Da Silva Experiência Hermenêut Preconceito
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Almir Ferreira da Silva Jnior concluiu doutorado em Filosofia pela Universidade de So Paulo (2006).
Sua rea de pesquisa na filosofia Hermenutica contempornea e Esttica. Atualmente professor
adjunto II, no Departamento de Filosofia na Universidade Federal do Maranho e lder do grupo de
pesquisa Estudos de Filosofia e Hermenutica.
Maria dos Santos Lopes possui graduao em Filosofia pela Universidade So Francisco (2001), Ps-
graduao em Filosofia Clnica pela Faculdade Bagozzi/Instituto Packter e em tica e Poltica pelo
Instituto de Estudos Superiores do Maranho-IESMA. Atualmente mestranda em Filosofia na
Universidade Federal do Piau e bolsista CAPES.
EXPERINCIA HERMENUTICA EM GADAMER:
DA REABILITAO DOS PRECONCEITOS AO CONCEITO
DE EXPERINCIA HERMENUTICA.
Almir Ferreira da Silva
Maria dos Santos Silva Lopes
Resumo:
Este artigo discute a precompreenso em Gadamer, enquanto questo epistemolgica
central de uma hermenutica verdadeiramente histrica e experiencial. Focaliza a crtica
de Gadamer Hermenutica Filosfica Moderna, em seu carter terico e metdico,
como contraponto ao seu novo paradigma de verdade, a saber, o da redefinio do
conhecimento pela experincia histrica que admite a compreenso pelos preconceitos
(positivos) e no somente negativos, a despeito do Iluminismo. Ressalta-se a
importncia da noo gadameriana de preconceito como elemento conceitual
imprescindvel para a ressignificao da hermenutica da experincia (Erfahrung).
Palavras-chave: Hermenutica, Epistemologia, Gadamer, Preconceito, Experincia.
L'EXPRIENCE HERMENEUTIQUE: DS LA RHABILITATION DES PRE-JUGES AU
CONCEPT DE L'EXPRIENCE HERMNEUTIQUE.
Rsum:
Cet essai discute la prcomprhension en Gadamer comme question pistmologique
centrale d'une hermneutique essencielement historique et exprientielle. Il focalise la
critique de Gadamer l'hermneutique philosophique moderne, en son caractre
thorique et mthodique, comme contrepoint son nouveau paradigme de vrit,
savoir, de la redfinition de la connaissance par l'exprience historique qui admet la
comprhension par des prjugs (positifs) et non seulement ngatifs, au contraire de
lIllminisme. Nous soulignons l'importance de la notion gadamerienne de prjug comme lment conceptuel vital pour la resignification de l'hermneutique de
l'exprience (Erfahrung).
Mots cls: Hermneutique, pistmologie, Gadamer, Prjug, Exprience.
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INTRODUO
O Filsofo Hans-Georg Gadamer (1900 2002), ao lado de Paul Ricoeur e na
esteira de Heidegger, depois da publicao de sua principal obra Verdade e Mtodo
(1960), reconhecido como o grande representante da Hermenutica Filosfica do
sculo XX.
Aluno e seguidor de Heidegger (1889 1976) durante mais de cinquenta anos,
Gadamer tornou-se o filsofo alemo mais famoso dos ltimos tempos1. Destacou-se
tambm por sua grande familiaridade com o mundo cultural, como fillogo, especialista
em teologia protestante e, como filsofo, simpatizante de Plato, Hegel, Husserl, e,
sobretudo, da fenomenologia de Heidegger.
Em Verdade e Mtodo (WahrheitundMethode)2, a apresentao da crtica dirigida
subjetividade moderna articula-se diretamente problemtica do monoplio de uma
metodologia cientfica moderna, o que traduz uma deformidade e negligncia da
experincia da verdade vinculada, unilateralmente, ao modelo metdico das cincias
naturais que, baseada em um modelo quantitativo-mecanicista, restringe o fenmeno do
saber cientfico e delimita a possibilidade de experincias de verdade.
A hermenutica filosfica gadameriana defende uma reflexo acerca da verdade
que ultrapassa sua significao moderna e reabilita o conceito de tradio como
condio de possibilidade para a compreenso. Essa ressignificao da verdade deve
considerar o conjunto de experincias que perfazem o mundo da vida, construdo
historicamente e a partir de um horizonte pr-compreensivo3.
1 Cf.GRONDIN. Jean. Hans-Georg Gadamer; Une biographie.Paris: Bernard Gasset, 2011.p.10. 2 Originariamente o ttulo da obra seria Compreender e acontecer, mas, dada a insatisfao por parte do
editor, tendo em vista a proposta do subttulo Fundamentos de uma hermenutica filosfica, a obra
vem a intitular-se, posteriormente, Verdade e Mtodo: Fundamentos de uma hermenutica filosfica.
