DADOS DE COPYRIGHT · Surgidas nos primórdios da literatura europeia, a Ilíada e a Odisseia ainda...

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    Sobreaobra:

    ApresenteobradisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecercontedoparausoparcialempesquisaseestudosacadmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

    expressamenteproibidaetotalmenterepudavelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresentecontedo

    Sobrens:

    OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamcontedodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaodevemseracessveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocpodeencontrarmaisobrasemnossosite:lelivros.loveouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

    "Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enomaislutandopordinheiroepoder,entonossasociedadepoderenfimevoluiraumnovonvel."

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  • BoxHomeroISBN:9788520924082Contmoslivros:IladaISBN:9788520924075OdisseiaISBN:9788520924051EditoraNovaFronteira,2015.

  • SUMRIO

    ILADA

    IntroduoAQuestoHomricaCantoI:APesteeaIraCantoII:Sonho,TesteeBeciaouOCatlogodasNausCantoIII:Juramentos,MuralhasdeObservaoeoCombateSingulardeAlexandreeMenelauCantoIV:AQuebradoJuramentoeRevistadeAgammnoneCantoV:OsFeitosHeroicosdeDiomedes(AristiadeDiomedes)CantoVI:OEncontrodeHeitorcomAndrmacaCantoVII:OCombateSingulardeHeitoreAjazeaRemoodosMortosCantoVIII:ALutaInterrompidaCantoIX:HonraparaAquilesePrecesCantoX:OsFeitosdeDolo(Doloneia)CantoXI:OsFeitosHeroicosdeAgammnone(AristiadeAgammnone)CantoXII:OAtaqueaosMurosCantoXIII:ALutaJuntoaosNaviosCantoXIV:OEnganodeZeusCantoXV:ARevancheRumoaosNaviosCantoXVI:OsFeitosdePtroclo(Patrocleia)CantoXVII:OsFeitosHeroicosdeMenelau(AristiadeMenelau)CantoXVIII:AFeituradasArmasCantoXIX:ARennciaIraCantoXX:ALutadosDeusesCantoXXI:ALutaJuntoaoRio

  • CantoXXII:ARetiradadeHeitorCantoXXIII:PrmiosemHonradePtrocloCantoXXIV:OResgatedeHeitorNotasApndiceSobreoAutor

    ODISSEIA

    PrefcioNotadoRevisor

    PRELDIOCanto I: Assembleia dos Deuses, Conselhos de Atena a Telmaco e Festa dosPretendentes

    PARTEI

    AViagemdeTelmacoCantoII:AAssembleiaemtacaeaPartidadeTelmacoCantoIII:EmPiloCantoIV:NaLacniaeaEmboscadadosPretendentes

    PARTEII

    OsRelatosnaCasadeAlcnooOdisseunaIlhadeCalipsoenaFeciaCantoV:ACavernadeCalipsoeaBalsadeUlissesCantoVI:OdisseuChegaFeciaCantoVII:EntradadeOdisseunaCasadeAlcnooCantoVIII:RecepodeOdisseupelosFecios

    PARTEIII

    ORelatodeOdisseuCantoIX:OsCconos,osLotfagoseoCiclopeCantoX:Acercadeolo,osLestrigeseCirceCantoXI:ConsultandoosMortosCantoXII:AsSereias,Cila,CaribdeeosBoisdeHlio

  • PARTEIV

    ORetornodeOdisseuCantoXIII:AChegadaatacaCantoXIV:OdisseuChegaCasadeEumeuCantoXV:TelmacoChegaCasadeEumeuCantoXVI:ReconhecimentodeOdisseuporTelmaco

    PARTEV

    OdisseunoPalcioCantoXVII:NaCidadeCantoXVIII:ALutadeIroeOdisseuCantoXIX:EncontrodePenlopeeOdisseueaLavagemdosPsCantoXX:AcercadaMortedosPretendentes

    PARTEVI

    AVinganadeOdisseuCantoXXI:AApresentaodoArcoCantoXXII:AChacinadosPretendentesCantoXXIII:PenlopeReconheceOdisseuCantoXXIV:SegundaDescidaaoHadeseoTratadodePaz

    NotasApndiceSobreoAutor

  • DireitosdeediodaobraemlnguaportuguesaadquiridospelaEditoraNovaFronteiraParticipaesS.A.Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocessosimilar,emqualquerformaoumeio,sejaeletrnico,defotocpia,gravaoetc.,semapermissododetentordocopirraite.EditoraNovaFronteiraParticipaesS.A.

    RuaNovaJerusalm,345CEP21042-235BonsucessoRiodeJaneiroRJTel.:(21)3882-8200Fax:(21)3882-8212/8313

    CIP-Brasil.CatalogaonafonteSindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ

    HomeroIlada/Homero;traduoeintroduoCarlosAlbertoNunes.-[25.ed.]-RiodeJaneiro:NovaFronteira,2015.536p.;23cm.Traduode:LisApndiceISBN97885209240751.Poesiagrega.I.Nunes,CarlosAlberto.II.Ttulo.

    14-18214CDD881

    CDU821.14021

  • SUMRIO

    IntroduoAQuestoHomricaCantoI:APesteeaIraCantoII:Sonho,TesteeBeciaouOCatlogodasNausCanto III: Juramentos, Muralhas de Observao e o Combate Singular de Alexandre eMenelauCantoIV:AQuebradoJuramentoeRevistadeAgammnoneCantoV:OsFeitosHeroicosdeDiomedes(AristiadeDiomedes)CantoVI:OEncontrodeHeitorcomAndrmacaCantoVII:OCombateSingulardeHeitoreAjazeaRemoodosMortosCantoVIII:ALutaInterrompidaCantoIX:HonraparaAquilesePrecesCantoX:OsFeitosdeDolo(Doloneia)CantoXI:OsFeitosHeroicosdeAgammnone(AristiadeAgammnone)CantoXII:OAtaqueaosMurosCantoXIII:ALutaJuntoaosNaviosCantoXIV:OEnganodeZeusCantoXV:ARevancheRumoaosNaviosCantoXVI:OsFeitosdePtroclo(Patrocleia)CantoXVII:OsFeitosHeroicosdeMenelau(AristiadeMenelau)CantoXVIII:AFeituradasArmasCantoXIX:ARennciaIraCantoXX:ALutadosDeusesCantoXXI:ALutaJuntoaoRioCantoXXII:ARetiradadeHeitorCantoXXIII:PrmiosemHonradePtroclo

  • CantoXXIV:OResgatedeHeitorApndiceSobreoAutor

  • INTRODUO

    AQUESTOHOMRICA

    Surgidasnosprimrdiosdaliteraturaeuropeia,aIladaeaOdisseiaaindaconservamtodooseu frescor primitivo, como se os milnios, muito longe de ofuscar-lhes o brilho, scontribussem para exaltar-lhes a beleza intrnseca. Encheria bibliotecas o que se temescrito sobre esses poemas to justamente famosos, que, por sua maneira decisiva,exerceram influncianas grandes literaturasque se formaram sobo estmulobenficodopensamento grego. Sobre o valor da poesia e de sua importncia social ningum faloumelhor do que o prprio Homero, quando insistentemente promete a seus heris aimortalidadequelhesasseguravaaartedivina.Tograndeaconscinciadeseuvalor,ou,digamos,desuamisso,quechegaadeclararquesaconteceramtantascalamidadesaGuerradeTroia,oentrechoquededoiscontinentes,amortede tantosherisparaqueeleasfixasseemseusversosimorredouros.oquetambmHelenadeclara,comosolhosna posteridade, com relao ao seu destino e ao de Pris, causa mais prxima dascalamidadesqueafligiamTroia:TristedestinoZeusgrandenosdeu,paraquenoscelebrem,nasgeraesporvindoiras,oscantosexcelsosdosvates.

    [Ilada,VI,357-8]Mas, de incio, cumpre-me declarar que no me proponho a fazer um estudo sobre a

    poesia deHomero, rastreando-lhe as caractersticas, nema chamar a atenodos leitorespara as passagens conhecidas, que, pelo menos como trechos de ouro das seletas,opulentamnossopatrimniocultural.Meuintuitomaismodesto,podendo,mesmo,aumjuzosuperficial,parecerdemolidor;porque,muitolongedeentoarloasbelezaimperecvelda Ilada e da Odisseia, pretendo demonstrar que essas duas epopeias no fogem svicissitudes das produes congneres, e que so muito condicionadas: humanas,demasiadamentehumanas.

  • Querodizercomissoque,emvezdeconvidarosleitoresparanosextasiarmosdiantedasbelezasdessesmonumentosliterrios,quehtrsmilniosadquiriramafamademodelosinigualveisdepoesia,disponho-mea estud-los sobumprismadiferente.Vouapreciar aformaodaIladaedaOdisseia luzdadenominadaQuestoHomrica,aclebrequestoquehum sculo emeiodomina soberanao campoda filologia clssica.E, ameu ver, amelhor maneira de considerarmos esse assunto no dever consistir na enumerao dasvrias teoriasque tmsurgidopara explicar a formaodosdoispoemas,masoprocessoparcialeapaixonadodosprpriosmilitantesdomemorvelpleito.Querodizerquepretendotomar posionodebate, para filiar-me corrente que, ameu ver, est coma verdade, eapresentarumatentativadeexplicaodagnesedaIladaedaOdisseia.A afirmativa deque esta explicaonopassadeuma tentativa equivale confissode

    que estamos longe de um acordo, tanto no tema principal como em muitas questessubsidirias.Depoisdeumsculoemeiodeestudos,qualmaisprofundoeinteressante,oscombatentesaindadefendemcomigualardorosseusredutosprimitivos,nosedobrandoos unitrios isto , os partidrios da unidade intransigente dos poemas aosargumentosdosanalticos,queseesforamemacharumcritrioestilsticoquenospermitadistinguirna trama complexadessespoemasos elementosheterogneosque convergiramparaaestruturaodesuaunidade.Parecero, talvez, paradoxais as concluses a seguir, uma vez que pretendo defender a

    unidadedaconcepodaIladaeapluralidadedaOdisseia.Masesperoquesejapossvelapresentarasrazesdesemelhanteatitude,queseorigina

    de reflexes amadurecidas, j no decurso do trabalho da traduo dos dois poemas, j noestudo especializado nesse setor da filologia clssica. Sobre os pontos fundamentais daQuestoHomrica, esto divididos os dois grupos, o dos unitrios e o dos analistas, noaceitando seus componentes, insuladamente considerados, as concluses dos do ladooposto, no que respeita gnese dos poemas. Para os unitrios intransigentes KarlRothe, Drerup (o gigantesco trabalho de Drerup, na frase expressiva de Bowra comrelao ao grande merecimento desse investigador) e, mais recentemente, Renata vonScheliha,emseulivroPatroklos(Basileia,1943),verdadeirajoiadeestiloeerudio,paraoscomponentesdessegrupo,dizia,aIladaeaOdisseiasocomposiesdeumnicoautor,tendo chegado atns, essencialmente, o texto desses poemas tal comobrotoudamenteprivilegiada do poeta. Se h discrepncia entre alguns, refere-se a questes secundrias:pocaemqueteriavividoHomeroeumaououtraconcessoquantoainterpolaestardias.Para os analistas avanados Wilamowitz Moellendorf, Erich Bethe, Eduard Schwartz,para smencionarosdemaior renome apenas aparente aunidadedosdoispoemas,queseformarampelauniomal-ajeitadadecomposiesmenores,defcilidentificao.Sobre o problema da formao daOdisseia j me externei em 1941, em trs palestras

    dirigidas a um auditrio composto quase exclusivamente de mdicos, no anfiteatro da

  • clnica obsttrica do professor Raul Briquet. No foram publicadas, mas a ocorrnciaconstoudeataespecial.ComrelaoaoproblemadaIladaedesuagnese,emfevereirode1944 fiz duas palestras Sociedade Filolgica de So Paulo, ento sob a presidncia doprofessorOtonielMota.Masasconsideraesaquitmporbaseumaconfernciarealizadaemnovembrode1950,naBibliotecaMunicipal,namesmacidade,equetrsanosdepoisfoipublicada,semessaindicao,narevistaculturalAnhembi.Com relao Ilada, foi decisiva emmeu esprito a influncia dos trabalhos de Ernst

    HowaldedePestalozzi,adiantecitados,quevieramdarunidadesvisesparciaisaqueeujtinhachegado,conduzindo-merapidamenteaumasoluoquesemeafiguradefinitiva,equetem,ainda,omritodefazerinteirajustiatesedosdefensoresdaunidadedopoema.Sobrea formaodaOdisseia, s serviupara consolidar aindamais a tesedefendidanesseestudoaleituradograndelivrodeMerkelbach,UntersuchungenzurOdyssee(Munique,1951).A coincidncia das concluses, que desce at particularidades, pode ser invocada comoargumentoafavordaveracidadedadoutrinadefendida.Porltimo,observareiquenoforamtomadosemconsideraonopresenteestudosobre

    aIladaos recentes trabalhosdeKakridisedeVonderMhll,porquedepublicaooudeaquisiotardia:JohannesT.Kakridis,HomericResearches,Lund,1949,ePetervonderMhll,KritischesHypommemazurIlias,Basileia,1952.

