidade do sítio, ninguém recusou o quepediamosrapazes,emaisaindalhesofereciam.

Gente supersticiosa, porque desconhecia o caso do tesouro, começou a murmurar: — que aliandavaamãododiabo!Terras,ontemtomadaspelomato,comopodiamestarassimtãoflorescentes?

Efugiamdosítioossupersticiosos,inventandolendastenebrosas.Vendidagrandepartedacolheita,comoprodutoosrapazesdesceramàfeira,ecomprandogado,

aves,enovosinstrumentos;sortiramadespensa,encheramospaióis,etiveramabundânciaealegria.Ovelho,contente,saíaatardeparaoterreiro,echoravalágrimasdealegria,vendoqueseialentamenterealizandoapromessadamãed’água.Jáseouviaomugidodosboisnoscamposdantestãosilenciosos;e todas asmanhãs, a preta saía com uma grandemalga para ordenhar as vacas; as ovelhas balavam,galinhascacarejavam;nascevas,grandesporcos roncavam,e jáasmanhãsnãopassavamsemocantoalegredosgalos:agoraeramseisacantarnopoleiro.

Maisoutroanopassou,maisfartodoqueoprimeiro;osfilhos,porém,apesardeveremasárvoresvergadasaopesodosfrutos,suspiravam:“porquenãovinhamaoscafezaisasfloresdeouro?!”

— “Perseverança,meus filhos; perseverança!dizia o velho.—As flores de ouro hão de vir, asiarasnãomentem”.

— E recolhia à grande arca o que os filhos traziam do mercado, onde haviam ido vender osprodutosdosítio.

Seis anos depois, já os rapazes tinhamdesesperado da promessa da iara;mas, como se haviamhabituadoaotrabalho,saíamtodasasmanhãsparaoscamposqueeramentãoosmaisbeloseosmaisférteisdaredondeza.Ovelhoenfermougravemente,sendolevadoembraçosparaoleito.

Os filhos, tristes, cercavam-no; e já a vista se lhe turbava, quando ele acenou tremulamente ,chamandoparabempertotodososrapazes,e,sentindo-osjuntoaoleito,disse:

—Meus filhos, já agora posso falar, dizendo-vos omelhor segredo da iara. Habituaste-vos aotrabalho,ecertoestoudequeonão trocareismaisnuncapelavida inerteque leváveis.Aalegriaestá

conosco,temosaabundânciaeapaz,nadanosfalta.Jánãomendigamosopãocomquenosalimentamos,nemalãcomquenoscobrimos;oventojánãozumbenosquartosdacabanademurosbrancos;láforaogadoprocria;jánãobastaumcurralparaconterascriasquevãonascendo;asárvoresestãocarregadasdefrutos,ejánãoandaisdescalçosnemcobertosdeandrajos:tendestudo,emaisainda:aconsideraçãodos homens, que já não vos apontam como freqüentadores de estradas, desconfiando de vós se lhesfaltavaumaovelhaouumfrutonogalho...bemvedesquenãovosmenti!

O mais moço, porém, que tudo ouvira em silêncio, não se conteve, vendo que o pai, casado,emudecera:

—Masosfrutosdeouro,meupai...apromessadaiara?—Os frutos de ouro?Ah!Os frutos de ouro... eu os fui ajuntando, para fazer-vos a surpresa, e

tenho-osali,naquelavelhaarca.Idever!Achaveestácomigo,procura-adebaixodomeutravesseiro!Eomaismoço,ouvindoaspalavrasdomoribundo,procurouachave;e,achando-a,correucomela

paraagrandearca,cercadodetodososirmãos;e,quandoabriu,umgrandegritosaiudetodosospeitos:—Oh!

Estavaatopetadadeouro!Eosrapazes,malcontendoaemoção,precipitaram-separajuntodoleitodomoribundo:

—Quefortunaéessa,pai?Eovelho,comavozenfraquecida,disse:—Éotesourodaiaraqueestavaescondidonaterra!—Efostetuqueodescobristes?—Eu,não,meus filhos:apontei-vosapenasocaminho!Quemdescobriu fostesvós,comovosso

trabalho perserverante; eu acumulei com economia, e agora entrego-vos o que vos pertence. E sabei,filhosmeus!Emtodoequalquerpontodaterraháumtesouroescondido,cujadescobertasóépossívelfazer-secomotrabalho.Tendesagoraabundânciaepaz;e,sequiserdesaumentaravossafortuna,voltaiàterra,—queaindaesempreachareisoqueextrairdesuasentranhas.Lembrai-vosdaiara,lembrai-vosdaiara...

E,semmaisdizer,cerrouosolhosdocemente,repousandoacabeçanotravesseiro.Estavamorto,esorria.

17.PernadePauCoelhoNetto

Já grisalho, alto emagro, olhosmiúdos e negros,mas de um brilho estranho, viam-no todas as

manhãspassaràportadocolégiocomumagrossaenodosabengala.Conheciam-nopelotoc-tocdapernadepau;elogo,chamando-seunsaosoutros,corriamtodosos

meninosàsgrades,e,quandooinválidopassava,rompiamemassuada:—Oh,perneta!Elesorriadocemente;osseusolhosbravios,deumaexpressãoferoz,ameigavam-se;e, longede

agastar-se,tiravaoseugrandechapéudeabaslargasefaziaumabarretada,nãoseiseparabrincarcomospequenos,separalhesmostraroscabelosbrancos.

Umdiaodiretorchamou-oparalhefazerpresentedeumasroupas,desorteque,àhoradorecreio,quandoosmeninossaíramparaopátio,viramcomsurpresaoPernadePausentadotranqüilamenteemumdosbancos.

Receososmurmuraram:—Vemdarparte!Vemqueixar-seaodiretor!—masobomhomemsorriacomtantameiguice,queumdospequenosousouacudiroseuchamado.

—Venhacá,meumenino!Temmedodemim?—Não!—dissecomorgulhoopequeno.—Entãovenhaatécá...eugostomuitodecrianças.O menino adiantou-se, e os outros, vendo a bondade do inválido, acercaram-se dele, e o bom

homem ficou numa roda de crianças, feliz, sorrindo. Um dos pequenos, curioso, perguntou-lhe entãoingenuamente:

—Queédatuaperna,homem?—Aminhaperna,meumenino?Aminhapernaumbichomaulevou!A estas palavras a curiosidade dilatou todas as pupilas, e os meninos, esquecendo o recreio,

chegaram-semaisaohomem,perguntando:—Quebicho?Comofoi?Conta...—Ah!Meusmeninos... eu era um rapaz robusto; vivia naminha terra descansadamente, quando

correu a notícia de uma fera, que deitava fogo pela boca, queimando as cabanas e as plantações dospobres,andavasearrastandopelavizinhançadanossaterra.