Torna-se ainda relevante destacarmos o carter provocativo desse ttulo, conforme ressalta Ernildo
Stein. Segundo sua leitura, trata-se, de fato, da verdade contra o mtodo, uma vez que Gadamer busca
mostrar, em sua estrutura, que nas experincias da arte, da histria e da linguagem produzido um tipo
de verdade incompatvel com o mtodo lgico-analtico (Cf. E. STEIN, Aproximaes sobre
hermenutica, p. 44). 3 Cf. GRONDIN, Jean. Hermenutica. Traduo de Marco Marcionillo. SoPaulo: Parbola, 2012,
(p.63): o propsito inicial de Gadamer justificar a experincia de verdade das cincias humanas (e do entendimento em geral) participando da concepo participativa do entendimento. Ela constitutiva
daquilo que ele chama, na primeira linha de sua obra (Verdade e Mtodo), de o o problema hermenutico. Mas esse problema fora encoberto, segundo ele, pela concepo excessivamente metodolgica da hermenutica proposta por Dilthey. A ideia de Gadamer que Dilthey sucumbe a uma
concepo da verdade inspirada na metodologia das cincias exatas, que declara antema todo
entendimento de subjetividade.
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Sua noo de pr-compreenso, herdeira da estrutura prvia da compreenso do
crculo hermenutico de Heidegger, necessria para a atualizao ontolgico-
hermenutica da discusso sobre o fenmeno do conhecimento; o que por sua vez
reivindica uma hermenutica da experincia, pensada necessariamente em seu horizonte
de abertura e dialgico da finitude. Isso confere hermenutica gadameriana a pergunta
de como se inicia um esforo hermenutico e qual a relao entre preconceito e
tradio. Se o sentido do preconceito (Vorurteil) para Gadamer provisrio, direcional,
na medida em que lana a pessoa humana (ser finito e histrico) para a relao, para a
responsabilidade, para o dilogo e para a alteridade, s a interpretao capaz de
decidir sobre a verdade ou falsidade dos preconceitos, considerando que a interpretao
uma tarefa inacabada de reconhecimento e formao4.
A tarefa crtica da Hermenutica ser compreender o fenmeno da distncia
temporal e o esclarecimento do seu conceito, ou seja, distinguir os preconceitos que
cegam daqueles que esclarecem. Questo que supe uma anlise da conscincia da
histrica dos efeitos como estrutura da experincia.
Diante do exposto, o nosso objetivo apresentar a relevncia do preconceito
para a discusso hermenutico-contempornea sobre o fenmeno da compreenso, e
como elemento conceitual para a reconsiderao hermenutica da noo de experincia
(Erfahrung) Gadamer. A problemtica que se desenvolve neste artigo , em que medida
a compreenso ontolgico-hermenutica da experincia, pensada pela reabilitao da
tradio e dos preconceitos e, sob os efeitos da histria, decisiva para desconstruir o
carter paradigmtico da subjetividade e cincia moderna?
1 A REABILITAO DO PRECONCEITO
A hermenutica da experincia proposta por Gadamer situa-se na crise
provocada pela crena de que o paradigma das cincias naturais seria a nica
possibilidade de conferir legitimidade s pretensas experincias de verdades e,
consequentemente, quando o universo dos fenmenos contemplados pelas cincias
humanas envereda em busca de outro fundamento que os legitime como verdade,
4 Cf. SILVA, Maria Lusa P. F. da, O Preconceito em H.-G. Gadamer: sentido de uma Reabilitao.
Coimbra: FCG, JNICT, 1995.
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diferentemente do modelo monolgico sustentado pela cincia moderna; dessa vez mais
prximo da tradio e da histria. Sua reivindicao de reabilitar o preconceito
justificada por sua pertinncia ao mundo da experincia, pois seria difcil analisar o
problema hermenutico da experincia desconsiderando a evidncia da tradio e sem
acolher a perspectiva de seu mbito pr-conceitual.
O conceito de preconceito (Vorurteil), em seu sentido negativo, remonta ao
advento da cincia moderna, com Francis Bacon (1561 1626), ao apresentar seu
mtodo dos dolos da mente sobre os pensamentos prvios que afastam do caminho
da verdadeira razo. Contudo, o termo preconceito foi matizado somente no Iluminismo
francs, com Destutt de Tracy (1754 1836), significando cincia das ideias,
compreendidas no sentido bem amplo de estados de conscincia. Com isso, a teoria dos
dolos de Bacon fora transferida de sua aplicabilidade nas cincias naturais para as
cincias sociais e se transformaram em ideologia (idologie),em 1801.5
O expurgo dos dolos afastados e substitudos pela luz da razo ocorreu,
notadamente, com Descartes( 1596 1650), a partir do Discurso do Mtodo (1637), em
sua defesa da construo de um saber seguro e indubitvel sujeito a constantes
revises e assegurado metodicamente por regras , e mais tarde com Kant (1724
1804), na realizao de seu programa iluminista de libertar os seres humanos da tutela
auto imposta da razo.
Como a problemtica da legitimidade do preconceito remete questo da
autoridade e da tradio, do ponto de vista hermenutico-filosfico, a tradio
iluminista imprimiu uma oposio entre razo e preconceito e entre esse e a autoridade;
e mais ainda, a veracidade da tradio ao tribunal da razo e credibilidade duvidosa
que esta lhe confere. Portanto, Gadamer critica o Iluminismo (Aufklrung)6 dada sua
pretenso em pensar a autoridade sob o conceito de submisso fundamentando o
mtodo como raiz da autoridade , conferindo validez somente ao conhecimento que
passa pelo crivo da razo.