    I

    Paraentrarmoslogonoassunto,declaro-me,deincio,partidriodoscorizontes,daquelesquedesdeaAntiguidadeeramassimdenominadosporatriburemautoriadiferenteIladae Odisseia. Por ordem cronolgica, quando do aparecimento dos dois poemas como dosacontecimentosque comemoram, eudeveria estudar emprimeiro lugar a Ilada.Mas paranosmantermosfiisaopropsitoinicialdefalarmaldeHomero,vouinverteressaordeme comear pelaOdisseia, cuja anlise, sob alguns aspectos, mais atraente e demais fcilcompreenso. Desse modo, poderemos mudar de atitude na segunda parte, para nosreabilitarmos, ou melhor, para reabilitarmos o poeta. Posto isso, apresentarei minhaprimeira proposio apodtica, que ser demonstrada durante as presentes consideraes:tanto a Ilada como aOdisseia representam a fase ltima do movimento pico da Grcia,firmando-se ambos os poemas em copioso material preexistente, isto , em poemas depropores menores, em sagas, lendas, mitos de origem variada, que iam sendoincorporadosaconjuntoscadavezmaiscomplexos.MasnocasodaIlada,umgrandepoeta que poder ser o to discutidoHomero histrico conseguiu uma sntese admirvelcom esse material heterogneo, a que imprimiu o cunho do seu grande gnio. Para aOdisseiaanossaconclusoterdeserumpoucodesanimadora:oredatorfinaldopoemaserevelainferioraoesplndidomaterialquelheforatersmos.

  • Ainda no domnio das generalidades, direi que os dois poemas se distinguem tambmquantoaogneroliterrio:aIladaumaepopeia,eaOdisseia,umromance.Isto,naIladavamosencontrartradiesmilitaresdastribosdomundohelnico,emsuasvariadasetnias,com certa base histrica, ainda que transfigurada pelos mitos, ao passo que o tema daOdisseiaumtemauniversal,queocorrenaliteraturademuitospovosecujaaosepassaem toda parte e ao mesmo tempo em parte alguma. Isso explica o fato de serem tofecundos os achados arqueolgicos no que se refere Ilada, ao passo que tm sidodesesperadoramentenegativasasescavaeslevadasacabonasduasilhasTiakieLeucasqueosentendidosidentificamcomatradicionaltaca.EtantoaOdisseiaumromancedetemauniversal queo seu enredopode ser apresentado semque se faameno aoheri,conformedemonstrouWilamowitz.Repitamosaprova.Ao partir para a guerra, um famoso baromedieval chamou sua esposa e disse-lhe: O

    inimigo poderoso; a guerra promete ser longa; o resultado incerto. Por isso, se euperecer na luta, ou se, decorridos vinte anos, no tiver voltado, ficars com liberdade decasar-se de novo, para entregares a casa a nosso filho. Feitas essas recomendaes, elepartiu.medidaqueosanossepassavam,vinhamsendotrazidasnotciaspelosbardosquepercorriamoscastelosdossenhoresecantavamasvariadasfasesdopleitomemorvel,atque, depois de dez anos, chegou a hora em que ela se decidisse por novas npcias. Semesperana alguma do retorno domarido, premida pelas circunstncias e at mesmo pelainsistnciadofilho,queviaosseusbensseremdevoradospelospretendentes,resignou-seaesposaadaraquelepassodoloroso:tendoapresentadoumarcoquepertenceraaomarido,declarouquesecasariacomquempudessemanej-lo.Aresistnciadamadeiraeasdemaiscondies da prova tornavam o pleito dificlimo. Nenhum dos pretendentes conseguiudobrar o arco e,muitomenos, completar a prova, o que foi feito com facilidade por ummendigo que ali aparecera dias antes e a quem ningum prestara ateno, tendo sepatenteado depois que esse mendigo era, justamente, o famoso guerreiro que chegaradisfaradosuacasa,paravirsalvaraesposanaocasiodemaiorperigo. esse o tema daOdisseia, tema de natureza universal, que tanto podia ser imaginado

    tendoocorridonaGrciacomonotempodasCruzadas,ouatmesmoentrens,napocadasBandeiras.DeRaposoTavaresconta-sequeeledepoisdepercorrerosertopormuitosanos, ao voltar para So Paulo encontrava-se to desfigurado que a prpria famlia no oreconheceu.Sepensssemosemmitos, comoosgregos,e sublimssemosopassado, compequenoesforodeimaginaopoderamosconcretizaraoredordonomedessebandeirantemaisumavariantedaOdisseia.OnomeUlisses,ouOdisseu,1 foi apenasonome felizquecongregouemtornodesiaslendasdeumpovodenavegadores,demisturacomtemasdeorigemfrancamentecontinental.bvioqueasprimeirasnarrativasdasaventurasdesseheriquerodizer,asprimeiras

    Odisseiasforamdeproporesmodestas,nopodendoabrangerdozemilversos,comoa

  • nossaOdisseia tradicional. Em vrios sculos de tradio pica,muitas deviam ter sido asvariantes dessas aventuras. E mais, pelo que nos permitido concluir da literaturacomparada: depois de cantadas as proezas do principal heri, passavam os vates enumeraodasdeseufilho,comoseverificoucomosromancesdecavalariadeEspanhaedePortugal,esgotadasasfaanhasdosAmadisesedosPalmeirins,vinhamseusfilhos,eatmesmoosnetos,encherocioeaimaginaodosleitores,sempreinteressadospelorelatodenovasaventuras.Omesmofenmenoseverificounaepopeiagrega:depoisdasaventurasde Odisseu, vieram as de Telmaco, sendo fcil demonstrar dentro da trama daOdisseiatradicional a existncia de um poema independente a Telemaquia de incorporaotardia. Chegou at ns a notcia, ainda, de uma Telegonia, atribuda a ugamon dePrgamo:Telgono,filhodeUlisseseCirce,depoisdecrescido,saiembuscadenotciasdopai.Aodesembarcaremtaca,atacadopeloprprioUlisses,quejulgoutratar-sedepirata.Ulisses feridoemorre.Essetema,damortedopaipeloprprio filho,emduelo,semseconhecerem,ocorrenas literaturaspersaegermnica.Doantigopoemagermnicosnosrestam fragmentos o denominado fragmento da Cano de Hildebrant, escrito emcaracteres do sculo IX, na sobrecapa deum livro teolgico da biblioteca doConvento deFulda, em que vem narrado o encontro de Hildebrant e de Hadubrant. Essas refernciasvisam apenas confirmao do que foi dito acima: que o tema daOdisseia brotamais dafantasiadospoetasdoquedefatospropriamentehistricos.Qualquer leitor desapaixonado verificar que a Odisseia comea duas vezes: embora o

    poeta anuncie no promio que tratar das aventuras deUlisses, e no conclio dos deusescom que se inicia o poema, constitua a preocupao mxima de Atena a sorte do heridetido emOggia pela ninfa Calipso, ao baixar do Olimpo dirige-se a deusa a taca paraocupar-se apenas com Telmaco, durante quatro longos cantos. Somente no segundoconclio,no inciodoCantoV, que se inicia aOdisseia propriamente dita, quandoAtenatornaaqueixar-seaZeusdasortedeUlisses,cujopalcioforainvadidopelospretendentes.NarespostadeZeusnota-seumcertoazedumediantedasrecriminaesinjustas,umavezque Atena j obtivera, no conclio anterior, consentimento para proceder como bementendesse:Filha,porquetaispalavrasdeencerrodabocasoltaste?Nofostetuque,porprpriadeliberao,resolvestequesevingasseOdisseudelestodos,aovirdetornada?[...]

    [Odisseia,V,22-4]Percebe-se que o poeta est em dificuldade para iniciar a histria,movimentando duas

    vezesasuamquina. fcil verificar que a Telemaquia e a Odisseia, propriamente ditas, se passam em

  • diferentes pocas do ano.Telmaconavega durante a noite, de taca a Pilo, para visitar ovelhoNestor, de quem esperava notcias do pai.De Pilo a Lacedemnia faz a viagemporterra, a todocorrerdo cavalo, emdoisdias, comparadaemFeras, emcasadeDiocles.Aviagemdescritaemversosestereotipados,queserepetemdevolta:Odiainteirogalopameojugo,incessantes,sacodem.E,quandooSolsedeitoueasestradasasombracobria[...]

    [Odisseia,III,486-7;XV,184-5]Noentanto,aaodaOdisseiasepassaemplenoinverno,havendoaindicaoprecisade

    queavinganadeUlisses,isto,omorticniodospretendentes,sedeunodiadosfestejosaApolo,quecorrespondeaonosso25dedezembro.Hmais:quandooporqueiroEumeusedispe a contar ao falso mendigo a sua histria, justifica-se com a declarao de que asnoites eram muito compridas: Para dormir, sobra tempo, depois de uma boa conversa.Sonodemaisprejudica[...](Odisseia,XV,393-4).E,nodiaseguinte,aosedisporalevarosupostomendigoparaa cidade, convida-oapartirem logo,porqueescurececedoe, comatarde,atemperaturacai(XVII).Nessapocadoano,Telmaconopoderiaviajarporterraatodo correr do cavalo, nem navegar noite, como o fez para evitar a curiosidade dospretendenteseaciladaqueesteslheprepararamsuavolta.Mashmais; vejamos agoraum trechodoCanto IV e, logo a seguir, umdoCantoXV,

    para nos convencermos de que este a sequncia natural daquele, quando a primitivaTelemaquia ainda no fora desmembrada para ser incorporada Odisseia. Telmaco seencontranacortedeMenelau,eeste lhednotciasdeOdisseu:estcomvida,detidonaIlha deCalipso, semmeios de voltar para taca. Soubera isso de Proteu. So notcias umtantovagas;masjpermitiamalgumaesperanadequeoherivoltassepararestabeleceraordememcasa.Comodepraxe,Menelauofereceumbompresenteaohspede:umcavalodecorrida.Telmaco,comofilhodetalpai, recusaopresente,sobaalegaodequetacaeradesolopedregoso, imprprioparaa criaodecavalos,propondouma troca.Menelaulouva a desenvoltura do rapaz e dispe-se a substituir omimo, oferecendo-se, at, a saircom Telmaco pelas cidades daHlade, a fim de angariar outros presentes.Nenhum dossenhores das redondezas se recusaria a homenagear o filho de to grande heri. Nessaaltura,chamoaatenodosleitoresparaessetraocaractersticodohomemgrego:oapegoaos objetos de valor. O prprio Ulisses confessa a Alcnoo, na Esquria, que seriamuitomal-recebidoemcasasevoltassedemosvazias:[...]Maisestimadoheidesereacolhidocommaisrevernciaporquantoshomensemtacaminhachegadaassistirem.

    [Odisseia,XI,360-1]

  • Mas ouamos Menelau, nos dois trechos que constituam uma nica fala na primitiva

    redaodopoema:Quesdebomsangue,meucaro,sevpelomodoquefalas.Outrospresentesvoudar-teemlugardosprimeiros,queoposso.Dequantascoisaspreciosasemcasaseencontramguardadas,queroofertar-teamaisbelaedemaisextremadavalia.Dou-teumataadefinotrabalhoedelinhasbem-feitas,todadeprata,combordas,porm,deouropurobatidas,obradeHefesto,presentedeFdimo,ousadoguerreiro,reidosSidnios,notempoemqueestiveemsuacasahospedado,quandodaviagemdevolta.Essa,agora,desejoofertar-te.

    [...]Mas,sepelaHladequerespassarderetornoeporArgos,paraqueeuprpriotesiga,fareiprepararoscavalos.Pelascidadesdoshomensiremos;ningumcertezahdedeixar-nospartirsemnosdarumbonitopresente,ousejatrpode,ousejacaldeiraconstrudadebronze,outaadeouromacio,ouparelhademulasrobustas.