Diziamqueelamatavavelhosecrianças.Muitosmoçosdaminhaidadepartiramparacombateraferaque lhesameaçavaacasaeavidadosvelhospais; eu também tinhaminhamãe,umavelhinha, equandomedisseramqueoanimalpodiamatá-la,nãopenseimais,meusmeninos,tomeideumaarmaepartinumbando.

Todosquantosnosviampassarabençoavam-nos:um,porquenósíamosdefenderasuacasa;amãe,porque íamos evitar que a fera lhe viesse arrancar o filho dos braços, o enfermo, porque nãoconsentiríamos que fosse maltratado. Os velhos mostravam-nos os cabelos brancos, as donzelasatiravam-nosflores,enósseguíamos,levandotodasessaslembrançasnumregistro,queumdosnossosconduzia,paraquesemprelembrássemosdoqueviríamoseouviríamos.

Echegamosaosítioemqueaferaerrava.Ah!Meusmeninos!Quantomalelajáhaviafeito!Quantacriancinhaórfã,quantacabanareduzidaacinzas,quantoscamposdevastados!Felizmente,encontramo-laeocombatetravou-se.

Muitosdosmeuscompanheirosláficaram,devoradospelodragãoterrível;eu,maisfeliz,apenasperdiumaperna:enãomearrependo,nem lastimoadorque sofri,porque,devoltaàcasa, encontreiminhamãefiando,eviminhaterratranqüilaefarta,todasasmãescontentes,eosvelhosrespeitados.

—Queseriadevossamães,meusmeninos?Talveztivessemsidovítimascomooutrasforam...

—Equebichoera?Perguntouopequenocurioso.—Aguerra,meumenino!—disseoinválido—Foinaguerraquedeixeiaminhaperna,enãome

arrependo:fizomeudever,defendendoaminhaPátria,e,quandovolteicompeitocobertodemedalhas,ainda acheiminha velhamãe queme abençoou.Hoje estou velho e doente, e osmeninos riem-se demim...

—Nãoriremosmais!—disseumpequenocomosolhosrasosd’água;eatirando-seaopescoçodovelhosoldado,pôs-seadizer,comovido:

—“Não riremos mais! Não riremos mais!” — e o Perna de Pau, no meio das crianças queprocuravamabraçá-lo,rindo,mascomduaslágrimasnosolhos,dizia:

—Ah!Meusmeninos, assimdão cabodemim!—e todos festejavamo inválido, prometiam-lhepresentes,abraçavam-no.

Felizmentepôstermoaoassaltodeternuraasineta,chamandoparaaaula...

18.PátriaNovaOlavoBilac

Eradiadedescansonograndeengenho.Todasasmáquinasestavamparadas,todososinstrumentos

detrabalhoguardados.A missa findara; da capela, em bandos alegres, vestindo as suas melhores roupas, saíam as

famílias,paraopasseioeofolguedo.Sozinho,fincandooscotovelosnosjoelhos,erepousandoacabeçanasmãos,umcolonojáquase

velho,mashomemrobustoainda,emcujacabeleiraruivacomeçavamaaparecerosprimeiroscabelosbrancos,—cismava,alheadoatudo,insensívelaobarulhodefestaqueiapelascasasdacolônia.

Formosa,aquelamanhã!Nofundoazuldocéurecortavam-seasmontanhasdeumverdequente,e,àbeiradoriacho,quecantava,sobreaspedraseaservasrasteirasesmaltadasdefloressilvestres,voavamospássaros,tontosdetantaluz.Osoldavaumbrilhonovoàsvidraçasdascasas,batiaemchapasobreasardósiasdostelhados,eanimavatodaapaisagemdeumaalegriacomunicativa,queseapoderavadetodasasalmas.Eradomingo.Asúltimaspancadasfestivasdosinomorriamdocementenapazrisonhadoarredor.

Masocolonocontinuavaacismar,sozinho,afastadodagentequesedivertia...Équeumdia comoaquele (havia justamentedez anos!) saíra elede sua aldeianatal, sobo céu

napolitano,—embuscadeterrasquecommenosavarezarecompensassemafadigadeseutrabalho.Agora, novas terras, nova natureza, gente nova, dias de febre e de esperança primeiro, dias de

conforto e de fartura depois,— não lhe haviam permitido o desejo de voltar a sofrer em vão, semproveito, sobre a terra ingrata, que não tinha pão bastante para dar a tanta gente que lhe pedia...masninguém esquece a sua terra, por mais pobre, por mais triste que ela seja! E o colono evocava arecordaçãododiaemdequelásaíra,—ereviatodososaspectosfamiliaresdalindaaldeia:ascriançasnuas e espertas que se arrastavam no pó, os velhos que ficavam às portas apoiados nos bordões, osrapazesqueosolqueimava,easraparigasrobustasqueiamcomelesparaopenosoofíciodaslavouras.Eumagrandetristezalhepesavasobreocoraçãocheiodesaudades...

Masnessemomentoalguémseaproximoudele.Erauma fortemulher, aindanoverdorda idade,trazendoaocoloumacriança.Chegou,pousouamãonoombrodocolonoqueseabsorvianameditação,edespertou-odacisma:

—Queéisso,pai?Jáoprocuramosportodaparte...Quetem?Porquefogedenósnumdiacomoeste,evemaquificar,sozinho,comasuatristeza?

—Éjustamenteporcausadodiadehojequemevêstriste,filha—disseele.—Épossívelquetenãotenhaslembradoquefoinestedia,hádezanos,quesaímosdenossaterra?

Umanuvemdemelancolia sombreou a face da rapariga.Estevedurante alguns segundos calada,ajeitando a ponta do chalé, para livrar dos raios do sol o rosto do pequenino que dormia. Depois,olhandocomamorafacetristedopai,respondeu:

—Como não havia de me lembrar, pai! Logo de madrugada, comecei a pensar nisso... estiverevivendo o dia em que saí de lá, solteira ainda, deixando as companheiras dos meu folguedos decriança...estivecontemplando,emimaginação,ocemitériodanossaaldeia,emqueestáasepulturademinhamãe...comoéqueeupoderianãotersaudades?Mascalei-me,edisfarcei,paranãolhedaressamágoa,pai...penseiquenãoselembrasse!