5 HEKMAN, Susan J. Hermenutica e sociologia do conhecimento. Traduo de Lus Manoel
Bernardo. Lisboa: Edies 70,1986, p. 40. 6 SILVA,1999, pp. 221-222: por todos sabido que no iluminismo a humanidade do homem se define
justamente pela libertao de toda a superstio ou menoridade culpvel, o que implica uma recusa de
toda a relao ao outro que no seja previamente confirmada pela autoridade da razo. Autoridade da
razo e a sua luz natural substitui-se nessa altura a toda e qualquer razo da (alteridade) autoridade.
Esta j no significa reconhecimento, mas obedincia e submisso.
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Assim, ao ser incapaz de pensar a finitude, a historicidade em interdependncia
dimenses essenciais do existir , a Aufklrung sobreps a razo monolgica e
atemporal como fundamento, princpio e autoridade mxima. Por isso, a crtica
hermenutica ao Iluminismo acompanhada da defesa de que o sentido do preconceito
no somente negativo, mas tambm positivo, pois no consider-lo como tal
constituiria um verdadeiro entrave para a relao entre compreenso, tradio e
conscincia histrica.
Ora, o que distingue a teoria gadameriana do preconceito, da posio iluminista
sobre o mesmo que, diferentemente de rejeitar o limite humano, silenciando-o como
questo insolvel e incmoda, sua nfase destaca a reabilitao dos preconceitos na
reconsiderao do seu sentido eminentemente positivo e necessrio. Do ponto de vista
de uma ilustrao, esse problema hermenutico vai se tornar central para a Aufklrung
moderna, quando a sua interpretao dogmtica imposta Sagrada Escritura, ao
colocar que a interpretao desta deve acontecer racionalmente e isenta de todo
preconceito. E como a crtica da Aufklrung primeiramente dirigida tradio
religiosa do Cristianismo, Gadamer no hesitou em defender o carter comprobatrio do
escrito, a fim de que se possa distinguir, tanto por ele quanto por uma afirmao oral, o
que opinio e o que verdade.
Para iniciar o percurso da reabilitao da noo de preconceito, Gadamer
relaciona a palavra alem Vorurteil (preconceito) francesa, prjug; e relembra que o
matiz negativo que possui o conceito de preconceito foi recebido somente com o
Iluminismo, ao restringir seu significado ao de juzo no fundamentado. A esse
respeito segue sua definio:
Em si mesmo, preconceito(Vorurteil) quer dizer um juzo (Urteil) que se prova antes da prova definida de todos os momentos determinantes segundo a coisa. No procedimento
juris-prudencial um preconceito uma pr-deciso jurdica, antes de ser baixada uma
sentena definitiva. Para aquele que participa da disputa judicial, um preconceito desse tipo
representa evidentemente uma reduo de suas chances. Por isso, prjudice, em francs, tal
como praejudicium, significa tambm simplesmente prejuzo, desvantagem, dano. No
obstante, essa desvantagem apenas secundria. justamente na validez positiva, no valor
prejudicial de uma deciso, tal qual o de qualquer precedente, que se apoia a consequncia
negativa."Preconceito" no significa, pois, de modo algum, falso juzo, pois est em seu
conceito que ele possa ser valorizado positivamente ou negativamente. claro que o
parentesco com o praejudicium latino torna-se operante nesse fato, de tal modo que, na
palavra, junto ao matiz negativo, pode haver tambm um matiz positivo. Existem prjugs
lgitimes. Isso se encontra muito distante de nosso atual tato lingustico (1999,p. 407&
275).
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Como possvel, ento, a legitimidade dos preconceitos? Gadamer afirmou que
pela experincia hermenutica, acompanhada dos efeitos do tempo que comporta a
experincia reflexiva e dialgica de perguntar sobre a validade ou no de algo, cujo
acontecimento se d no horizonte reflexivo da conscincia histrica. E em que consiste
uma conscincia histrica? Na abertura ao reconhecimento da tradio como instncia
do horizonte compreensivo, identificando na alteridade um lugar privilegiado para o
desenvolvimento de experincias hermenuticas. Assim, a distncia temporal permite
decidir sobre os preconceitos falsos, que se fecham ao dilogo e interpretao e, por
isso, conduzem ao erro dos preconceitos verdadeiros que promovem a compreenso, o
dilogo e a alteridade.
Ao revigorar o conceito de preconceito luz do texto e da tradio no trabalho
hermenutico, Gadamer contribuiu decisivamente para atualizar a importncia da
tradio na constituio dos saberes e das experincias. Sua proposta de reabilitao da
autoridade da tradio uma questo filosoficamente fundamental de justia, pois o
descrdito conferido a noo de preconceito pelo Iluminismo (Aufklrung), apresentado
como um preconceito que limita, to somente, parte integrante da prpria realidade
histrica. Ele investe, assim, na reconsiderao da palavra preconceito cujo sentido de
pr-compreenso, de pr-juzo, transmitida historicamente. Portanto, se somos
pertencentes histria, no se pode conceber um indivduo que se compreenda e que
compreenda o outro, fora de uma realidade, de um mundo, de uma situao, posto que
os preconceitos de um indivduo so, muito mais que seus juzos, a realidade histrica
de seu ser. (Gadamer, 1999, p. 416 & 281).