    [Odisseia,IV,611-9;XV,80-5]Noprecisareiperguntarseosleitoresnotaramqualquersaltonapassagemdostrechos:

    a sequncia perfeita, o que vem demonstrar que eles faziam parte de uma narrativaseguida,que,nestaaltura,foicortadacomtesouraoudequalquerjeito,paraquenomeobjetem que os gregos no conheciam esse instrumento , tendo jogado o compilador,entreambasaspartes,dezcantosmovimentadosdaOdisseiapropriamentedita,oumelhor,dasOdisseiasemquebaseavaasuacompilao.Devemos esse achado ao grande Wilamowitz Moellendorf, talvez o maior helenista

    alemo de todos os tempos, e at mesmo talvez porque sobre todos os aspectos dopensamento grego escreveu uma obra fundamental. Sobre a Questo Homrica escreveuduas,almdetrabalhosdemenorvulto:HomerischeUntersuchungen,publicadaem1884,emqueestudaaOdisseia,eDieIliasundHomer,em1916.MaisadiantevoltaremosatratardesseautoredovalordesuasinvestigaesdodomniodaQuestoHomrica.Nestaexposiovouseguirmaisdepertoaorientaodeumdeseusdiscpulos,Eduard

    Schwartz, que teve a ideia de designar por letras os autores dos poemas que podem ser

  • isoladosdentrodaOdisseia.Dessemodo,daremosonomedeTaoautordaTelemaquia,paradesignarpelasletrasOeKosautoresdeduasnarraesprimitivasdeaventurasdeOdisseu,compiladaspelo redatoraquemdevemosaOdisseia tradicional, eque receberonomedeB.Essaletravem,provavelmente,dapalavraalemBearbeiter(compilador);nosei dar a razo da escolha das outras duas.Mas o que fora de dvida que o processofacilitaaexposio,permitindo-nos,quase,individualizarosrespectivosautores,comsuaspeculiaridadesde estilo e suas idiossincrasias.A ideia pegou; num trabalho relativamenterecente (Die Odyssee, 1943), Friedrich Fock, apesar de rejeitar a hiptese de redator emuitasoutrasafirmaesdeSchwartz,jogacomasuatecnologia,semindicaodeorigem,por pressupornos leitores o conhecimentode tais particularidades.EduardSchwartz fala,ainda, em F e L, autores de fragmentos que no chegam a constituir poemas bem-delimitados. Mas isso poder complicar a nossa exposio. Vou deix-los de lado, parajogarmos apenas com os elementos apontados. Para facilidade da exposio, apresento oseguinteesquema,cujasvantagenssefarosentir:O:TrincriafeciostesprotostacaK:TrincriaCalipsofeciostacaT:TelemaquiaVoltando,agora,nossaatenoparaoassuntodaOdisseiapropriamentedita,vamostomar

    como fioorientadoro itinerriodoheri,de certaparte emdiantede suasperegrinaes.Acompanhando-se sem preconceitos atravs do texto daOdisseia tradicional, encontr-lo-emos,deincio(CantoV),naIlhadeOggia,ondehseteanosCalipsooretm.Depoisdeobtidos os meios de se pr ao largo e de ver a sua jangada desfazer-se na tempestadesuscitada por Posido, e lanadonaEsquria, regio dos fecios, descendentes dos deuses,ondeemquatrocantosadmirveiselerelataassuasaventuraseasdeseuscompanheiros,noretornodeTroia,atamortedosremanescentes,comadestruiodaltimanau,depoisdosacrifciodosboisdorebanhosagradodeHlio,quesuscitouatempestadeemquetodospereceram,comexceodeUlisses,ento lanadonaIlhadeCalipso.Oepisdiodosboisde Hlio deu-se na Trincria, provavelmente amoderna Siclia. Da Esquria os fecios olevaramdiretamentepara taca,comocumpriaaessepovo fabuloso,cujamissoprincipalconsistia em repatriar os navegantes extraviados.Convmprestar ateno a esta pequenaparticularidade:queosfeciosolevaramdiretamenteparataca.oitinerrioquevemosindicado na segunda linha do nosso quadro: Trincria Calipso fecios taca.Portanto,vamosversepossvelencontrar,dentrodaprpriaOdisseia,elementosquenospermitamlevantaritinerriodiferente.J vimos que o astucioso guerreiro chegou a taca disfarado de mendigo, para poder

    estudar de perto a situao, tendo, primeiro, procurado informar-se junto ao porqueiro

  • Eumeu,queolevou,depois,aopalcioocupadopelos108pretendentesdePenlope.Logona primeira noite Ulisses teve oportunidade de conversar com Penlope e de dar-lhenotciasdomarido,queele,osupostomendigo,dizia terhospedadoemCreta,quandodesua viagem para Troia. Diz-nos o poeta que sua fala era um misto de mentiras e deverdades(mendacia multa dicens, veri similia, para citarmos o tradutor latino). Ora,evidentementefantasiosaseramasrefernciasaosupostomendigo,quesedizianaturaldeCreta, irmo de Idomeneu e que teria viajado pelo longnquoEgito.Mas, por outro lado,tinhamdeserverdadeirososdadosrelativosaoprprioUlisses,naterceirapessoa,semoqueomendigo falhariano intentodeconvencerPenlopedo retorno iminentedomarido,sendo natural que em sua situao mencionasse o que se passara com ele mesmo nosltimosescalesdesuaperegrinao:deFido,reidostesprotos,tiveranotciasfidedignasdeOdisseu,quejseachavadevoltaparacasa,estandopronta,mesmo,anavequedeveriareconduzi-lo.Chegaraa admiraros tesourosqueOdisseuangariavapor todaparte.Masoheri resolvera ir primeiro a Dodona, para consultar o carvalho sagrado sobre a melhormaneiradeapareceremcasa:sclarasoupormodoencoberto.nocomeodestafalaqueelenosministraoselementosdequecarecemos:[...]Jtive,certo,notciadavoltadoheriOdisseu,queseachaperto,naterrafecundadoshomensTesprotos,aindacomvida,econduzparacasapreciosostesouros,queemtodaparteangariou.Masanaudecostadoescavadoeoscompanheirosqueridos,perdeu-osnomarcordevinho,aoseafastardaTrincria[...].TodosaMorteencontraramnomeiodasondasfuriosas.Ele,porm,presoquilha,jogadoseviucontraapraiadaregiodosFecios,quesodescendentesdosdeuses.[...]

    [Odisseia,XIX,270-6,277-80]Nesse relato, duas particularidades chamam, imediatamente, nossa ateno: ter sido

    Odisseu jogado na Trincria para a regio dos fecios, sem passar por Oggia, e no tervindo dali diretamente para taca. Essa diferena de itinerrio permitir concluir pelaexistncia de um texto diferente do da Odisseia tradicional? Prossigamos na anlise, embuscadealgumreforoparaaconclusoafirmativa.H uma passagem no Canto VIII que carecer absolutamente de sentido, se no

    aceitarmos essa concluso. quando Arete, esposa de Alcnoo, chama Ulisses e lherecomendaquepresteatenonamaneiradefecharobaemqueelaacabaradedepositarosricospresentesquelhetinhamsidoreservados:

  • Notatuprprioofeitiodatampaelhepassaumbomlao,deformatalqueningumnocaminhotelese,aindamesmoquedurmassonoagradvel,denovo,noescuronavio.

    [Odisseia,VIII,443-5] incompreensvel. Ulisses ia ser reconduzido a taca pelos marinheiros de Arete. No

    entanto, ela mesma que admite a possibilidade de poder ser o seu hspede roubadoduranteaviagem.Seriaabsurdoemqualquercircunstncia,mormenteemsetratandodosfecios descendentes dos deuses. Mas a observao deixar de ser o que parece, umaadvertncia inepta, se aceitarmosadiferenade itinerrio:Arete sabequeUlissesnovaidiretamente para taca; ele mesmo indicara o ponto em que desejava ficar, digamos, aTesprtia,deondeosfeciosretornariam,umavezterminadaahonrosaegratamisso.Dessemodotransforma-seemcertezaaafirmaotmidanocomeodaOdisseiadeO,a

    primeira relao mais ampla das aventuras do heri, o itinerrio diferia do que nos foitransmitido na redao final. No s faltava nesse poema o episdio de Calipso, por serlanado Ulisses diretamente da Trincria para a terra dos fecios, como no era eleconduzido a taca pelosmarinheiros lendrios, tendo preferido alongar umpouco as suasperegrinaes para maior segurana do retorno. Pertence ao mesmo autor a cena doreconhecimentonacortedeAlcnoo,quenosrelatadanapassagemdooitavoparaononocantodanossaOdisseia, cenaadmiravelmente traada,emquea situaoparecepericlitar,quandooherinopodeconteraslgrimasdiantedanarraodeDemdoco,aocantaresteas suas aventuras.Nossa emoo chega ao clmaxquando o heri se d a reconhecer, namuito citadapassagem:EusouOdisseu, filhodeLaertes, e aminhaglria atingiuoaltocu. Quer dizer: em um momento ficam invertidas as situaes; aquele desconhecido,nufrago, que ali fora ter quase morto de cansao e de fome, era o grande heri quecombateraemTroiaeporcujaastciacaraafortalezadePramo;emuitolonge,agora,deserelequempediaalgumacoisa,eraquemdavahonracortedeAlcnooeaseupovodemarinheiros.Comovemos,estamosdiantedeumpoetadeverdade,quesabeoquequerequedispedeumatcnicasegura.Mas, como se d nas grandes literaturas, em sua fase de crescimento, esse poema

    despertou imediatamente a emulao de outros escritores. Lembrarei, de passagem, quedepois de publicada a primeira parte doDonQuixote, de Cervantes, apareceu na Espanhauma suposta continuao das aventuras do cavaleiro manchego, por um tal bacharelFernandezdeAvellanedacriptnimo,evidentemente.OmesmosedeunaGrcia:depoisde conhecida aOdisseia de O, surgiu outro poema em que as aventuras do heri eramtratadasporumprismadiferente.JdemosonomedeKaessepoeta,queempujanadeintelectonadaficavaadevera

    O.SeKnopodiaexpandir-senumacriaoespontneaelivre,dispunhadavantagem

  • danodespicinciadosque vmemsegundo lugar, isto , depoderobservaros errosdeseu antecessor. Foi assimque K seprops a corrigir essas irregularidades.Emprimeirolugar, era de necessidade justificar melhor o tempo de ausncia do heri, para que seconservasse o prazo tradicional de vinte anos: dez anos de guerra ao redor dosmuros deTroia, dez de peregrinaes, no bastando, nesta segunda parte, aumentar o nmero deaventuras que, por vezes, exigiamapenas algumashoras.E foi a que o poeta criou, comtoda a pujana de seu gnio, o episdio de Calipso, emOggia, onde o heri teria ficadoretido durante sete anos. O nome Calipso serve para indicar as intenes do poeta.Compreendeu,ainda,quetudooqueseinterpusesseentreaestaodosfecioseoretornopara taca atuaria como elemento de retardamento, tendo suprimido o desvio pela regiodos tesprotos e a consulta ao orculo de Dodona, para fazer com que o heri fossereconduzido diretamente pelos marinheiros de Alcnoo. E ainda no tudo, porque nopoemadeKasaventurasdeOdisseusoapresentadassobumnicoprisma,dacleradePosido,oquenoacontecianaprimeirarelao,emqueosepisdiossesucediamsemnexointerior.Ao refundir o episdio do ciclope, K leva o heri a cometer duas imprudncias. A

    primeirafoiquandoOdisseurevelaoseunome,semnecessidadealguma,porpurabazfia.Podemos considerar esse ato comoo pseudoprtonde sua vida aventureira, ao dizer aogigantedenicoolho:Polifemo!Sealgumteperguntarquemteprivoudavista,dizequefoiOdisseu, filhodeLaertes!DepossedonomedeOdisseu,Polifemoseencontravaaptoparalanarsuamaldio,porquenasculturasmgicasonomequedeixaalgumentregueaos exorcismos de seus inimigos. O outro erro que culmina em verdadeira blasfmia foiOdisseudizerquenemPosido,umdosdeuses,poderia restituir a vista aPolifemo,oquechamacontrasiacleradodeusejustificaaimprecaoltimadogigante,quandopedeaPosido que prive Odisseu do retorno ptria. Mas se for dos Fados, diz ele e at osdeusessesubmetiamsMoiras indiferentes,se fordosFadosqueeledeva rever taca,que o faa tarde e que at em casa v encontrar trabalho.De passagemobservarei que oautordaTelemaquiadesconheciaomotivodacleradePosido,semoquenoteriaAtenainvocadoaproteodiretadaqueledeusparaosucessodoempreendimentodeseupupilo(III).Como veem, o poema ganhou extraordinariamente em coeso, porque at as ltimas

    aventuras,isto,ostrabalhosdohericomosmoosquelhehaviaminvadidoopalcio,jseencontramjustificadasnopromio.AtnotratamentodosepisdiosclssicosoautordasegundaOdisseia procuramanter sua originalidade, quando no entra em franca polmicacomseuantecessor,doqueexemploeloquenteodilogoentreUlisseseoporqueiro,noCanto XIV. Aqui, tambm, o mendigo conta mentiras e verdades, como far adiante naconversa com Penlope, commais eloquncia nas primeiras, para ser verdico no fim, aorelatar os fatos mais recentes: Fido, Dodona e tudo o mais que j do nosso

  • conhecimento.A incredulidade de Eumeuno se dobra diante da eloquncia das provas aduzidas pelo

    mendigo; nada o convence de que o patro est com vida e que poder voltar pararestabelecer a ordem em casa e em seus domnios. Depois de dar expanso a seussentimentoscompassivosemrelaosortedosupostomendigo,manifestaoseuceticismoemrelaosnotciasreferentesaoprprioUlisses:Porque,sendotudessemodo,mentessemsernecessrio?Melhordoquetu,tenhocinciaquantoaoretornodocarosenhor[...](XIV,364-6).comoseoautordissesse:correporaumarelaodasaventurasdeOdisseuquenovaledoiscaracis.Melhordoqueoseuautor,euseicontarcomoessascoisassepassaram. Lembrarei, ainda, e isso para completar o exemplo anterior, que quandoCervantesescreveuasegundapartedoseupoemajcontavacomoDonQuixoteapcrifodeAvellanedaejogacomelementostiradosdele,emfrancapolmicacomoseuautor.Noele,Cervantes, emnotas ou no prefcio,mas o prprioDomQuixote: Esse sujeito escreveuqueeuestivenasjustasdeSaragoa?Poisbem:noireiaSaragoa,sparademonstrarqueeleumescritormentiroso.E,assim,emmuitasoutraspassagenscmicasirresistveis.Masomelhorexemplodepolmicadentrodaobraliterrianospoderserfornecidopelo

    teatrogrego,nafaseureadatragdia.Valeapenaadigressoque,parecendoafastar-nosdo nosso estudo, nos levar, de fato, at o mago do problema. squilo, no incio dasCoforas, nos mostra Electra diante do tmulo de Agammnone, quando percebeu quealgum realizara ali um sacrifcio. Surpresa, descobre em cima da lpide do tmulo umamechade cabelos: compara-os comos seus e certifica-sedeque soperfeitamente iguais;examina ao redor do tmulo e descobre marcas de ps, em que os seus se adaptamperfeitamente,deondeseconcluiqueOrestesvoltaraparavingaramortedopai,mortoporClitemnestraeEgisto.ingnua,confessemos,atcnicadopoeta,naapresentaodotemado reconhecimento, do anagnorisms, para usarmos o termo preciso. Eurpides retoma omesmomotivoeodesenvolvedaseguintemaneira:deumafeita,opreceptordeElectraenatragdiagregahsempreumvelho,aquedoonomedepedagogoprocuraaodadoparadizerquealgumsacrificarasobreo tmulodeAgammnone.NotersidoOrestes,que voltou s ocultas para vingar o assassnio do pai? Entusiasmado com a ideia que lheocorrera, aconselha Electra a ir certificar-se do que ele dissera. Quem sabe, pergunta, seOrestes no deixou sobre a lpide uma mecha de cabelos? Do confronto com os teuspoderstiraralgunselementosparaidentificaododono.Oupelamarcadosps,umavezque ele deve ter rodeado o tmulo, deixando no solo as impresses dos ps. At pelaprpria roupa seria possvel reconhec-lo, uma vez que fora Electra quem lhe facilitara afuga no dia do sacrifcio de Agammnone. Todas essas indicaes so feitas num dilogoanimado,dequeeuretenhoapenasaessncia.AcadasugestodovelhopreceptorElectraresponde quase com uma gargalhada: como ser possvel identificar dois irmos pela cordoscabelos?Oupelotamanhodosps?Concebe-sequeasjovenseosrapazestenhamps