—Lembro-me,filha,lembro-mebem!Quemesqueceasuaterranãotemcoração!Ficaramcaladosambos.Depois,afilhacontinuou:—Masescute,pai!Porquehádeficartriste?Maisvaleesquecer,eviverfeliz,gozandoafortuna

queoseutrabalholheestádandoaqui!Ouça!Eu,pormim,estoudispostaanãopensarmaisnisso:foiaquiquevifelizestodososmeus,foiaquiquecasei,foiaquiquenasceumeufilho,oseuneto...Porqueéquenãoheideamarestaterra,comoseelafosseminha?

Ocolonoolhoufixamenteafilha:—Como?!Poistuéscapazdeesqueceratuaterra?Elahesitouummomento;maslogoemseguida,comvozfirme,disse:—Não!Esquecernãoposso...nãoposso...masdiga-me:a terrade láéqueéasua,eéqueéa

minha..qualé,porém,adestacriançaqueaquiestá,quenasceuaquiequevaicrescerignorandoalínguaquenósmesmos jávamosesquecendo,evendotodososdias,da infânciaà idademaduraeàvelhice,estaPátriadaliberdadeedariqueza?Olhe!Evejacomoelabatepalmas,contente,aestesolqueaviunascer!

Defato,acriançaacordara.Piscavaosolhinhos,entreaspálpebrasgordas,sentindoocalordosol,eagitava-se,rindo,nocolodarapariga.

Ohomemsentiuosolhosúmidos,e,tomandoacriançanosbraços,exclamou:—Tensrazão,filha!Estaéaterradeteufilho,estaéaPátriadomeuneto:porqueéquenãoháde

sertambémanossaterra?E,alegre,levantandoeabaixandoacriança,noar,comosseusbraçosrobustos,começouabrincar

comele,dizendo-lhe,comoseuacentonapolitano:—Bravo,brasileirinho!Bravo,brasileirinho!...

19.OAmbiciosoCoelhoNetto

Devoltaaocemitério,onde,semumalágrima,deixaraocorpodopai,Felíciorecolheu-seàcasa

deserta,ecomohavialuar,nemacendeuacandeia,parapouparoazeite.Sentandosoboalpendre,pôs-seaolharoarvoredofrondoso,cujafolhagemreluziaàclaridade,e,

maislonge,ondulando,ocanavialeomilho.O velho aproveitara toda a terra lavradia, respeitando apenas o pequeno bosque, em que se

abrigavaafonte,eonde,eleeoscamaradasiamrecolherosgalhossecoscomquealimentavamolume.Seishomensrobustostrabalhavamcomojornaleiros,ajudando-osnoásperolaboragrícola—uns

aoarado,outrosnacarpa,oucolhendo,ouplantando.Asmulherescuidavamdoserviçodoméstico,eaindaraspavamamandioca,debulhavamomilho,

batiamofeijão,retiravamomeldosfavos,ereuniam,àtarde,asaves. As próprias crianças era aproveitadas,— umas guiando o gado aos pastos, outras levando a

comidaaostrabalhadores,àroça;ecomohaviafartura,eraumencantoavidanosítioqueprosperavaaolhosvistos.

Sabia-sequeovelhotinhahaveres;nemelefaziamistériodisso;antesafirmavacomgarbo,paraestimularoshomensaotrabalho:“Opoucoquetenho,deu-meaterra,assimoganhareis,setrabalhardescomperseverança.Eunãovosengano—tendesdemimoquemereceis.Obemquefizerdesvosserácontadoepago.”

Eassimera.Felício,porém,nãosecontinhaaossábados;malsopitavaaraivaquandoopaipagavaasférias

aoscamaradas.Aqueledinheiro,passandoamãosalheias,doía-lhe,comosefosseasuaprópriascarnetiradaaos

tassalhos;e,semprequeserecolhiaaoleito,murmuravacomavareza:—Heideacabarcomisto!Paraquetantagente?Umsóhomembasta,eessesereieu!Assimpensou,eassimfez.Nodiaseguinteaoenterrodovelho,Felíciochamouoscamaradas,fez-lhesascontas,edespediu-

os.

***Quandoseviusó,Felícioesfregouasmãoscontente,dizendo:—Agorasim!Tudoquantofizerserámeu.Nãotenhomaisquemcomaoqueeuplanto,nemquem

leveosmeuslucros!Os mesmos cães, que guardavam a roça, dando caça aos animais daninhos, foram enxotados à

pedrada;eoambiciosoficousolitário,olhandoalavouraexuberantequesedesenvolviaaosol.Vieram, porém, as chuvas, e a terra entrou a produzir doidamente. O mato apontou, cresceu,

invadindo as culturas, cobrindo os caminhos que desapareciam; e Felício, levantando-semuito cedo,aindacomasestrelasaluziremnocéu,saía,elásepunhaacapinarcomânsia.

Pornãoouvirasvozesdosanimaisquealegravamosítio,—umboiamugir,umaovelhaabalar,aquiumagalinhacacarejandoaospintos,adianteapata,comapequeninafrotapenugentadospatinhos,—ficoupreocupado.

Por onde andariam?Talvez no pasto. Eramelhor assim: não só lhe poupavam o trabalho de ostratar,comoainda,alimentando-secomoquebuscavam—eaviatantaervaeeramtantososbichinhos!

—livravam-nodedespesas.Evoltavaàterracomdesespero.Paranãoperdertempoemfazerlume,almoçavaumafruta,econtinuavaatrabalhar,casmurro.Todoseuesforço,porém,nãoconseguiaconterainvasão.Aservasmásapareciamemtodaaparte;

e,apenasaenxadadeixavaumtalhão,logoosrebentosabrolhavam.Às vezes, ele sentava-se à borda das rampas alagado de suor, os braços doloridos, e ficava ali

inerte,comaalmacheiadedesânimo,revoltadocontraaquelavegetaçãoperniciosaquelhecomprometiaalavoura.Logo,porém,excitadopelaambição,retomavaaenxadaeprosseguiaotrabalho.

Empoucotempo,alinda,viçosalavouradeoutroradesapareceu,suplantadapeloervaçalbravio;e,ondeomilho lourejavacomasuaespigadeourodesnastradaaosol,cresceramarbustosagrestesepalhegalfarfalhante,porentreosquaisascobrasvenenosasratejavamchocalhando.

Osanimais,malanoitebaixava, saíamdas tocas,devorandoedestruindoaplantação.Todasasmanhãs,Felícioparava,pesaroso,diantedascovasqueelesabriramànoite,eaindaachavarestosdemandioca,batatas,raízesdeaipimabandonadasàflordaterra.