A importncia de privilegiar a questo dos preconceitos para Gadamer a
problemtica central de uma hermenutica, de modo que sua legitimao constitui-se de
fundamental importncia para o enfrentamento das questes epistemolgicas no tocante
ao reconhecimento cientfico das cincias humanas e o alargamento da noo de
verdade na contemporaneidade. Nesse sentido, a hermenutica para Gadamer ultrapassa
seu carter eminentemente psicologizante, articulado na modernidade por
Schleiermacher (1768 1864), bem como sua especificidade vinculada s cincias do
esprito considerando a ilimitada liberdade da razo histrica , imprimindo nfase na
ontologia do fenmeno da compreenso a partir do ser histrico. Isso viabilizou, ainda,
um dilogo hermenutico frtil, elencando pontos de convergncias e divergncias entre
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a hermenutica filosfica e a filosofia da vida de Dilthey com seus pressupostos
idealistas, romnticos e estticos; o que contribuiu de forma decisiva para o
desdobramento do pensamento hermenutico contemporneo.
A reflexo hermenutico-filosfica sobre o significado dos preconceitos como
elemento de discusso ontolgica acerca da construo do saber e da constituio de
experincias precisa ser pensada em suas referncias filosficas conceituais; eis o que
conduz a um dilogo mais prximo com Heidegger, conforme se segue.
2 DA ESTRUTURA ANTECIPATRIA DE HEIDEGGER PARA O
COMPREENDER EM GADAMER
Verdade e mtodo apresenta como subttulo o que de fato constitui seu grande
propsito, ou seja, a formulao dos fundamentos de uma hermenutica filosfica.
Mesmo, desde cedo, recebendo uma forte influncia do filsofo alemo Martin
Heidegger, tanto da fase inicial quanto da tardia de seu pensamento, a expresso
utilizada por Gadamer no fenomenologia hermenutica, mas sim hermenutica
filosfica. Em Ser e tempo (Sein und Zeit), de 1927, a fenomenologia enquanto via de
acesso e verificao do ser dos entes, em suas modificaes e sentido, constitui-se como
tarefa nuclear de uma ontologia fundamental. Aqui o termo fenomenologia tomado
no duplo aspecto de sua constituio: o carter singular de fenmeno e o carter
universal de logos.
Trata-se, portanto, de demonstrar um ente tal como ele se mostra em si mesmo,
mas considerando aquilo que, por vezes, se mantm velado diante do que imediatamente
se manifesta, o ser dos entes. Por isso, o mtodo fenomenolgico assume, na orientao
heideggeriana, um duplo carter: o velamento, o oculto, e o desvelamento, a presena.
Do ponto de vista metdico, todavia, a descrio fenomenolgica interpretao.
Enquanto interpretao, a hermenutica constitui-se como condio de possibilidade de
uma investigao ontolgica, j que fenomenologia do Dasein hermenutica na
significao primitiva da palavra. Assim, a filosofia, na condio de uma ontologia
fenomenolgica, torna-se tambm uma ontologia hermenutica, ou seja, uma
interpretao sobre o sentido do ser. Em sua formulao de uma fenomenologia
hermenutica, Heidegger pe a hermenutica a servio da compreenso do ser, tomando
como ponto de partida o aspecto prtico que descreve o sentido e as condies do ser
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humano como ser-no-mundo. No se trata mais e apenas de um compreender,
interpretar, descrever objetos e textos, ou mesmo as coisas do mundo, mas de uma
compreenso em sua totalidade, de uma hermenutica da facticidade.
A proposta de uma hermenutica filosfica anunciada por Gadamer tem sua
especificidade no modo pelo qual desenvolvido seu pensamento filosfico. A
originalidade e complexidade dessa obra parecem estar ligadas sua possibilidade de
conectar investigaes, anlises crticas, questionamentos e abordagens, alm de uma
reviso histrico hermenutica prpria, que a poca lhe permitia, reconsiderando-as sob
uma perspectiva mais ampla e, s vezes, integrando-as a seu projeto filosfico. No
entanto, se seu desenvolvimento tem como ponto de partida a problemtica da auto
evidncia das cincias humanas, a questo central que se articula no conjunto da obra
precisamente o conceito de experincia, cuja amplitude de desdobramento remete-nos
temtica da finitude, da verdade e da historicidade. Embora seu impulso ontolgico
fundamental tenha sido dado por Heidegger, tendo em vista o significado e o horizonte
da denominada hermenutica da facticidade o ser humano na condio de seu modo
ftico de ser , o que prope Gadamer uma ontologizao da hermenutica em
sentido novo7.