  • domesmotamanho?Absurdomanifesto!Earoupa?SeriaprecisoqueOrestesnotivessetrocado de roupa durante vinte anos, e que esta tivesse crescido com o corpo... maiorabsurdoainda!No se faz mister grande sagacidade para compreender que estamos diante de um

    legtimo caso de polmica literria. O que Eurpides intenta com os seus argumentoscapciosos lanar ridculo na tcnica de squilo, como a demonstrar que este no sabiadesenvolverotemadoreconhecimento,doanagnorisms,detantaaplicaonaepopeiaenodrama,nopassandooterceiroexemplodeexageroelevadocaricatura,poisnoocorreraasquilodizerqueOrestesusaraumasroupadurantevinteanos.Eurpidesexorbitanasua funodecrtico, sendocertoquenopassariamdespercebidosaosespectadores suasintenes malvolas. No entanto, decorridos milnios, ainda nos comovemos com asimplicidadeverdadeiramentegenialdesquiloe ficamos indiferentescomossofismasdeseutalentosoopositor.Pois bem,o temado reconhecimentopermite-nospenetrarmais a fundono segredoda

    composiodaOdisseia,pormostrar-nosospoetasOeKemtodasuaoriginalidadeeanaturezadoprocessodecompilaodoredator final.NopoemadeO,oreconhecimentodeUlisses dava-se antes domorticnio dos pretendentes, tendo se identificado omendigopor meio de uma cicatriz no joelho, cuja histria vem contada com particularidades. Narelao de K o reconhecimento d-se depois da vingana de Ulisses, sendo a prpriaPenlope quem submete o mendigo ltima prova: revelando-se conhecedor departicularidades sobre a feitura do leito do casal, construdo por ele mesmo, Ulissesconsegue remover as dvidas que impediam Penlope de reconhecer o esposo. So duasilustraesdiferentesparadesenvolveromesmotema,oquecondicionadiferenaessencialnaexposiodoassunto,conservandocadaautorsuaoriginalidade.CoubeaBafusodasduas variantes em uma s relao. Na fase de declnio da epopeia, cuidavam oscompiladores de fazer apenas composies volumosas. A Ilada a estava com suasdimenses tentadoras. Da apresentar-nos a Odisseia tradicional o tema da cicatriz, paraabandon-loemcertaaltura,semchegaraoreconhecimentodoheri;queeranecessrioincluir,tambm,avariantedoreconhecimentopelossinaisdoleito,quepelograndeefeitoemocionalnopodiaserpostadelado.Vejamosasconsequnciasdessafusoarbitrria.Se a cicatrizno serviriaparao reconhecimentodoheri, porque razo ela trazida

    baila? As coisas, no poema de B, isto , naOdisseia tradicional, se passam da seguintemaneira: depois de haver Penlope ouvido domendigo as notcias a respeito da volta doesposo, manda que uma das suas criadas lhe lave os ps, para que ele fosse deitar-se.Odisseu recusa, dizendo que no permitiria que nenhuma moa lhe tocasse o corpo; saceitaria semelhante servio, continua, de alguma velha, bem velha, caso houvesse nopalcioalgumacriadanessacondio,quecomoelehouvessesofridomuito.Percebe-sequeest conduzindo a ao para que Euricleia venha fazer-lhe esse servio, precisamente

  • porquedesejaserreconhecidopelacicatriznojoelho,queavelhaamanopoderiadeixardeperceber. conhecido o fato de possurem as amasmemriasmuito vivas a respeito dasmarcasnocorpodeseusfilhosdecriao.EssacicatrizlhevieradeumacaadaaojavalinomonteParnaso,quandoforaemvisitaaoavmaterno,Autlico,aocontarosseusdezenoveanos.No entanto, ao julgarmos pela exposio de B, Ulisses no desejava ser reconhecido:

    Euricleia identifica imediatamente seu amo ao ver a cicatriz no joelho. Mas Ulisses,segurando-apelopescoo,ameaou-ademorteseviessearevelaraalgumaquelesegredo,que fora descoberto por sua prpria irreflexo. Por esse descuido, apenas, desmerecia oheridoeptetotradicional,quenos familiardesdeoprimeiroversodaOdisseia:oherisolerte,astucioso, fecundoemardis,revelara-seagoradeumainpciamonumental.OutraprovadaincapacidadedeBomodoporquejustificaofatodenoterPenlopenotadonadadoquesepassavaadoispassosdedistncia.QuandoEuricleiareconheceuacicatrizficou toatarantadaquedeixoucairapernadoheri;estabateunabacia,quesoltouumsom forte e lhe escapou das mos, entornando a gua. Foi um rebulio. No entanto,Penlopenopercebeu coisa alguma, porqueAtena lhedesviou a ateno.Comoveem, um recurso inferior: o poeta, no sabendo como sair da situao provocada por suaimpercia, chama em socorro a deusa, como h de fazer muitas vezes no desenrolar dahistria.Comafusodasduasvariantesficammodificadososprpriosfundamentospsicolgicos

    dacenadoreconhecimento.NarelaodeOdava-seoreconhecimentoantesdachacinadospretendentes.ApscombinaoprviacomUlissesquePenlopepropeaosmoosaprovadoarco,declarandoquesecasariacomquempudesserealiz-la.NaOdisseiadeKoreconhecimentoera feitopormeiodossinaisdo leito,depoisdamnesterofonia,amortedospretendentes,nacenacomovedoraquenosfoiconservadanoCantoXXII.Osfundamentosde ambas as cenas so perfeitamente justificados: a falsidade da situao s se patenteiadepoisdafusodasduasvariantes.muitofcilprovarquenaredaoprimitivaoreconhecimentodosesposossedeuantes

    domorticnio.NoCantoXXIV,nadenominadasegundaNekyia,aobaixaremparaoHades,asalmasdospretendentesencontramemdilogoanimadoassombrasdosherisdaguerratroiana,Aquiles,Agammnone,ograndeAjaz,querecordavamosfeitosrealizadosemvida.Admirado coma composiodo cortejo,perguntavaAgammnoneaumadas sombras,deAnfimedonte, de quem j fora hspede em taca, omotivo de baixarem, a um s tempo,tantasalmasdemoosparaasregiestenebrosas.Anfimedontenarra-lheoquesepassaranopalciodeOdisseu:comolherequestavamaesposa, instandoparaqueelasedecidissepornovasnpcias,ecomoPenlopeprocurarailudi-loscomoartifciodatelaqueelateciadurante o dia e desfazia de noite. Depois conta que algum demnio funesto trouxera dealgures o heri, que combinou com o filho amorte de todos eles e foi levado ao palcio

  • disfaradodemendigo,semqueningumpudessesuspeitardasuaidentidade.Nemmesmoos velhos da ilha o reconheceram. Por algum tempo Odisseu aguentou no seu prpriopalcio insultosepancadas;mas,nomomentopreciso, fezretirarporTelmacodasaladebanquetesasarmase combinoucomamulheraprovadoarco,pondoemprtica, assim,seuplanodiablico.SopalavrastextuaisdaexposiodeAnfimedonte:Comrefalsadamalciaconsorte,depois,eleordenaqueaprovadoarcoedosferrosaosmoos,ento,propusesse,oqueanstodosseriaocomeodofimditoso.

    [Odisseia,XXIV,167-9]Nesta altura da minha exposio, peo permisso para abrir um parntese, a fim de

    observarquenotextodasduasediesanterioresdeminhatraduodaOdisseia,emvezdeordenaencontra-sesugere,oquefazparecerqueoreconhecimentoaindanosedera.Segundo essa inteligncia, o mendigo, na qualidade de forasteiro, teria aconselhado aPenlope a prova do arco, sem deixar entrever todo o partido que pretendia tirar dasituao.No isso.No original grego lemos nogen, que foi vertido pelo tradutor latinocomo jussit, ordena. Em alemo befehlen. No remanesce a menor dvida; houvedescuidonessa passagem.O reconhecimento j se dera; ao apresentar aos pretendentes aprovadoarco,Penlopedavacumprimentosdeterminaesdomarido,quealiestavaparaampar-la a qualquer perigo; e confiante no seu amparo que ela se declara disposta adesposaroquesesassegalhardodadifcilprova.NaOdisseiadeKosfundamentospsicolgicossodiferentes.porestardesesperadae

    desesperanadaquePenlopesedecidiuquelaprova,comoonicomeiodeprumtermosuasituaoangustiante.Penlopenoacreditaqueomaridopossavoltaralgumdia.Emvriaspassagenspodemossurpreenderseuestadodeesprito,emqueseretrataodesesperoquelhevainaalma.QuandoserefereaTroia,dizsempre:[...]foiparaaTroiainfeliz,cujonomedizernoconsigo(XIX,597;XXIII,19).Quandofalaemdeixaropalcio,dizqueatem sonhosh de rev-lo com saudades (XIX).nesse estadode almaque comunica aosmoosasua intenodecumprirasdisposiesdomarido,entregandoopalcioao filho,que j atingira a idade de dirigir os prprios haveres. Para ela, portanto, foi surpresaverificar que o marido j se encontrava em taca e que era o mendigo que expurgara opalciodosmoosturbulentos.Na Odisseia de B essas premissas se destroem. Penlope no tem justificativa para

    proceder como faz.Nunca estivera to esperanosa, comodepois da conversa como falsomendigo,que lhe trouxeraprovas eloquentesdequeomaridono tardaria a voltar: [...]ainda no curso deste ano h de vir Odisseu de retorno; antes de a lua apagar-se e ficarnovamenteredonda(XIV,306-7),apontodePenlopedizerqueomendigo,dapordiante,

  • noseriaconsideradopessoaestranhaemseupalcio,masmembroda famlia(XIX,253-4).Eassimesperanosa,assimalegre,quevaiproporaosmoosumaprovaarriscada,declarandoquesecasariacomoquesassevencedordacompita.Eseumdelesserevelasse altura da difcil prova, no ficaria estragada a brincadeira? Penlope deveria contar comessapossibilidade.Como veem os leitores, os absurdos se acumulam sobre absurdos, as incongruncias

    sobre incongruncias.E tudo issoporumacausanica: queaOdisseia tradicional no umprodutoespontneodeumpoetadegnio,masumarranjodepoemasdiferentes,umacompilao,emsuma.Seriamuitofcilparamimaduziroutrosexemplosderepetiesdetemas. Mas no haver necessidade de nos alongarmos. Direi apenas que a anlise daOdisseia revela dupla redao em todosos episdios fundamentais.OdisfarcedeOdisseu,por exemplo, apresentado sob duplo aspecto: ora se processa verdadeira transformaofsica,aotoquedavarinhadeAtena:enrugadaapelemacia,amortecidososolhos,ausenteacabeleira loura...oraseapresentaoheriapenascomamodificaocausadapelotempoepelotrabalho.Alutacomospretendentestambmnarradaemduasfasesdistintas:comarcoeflechaeemcombatedeperto,comescudo,espadaelana.AtmesmonoepisdiodeNauscaa, to espontneo e natural, possvel descobrirmos indcios de remodelao: oheribanha-seealmoabeiradeumrio,depoisdaacolhidadaprincesa,para,momentosdepois,nopalciodeAlcnoo,reclamarporcomida,queoventrecnicoemolestoaissooimpelia(VII,216),edeleitar-secomoutrobanho,declarando,textualmente,opoeta,queoherinohaviaprovadoadelciadetalconfortodesdequedeixaraaninfadebeloscabelos(VIII,452).Observemos,contudo,quedessavezsetratavadeumbanhomorno;talvezseencontrenissoajustificativadocompilador.Emlinhasgerais,ameuver,essaasoluodoproblemadaOdisseia.Seriaaocasiode

    declarar-meunitrio, tambmcomreferncia composiodessepoema, cuja anlisenosrevelaoselementosquecontriburamparaasuaunidade.Masosunitrios intransigentesnoadmitemquetoquemosnoedifciomajestoso,cujomaterialdeveriatersidolavrado inloco at nas ltimas mincias, tendo em mira o plano preestabelecido por um nicoarquiteto.QuerissodizerqueoproblemadaOdisseia,comotambmodaIlada,oumelhor,a Questo Homrica, comea onde os unitrios terminam; porque no basta dizer que aIladaeaOdisseiasocriaespoticasqueobedecemaumaideiadiretriz;precisoqueasestudemos em seus elementos componentes e lhes tracemos as caractersticas. Nestaexposioative-me,emlinhasgerais,sconclusesdadenominadaEscolaAnaltica,cujosrepresentantesdiferemapenasemparticularidades,noemprincpios.aorientaoquevemdeKirchhof,emmeadosdosculoXIX,echegaatosnossosdiascomVonderMhlleFock,comvisveltendnciaparasimplificaodoproblema.ParaFriedrichFock,aanlisedaOdisseia revelaelementos isoladosnosCantosdoAplogo,umaOdisseiaprimitiva,deO,eaTelemaquiadeT.Fockrejeita,decidido,ahiptesedoredator,paraatribuira