Jácomeçavaadesesperar;massempreambicioso,nãoseresolviaarecorreraosjornaleiros.Sechamassealgunshomens,tudovoltariaaoantigoviço;masteriadelhespagar.Nãoquis,insistiu

nolaborinútilquesóoalquebrava,e,quandocaíaprostrado,arquejando,logoouviaosbem-te-vis,que,dasárvores,pareciamvaiá-loerirdasuapretensãoridícula.

Levantava-se, enfurecido, indignado, blasfemando, atribuindo a sua desgraça aos invejosos quehaviamlançadomausolhosaosítio.

Umdia,sentiunaáguaumsaborestranhoelogosuspeitouqueoandavamenvenenando.Subiuaobosqueparaexaminarafonte.Dificilmentedeucomela,tãocheiaestavdefolhaseramos

podres;atécadáveresdeanimaisboiavamemsuaságuasantestãolímpidas,porqueovelho,dequandoemquando,mandavaumdoscamaradaslimparafonteparaevitarqueseformassembalseiros.

Então,láemcima,lançandoosolhosàplanície,viutodaagrandezadesuadesgraça:—aroçaeraummatointenso,ejáemtornodacasaosespinheiroscresciameosjoásdavamosseusvenenososfrutosdeouro.

As lágrimassaltaram-lhedosolhos;e,compreendendoasua impotência,deixou-secairem terraHumilhado,certoque,sozinho,jamaisconseguiriaporcobroàquelemalqueeraumavingançadaterra.

Lembrou-se, então, dos homens, os leais trabalhadores que haviam ajudado o velho a ganhar odinheiroqueláestava,emboasmoedas,nofundodaarca.

Ah!Setodosaliestivessem...asárvoresestariamcobertasdeflores,ascanasestariamcrescidasemtouceiras,osmilhosostentariamasgordasespigas,eogadoreluzirianédio.

O gado... onde andariam os seus bois, as suas ovelhas, as suas cabras, os seus cevados ebacorinhoseasaves?Fosseeleprocurá-los!

Comumarrancadosuspirodesceuvagarosamenteàplanície.ÀNoite,preocupadoesemsono,pôs-seaandarpelacasadeserta.Saindonoalpendre,pareceu-lheverovelhopaisentadonobanco,emquecostumavaficarànoite,

fumandooseucachimbo,aolhardistraidamenteasestrelasluminosas.Atentouavisão,ereconheceuodefunto.Felíciopôs-seatremer,agarradoaumdosesteios,eouviu

opaique,emvoztriste,lhedisse:Éaambiçãoquetevailevandoàmiséria,meufilho!Quiseste,poravareza,fazeroimpossívele

comânsiadetudoaproveitar,tudoperdeste.Senãohouvessesdespedidoosauxiliaresqueaquideixei,nãoestariasagoraalamentaroprejuízo:ondehámatohaveriaflor,aáguacorrerialivrementeepura,asroçasestariamviçosas,esentiriasacompanhiadoteusemelhante,eouvirias,noteurepouso,asvozesdosanimais.Fazendofelizesseriasventuroso.Omuitoquererésempreprejudicial.Quemdá trabalhoenriquecesorrindo;quem,doseupão,dáumamigalhaaopobre,farta-seefazventura.Queconseguiste

comaambição?Antesdelavrar,terãooshomensquedesbastar;eassimvaisapagaroteupecadocomasmoedas

do cofre e ainda com a humilhação. Ficaste isolado, e a urze da terra saiu a acompanhar-te. Se nãoquiseresqueomal entreno teu coração, enche-odebondade: a almavirtuosanãoaceitaopecado, écomoaleirabemplantadaecuidada,ondenãocresceoespinhal.Nosespíritosvazios,comonasterrassemcultura,nascemosmauspensamentoscomorebentamoscardos.Quiseste,sócomteusbraços,fazera tarefa de seis homens, e nem a tua levaste a termo: porque, mal acabavas a carpa, logo as ervasrenasciam. Chama os que despediste, dá-lhes trabalho, e não penses que eles te furtam o pão,acrescentam-noeabençoam-no.Oegoístaécomooarealsolitário,que,pornãodarvidaàplanta,sofretodos os rigores do sol semo frescodos arroios e o gozodamais pequenina sombra.Omundo é detodos, e só é verdadeiramente feliz quando se é bom.Chama os que partiram, recebe-os na tua casa,paga-lhesotrabalhoquefizerem,eelesorenovarãooqueaavarezadestruiuetornarásaverosfrutos,aouvirosgados,eoutrasmoedasseirãojuntaràsquedeixeinaarca!

Felícioficouummomentoamparadoaoesteio,masosilêncionãofoimaisinterrompido:ovelhodesaparecera.

O velho!... Teria sido ele, ou a própria consciência do avarento que assim se manifestara?...Mistério!...

***Namanhãseguinte,começavamacantarospassarinhosquandoFelíciodesceuàvilaparacontratar

jornaleiros.Hoje,osítioéomaisbelodolugar.Acasaénova,e,emtornodela,outrasavultam;e,entreas

árvoresfrondosas,é,damanhãàtarde,umalegrecantardelavradores.Eosmilhoscrescem,cresceocanavial,opomarétodofruto,eFelícioprospera,contente,vendoà

voltadasuafelicidadetantagentefelizbendizê-lo.

20.OLenhadorCoelhoNetto

QuandochegamosàcabanadovelhoAmâncio,àbocadamata,umcãozinhoquedormiaencolhido

sobre um monte de bagaços de cana, já secos, perto de uma moenda, saltou ladrando: mas o velhoaquietou-o,e,abrindoacancelinha,quedavaingressoaoterreiro,recebeu-nosamavelmente.

A casa, de taipa, coberta de sapê, era um ninho entre as árvores. As laranjeiras carregadasvergavamosramosaopesodosfrutos.

Aumladoocanavialeosmilhos,aoutroladoahorta,ondecantavaumfinocórrego;e,sobaramafrondosaderobustamangueira,agasalhava-seopaiolmodesto;maisadiante,ocercadoondeberravaacabraleiteira,ogalinheiroeaceva.

Amâncio era homem de cinqüenta anos, moreno e robusto, de olhos vivos, barbas e cabelosgrisalhos.

Falava sorrindo com expressão afável; e a boa Lívia, sua esposa, que o acompanhava desde amocidade,jácomapeleenrugadaeacabeçatodabranca,pareciamaisvelhadoqueele.

Quandoentramosnasaladapobregente,foranamata,ascigarrascantavam,easpombaspunhamumanotademelancolianocrepúsculo.Vendo-noscomaespingarda,esabendoquepretendíamospassara noite na montanha, para que pudéssemos surpreender a caça à hora em que ela sai pelas trilhassossegadas,Amâncioofereceu-nosdoquetinhanoarmário,enquantoaboaLíviaestendianamesatoscaumatoalhaalvíssima,queexalavaosuaveperfumedaervadeSãoJoão.