Gadamer compreende que a mudana nova e radical que Heidegger confere
questo da compreenso histrica no contexto das cincias do esprito e da natureza a
abordagem da compreenso como forma originria de realizao da pr-sena, que
serno-mundo. [...] e a compreenso o modo de ser da pr-sena, na medida em que
poder ser e possibilidade(1999, pp. 392 & 264). Essa disposio do Dasein considera
a interpretao como elaborao de possibilidades projetadas, o que faz da compreenso
7 Cf. E. STEIN, Aproximaes sobre hermenutica, p. 70. Sobre o impulso fundamental que a filosofia
de Heidegger exerce na obra de Gadamer e o consequente carter de valorizao ontolgica que o
problema da compreenso assume na proposta hermenutica do hermeneuta, ressalte-se um dos
momentos do dilogo estabelecido entre Gadamer e Habermas que se estende dos anos 60 aos 80.
Trata-se do pronunciamento habermasiano intitulado Hans-Georg Gadamer: Urbanizao da provncia heideggeriana, proferido por ocasio da entrega do Prmio Hegel, de 1979 na cidade de Stuttgart. Enquanto discpulo de Heidegger, cujo pensamento radical instala um abismo ao redor de si,
a hermenutica filosfica de Gadamer teria naquele momento o mrito de lanar uma ponte que no
apenas neutralizasse o distanciamento entre as cincias humanas e a filosofia, bem como pudesse
transpor o abismo ocasionado pela filosofia heideggriana. Habermas explicita melhor essa ideia assim
afirmando: [...] a imagem de ponte sugere falsas conotaes [...] Eu preferia dizer que Gadamer urbaniza a provncia heideggeriana. claro que deveramos levar em conta que a palavra provncia`
(Provinz), sobretudo em alemo, ns associamos no somente ao limitativo, mas tambm o teimoso, o
cabeudo (Dickschdelig-Eingenssinnig) e o primitivo ou original (Ursprnglich) (J. HABERMAS, Hans Georg Gadamer: Urbanizao da Provncia heideggeriana, in: Dialtica e Hermenutica, p. 74)
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um constante re-projetar que realiza o movimento do sentido do compreender e do
interpretar (1999, pp. 402 & 271).Compreenso que apresenta uma estrutura circular,
pois s dentro de uma totalidade j dada de sentido que uma coisa se manifesta como
tal, ou seja, como a coisa mesma8. Assim, toda interpretao, se movimenta no campo
da concepo prvia para qual a interpretao de algo como algo se funda,
essencialmente numa posio prvia, viso prvia e concepo prvia(Heidegger,2000,
p.207). Disso resulta a estrutura do horizonte da compreenso e interpretao, a saber, a
de que toda interpretao, que quer produzir compreenso, deve j ter compreendido o
que vai interpretar. Por isso, toda compreenso de uma coisa, de um acontecimento ou
de um estado de coisas em seu sentido exige, como condio de sua possibilidade, o
todo de um contexto de sentido.
Desta forma, a noo heideggeriana de estrutura antecipatria originou a noo
de preconceito em Gadamer. O crculo de que fala Heidegger o crculo da
precompreenso e de sua explicao no seu processo hermenutico. Seu sentido
ontolgico o ponto alto de sua reflexo hermenutica, posto que a que Heidegger
descreve a tarefa da concretizao da conscincia histrica, ou seja, a abertura ao
reconhecimento da alteridade e da tradio no horizonte da compreenso e como
constituinte radical da experincia. , portanto, do Crculo Hermenutico de Heidegger
- o crculo da interpretao e da compreenso-, que Gadamer partiu para a teorizao do
seu crculo hermenutico o crculo do todo e das partes ampliando-o com sua noo
de concepo prvia da perfeio, que significa a compreenso numa unidade completa
de sentido. Com isso, a concepo prvia da perfeio gadameriana contempla
Heidegger em sua noo de estrutura antecipatria, em sua fenomenologia
hermenutica e na sua anlise da historicidade da pr-sena.
O compreender para Heidegger significa primeiramente sentir-se entendido na
coisa, e s secundariamente, compreender a opinio do outro como tal. Eis a razo de a
8 Cf. (GADAMER, 2002, pp. 83-84): o conceito de coisa (Sache) no traduz apenas o conceito latino
de res; a palavra alem Sache (coisa) e seu significado assumem sobretudo o que expressa a palavra
latina causa. No uso da lngua alem, a palavra sache, significa em primeiro lugar causa, isto , a
coisa(Sache) litigada, que est em questo. Originalmente coisa que se coloca no centro entre as
partes litigantes, porque ainda no se tendo sentenciado sobre ela h que se tomar uma deciso. A coisa
precisa ser protegida contra a apoderao particular de uma ou de outra parte. Nesse contexto,
objetividade significa o oposto, a parcialidade, isto , o contrrio do abuso do direito para fins
particulares[...] aqui, portanto, a natureza da coisa(Sache) algo que se faz valer, algo que temos que
respeitar.
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pr-compreenso ser a primeira de todas as condies hermenuticas. por isso que a
hermenutica deve partir do fato de que quem quer compreender, como diz Gadamer
(2002, p.79), [...] est ligado coisa que vem fala na tradio, mantendo ou
adquirindo um vnculo com a tradio a partir de onde fala o texto transmitido. J que
a conscincia hermenutica sabe que o vnculo coisa no pode acontecer de um modo
evidente e inquestionvel, sua tarefa no desenvolver um procedimento da
compreenso, mas iluminar as condies para que acontea a compreenso. Isto supe a
interpretao e o distanciamento na compreenso prvia, representada pelo preconceito,
como compreenso fundamental, uma pertena assumida.