  • T a compilao final. Em tese, a soluo proposta por Finsler, cuja obra ainda hojeindispensvel para quantos se ocupam com a poesia de Homero. O trabalho de Von derMhllanterioraodeFock,massmechegousmosalgumtempodepois(PetervonderMhll:DerDichter der Odyssee, Aarau, 1940). Para Von der Mhll, naOdisseia tradicionalpodemosdistinguirumpoemaprimitivo,deorigemjnica,queeledesignapelaletraA,eaOdisseiatica,deB.AoriginalidadedeVonderMhllconsisteematribuiraBmaiorcapacidade artstica e, por assim dizer, plstica, do que o fizeram os analistas anteriores,comKirchhoftesta.ComonocasodoHinoaApoloedoEscudodeHesodo,trata-sedeumaestruturaoampla,emqueomaterialantigocomonaporocentraldaBaslicadeSoPedro,concludaporMiguelngeloincludoorganicamenteaoconjunto,semquepossamos falar em uma simples justaposio de partes. Contudo, esse processo deassimilao sofre uma exceo de vulto: na incluso da Telemaquia (T), que, como oreconhece o autor, constitua um poema independente, conforme desde 1830 j odemonstraraG.Hermann,equeoredatorfinalnosoubeincorporaremseupoemacomamesmahabilidadecomqueprocederacomaOdisseiaprimitiva.ApesardesuasdimensesmodestasumasimplesconfernciarealizadaemBaden,otrabalhodeVonderMhllconsideradoporMerkelbachumpassodecisivonessesestudos.Com o livro de Reinhold Merkelbach (Untersuchungen zur Odyssee, Munique, 1951)

    voltamos commelhor argumentao concepomestra de Schwartz, sendo de lastimar,apenas, pela confuso da resultante, que o autor houvesse adotado novas letras paradesignarosautoresdosdiferentespoemasquepodemser isoladosnocorpotradicionaldaOdisseia.MasopoemadeA(quejvemdeVonderMhll)eodeR,deMerkelbach,seidentificamcomospoemasquedesignamosacimapelasletrasKeO,respectivamente,e que, com a Telemaquia de T, contriburam para a compilao volumosa de B, aOdisseiatradicional.PelomenosaidentidadedeAcomopoetaKdaanlisedeSchwartzreconhecidaemextensanotaapologtica,emqueMerkelbachrebatealgunsexagerosdacrticainjustadeFockemrelaoaosresultadosdaanlisedeSchwartz.Paraoproblemadaformao da Odisseia, devem ser consideradas definitivas muitas das concluses deMerkelbach,quespoderoser rejeitadasporquemnosederao trabalhodeestud-las.Essaatitude,alis,dedesconhecimentodosproblemasfundamentaisdaQuestoHomrica,encontradaentreosdefensoresdaunidadedospoemas,oquenoraramenteserevelanamaneira por que so apresentados os assuntos, em que so defendidos, com insistncia,pontos que j se encontram definitivamente refutados. Como observa, com acerto,Merkelbach,aviolnciadasexpressesdeWilamowitz,emrefernciaaseusopositores,nose explica por simples agastamento de quem v rejeitadas suas ideias, mas pelo enfado,direimelhor,pelodesnimo,queseapoderadoautor,queverificatersidobaldadooesforoparafazer-secompreender.

  • II

    MastempodepassarmosaoestudodaIlada,campodeacaloradaeincessantepolmicadesdeo trabalho inicialdeWolff.Aanliseda Ilada temsidomais fecundaemhipteses,todas elas de durao efmera, alicerando-se cada vez mais a convico da unidade daconcepodopoema.ALiedertheorie,ahiptesedaIladaprimitiva (Urilias),daqual teriasurgido a Ilada por simples justaposio de elementos estranhos, a teoria das poesiasinsuladas(Einzegedichte)tmcedidocampoconcepodecomplexoscadavezmaiores,atfirmar-sea tesedosunitrios,masagora sobmelhorbaseemais firmeargumentao,deum poema uniforme, firmado em copioso material preexistente, de que dispssoberanamente um poeta de gnio. Ser o Homero da tradio grega. Se aceitarmos aconcepodosseparatistas,maisdoqueumpoetadegnio,teriasidoHomeroumpoetadesorte,umeleitodaFortuna,paraterencontrado,prontasparaasuacompilao,tograndenmero de poesias que se completavam com tamanha docilidade, o que no seriamenormilagredoqueodacomposiodoconjunto.Omais interessanteno estudoda composioda Ilada ver que voltamos aopontode

    partida, isto , que aps um sculo e meio de debates, viemos a dar na concepo deChristian Gottlob Heyne, apresentada em 1802, quando da publicao de sua ediomonumentaldopoema.Pelaprimeiravezerafeitaumaanlisedopoema;paraoprofessordaUniversidadedeGttingen,todoocomplexomaterialdequesecompeaIlada adquireunidadeporsertratadosoboprismadotemadacleradeAquiles,aMenisdoversoinicial,que o poeta jamais perde de vista.A interferncia dos deuses serve para aproximar esseselementos,aquetambmunificacertaigualdadedesentimento.HeyneafastaahiptesedaIladaprimitiva,paravernafeituradopoemaoesforodeumnicopoeta.Essaconcepopoderia ter sido de orientao fecunda,mas presentemente s tem valor histrico por terpassado despercebida quando de sua publicao. que Wolff, sete anos antes, haviadesencadeadoatempestadeparaoutrolado.Almdomais,Heynenoquisabrirlutacomseudiscpuloingratoeinimigofigadal:detemperamentotmido,cometeu,ainda,afraquezadeaceitaremparteasconclusesdeWolff,noquerespeitaaosupostodesconhecimentodaescrita antes do sculo VI a.C. e redao dos poemas no tempo de Pisstrato, o queenfraqueciasuasprpriasconcluses.De fato,aindaqueo ttulodopoema inculqueumassuntomaisamplo,declaraopoeta

    que no promio iria tratar das consequncias funestas da discrdia surgida entreAgammnone eAquiles.Mas comum tema to ingrato, e por demais restrito, soube, naverdade, tratar de toda a Guerra de Troia, j pelo que nos relata dos acontecimentosanterioresdiscrdia, jpeloquedeixaentreverquantoaodestinodo famosoburgoedeseusdefensores.OafastamentodeAquilesdo campoda lutapermiteoaparecimento, emprimeiro plano, de outros chefes aquivos, oportunidade felicssima para incluir naefabulaodopoemaaaristiadeguerreirosdevriasprocednciaseatmesmoestranhos,

  • primitivamente,aosacontecimentosdeTroia.AgastadocomAgammnone,porlheterestetomadoaescrava,aelegantssimaBriseide,

    retira-seAquilesdoscombates,ameaando,at,deretornarparaFtia,seutorronatal.Porsua instncia, sobeTtis aoOlimpo,parapedir aZeusqueda emdiante concedesse aostroianos a vitria, para que os acaios viessem sentir a falta de Aquiles. Com a primeiraderrota sria (Cumpriu-se deZeus o desgnio [...], I, 5), na batalha doCantoVIII, queculminaemviremos troianosacampar foradosmurosdacidade,oqueemnoveanosdecerco jamais havia acontecido, reconhece Agammnone o seu erro e resolve enviar umacomitivaaAquiles, compostadosseusamigosmaischegados,paraverseodemoviamdopropsito. Aquiles fica surdo aos pedidos, s tendo cedido, mais tarde, s splicas dePtroclo,aquememprestaasprpriasarmas,deixandoqueleveseushomens,paraafastardasnauso incndioedesafogarosaquivosdapressodo inimigo.MasPtroclovencidopor Heitor, que se apodera das armas de Aquiles, razo de pedir Ttis a Hefesto quefabriquenovasarmasparao filho.Comaperdadoamigo,Aquilesseesquecede tudo,stendoemmiramataroassassinodePtroclo,apesardaadvertnciadeTtis,deque logoapsamortedeHeitorera fatalqueele tambmviesseaperderavida.Oltimocantodedicado ao resgate, por Pramo, do cadver de Heitor. A Ilada termina com acordesbrandos, aps a reconciliaodos dois inimigos figadais.Osltimos versos so dedicadosaosfuneraisdeHeitor.esseoassuntodaIlada,numasmulabrevssima,massuficienteparanosforneceros

    principaispontosdereferncia.Antes,porm,detentarmosumaexplicaodaformaodaIlada, ser necessrio ampliarmos os horizontes e coligirmos material para melhorfundamentar nossas concluses. Para tanto, teremos de fazer uma pequena digressobibliogrfica.Na imensa bibliografia sobre a Questo Homrica, ser justo ressaltar a obra de

    Wilamowitz (Die Ilias und Homer, 1916), considerada por Eduard Tiche como marcodivisrio na histria desses estudos, por haver imprimido nova orientao s pesquisasnesse setor. (Num captulo complementar da obra de Finsler:Homer, 1924, trs volumes,Teubner, Leipzig.) Mais recentemente, Schadewaldt no se cansa de enaltecer-lhe osmritos.Valeapena,pois,demorarmo-nosnaapreciaodesuateoria.Wilamowitz distingue na Ilada tradicional vrias camadas e procede como verdadeiro

    arquelogo, de cima para baixo, isto , discriminando os acrscimos mais recentes, atidentificar a Ilada de Homero com a quinta faixa subposta, que, por sua vez, revelaformao heterognea. No procedeu de outro modo Schliemann em suas escavaes naTrada,atdistinguirosalicercesdeoitocidadessuperpostase identificarTroiaVI comoburgohistricodestrudopelacoligaoaquiva.HomeroviveunaJnia,nasegundametadedosculoVIIIa.C.,pocadoapogeudomovimentopico.Afaseelicadaepopeiaeraentosimples reminiscncia histrica, carecendo de importncia, para Wilamowitz, o Homero

  • tico, da hegemonia de Atenas. Valendo-se de material copioso e de grande antiguidade,comorevelaafeituradohexmetro,coubeaHomeroaprimeirasntesegrandiosa,emqueemprestava feio monumental a epopeias menores, imprimindo-lhes cunho pessoal.Competeaos investigadoresdeagoranosomentedistinguirospoemasquecontriburampara a formaoda epopeia, como isolar as camadas que vieram sobrepor-se verdadeiraIlada,cujodesfechoficouperdido,paradar lugarconclusopacficaque lemosnoCantoXXIV.Porque,paraWilamowitz,aIladaterminacomamortedeAquiles,desfechonaturalaque o poeta alude com tanta insistncia em todo o decurso do poema. Dentro de poucotempoveremosoquehdeverdadeironessaconcluso.DeixandodeladooestudodoselementosquecontriburamparaaformaodaIladade

    Wilamowitz, vejamos apenas, em esforo rpido, quais foram as camadas que vieramsobrepor-se ao poema,modificando-lhe, essencialmente, a fisionomia. Isso nos dar ideiasuficientedomtododoautor.ParaWilamowitz,aIladadeHomerosecompunhadosseteprimeiros cantos da Ilada tradicional (CantoVII) e dos cantosXI aXXIII (deste ltimo),com excluso dos episdios da troca das armas, da descrio do escudo e da batalha dosdeuses.Acenadareconciliaofoimodificada,nosendosuaprimitivafeituraaquelemosnoCantoXIX. Essa primeira ampliao devida ao compilador que incluiu no traado adescrio do escudo (Canto XVIII), trabalho independente e que no se relacionava comAquiles.Asegundacamadacompreendeabatalhadosdeuses,quesedistinguepeloestiloempolado,detodoaberrantedasdemaispartesdopoema.Masinteressanteparticularidade:seu autor revela o conhecimento local da Trada! Ele, e somente ele, visitou o vale doEscamandro. A terceira recompilao compreende o resgate do corpo de Heitor (CantoXXIV), comseu final sereno, cabendoaomesmopoetaa inclusodos jogosdo funeraldePtroclo(CantoXXIII).Altima,porfim,emaisrecente,consistenotrabalhodopoetaquecomps a denominada Segunda Batalha (Canto VIII), com o fim precpuo de incluir nopoema o Canto da Embaixada (Canto IX) e a Doloneida (Canto X), episdiosprimitivamenteindependentes.Noousodizerqueoqueaficasejaumresumodafamosateoria,quevemexpostanum

    livro de quinhentas pginas de leitura difcil. Mas parece-me suficiente para nossafinalidade. O grande merecimento de Wilamowitz consiste em nos ter restitudo umHomerovivo,quese integranummovimentopicodegrandespropores, comoapogeunaJniadosculoVIII,movimentoquenosecircunscreveapenasatividadedeHomero.Antes e depois dele,muitos poetas integravam omovimento pico daGrcia.Natural deEsmirna, viveu e fez poesias particularmente em Quio, tendo causado to profundaimpresso entre os seus contemporneos, que os psteros lhe atriburam a autoria daTebaidaedeoutrasepopeias.necessrio,concluiWilamowitz,identificaroHomerodatradio comopoeta da Ilada. a concluso que seme afigura vitoriosa e a que venhotendendo desde o comeo deste estudo,muito embora no aceite todos os resultados da