Aceitandoorepastoquenosofereciaohonestolenhador,pusemo-nosàmesa.À luzdeumacandeia, a sala tinhaum triste aspecto,mas apobreza era largamente compensada

peloescrupulosoasseio.Mariposas voavam em torno da candeia; e lá fora, no silêncio, à luz das estrelas, os sapos

coaxavam.Emumadasparedes,entrevários registrosdesantos,haviauma litografia representandoogeneralOsório.

—Vosmecêsestãoolhando?—disseolenhadorsorrindo.—Aqueleéohomemquenosdefendeunoscamposdeguerra;porissoestápertodeNossoSenhor.Agenteacostuma-seaquererbemaessespatrícios, e acaba fazendo o que eu fiz. Lívia anda sempre lidando comigo para tirar o retrato dali,porquenãoésanto.Masfeztantocomoseofosse,porquesalvouahonradopovo!Poisnãoéassim?DeusNossoSenhordocéuhádeaprovarmeupensamento.Eusouassim:tudoporminhaterraepeloshomensquelhefazembem.

—Desdequandovivesnestemonte,Amâncio?—Euseilá!Possodizerquefoinestecantinhoquenasci.Quandodeipormim,meupai,queeraum

cabocloforte,moravaemumacasinha,umpoucomaisláembaixo.Tudoeramato,nessetempo;hojeéquasetudocidade.Aindaasonçasvagavampeloscaminhos,enãoseandavanestemontecomosossegocomqueseandaagora...

—Haviaperigo?—Se havia perigo! Tudo isto estava ainda como Deus criou. Bemme lembro! À noite era um

cuidado!Muitavezmeupaisaíacomaespingardaparaespantarassuçuaranasquerondavamacasa.Eisto não era como é hoje. Os bichos foram para longe, não há mais aqui em cima, nem mesmo naMantiqueira onde está o Itatiaia, que é o pico mais alto do Brasil, vosmecês sabem. Só as árvoresficaram,aindaassimjádescerammuitas.

Ovelholenhadorbaixouacabeçagrisalha,maslevantando-a,poucodepois,continuou:—Américo(vosmecêsnãoconhecemmeufilhoAmérico,queémarinheiro?)disse-me,certavez,

umacoisaquemefezpensar:“Ah!Meupai,agentenacidadeéquecompreendeovalordasárvoresqueforam as suas companheiras.O tronco quemeupai derruba vempara as oficinas—de uma sai feitonavio,deoutrasaitransformadoemleito:émobíliadorico,éocatredopobre,éoesteiodacasa,éoaltar.Quase tudoquanto agentevê emconstruções saiuda floresta.Onavio, emqueeuando, foiumcantodebosque—tevefolhaseflores—hoje,depoisqueostroncosforamtrabalhados,andasobreaságuas:éaflorestaquevaipelomundolevandoanossabandeiranosmastroscomoumaflornogalho.Euvejoaflorestaemtodaparte,meupai.Ébemverdade!Américodissebem!Enãoésóamadeiraquevaidomonte—éaágua,quemataasede,éacaça,quealimenta,sãoaspenasdospassarinhos,éaflor,éaresina,éaervaquecura,étudoquantohádebomnessemundo.Notempodaguerra—tempotriste!—vieramaqui buscarmadeira para os navios, para os carros, para os esteios, e amata foi descendo, aseguircomoexército.Aterratambémentraemcombatequandoosseusfilhospelejamporsuahonra.

—Evocêvivedelenhar,Amâncio?—Então?Cadaumfazoquepode,contantoquetrabalhe.Ocavoeriovem,abreacava,queimaa

lenhaedescecomocarvãoquevaidarfogoàscasas.Nãoéumhomemhonrado?É,fazasuatarefa.Euderruboárvores,vosmecêsestudam.Eutrabalhoparavosmecês,vosmecêstrabalhamparamim.Éduroomeuserviço,estoucomasmãoscheiasdecalos,masaminhaconsciênciaéleve,porquenuncaprocedimal.

Assimdizendolevantou-se,abriuumajanelaaoluareaoperfumedomonte:—Sevosmecêsqueremapanharalgumacoisa,vãoindo—agoraaspacasestãobebendo.Euvou

tambémparamostraroscaminhos.Dácáaespingarda,minhavelha;fechaacasaedorme.Vamos!Estáumanoitecomopoucas,eagente,aquiemcima,parecequeestámaispertodocéu.VamoscomDeuseaVirgem!

Esaímosostrêspeloadormecidomonte.

21.UmaVida…OlavoBilac

Noaltodomorro,quedemoravaacavaleirodafazenda,ficavaacasinhadovelhopreto,dovelho

emeigopaiJoão,tãovelhoquejánãopodiaandar,equejátodososseusdentestinhamcaído.A casa era como uma toca, entre árvores velhas como ele, no meio da verdura das folhagens

abrigavamcarinhosamenteaquelecentenário,aquemamortepareciahaveresquecidonolindorecantodaterrabrasileira.PaiJoão,comoochamavamtodos,envelheceranotrabalho.Pormuitosemuitosanosa fio, os seus braços empunhavam a enxada, beneficiando a terra. Tinha visto, pouco a pouco,transformarem-seoslugaresdeincultosemprodutivos,econheceratodaagentequeporalipassara:jáerahomemfeitoquandoosvelhosdeagoraaindaerammeninos,correndoàssoltaspeloscampos;viranasceremorrermuitagente,eviraafazendapassardesenhoresasenhores...Agora,haviamuitotempoquenãotrabalhava:masagratidãodosdonosda terra lhehaviareservadoaquelecalmoretiro,últimoabrigodetodaumavidadelaborededicação.

Logo ao clarear damadrugada, pai João saía, arrastando-se, da sua cabana, e vinha sentar-se àporta,no rústicobancodepau. Jáoencontravaaliosprimeiros raiosdesol,que lhevinhambeijaracabeçaemaranhadaemduroscabeloscarapinhados,alvoscomoaneve.Emtorno,apaisagemesplendia.Aencostadacolina,atapetadadeumarelvamacia,desciadocementeparaovale,ondeassentavamascasasdafazenda.Láestavam,longe,ascasasdoscolonos,ospaióis,asgrandescasasdasmáquinas,acapelapequeninaebranca,e,cercandotudo,deumladoasplantaçõesricas,edooutroocampovasto,emqueogalopastava,numerosoenédio.Ovelhopreto,magroetrêmulo,sentava-se,cruzavanocoloasmãosdescarnadas,ecomeçavaaacompanharcomamoraagitaçãodetodoaqueletrabalho,quejánãoeraparaoseucorposemforças.Dali,viaeleapartidamatinalparaocampo,—obandoalegredoslavradoresfortes,enchendocomavozeriadassuascantigasaamplidãodocéu.Dali,ouviaeleostoquesdasineta,transmitindoordens,marcandoashorasdasrefeiçõesedodescanso.