Para isso, necessrio, que o sujeito tome conscincia dessa ambivalncia que o
preconceito lhe confere, a mistura entre familiaridade e estranheza, e no se dirija
coisa sem examinar a origem e a validade das suas prprias antecipaes. Pois uma vez
que o sujeito se apercebe de suas prprias antecipaes, permite que o texto se apresente
em sua alteridade, sendo possvel confrontar a verdade do texto com suas opinies
prvias. A falta de abertura alteridade que torna um preconceito falso, alteridade que
acontece na mtua abertura, na experincia do tu, na linguagem (Gadamer 1999, pp.532
& 367):
[...] ela tem um autntico correlato na experincia do tu. No comportamento dos homens
entre si, o que importa , como j vimos, experimentar o tu realmente como tu, isto no
passar por alto sua pretenso e deixar-se falar algo por ele. A isso pertence a abertura. Mas,
por fim, esta abertura no se d s por aquele por quem queremos nos deixar falar; antes,
aquele que em geral se deixa dizer algo est aberto de maneira fundamental. Se no existe
esta mtua abertura, tampouco existe verdadeiro vnculo humano. Pertencer-se uns aos
outros quer dizer sempre e ao mesmo tempo poder-ouvir-se-uns-aos-outros[...] a abertura
para o outro implica, pois que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim,
ainda que no haja nenhum outro que o v fazer valer contra mim. Eis aqui o correlato da
experincia hermenutica. Eu tenho de deixar valer a tradio em suas prprias pretenses,
e no num sentido de mero reconhecimento da alteridade do passado, mas na forma em que
ela tenha algo a me dizer.
Essa alteridade dialgica permite esclarecer, no horizonte compreensivo, os
preconceitos dos mal-entendidos, a saber, aqueles que se fecham interpretao,
distncia temporal ou mobilidade histrica da coisa, tornando-se rgidos e perdendo a
sua funcionalidade, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradio. So os
preconceitos no percebidos que originam a alienao, bloqueando-nos em nossa
capacidade de ouvir a tradio: estes so de fato os preconceitos falsos ou ilegtimos
que, por no se colocarem em questo, induzem ao erro de compreenso. Mas, como
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sabermos quais so, como distinguirmos os preconceitos produtivos ou verdadeiros dos
falsos ou ilegtimos? Para Gadamer, esta a tarefa crtica da Hermenutica e nos coloca
permanentemente ante a desafios.
Dado que a compreenso dos preconceitos como estrutura prvia de sentido nos
remete a uma estrutura dinmica da compreenso, sua reflexo reivindica a
considerao do horizonte histrico no qual o conjunto de sua experincia se
desenvolve. Se compreender pr-compreender, esse processo se verifica em uma
perspectiva histrica. A compreenso se d sob uma vigilncia histrica. Passemos a
esse ponto.
3 A HISTRIA DOS EFEITOS COMO EXPERINCIA HERMENUTICA
Uma reflexo, ao comprometer-se com o verdadeiro compreender, sustenta
Gadamer, no pode, nem em benefcio de uma ilusria confiana em um
metodologismo, ou mesmo de um objetivismo histrico, omitir sua prpria
historicidade. Conhecer historicamente o objeto , portanto, buscar apreender o que h
de diferente neste, em sua relao com a realidade da histria e como a realidade do
compreender histrico.
Por isso, uma hermenutica verdadeiramente adequada ao seu objeto
investigativo deve mostrar, na prpria compreenso, a realidade da histria. O que
torna, por exemplo, a arte um objeto histrico no simplesmente o produto artstico
propriamente dito, mas tambm suas diferenas em relao a ele mesmo, a verdadeira
realidade de sua compreenso histrica. Compreender , pois, submeter a investigao
dos objetos ao princpio da histria dos efeitos (Wirkungsgeschichte), ou seja os
efeitos destes na histria. Como lembra Grondin, o desenvolvimento dessa concepo
de conscincia da histria (Wirkungsgeschichte) indica o propsito gadameriano de
pensar o fenmeno da compreenso em consonncia com a questo da objetividade nas
cincias do esprito (Geisteswissenschaften).
A noo de histria dos efeitos remonta ao sculo XIX, referindo-se ao estudo de
interpretaes produzidas por uma poca. Designa uma disciplina cujo interesse era a
continuada influncia da recepo de obras ou acontecimentos. Sob esse propsito trata-
se de uma reflexo articulada por uma conscincia histrica, cuja tarefa compromete-se
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com o real significado de uma obra, outrora constituda na tradio. Seu interesse
concentra-se, portanto, na acolhida e recepo compreensiva das obras no horizonte de
seus efeitos e influncia.