  • anliseacimaapresentada.Uma dasmais interessantes fontes da Ilada foi recentemente identificada porHeinrich

    Pestalozzi, num trabalho a que me permito transferir o elogio de Finsler-Tiche, porconstituir, de fato,marco divisrio na histria daQuestoHomrica (Heinrich Pestalozzi:DieAchileisalsQuellederIlias,Zurique,1945).Trata-sedeumsimplesfolhetode52pginas,maspginaspreciosas,quenostrazemaprovadaexistnciadeumpoemasobreamortedeAquiles,dequeatradionosconservaraapenasonome,aEtipida,fonteliterriadaIlada,senoquantoefabulaodopoema,porlheterfornecidotemasesugestes.Eraconhecidaaexistnciadospoemascclicos,assimdenominadosporcompletaremo

    assuntodalendadeTroia,querquantoaosantecedentesdograndepleito,querquantoaosacontecimentos posteriores queda da cidade. O poema Ta Kypria relatava osacontecimentos desde o ovo de Leda at o desembarque dos gregos na plancie de Troia.Dessepoemasnosrestamfragmentosenotciasdesencontradassobreoseuautor.Nessaalturaserconvenienteobservarqueopoemadomesmonome,recentementepublicadonaAlemanha,DieKyprien,dohelenistaThassilovonScheffer,notraduo,mascriaolivredeumapaixonadopelapoesiagrega.ApequenaIlada,Atomadadelio,AAmaznia eoutroscompletavamanarrativados feitosdosheris gregos ao redordosmurosdeTroia, sendocontado o retorno aos respectivos lares numa srie de Nostoi, da qual a Odisseia foi avariante mais feliz. O poema A Amaznia traa o seu propsito de apresentar-se comocontinuaodaIlada,poriniciar-sepeloltimoversodesta:OsfuneraisestesforamdeHeitor,domadordecavalos.

    [Ilada,XXIV,803]CantavaavindadePentesileia,depoisdamortedeHeitor,paraauxiliarPramo.Assim,

    tiradaaltimapartedoverso,erafeitaaligaoimediatacomonovotema:OsfuneraisestesforamdeHeitor.AAmazonafamosa,Pentesileia,chegou,filhadeAres,flagelodoshomens.Duasconclusespareciamdefinitivamenteassentadasemrelaoaospoemascclicos:a

    prioridadedospoemasdeHomeroeainferioridadedetodoselesemconfrontocomaIladaeaOdisseia.OgrandemerecimentodePestalozzi consiste em ter provado a prioridadedaAquileida, ou que outro nome se lhe d:Etipida, e tambmMemnnia, do heri principal.Memno, filho da Aurora e de Ttono, que veio em socorro de Pramo conduzindo seusguerreirosetopes.Justificava-seoauxliopeloparentescodosavs.Logodeincio,MemnomataAntloco,filhodeNestor,escudeiroeamigodiletodeAquiles.Aquilesvingaamortedo amigo, apesar da advertncia de Ttis, de que ele morreria logo aps a morte de

  • Memno, como, de fato, morre, pela seta de Pris. Da relao de Prclo, autor de umacrestomatiaemquenosfoiconservadaasmuladetodosospoemascclicos,peloreflexoemPndaroe,sobretudo,pela interpretaodapinturadevasos,restabelecePestalozziemlinhas gerais a trama do poema. Ttis e a Aurora sobem aoOlimpo para pedir a Zeus avitriadosrespectivosfilhos;Zeusconsultaabalanadofado;sobeopratocomodestinodeAquiles,baixandoparaa terraopratodasortedeMemno.Desesperada,aAuroravaiprocurar o Sono e a Morte, para entregar-lhes o corpo de Memno e assegurar-lhe aimortalidade da fama. Outro quadro decisivo nos mostra o combate sobre o corpo deAquiles:ograndeAjazsustentasobreosombrosocorpo,enquantoOdisseuaparaoembatede quatro troianos, que procuram apoderar-se dele, para despoj-lo das armas: Eneias,Pris,GlaucoeLadoco. interessanteobservarcomoHomeroprocedecomessesquatroguerreiros:deLadoco

    smencionaonomeporhaverAtenatomadosua formaquandobaixoudoOlimpocomainteno de achar Pndaro, para incit-lo a quebrar as trguas juradas e ferirtraioeiramenteMenelau:PalasAtena,entretanto,nasfilasdosTeucrospenetra,sobafiguradofortelanceiroAntenrida,Ladoco.

    [Ilada,IV,86-7]MasdessefortelanceiroaIladanadanosdizquejustifiqueoepteto:queseusfeitos

    eramcantadosemoutraparte.Osoutrostrsaparecememcena,naIlada,masopoetatemocuidadodenodeixarquesucumbam;earazomuitosimples:quetodosjfiguravamemumpoemaque relatava acontecimentos posteriores aos relatados na Ilada.O caso deEneias,ento,,sobesseaspecto,escandaloso:havendoesseguerreiroousadodefrontar-secomAquiles,oprprioPosido,protetordeclaradodosgregos,sugereaApoloqueotiredocampodebatalha,porserdofadoqueelesobrevivaaodestinodeTroia.V-sequeopoetaestatadopelaconcorrnciadeoutrospoemasequenopodedispordoassuntocomobementender.NesseresumooconhecedordaIlada irencontrarmuitostemasfamiliares:opedidode

    Ttis aZeus, a pesagemdodestino (a denominada querostasia), o Sono e aMorte irmos,quenaIladacuidamdocorpodeSarpdone,alutaaoredordocorpodePtroclo,masdessavez com os defensores em nmero duplicado: dois gregos sustentam o corpo,Menelau eMerones, enquanto os dois Ajazes aparam o embate dos troianos. Homero amplia omodelo, sem que possa remanescer dvida sobre qual seja o original. A issoacrescentaremos queMemno, comoAquiles, era filho de uma deusa e de ummortal, eque, como aquele, possua armas fabricadas por Hefesto, Hephaistteukton panoplian, naexpressodePrclos.

  • NoadmiraquedoprprioMemnoaIladanadanosconte,porserdatcnicahomricanoanteciparosfatos.MasoversoinicialdoCantoXI,quetambmocorrenocomeodoCantoVdaOdisseia:Ala-seaAuroradoleitoondedormeopreclaroTtono[...]

    [Ilada,XI,1;Odisseia,V,1]

    indcio eloquentedeque esta feiodomitono eradesconhecidadopoeta.AOdisseia,tambm,nosfaladamortedeAntloco,[...]aquemofilhoadmirveldaAurorabrilhantematara.

    [Odisseia,IV,188]

    e do combate ao redor do corpo de Aquiles, recordado por Ulisses, quando a ponto deperecer no naufrgio suscitado por Posido. Os funerais de Aquiles, os jogos fnebres, achegadadeTtis,ocorodasMusassorelatadosnoCantoXXIV,nasegundaNekyia.Resumindo,direiqueograndemerecimentodePestalozziconsisteemelehaverfirmado,

    pelaprimeiraveznahistriadaQuestoHomrica,umpontoderefernciaparaoestudodaIladaedaOdisseia foradessesprpriospoemasqueatentopassavamcomosendoosmais antigos monumentos da literatura grega, transmitidos durante sculos por tradiooral.Noentanto,atemosumpoemaperfeitamentedefinido,queterminacomamortedeAquiles,comooqueriaWilamowitzparaaIladadesuareconstruo.Nessepoemanoseinspirou Homero para o assunto propriamente dito de sua epopeia que osacontecimentos eram posteriores aos da Ilada , mas fez mais: foi buscar nele temas esugestes.EssaconclusopoderserdeconsequnciasimprevisveisparaafixaodadataqueHomero teria vivido, isto , o autor da sntesemajestosa, a ltima redao da Ilada.Apesardemuitorecente,o trabalhodePestalozzi jencontrouconsagrao:emestudodedata posterior, o humanista Ernst Howald de tal modo se imbuiu dos ensinamentos alicontidos, que se declara dispensado de citar a obra de Pestalozzi no decorrer de suaexposio: esses ensinamentos lhe permitiram nova perspectiva para a interpretao daIlada (ErnstHowald:DerDichterderIlias, Zurique, 1946).Hmais: na segunda edio deseu livro, Von Homers Welt und Werk (Stuttgart, 1951), Schadewaldt dedica um captuloespecialMemnniaidentificadaporPestalozzi,ereforaatesedoautor,desenvolvendo-lheosargumentoseaprofundando-lheasconcluses.Somenteagora,depoisdessaexcursobibliogrfica,nosencontramosaptosparaestudara

    origemdo tema inicial, a cleradeAquiles,quenos indicadana invocaodopoema,oquenospermitirpenetrara fundonaoficinadopoeta,paradesvendar-lheosmtodosdecomposio. Grande a dvida de Homero em relao a seus predecessores, de que ele

  • mesmo no fazia mistrio, por ser estranho ao movimento pico da Grcia o conceitomoderno da originalidade a todo custo; a originalidade, ento, consistia na novaapresentaodeumassuntoconhecido,emqueocorriamtranscrieslongasdeepisdiosecenas,dispostossobnovaperspectiva.oquesedcomopoemadacleradeMelagro,quesugeriuaopoetaumtemaparasuacomposiomaisvasta,eoquesed, tambm,comadescriodoescudodeAquiles,composioprimitivamenteindependentedoassuntodaIlada,comabatalhadosdeuses,adescriodosfuneraisampliada,paramaiorglriadePtroclo,eatmesmocomepisdiosque,parecendointimamenteligadosconcepodo poema, revelam, por sua colocao no traado geral, origem duvidosa. assim queJachmann, fazendo reviver com nova argumentao a Teoria das Canes Isoladas(Einzellieder), demonstrou a autonomia primitiva do episdio da despedida de Heitor eAndrmaca,quedeviaantecederdepoucomortedoherieque,emfaltade lugarmaisapropriado,foiinseridapelopoetanoCantoVI(GntherJachmann:HomerischeEinzellieder.SimbolaColoniensia;Colnia,1949).Masomelhor exemplodovasto trabalhode compilaodeHomeronos serdadopelo

    poemacleradeMelagro,quevemindicadonoCantoIX,ofamosoCantodaEmbaixada,nafaladeFenice,ovelhoamodeAquiles,decartervisivelmenteparentico.Fenicecontaa histria deMelagro, para exemplo de como o seu pupilo no deveria proceder na suateimosia de abster-se dos combates.Commuita felicidade, Finsler observou queHomerocitanessaalturaopoemacleradeMelagro,comoofazumautormoderno,queindicanorodapdapginaasfontesemquefoiabeberar-se.OestudodoCantoIXvainosmostrarqueoepisdiodaembaixadasofreumodificaes

    emsuaredao final.Primitivamente,osembaixadoreseramapenasdois:OdisseueAjaz,sendomuitoprovvel,ainda,queaembaixadaserealizasseduranteodia,enodenoite,conforme se passa na redao tradicional. Fenice foi includo por Homero, estarei quasedizendoinventadoporHomero,pelanecessidadedepressediscursonabocadealgumdemaiorautoridade,peranteAquiles,doqueosseusprprioscomilites.Peleuencontrava-sedistante;Ttisestavaimpossibilitadadeincumbir-sedesemelhantemissopelasuaprpriacondio divina. Fazia-se mister de algum de autoridade quase paterna, que pudesseadmoestar Aquiles e, por assim dizer, cham-lo ordem, mostrando o absurdo de suateimosia.DatersidocriadaafiguradeFenice,quedeverterseincumbidodaeducaodeAquiles,eaquemestedeviaobedinciaerespeito.Inicialmente causa estranheza encontrarmos Fenice na tenda de Agammnone, ao lado

    dosdemaischefesaquivos.NaqualidadedecondutordeumadasdivisesdosmirmdonespartidadePtroclocomoshomensdeAquiles,deveriaestarinativocomotodososoutros,queaofensafeitaaochefeatingiaseuscabos.Aexplicaodessaanomaliaencontradanoversoaseguir,porondesevqueosembaixadoreseramapenasdois.DepoisderecebereminstruesdovelhoNestorsobreamelhormaneiradeconvencerodivinoPelida,puseram-

  • seacaminho,dizendoexpressamenteopoeta:Ambos,ento,pelapraiadomarressoanteseforam.Dezversosadiante,depoisdechegadostendadeAquiles,repete-seaindicao:Ambos,ento,avanaram;serviaOdisseucomoguia.Mas ainda no tudo, que na saudao de Aquiles se nos depara a indicao precisa

    quantoaonmerodecomissrios:Salve!Bemgrave,semdvida,acausadeaquiterdesvindo.Aindaquemuitoagastado,soisambososqueeumaisdistingo.