Eram as crianças da fazenda que lhe traziam comida: e pai João, comendo, ia com a voz fracadizendohistóriasingênuas,queospequenosescutavamcomdelícia.Depois,dormia,àsombra,enquantoaviraçãoembalavadocementeasárvoreseasborboletasrevoavamsobreasfloressilvestres.Pareciaogêniotutelardafazenda,aquelebomvelho,queaviranascer,crescereprosperar...

Aoanoitecer,recolhia-se.Mas,nãoraro,pornoitesclaras,quandoaluabrilhavanocéu,vinhaagente de baixo conversar com ele, e dos seus lábios ouvir a história viva daqueles sítios; e muitoscolonosbrancos,vindosdelongespaíses,gostavamdereceberliçõeseosconselhosdoantigoescravo.

Foinumanoitedessasqueeuconverseicomele,noaltodomorro,ouvindoláembaixo,nascasasdoscolonos,amúsicadassanfonasedasviolas.

—Você,emtodaessavidatãocomprida,devetersofridomuito,hein,paiJoão?—pergunteicominteresse.

Elelevantouparamimosolhosquaseapagados,eteveumsorriso.Depois,começouafalar,comoumpobrepreto ignorantequeera, na sua linguagem rude;nãoguardeimemóriade suaspalavras,masguardeiosentidodoqueelasqueriamdizer:

—Todaagentesofrenestemundo,moço!Maseunãotenhomuitarazãodequeixa...éverdadeque,nosprimeirostempos,tivedechorarbastante,comasaudadedaminhaterra;edepois,ocativeiro(notempoemquehaviacativos!)eraumagrandemaldade!...Mas,sehouvesenhoresmaus,quecastigavambarbaramenteosescravos,tambémhouvesenhoresbons,quenãogostavamdeverosofrimentodeles.Eufuiumdosprimeiroshomensquetrabalharamaqui.

Quando vim, tudo isso eramato. Aqui gastei todaminhamocidade. Logo depois, porém, fiquei

livre,efuiumamigodaqueledequemhaviasidoumescravo.Eraeuoseuhomemdeconfiança.Sónomeutrabalhoéqueosenhortinhafé.Tivefilhos:quandohouveguerradoParaguai,doisdemeusfilhos,jálivres,forambrigarcomagentedoLopes;umficouporlá,varadodebalas;masooutrovoltoueveiomorrermuitodepois,nosmeusbraços,deixando-mecheiodenetos...Essesnetosandamporaíganhandoasuavida,comoosbrancos,sustentandoassuasfamílias,trabalhandoparasieparaosseus.Eeuhojesóconheçoestaterra,ondemefizhomem,estaterraqueeulavreienquantotiveforças,equeaindahoje,paramepagarobemqueeulhefiz,medáasombradassuasárvores,eacomidaquemesustenta.Todaagentesofrenestavida,moço:masoutrossofrerammaisdoqueeu...Épor issoqueeunãomequeixo!Deusnossosenhornãoquisqueeuacabasseosmeusdiasnamiséria,sozinho,semterquemmedesseumpedaçodepão,equemmefechasseosolhosnahoradamorte.Queéqueeupossoquerermais?Todaagenteaquiéminhaamiga;todagentesabequeocoitadodopaiJoãonuncafezmalaninguém.Também,todoopovovemsempresabercomovaiovelho...Ah!Eusótenhomedodamorte,porqueelamehádetirar deste cantinho que amo tanto! Não sofri muito, não, moço, porque sempre fui trabalhador, e otrabalhosemprefazagentefeliz!...

AssimfalavapaiJoão...eu,ouvindo-o,pensavaemtodooseupassado.Aliestavaumhomemquederatudoàterraquerida:dera-lheosuordeseurosto,omelhordasuavida,todaaforçadoseucorpoetodoamordasuaalma,—eaindaosanguedeseusfilhos...e,agora,jáquasemorto,aindaamavacomonosprimeirosdias;easuamão,cansadaetrêmula,estendidasobreoscampos,pareciaabençoar,numgestoderradeirodeproteçãoecarinho.

22.Quemtudoquer,tudoperdeCoelhoNetto

—Parecequebateram!—disseocarvoeiro.—Foiovento,—respondeuamulher.Efetivamente, a velha cabana, levantada junto às primeiras árvores da floresta, parecia gemer, e

tremia,abaladapelovendaval,quelevantava,emtorvelinho,asfolhassecas,arrancavarobustasárvores,deixando-astombadas,comasraízesretorcidasàflordaterra.

Osfilhosdocarvoeiro,trêsrapazitoseumamenina,queeraamaisnova,cercavam-no,pálidosdemedo,persignando-setodavezqueumrelâmpagoalumiavaacabana.

Achuvajorravacomfragorenaflorestacresciaobarulhodasárvores.Denovoocarvoeirodisso:—Parecequebateram!Talvezsejaalgumviajantefugindoàtempestade!Nenhumdospequenosseatreveuairàporta,querangiaaosempurrõesdovento.Apequenita,porém,enchendo-sedecoragem,decidiuaversehaviaalguém.Justamentechegavaàporta,quando,denovo,bateramclamando:—Dai-meumagasalho,peloamordeDeus!Semhesitar,apequenitavirouoferrolho,e,comumalufadaviolenta,aoclarãodeumrelâmpago,

umvelhoprecipitou-senointeriorhumilde.Eraaltoemagro,estavacobertodeandrajos.Nolugaremquesedeteve,aindaatordoado,ficou

umapoçad’água,tãoencharcadoestava.Ocarvoeiro levantou-separa recebê-lo;ovelho,depoisdeabençoarapequenita, abeirou-sedo

lume,tiritando,afalardadevastaçãoqueatempestadeiafazendoporaquelasterras.Deram-lhedoquehavianoarmário:pão,queijo e frutas, eoperegrino, confortado, tomandoao

coloapequenita,pôs-seaafagá-lacarinhosamente.Láforaatormentacontinuavaarugir.—Habitaisumsítiomuitoarredadoetriste,disseovelhocarvoeiro.—Éverdade,ébemtriste!Dá-meaflorestaquevendo,aáguaquebebo,eacaçadequemenutro.