Para Gadamer, porm, a histria dos efeitos (Wirkungsgeschichte) no
corresponde apenas histria da recepo, da qual se pode obter um conhecimento
objetivo, mas a uma compreenso de histria que nunca se torna plenamente evidente,
pois nela se encontra uma conscincia de seus prprios efeitos. A conscincia histrica
aquela conscincia produzida pelos efeitos da histria. Em sua formulao
terminolgica, a expresso Wirkung designa o prprio movimento de atuao da histria
at mesmo onde seus efeitos no so perceptveis. Wirkungsgeschichte significa no
apenas o processo de ao da histria, como tambm seu resultado, nossa conscincia
sobre ela: a conscincia histrica. um seguir atuando da histria para alm da
conscincia que podemos ter dela. Ora, dado que a distncia histrico-temporal
determina nossa prpria condio hermenutica, compreender um fenmeno histrico
significa, necessariamente, inserirmo-nos no conjunto de seus efeitos.
Por isso, pelo fenmeno da distncia temporal e do esclarecimento do seu
conceito de histria dos efeitos que Gadamer considera possvel distinguir os
preconceitos que cegam daqueles que esclarecem, pois a diferena de tempo entre
intrprete e autor insupervel e cada poca entende um texto de uma maneira nica,
peculiar, isto , a partir dos seus prprios interesses e de uma correspondncia pessoal.
Eis porque o verdadeiro sentido de um texto no depende da mensagem que o
autor quis passar ao pblico de sua poca, mas da interpretao que feita quando do
contato do intrprete com o mesmo. E quando o intrprete entende um texto, para alm
do que o autor quis expressar, consequentemente, superando-o, a compreenso no um
comportamento reprodutivo, mas sim produtivo. Isto contraria Schleiermacher na sua
defesa de interpretao originria de que um intrprete pode entender o autor de um
texto melhor que ele mesmo. Em oposio, Gadamer sustenta que, pela compreenso
produtiva, no se trata de compreender melhor o autor, mas trata-se, de compreender
diferente. (Gadamer, p. 444 & 302). Essa concepo hermenutica se refere verdade
da coisa, que leva a srio um texto em sua pretenso de verdade e que foi recuperada
por Heidegger.
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Segue-se que o que era considerado um abismo, um empecilho para a
compreenso, pelo historicismo, o elemento fundante de uma compreenso produtiva.
Gadamer pe a distncia como nico meio de expresso completa do verdadeiro sentido
da coisa, sentido este que no se esgota. A compreenso assume aqui seu carter
infinito, pois ela um processo contnuo.
A distncia de tempo favorece uma filtragem. Continuamente vo se eliminando
os erros as distores e vo surgindo novas fontes de compreenso. A filtragem
proporcionada pela distncia encarrega-se, do lado negativo, de fazer os preconceitos
falsos desaparecerem; do lado positivo, de realar, de trazer tona os preconceitos que
levam compreenso correta assim que a distncia do tempo possibilita distinguir
os preconceitos.
Duas questes bsicas que perpassam as indagaes de Gadamer e que so
importantes para a sua defesa positiva de preconceito, necessitam ser respondidas:
Como se inicia um esforo hermenutico e qual a relao entre preconceito e tradio?
Sobre a primeira questo, sua resposta, como j vimos, que a primeira
condio da hermenutica a precompreenso, tendo a distncia temporal como
elemento essencial para uma compreenso positiva, uma vez que ela proporciona uma
filtragem que vai eliminando os preconceitos, as distores.
Destaque-se que na noo dos preconceitos que causam mal-entendidos, subjaz
que so parciais e particulares porque contrariam uma conscincia histrica, que
Gadamer tambm chama de senso histrico. Pois, manter-se numa viso particular
(preconceito) sem ampli-la para um contexto no qual se est inserido, confinar-se a
uma tradio fechada sobre si mesmo. Como tradio, em sua etimologia, do verbo
latino tradere, significa, levar adiante, trans-portar, trans-mitir, deixar em herana, o
fechamento contraria o seu significado.
At aqui, a distncia temporal nos ajudou a um entendimento de que o tempo se
encarrega de ir eliminando os preconceitos que causam os mal-entendidos. Estes, no
entanto, so desnecessrios quando direcionam a compreenso a particularidades,
impedindo uma conscincia histrica. Essa conscincia da influncia dos efeitos no ato
da interpretao faz parte da realizao da compreenso ela no pode se esgotar, visto
que, segundo Gadamer (1999, pp. 451 & 306) o ser histrico nunca se esgota no
saber-se.
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Toda essa abordagem anteriormente desenvolvida permite ainda pontuar de
modo objetivo a explicitao da noo de experincia, no rigor conceitual de sua
ressignificao hermenutica filosfica e como contraponto a sua significao
cientfico-moderna. A experincia em sua significao hermenutica no corresponde
quela desenvolvida por uma conscincia que prepara, controla e testa, uma vez que a
conscincia, no confronto com suas prprias experincias de finitude. Da o que justifica
sua reflexo privilegiando seu carter histrico e dialtico. Desse modo, a compreenso,
o fenmeno do conhecimento propriamente dito, no se constitui um fluxo de
percepes, mas um processo cuja formao contempla rupturas e refutaes, dvidas e
um fluxo de negatividade. Experincia no enquanto simples vivncia interna de algo
(Erlebnis), mas enquanto Erfahrung, cuja referncia conceitual a hermenutica
gadameriana busca na filosofia de Hegel.