    [Ilada,IX,182;192;197-8]

    Por felicidade, dispe a lngua portuguesa desse resqucio do dual, que nos permitiuconservarumaparticularidadedotextogrego,verdadeiro flagrantedamodificaoporquepassouaredaodoepisdio.Depois de apresentar as suas credenciais de velho preceptor, numa introduo que se

    dirigemais aos ouvintes do que ao prprioAquiles, passa Fenice a tratar do exemplo deMelagro, e o faz como quem recorre a copiosomaterial lendrio, numa legtima citaobibliogrfica:Asprpriasgestasdeherisdasidadescorridasnosdizemque,quando,acaso,ficavampossudosdecleragrande,eramsensveisabrindes,dobrando-seforasuasria[...].E, aopassar a contaro casodeMelagro, dirige-se aospresentes,numgestodeorador

    contumazquesabedominaroauditrio:[...]Ora,meuscarosamigos,meocorrecontar-vosumcasonadarecente,bemvelho,talcomosedeu,emverdade.DecertavezosCureteseosfortesEtlios[...]

    [Ilada,IX,524-6;527-9]

    combatiam ao redor dos muros de Calidona. Resumindo a citao, direi que enquantoMelagro tomoupartena luta, ao ladodosetlios,odestino foi contrrioaosassaltantes;masquandoseabstevedoscombates,porcausadamaldiomaterna,oscuretespassaramofensiva, ficandoCalidonaameaadadecair.Melagromatarao tiomaterno,nadisputa

  • suscitada pela posse da pele do famoso javali de Calidona, para cuja caada se reunira afidalguia da redondeza. impressionante a cena damaldio de Alteia, posta de joelhos,banhandoorostodelgrimasquentes,apercutiraterraeainvocaronomedeHadesedePersfone,paraquefizessemmorrerofilho.MelagrosabiaqueasErniasnodeixariamdedarcumprimentomaldiodeAlteia;porissoseabstevedoscombates,surdoaospedidosdosamigos,dosvelhosdaterra,dasirms,comotambmdeEneu,seupai,eatdaprpriaAlteia, s tendo cedido s splicas da esposa, Clepatra, dos belos artelhos, que entrelgrimaslheevocouoquadrodosofrimentodetodosedelamesma,seacidadeviesseacairaosassaltosdoinimigo.Melagrocede,conscientedoseudestino,quenonosrelatado.Fenice s objetivavamostrar aAquiles as consequncias de sua teimosia, em relao aospresentes magnficos que lhe eram oferecidos, para que aceitasse os mimos valiosos eretornasse luta: por isso termina mostrando que Melagro no recebeu de seusconcidados as ddivas prometidas no incio, porque no desistira do seu propsito aopedidodosamigos,masdemotuprprio.Noprecisareiinsistirnoparalelodassituaes:otemadacleraencontranopoemadeMelagromagnficailustrao.Mas, se bemconsiderarmos, essepoemano forneceu aHomero apenaso tema, seno

    material abundante para a estruturao da Ilada. Com isso entramos num assunto depalpitante interesse, que tem dado pbulo para discusses sem fim: o do clebre muroconstrudopelosacaios,paraproteodosnavios,aconselhodovelhoNestordePilo.IssosedaofinaldoCantoVIII,demaneiraabrupta,semqueasituaojustificassesemelhantemedida.OdueloentreHeitoreAjax,depuroespritocavaleiresco,terminaracompequenavantagem para o ltimo; o nimo dos aquivos estava elevado com a recente traio dePndaro e o consequente perjrio dos troianos, o que lhes selava a destruio inevitvel.Logo adiante ocorre a embaixada por parte dos troianos, com propostas de paz, que foiunanimemente rejeitada. nessas condies que o velho Nestor prope pequena trguaparaaqueimadosmortoseparaqueseconstrussemdepressa,apartirdapiraemquefossemqueimadososcadveres,torresemuros,comfossoeportassuficientementeamplaspara a passagem de carros e cavalos. uma construo gigantesca. To grande essaconstruo que o prprio Posido se mostra enciumado, com medo de que os mortaisviessemaesquecer-sedosmurosdeTroiaqueeleajudaraa levantar.Noentanto,decertaalturaemdiante,essaconstruogigantescadesaparece.NoCantoXVI,quandoPtroclosaiem auxlio dos gregos, trava-se a batalha campal, sem nenhum obstculo, desde a navecombustadeProtesilauatosmurosda cidade,nohavendoempecilhono caminhoparadeterafugadostroianos;noCantoXXIV,quandoPramovairesgatarocadverdeHeitor,atravessa a extensa plancie, passa o vau do Escamandro e atinge a tenda de Aquiles; omesmosejaditoemrelaoaocantodosfuneraisdePtroclo,emqueascompetiesdosjogossofeitasemcampoaberto.Conquanto haja referncias a esse muro em vrias passagens, no Canto XII que ele

  • adquirecapitalimportncia,pelabatalhadecisivaqueselhetravaaoredor.Saltaaosolhosque a narrativa lucrou muito com esse recurso, que permite variar as descries doscombates,queadquiremfeionovanocenriomovimentado:osembatesdeGlaucoedeHeitor, o ataque dos lcios, aliados dos troianos, levados pelo intemerato Sarpdone, dequematentonadasesabia,masqueirocuparlugarpreeminentenaPatrocleidaquandode sua morte pelo escudeiro de Aquiles; Sarpdone segura com mo forte o parapeito,deixandoomurodesguarnecidoporcima.MasHeitorquemconseguearrombarumadasportas, firmadas por dentro comduas barras em cruz e com ferrolho, atirando contra elauma grande pedra, das muitas que havia no campo, pedra que dois homens de hojedificilmente poderiam mover: rompem-se as barras com a fora do golpe e abrem-se asfolhasdaporta,franqueandoapassagemcobiada.Nasituaoaflitivaemqueseachavam,osgregosmandamchamarAjaz,quevemagachado,peloladodedentrodomuro,postar-senopontodemaiorperigo.[...]emtodaamuralhaobarulhoeraimenso.(XII,289)Mas a qualquer leitor ocorrer, imediatamente, que essa descrio animada no diz

    respeitoaumabatalhacampal:aspersonagensnossoconhecidasdasoutrasfasesdocercodemorado,dasbatalhasdosCantosVeVIII,masocenriodiferente.queopoeta fazum emprstimo vultoso, copiando com mo larga de um poema rico de descries deassaltosaumacidade,cujosmoradoressedefendiamdoaltodesuasmuralhas,dastorres,parapeitos, merles, reforando as portas, cavando fossos, levantando toda sorte deobstculospara impedirque fosse invadida a cidade, justamente comoFenicenos resumenoexcertodopoemacleradeMelagroedoscombatesaoredordosmurosdeCalidona.Presentementenopossvelapontarasporestiradasaopoemaanterior,porqueHomerono trabalhava com tesoura e cola: ainda que nos indique honestamente as fontes deinspirao,imprimiacunhoprprioaomaterialemprestado.Mas, uma vez conseguida a finalidade estilstica, de introduzir variedade nas descries

    dos combates, desaparece de seu horizonte potico omotivo domuro, voltando a ao adesenrolar-seemplenocampo,comosenadativesseacontecido.Ecoisacuriosa!OprprioHomero sabia que esse motivo potico constitua uma violncia ao traado da epopeia,razoporqueelemesmoseincumbedejustificaroseudesaparecimento,violandoumdosseusmaisnotveisecaractersticospreceitosdecomposio,comoanteciparosfatos,paracontar-nos o destino ulterior do muro. Os prprios deuses se incumbiram de destru-lo,para que de sua permanncia no resultasse quebra do crdito de Posido. Sim, a Iladajamaisultrapassasuaprpriamoldura,nopassandodevagasindicaesoquesedizsobrea queda iminente de Troia e o destino dos seus moradores, assunto particularizado dospoemascclicos.Anicaexceoesta,emquesecontacomoosdeusesseincumbiramdefazerdesaparecerdafacedaTerraaconstruogigantesca.Apoloreuniuaforadeoitorios,jogando-oscontraamuralha:oReso,oHeptporo,oRdioestuoso,oCaresotranquilo,odivino Escamandro, o Grnico, o Esepto e o Simoente, tendo feito Zeus chover durante

  • novedias,enquantooprprioPosido,[...]tridentenamo,iafrenteeosalicercesdetroncosepedras,quetantotrabalhotinhamcustadoaosArgivos,sondasdomarosjogava,tquedeixoutudoplanonamargemdobeloHelesponto.

    [Ilada,XII,27-30]

    Isto, em futuro [...], adverte o poeta; porque por enquanto ainda ardia ao redor dasmuralhas bem-feitas o clamoroso combate, ressoando nas torres as traves. No h maisbelo exemplo do poder da imaginao: para introduzir variedade na ao do poema eincorporarneleopulentomaterialdeemprstimo,levantaopoetaummuroondenopodeexistir muro, fazendo-o desaparecer por antecipao, quando j se tornara desnecessriopara a sua finalidade. Desse modo, tambm, aparava possveis objees dos ouvintes. ATrada j estava sendo frequentada, com a colonizao helnica, que transpusera apassagemdosestreitosecriarapostosavanadosnomarNegro.Devoltadessasviagensporlongnguas terras osmarinheiros de Lesbos eMitilene que haviam acampado no vale doEscamandropodiamobjetaraopoeta,nosfestejosanuaisemqueeramrecitadosospoemasdosfeitosdagenteargiva,queaindaseviamasrunasdoburgoimponentedePramo,masquenohaviavestgiodamuralhagigantescaqueosgregoshaviamconstrudoparaamparodas naves. Violando, portanto, um dos seus mais notveis preceitos estilsticos, com aantecipao dos acontecimentos e fazer desaparecer o muro, Homero tinha em vistainutilizar essas objees impertinentes, sendo concebvel a existncia de uma primitivaredaodaIladasemosversosiniciaisdoCantoXII,quepodemserafastadossemprejuzodanarrao.Jpenetramos suficientementenaoficinadopoeta,paranos abalanarmosa apresentar

    uma sntese final da Ilada sob a perspectiva indicada, do tema daMenis, a clera. NessaalturaconvmlembrarqueograndeFinsleravanouemqualquerpartedoseutrabalhodequequempartirdaMenisnopoderreconstruiraIlada.Sooutrasaspremissasdoautorna sua interpretao do poema, no me sobrando, agora, vagar para uma excursoilustrativa.Vejamossepossvel apresentarumaexplicaoda Iladanessasbases, apesardetovaliosaopinioemcontrrio.Foi Erich Bethe quem chamou a ateno para a posio, na arquitetura do poema, dos

    CantosIXeXIX,respectivamente,oCantodaEmbaixadaeodaReconciliao,que,comoduas colunas simetricamente dispostas, dividem a Ilada em trs partes. evidente oparalelismo estilstico desses cantos, o que nos poder servir de exemplo da acribia dopoeta,equeconstituidesmentidoformaldoconceitoromnticodaepopeiaespontnea,denascimentoannimo,queseformaporsimesmaecrescecomoasplantas.Umaformao

  • dessegneroincompatvelcomtamanhamincianaexecuodeumplanopreconcebido.ParaotemadacleranosefaziaindispensvelareconciliaocomAgammnone:umavezmortoPtroclo,Aquilesvoltariaparaaluta,afimdevingarquantoantesamortedoamigo.Mas o poeta queria purificar Agammnone de qualquer seno, apresentando-o comoperfeito soberano. Os presentes enumerados no Canto IX so apresentados na cena dareconciliao, bem como a prpria Briseide, causa involuntria da discrdia entre os doischefes, realizando, ento, Agammnone o juramento que se dispusera a fazer dois diasantes,dequenohavia tocadona jovem,nempor forade amores,nemporoutra causaqualquer(XIX).Emumaeemoutracenaaparecemversosrepetidos.EmambososcantosOdisseu quem admoesta Agammnone, quando na segunda assembleia fora de esperarsemelhanteatitudedovelhoNestordeGerena.NaprpriafaladeAgammnoneevidenteo paralelismo, ao se lembrar do exemplo de Zeus, enganado pela Culpa, quando donascimento de Hracles, complemento natural da fala de Fenice, no Canto IX, naenumeraodosefeitosda terrveldeusanonimodosmortais, eda ao reparadoradasSplicas(ErichBethe:Homer,1vol.,p.70,etambmBowra:TraditionandDesignintheIliad,Oxford,1930).Mas, se considerarmos mais de perto essa diviso do poema, iremos descobrir

    particularidades interessantes. que parece a diviso natural para a recitao de toda aIladaemtrssees,ou,commaispropriedade,emtrsdias.SendocertoqueaIlada e aOdisseiaeramrecitadasemfestejospblicos,aprincpioporepisdiosdesconexos,conformeoexigiaaprefernciadoauditrio,semque fosseobedecidaaordemdosacontecimentos,depois na sequncia natural da fbula, aceitvel que no caso da Ilada esse recitativo sedessecomaspausasindicadas,nofimdoscantosVIIIeXVIII.UmrecitativodeseisouoitocantosdaIladapordianotomariamaistempodoquearepresentaodeumatetralogiacompleta,quetambmexigiaodiatodo,sendopossvelqueosrapsodosserevezassem.E,particularidade interessante: esses cantos se encerram justamente com o cair da tarde,coincidindoahoraemqueosouvintes sedispersavamcoma interrupo foradada aomovimentada do poema, pela chegada da noite divina, a que era foroso obedecer. Masaindanotudo,queessastrspartesconservamumacertaautonomia,apresentandocadaumadelasumaspectodiferentedo temada clera, quepode ser consideradoum tododeacabamento artstico perfeito, que se integra na unidade maior do plano preestabelecidopelopoetaeexecutadocomprecisoadmirvel.FaamosumapanhadodessaspartesparatermosumaideiaperfeitadaunidadedaIlada.