Olugarémelancólico,masnuncanosfaltouonecessário,porqueomeutrabalhoosabetirardasárvoresedastocas.

Depoisdeumsilêncio,emquepareceumeditar,ovelhodisse,alisandooscabelosdapequenita:—Tendes,entretanto,afortunamuitopertodecasa.Nacavernadaflorestaháumtesouroguardado

desdeostemposdoreiSalomão.Quemláfor,e tirar,decadavez,quandopossaconduzirsemfadiga,tornaráaolartranqüilamente;aqueleporémqueseexcedernacarga,teránoprópriosítioocastigodaambição.

—Oquedizeiséverdade!?—exclamouocarvoeiroalvoroçado.—Sóaverdadevosdigo,—afirmouovelho.Ospequenitos,quetudoouviram,logoresolveramvisitar,namanhãseguinte,acavernadafloresta

emprocuradotesouro.Caindo a noite, amainada a borrasca, o velho, apesar das instâncias do carvoeiro e damulher,

tomouocajado,depoisdeagradecerahospedagemedeabençoarapequenita.Nacabananinguémdormiu;e,aosprimeirosalboresdamadrugada,saíramtodos—ocarvoeiro,a

mulhereostrêsrapazitos.Apequenaficouparaguardaracasaepreparararefeição.Embrenhou-seafamília.Cadaquallevavaumsaco,contandoregressarcomgrandecópiadeouro.

Chegaramacaverna,queficavaemsítiotemeroso,evagarosamente,penetraram.Bemaofundoviramcomoummontedebrasasquetopetavacomaabóbada—eramluzentesbarras

deouro.Rojaram-se todos,e,esquecidosdaspalavrasprudentesdovelho,puseram-seaencherossacos,

sempreachandopoucooqueguardavam.Ocarvoeirolevantou-se,e,comesforço,aosarrancos,arrastouseusacoatéolimiardacaverna,

sempodererguê-lo,tãosuperioràssuasforçaseraacarga.Amulhermal se podiamover, tirava o seu saco aos empuxões, arquejando; omesmo faziamos

pequenoscomoexemplodospais.Umdeles,porém,recordouaspalavrasdovelho;masocarvoeiroirritou-se:—Ora,ovelho...sebemandou,longevai!Quemsabeseeumehaviadeabalardecasaporuma

barradeouro!Temosafortunaàmão,tolosseremosseanãoaproveitarmos!Lentamente,esforçadamente,chegaramaolimiardacaverna,maslogosesentirampresos.Ospésafundaramnosoloalongando-seemraízes,oscorposmudaram-seem troncos,osbraços

estenderam-seemfolhagem,etransformadosemárvores,ali,ficaram,bracejandoaovento.Debaldeapequenitaesperou-osparaojantar.Emvezdeles,chegouanoite.Namanhã seguinte, foi ela à floresta, procurou-os, chamou-os, e, guiando-se pelas pegadas que

haviamficadonaterramole,foiteràcaverna.Passoupelasárvores, semperceberqueeramosseusparentes,eestacoudeslumbradadiantedo

cógulodeouro.Alegre, rindo, apanhou três barras das mais luzentes; sentindo, porém, o peso demasiado, e,

lembrando-sedarecomendaçãodovelho,desfez-sedeuma,e,folgadamente,iasaindo,quandoouviuasvozesescarninhas:

—Portãopouconãovaliaapenateresvindodetãolonge!Voltaàcaverna,etomaoutrasbarrasdeouro!

Semdarouvidosàsedução,apequenitapassouasárvores,eregressouàcabana.Nodia seguinte, tornou à caverna, e commais duas barras voltou contente.Repetindo a viagem

durantemeses,tornou-sedonadetodotesouro.Umatarde,sentadaàportadacabana,chorava,quandoviuvirumavelhinhaqueparavadeinstante

eminstante,fatigada.Convidou-aadescansarummomento,edeu-lhedoquetinha,eenquantocomia,avelhapediu-lhea

razãodaslágrimasquechearrasavamosolhos.—Choro os que perdi, meus pais e meus irmãos. Sou rica, riquíssima! Tenho mais ouro nesta

cabanadoque temo reinoseuerário;dá-lo-ia todo,debomgrado,pelaantigapobreza, se,comela,voltassemosqueperdi!

Enquantoelachorava,iaavelha,astutamente,recolhendoassuaslágrimasemumpequeninovasodecristal.Edisse-lhe,porfim:

—Vamosàcaverna!Ésdignadeseramerceada!E logo, ágil como se a levassemasas invisíveis, a velhinha transportou-seda cabana à floresta,

levandoapequenita.Àentradadacaverna,pôs-seaaspergirasárvorescomaslágrimas,elogosedesfaziaoencanto,e,

umaum,reapareceramocarvoeiro,amulhereosrapazitos.Antes,porém,queelessetirassemdoespanto,disseavelhaápequena:—Aqui os tens! Leva-os contigo, e que lhes fique na memória este caso! Toda a ambição é

prejudicial.Ohomemnãodevetentaroimpossível:quemmuitoquer,tudoperde;eécomperseverançaetrabalhoqueseconsegueafortuna.

Comoumfumoquesedissolve,avelhadesapareceu,eapequenita,abraçandoospaiseosirmãos,

reconduze-osàcabana,ondelhesmostrouariquezaacumuladacompaciênciasesemfadiga,comaqualpassaramavivernacidade,comofaustoqueoourolhesgarantia.

Eocarvoeiro,bendizendoocoraçãodafilha,referia-lheostormentosquehaviamsofrido,eleeosseus,duranteotempoqueviverammetamorfoseadosemárvores.

23.ACivilizaçãoOlavoBilac

Umanoite,todaafamília,reunidaemtornodagrandemesadasaladejantar,passavacalmamente

oserão.Otávio,inclinadosobreaspáginasdeumlivro,contemplavaasgravuras,eliacominteresseaslinhas, em que se narravam longas viagens arriscadas, por terras e mares, na África, na Ásia e nasregiõesgeladasdospólos.

Derepente,omeninolevantouosolhosdolivro,eperguntou:—Papai,quequerdizer“civilização”?—Porqueperguntasisso,Otávio?—Porque está escrito neste livro que os exploradores da Ásia, da África e dos pólos têm o

propósitodelevaracivilizaçãoaessasregiões...entãooshomensquelávivemnãosãohomenscomonós?