    Apresentarei neste escoro apenas um apanhado muito por cima dos episdiosfundamentais, que a ocasio no nos permite anlise mais demorada. Desde os antigoslouva-seemHomeroahabilidadecomqueelenarraosacontecimentosdaGuerradeTroiasemcomearabovo,iniciando-seopoemadepoisdenoveanosdecerco.Hquemvejanoestilonervosodoprimeirocantocaractersticasdognerodasbaladas,comaausnciadas

  • imagenstofrequentesnosoutroscantoseapeculiaridadedodilogo,emqueasfalasdaspersonagensseentrechocamcomvivacidadenica.Essecanto foi compostopeloautordopromio como introduo para o tema da clera, causa de terem sofrido os aquivosinmeros trabalhos e de baixarem para o Hades muitas almas de heris esclarecidos,enquantoelesmesmos,isto,seuscorpos,serviamdepastosaveseaosces.IssotudosedeuemcumprimentododesgniodeZeus,quepassouafavorecerostroianos,apedidodeTtis, como fimdeenaltecerAquiles.perfeitaasequnciaentreosepisdios:a rixaentre Aquiles e Agammnone, a tentativa frustrada por parte deNestor de reconciliar osdoischefes,aqueixadeAquilesaTtiseasubidadestaaoOlimpo.Confirmadaapromessacomumsinaldecabea,omaisseguropenhorcomqueodeussumoseobrigavaperanteosdemaisdeusesdoOlimpo,refleteZeusnamaneiramaiseficientededarincioaoseuplanopara abater os gregos. No entanto, a no ser no comeo do Canto II, por muito tempodesaparece do horizonte potico o tema da clera, ocupando-se o poeta com vitriassucessivasdosaquivos,queatingemoclmaxnoCantoVI,emqueosentimentogeraldostroianospressagiavaaquedaiminentedacidade.Masapenasaparenteessedescuido;opoetaabandonapormomentosotemaanunciado

    paraapresentaraspersonagensdodramaeincorporarnoseutraadogigantescoocopiosomaterialemquevinhamnarradososacontecimentosanterioresdiscrdia.Afbulaganhaem extenso e em profundidade. Muitas poesias isoladas, sagas de tribos distantes, soincorporadas,assim,lendadeTroia,numadeslocaodemitosqueseimpunhavistadoprestgioalcanadopelanarrativadofamosocerco.Noentanto,aincorporaodetonumerososelementosnosefazdemaneiracanhestra,

    tendosidobaldadososesforosdosanalistasparaisolarospoemasdeproporesmenoresemsuaprimitivaautonomia,quetodoselespassarampormodificaessensveisnoatodacriao potica. Percebe-se que o poeta dispunha de copiosomaterial e quemuitas vezespressupe no ouvinte particularidades da fbula que deixa demencionar. assimque noincio Ptroclo nos apresentado simplesmente como o filho de Mencio, descuidoevidentenaredaodacenainicial.Massopequenoslapsosquenoafetamaestruturaodo poema, no conseguindo a mais exigente anlise deslocar os blocos fundamentais doedifcio, semprejuzosensveldoplanogeral.Comoexemplo, lembrareiapenasacenadoencontro deHeitor eAndrmaca, narrada noCantoVI,muito distanciada, na opinio devrios crticos, da morte do heri, e, por isso mesmo, deslocada naquela altura. Adiantevoltaremos a essa passagem, quando tratarmosdo cuidado comqueo poeta preparava osouvintes para o desenlace de determinados temas, iniciando-os commuita antecedncia.Heitor nos apresentado no Canto VI sob perspectiva inesperada, como filho, irmo eesposo, porque na ltima parte do poema todo o interesse se concentra em torno de suafigura.JhouvequemdissessequeaintroduodaIladaseestendeatoCantoVII;realmente,

  • s depois da apresentao completa das personagens que o poeta se decide a darcumprimentoaotemaanunciado.OtemadacleraimpunhaoafastamentotemporriodeAquiles,oquedoportunidadeaoutrosherisdeapareceremnoprimeiroplano.Ressalta,tambm,opatriotismodopoetaemtodasassuasdescriesdecombates;oauditrioexigiaa vitria dos aquivos, razo precpua de se sucederem as relaes dos feitos heroicos dosconfederados,quecontrastavamcomos troianospeladisciplina,eloqunciaepelaprpriaescolhadasarmas.Entreosaquivos,apenasTeucrodaaescolhadonome!manejavaoarco;todososoutrosslutavamdelanaeespada.ComexceodePtroclo,nomorredo lado dos aquivos nenhum heri de primeira grandeza, e assim mesmo, no caso dePtroclo, foi preciso queApolo tomasse a iniciativa para tontear o heri e queEuforbo oferisse traio, depois do que pdeHeitor levar a cabo a vitria fcil. Em toda a Iladamorrem 189 troianos em combate singular, contra apenas 53 aquivos, sendo estes quasesempreobscuros,vultosquesaparecempelanecessidadedanarrativa.Afinal, no Canto VIII comea a concretizar-se o desgnio de Zeus com a derrota dos

    aquivos.Masaindaaquiaaonodecisiva:pormaisdeumavezostroianosestiveramapontodeserencurraladosnacidade;emcertaalturaoprprioZeuslanaumraioaospsde Diomedes, para que este parasse na sua arrancada vitoriosa, em perseguio aostroianos, advertncia tambm para o poeta, observa um comentador, a fim de que sedecidisseacumprirodolorosodeverdecontaraderrotadosgregos.Eoquesed,afinal;pelaprimeiravez,depoisdenoveanosdecerco,vmacamparostroianosforadosmurosdacidade,apsumalutaquesfoiinterrompidapeloadventodanoitedivina.Asfogueirasdoacampamento dos troianos so comparadas com as estrelas que refulgem com brilhoindizvelaoredordalua,quandoocuestlmpidoeosventossossegados,descortinando-seoscabos,grutasemataspelasbaixadas,oqueenchedegozoopastor.Chegamos,dessemodo,aumapausanaturaldanarrativa;osouvintesquesedispersaramparasuascasas,aocair da noite, levavam a certeza da prxima derrota dos aquivos, em cumprimento dodesgniodeZeus.Eramasprimeirasconsequnciasdotemadaclera:comoafastamentodeAquiles,invertera-seasituao:ostroianospassaramofensivaevieramencurralarosgregos dentro do prprio acampamento, sendo-lhes defesa precria a soberba muralhaconstruda para proteo das naves. Grande deveria ser a ansiedade dos ouvintes, no diasubsequente,quandovoltavamacongregar-seaoredordovateparaouviremacontinuaodanarrativa.Asegundapartecomeacomanoite,noCantoIX,oclebreCantodaEmbaixada,incio

    muitonaturalparaosgregos,quecontavamosdiasdiferentementedomodoquefazemos.Ns dizemos: dois dias e duas noites, enquanto eles invertiam a posio dos termos,comeando a indicao pelo perodo noturno: Niktas te kai hemar, para dizermos isso noprpriodialetohomrico.Nessasegundaparte,tambm,copiosomaterialincorporadoaopoema, sendo o Canto X, a Doloneida, sob esse aspecto, bastante ilustrativo. Se esse

  • episdiotivessesidocasualmenteperdido,observaLeaf,nuncapoderamossuporqueemalgumtempohouvesseexistido.Seuprprioestilo lheempresta carter suigeneris dentroda composio do poema. o nico canto da Ilada em que no h repetio de versos,particularidade de grande peso se considerarmos que dos 28 mil hexmetros dos doispoemas,umquartoderepeties.Noentanto,suainseronessaalturadanarrativanofoifeitasemrazesponderveis,nosendopossvelexclu-lo,semprejuzoparaoequilbriodopoema.Essaexcursonoturna,defeioacentuadadegangsterismo,serveparalevantaro nimo dos aquivos. Sem essa pequena vitria recomeariam a luta do Canto XI emcondiesdesvantajosas,depoisdodesfechodabatalhadoCantoVIIIe,principalmente,dofiascodaembaixada.TodaaPatrocleida se inclui tambmnessa segundaparte, sendodenotar o cuidado com

    queopoetaconduzosacontecimentos.Commuitaantecedncia,preparaomotivodatrocadasarmas,parapoderincluiradescriodoescudofeitoporHefesto,oquesednoCantoXVIII. Mas para isso era necessrio que Aquiles perdesse as suas armas, emprestadas aPtroclo, que vencido porHeitor.Desde oCantoXI o velhoNestor sugere a Ptroclo aideia de vir em socorro dos gregos com as armas de Aquiles. Qual a necessidade desemelhante emprstimo? No nono ano de luta estaria Ptroclo sem armas de combate?Inconcebvel. Seria o caso de lembrar as palavras de Idomeneu, quandoMerones foi lhepedirumalana:Lanas,setaldesejares,nouma,somente,masvintedentrodatendaachars,encostadasnomuroesplendente.LanasTroianassotodas,tomadasdosnossosimigos[...].

    [Ilada,XIII,260-2]

    Mas no havia outra opo, para poder ser incorporada famosa descrio do escudo,que,deincio,noserelacionavacomAquiles.PtrocloforatendadeNestorainstnciasdoprprioAquiles,que,decimadapopadesuanau,virapassarovelhodeGerenacomumguerreiroferido.Observaremosrapidamentequeasituaoincompatvelcomaexistnciadomuro,queimpediriaavisodoqueocorrianaplancie.Afastadodoscombates,ograndeherinoestavaindiferentesortedoscompanheirosdearmas.DaterchamadoPtroclo,paraqueestefossesaberonomedoferido.Ptrocloacorreaochamadodoamigo.Oinciofoiessedesuadesgraa,observaopoetacombastanteantecedncia(XI,604).Noentanto,a ideia sugerida por Nestor s retomada no incio do Canto XVI, depois de vencida aresistnciadomuroedehaverchegadoa lutaao recintodasnaves.Outraparticularidadeinteressante, que permite derivar a situaodeumpoema anterior ao temada clera: nafaladePtroclo,repetio,nesseponto,daspalavrasdeNestor,admite-seapossibilidadedeAquiles estar afastado dos combates por injunomaterna, talvez pelo receio da predio

  • queofadavaaumavidacurtaegloriosaouaumavelhiceapagada:Seteretrais,porventura,emvirtudedealgumvaticniopelamenobrecontadodapartedeZeuspoderoso[...].

    [Ilada,XVI,36]

    snarespostadeAquilesquesefazaligaocomotemadaclera,aonegareleaquelapossibilidade, para lembrar a verdadeira causa de sua absteno, espraiando-se emparticularidades,comosePtroclodesconhecesseomotivodarixa:AbelaescravaqueosfortesAquivosporprmiomederam,porminhalanaadquiridaaodestruirbem-muradacidade,opoderosoAgammnoneveioarrancar-medosbraos,comoseeufosseadventciodetodoovalordestitudo.

    [Ilada,XVI,56-9]

    Assim,emtodaaPatrocleiaperseveranteotrabalhodeHomeronopreparodosepisdiosenajustificaodostemas,chegandoatopoetaaabandonarsuaobjetividadecostumeirapara emitir opinio pessoal quanto atitude de Ptroclo, que com a sua insistnciaapressavaofimdesditoso:Queirreflexoeraasua!Oinsensatopedia,insistente,quesecumprisseoseufado,atraindoaprecpiteMorte.

    [Ilada,XVI,46-7]

    Este exemplo caracterstico. Por a vemos como Homero trabalhava e como seapropriavadematerialestranho.AmortedePtroclonarradaemgrandeestilo,nofimdesuaarrancadavitoriosadesdeanavedeProtesilau.ContraoquererdoDestino,osaquivosobtiveramvantagem;por trsvezesPtrocloarremetecontraosmurosdacidade;mas,naquarta,Apolointervm,paracercearompetodoheri.Nessahora,Ptroclo,aosolhosotermo luziu-tedavida. (XVI,787)Atoverboescolhido,deacordocomadignidadedoheri. S depois de tonteado por Apolo, que lhe arranca da cabea o elmo, e de ferido traio por Euforbo, que aparece Heitor, para consumar a vitria. J vimos como adescrio do combate ao redor do cadver de Ptroclo foi inspirada na Aquileida, comampliaodo tema.NoCantoXVIII levanta-seAquilesdesua inao,apso recebimentodanotciadaperdadoamigo.incorporadanessaalturaadescriodoescudo,apsaidadeTtis forjadeHefesto,parapediraodivino ferreiroque fabricasseparao filhoarmasdignas dele.O cadver de Ptroclo salvo graas simples ao de presena deAquiles:

  • doze troianos dos mais nobres perecem feridos por suas prprias armas, em virtude daconfuso causada pelo aparecimento doheri beira do fosso. PalasAtena lhes refora obrado e faz surgir-lhe ao redor da cabea uma chama inextinguvel. Aproveitando-se doefeito causado pelo ecida ilustre, os aquivos retiram o cadver e o conduzem para oacampamento, enquanto Hera obrigava o sol incansvel a baixar para o ocaso, a seumalgrado,paraqueosaquivospudessemdescansar.Assim,comoadventodanoitesagrada,termina a segund