—Sãohomenscomonós,meufilho,masnãosãocivilizadoscomonóssomos...E,compaciênciaecarinho,opaideOtáviocomeçouaexplicar-lheoqueéacivilização:—Acivilização,queéadifusãodasriquezasmateriais,intelectuaisemorais,nãopodenunca,sem

umlongotrabalhodereformapaciente, tomarcontadeumpaís.Paraqueumpovotenhacivilização,énecessárioqueomorosopassardosséculos váaperfeiçoandoocaráterdessepovo.Assimsea terrabrasileiraéhojeprósperaeforte,foinecessárioparaissooesforçocoletivoeanônimodasgeraçõesquese temsucedido.Tu,quenascesteemplenacivilização,gozandoosbenefíciosqueo trabalhodos teusantepassados preparou, concentra o teu espírito, e, contemplando o presente e lembrando o passado,compara-os,admirandooquefoiesselentoprogresso.Lembra-te,primeiro,daantigabrutezadestesolo:as selvas espessas e impenetráveis sucediam-se, como enormes muralhas; os rios, largos eacachoeirados,opunhamnovasbarreirasaopassohumano;todaanaturezasemostravaconcertadapararepeliroutroshabitantesquenãofossemosqueelajápossuía,rudeseselvagenscomoela.Essesviviamvagando,sempousocerto,emconstantesguerras;quandoentravamnavidasedentária,asuahabitaçãoeraumagrupamentoinformedeocas{v}[i]debarroemadeiratosca,cercadasdetrincheirasdeespiquesdepalmeiras. E o que era a vida social desses tempos, diziam-no claramente as caveiras dos inimigosmortosemcombate,espetadasnascaiçaras{vi}[ii].Comparaessestemposaotempodeagora!Vêcomoaterrabrasileiraestácobertadeumapopulaçãodedezoitomilhõesdehomens;oesforçohumanovenceuahostilidadedanatureza.Asflorestasabriram-se;desvendou-seomistériodasserras;aspontes,arrojadasdemargemamargem,dominaramosrios;asferasrecuaram;eoaradorasgandovitoriosamenteaterra,deixou-asubmissaeamiga.Abreagoraummapa,evêcomoasestradasdeferroserpeiam,transpondoaságuas,furandoosmontes,servindooscentrosrurais,parandodeespaçoaespaço,aopédeumacidade,para logo correr de novo pelos campos, em busca de outras... De extremo a extremo do país, acivilizaçãoestendeuessaredeprodigiosa,queécomoaramificaçãodeumaárvoreimensa:dostroncoscentraispartemosgalhos, dosgalhospartemas ramadas, ede anoemano troncosnovos se fixamnosolo, expandidos em linhas várias, que vão de quilômetro em quilômetro ocupando todas as zonaspovoadasouporpovoar.Époressaimensacombinaçãodecanaisquecirculaaatividadedotrabalho,comopelasartériasepelasveiasdocorpohumanocirculaosanguequemantémanutriçãodoorganismo.E repara agora como, acompanhando as locomotivas, que voam pelos trilhos, se estendem os fiostelegráficos, constantementevibrando, conduzindo a eletricidade invisível e poderosa, que transmiteopensamento,equecongreganummesmoidealdeordem,dedisciplina,desubmissãoaogovernodaleitodososcérebros...Eobservaagoraoconfortodagentequetrabalha.Asuahabitaçãojánãoéarudetabadoselvagem,nemafeiasenzaladosescravos,ondeempromiscuidade imundaosdeserdadosda

fortuna penavam e morriam. A senzala desapareceu, como desapareceu a oca. Limpa e arejada, ahabitaçãoatualdolavrador,dotrabalhadorlivre,sorri,comoamoradadapazedafartura.Quando,aoromperdaclaramanhã,otrabalhadordeixacasa,parairmourejar,sabequedeixaacomodadaefelizafamília:e,voltandoacabeça,paracomumolharamigoabençoarosfilhosquedaportaovêempartir,elesabe, avistando a fumaça que coroa a chaminé doméstica, que ali não falta o pão, como não faltasossego...agora,vêquemultidãodecidadesháespalhadaspela tua terra,meufilho!...Umas,postasàbeira-mar,dominamaságuascontidaspeloscais,vendobalançarem-seaosseuspésosnavios,emcujosmastrosasbandeirasde todospaísesda terraflutuam.Outras,emergemrisonhasebarulhentasdoseiofecundodasmatas.Outras,agarradasaosflancosdasserras,sãoasprimeirasareceberaluzdosol,eparecemestarcelebrando,comoclamordosseussinos,comoestrépitodasmáquinasdassuasfábricas,aglóriadohomem!E,enquantooshomensvãoparaotrabalho,ascrianças,logoásprimeirashorasdodia,partemparaaescola...

—AEscolatambéméfrutodacivilização,papai?—perguntouOtávio,queouviatudoaquilocomumaatençãoreligiosa,fitandonopaiosseusgrandesolhosinteligentesecuriosos.

—Também,meufilho!EaEscoladehojejánãoéoqueeraantigamente,noiníciodacivilização.AEscolajánãoéumlugardetristezaemartírio:éumprolongamentodacasadafamília.Omestrenaapelaparaocastigocorporal,paraadorfísica,comoparaosúnicosmeiosdeformaraalmadacriança:apelaparao exemplo,parao carinho,parao afetuosoconselhoqueconvencee comove.E,nas salasclaras,diantedosmapas,diantedoslivros,ascriançasjánãobocejam,acabrunhadaspelotédio:sente-sebem,naatençãocomqueelasouvemaslições,odesabrochardasuainteligêncianaalegria,queéasaúdemoral,enavontadedesaber,queéoelementoprincipaldaeducação.EaítensoqueéavidadehojeemtuaPátria,meufilho!Eaí tensoqueé“civilização”!Lembra-tedenovodotempoemqueastribos viviam por aqui, nuas e sem leis, e do tempo em que somente os braços dos pobres cativosexploravamaterra,—emedeaextraordináriaextensãodoprogressoquetemosconquistado!

—Eesseprogressoécompleto,papai?—Não.Oprogressohumanoéincessanteeinfindável.Otrabalhodohomemnãopara.Nomeiodas

imperfeiçõesedasinjustiçasqueaindahánassociedadescivilizadas,essetrabalhoéagarantiadeumfuturo cadavezmelhor.Oesforço coletivo, animadopelo amor epelabondade,hádeumdianivelartodososhomens,ehádeassentarnoseiodoplanetaquehabitamosafelicidadecompleta!Tu,queamasaterraemquenascestes,aprende,reconhecendoovalordoqueosteusavósjáfizeram,asacrificaroteupróprio bemao bemcomum, para que os teus filhos e os teus netos possam abençoar a tuamemória,comoabençoasamemóriadosquetederamacivilização!