Nesse sentido, ressalta o hermeneuta, a verdadeira experincia experincia da
negao, e precisa ser pensada na perspectiva constante de sua radical abertura a novas
experincias. Desmonta-se, assim, a concepo puramente instrumental e metodolgica
da experincia baseada na autonomia transcendental do sujeito que, enquanto
autoconscincia, planifica, controla e administra suas experincias, objetivando-as.
Inevitavelmente o homem , inevitavelmente, cujo exerccio e desenvolvimento
integram sua natureza histrica. Tal abertura, todavia, implica a possibilidade de um
desapontamento quanto s expectativas, contrariando-as. Tambm por isso, a
experincia , essencialmente, experincia da finitude humana (Erfahrung ist also
Erfahrung der menschlichen Endlichkeit)e o reconhecimento de seus limites.
Ora, isso significa que a condio de ser experiente torna-nos verdadeiramente
conscientes de nossa prpria finitude, dos limites de toda antecipao, bem como do
carter de insegurana de todos os nossos planos; nossa finitude pressupe
constantemente abertura de novas experincias elaborao de nossos planejamentos
racionais, a outros horizontes e, consequentemente, s expectativas futuras. Da por que
o reconhecimento de nossa finitude faz ainda da verdadeira experincia a experincia de
nossa prpria historicidade. Enquanto ser de experincia que atua e age na histria, o
homem adquire, atravs desta, uma intuio de futuro, por meio da qual se mantm
sempre renovada a abertura a novas expectativas.
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Em seu desdobramento do carter histrico-dialtico, o significado da
experincia hermenutica seria precisamente aquilo que deparamos como tradio e
que, portanto, tem de ser experimentada. Tradio no como um acontecimento que,
vindo de longe, reconhecido pela experincia e controlado por ela, mas conforme
ressaltado anteriormente, correspondendo ideia de entrega, transmisso (Tradition;
berlieferung). Por isso o termo tradio significa, antes de tudo, linguagem.
Situando-nos nela, sua compreenso d-se como uma experincia essencialmente
lingustico-dialgica sob a especificidade uma relao eu-tu. Ora, esta autntica abertura
est em conexo com a verdadeira experincia9 dialtica, em cuja estrutura eu-tu o
eu e o outro, exercitando suas possibilidades de experimentar, nivelam-se e so afetados
no encontro.
A considerao da experincia hermenutica, a partir dessa relao eu-tu, tem
como especificidade, aqui nesse momento, o seu carter histrico e mais precisamente
aquilo que se denomina de conscincia histrica (historische Bewutsein). esta que,
ao nos remeter a ideia de alteridade, o faz sob a forma da relao eu-tu. Se a alteridade
o passado, essa conscincia busca compreend-lo no seu contedo de sentido, no seu
carter histrico nico. Tal procedimento, no entanto, no se apoia na objetividade, nem
tampouco, com vistas a uma pretenso especulativa; ultrapassa o prprio
condicionamento histrico e o domnio dos preconceitos (Vorurteil) ao qual a
conscincia est necessariamente submetida.
Na experincia hermenutica o que se pe como mtua abertura no nos
proporciona apenas um simples reconhecimento da alteridade do passado, mas
revelao de que a tradio tem algo a me dizer. Por isso, a experincia hermenutica,
enquanto experincia da conscincia histrico-efetiva (Wirkungsgeschichte), ao nos
confrontar com um horizonte de abertura, permite que a tradio converta-se em
experincia e mantenha-se em atitude de aberta. A tarefa de pensar a identidade da
experincia deixa-se aqui conduzir por uma hermenutica da memria, como condio
de nossa prpria finitude; ser finito ter memria, ser afetado pelo outro em sua
identidade cultural.
9 Como verdadeira experincia, a hermenutica entende aquela que afeta a quem experimenta. O outro
sempre ser o tu nunca cercado pelo eu, mas sempre o afetando, e vice-versa. Aquele que afetado e
experimenta nunca sai ileso dessa experincia.
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S assim, segundo Gadamer, possvel redefinir as condies da experincia
humana do sentido. Da tambm porque sua ressignificao comporta necessariamente a
proposta de reabilitao da tradio e da unidade prvia de conceitos que sempre
conferem sentido e importncia no processo de construo do saber e do interpretar.
CONCLUSO
O presente artigo objetivou apresentar o sentido de preconceito na concepo
gadameriana, enquanto situao hermenutica. Tendo em vista que uma situao
hermenutica determinada pelos preconceitos e diante da conotao negativa que o
preconceito recebeu com o iluminismo (Aufklrung), necessrio que se reabilite o
valor da tradio e da importncia que exerce a distncia do tempo para uma
possibilidade positiva do mesmo na compreenso. Reabilitar a fora da tradio implica
consider-la no apenas como um legado do passado que teve sua importncia
minimizada em um tempo distante, mas atentar s ressonncias de significados e
sentidos dos quais somos herdeiros e que no cessam de nos dizer algo. Ouvir a tradio
considerar a alteridade de um passado enquanto transmisso no pode ser descartado
enquanto um elemento constitutivo da nossa tarefa de compreender o mundo.
O problema que, segundo Gadamer, o historicismo do sculo XIX,
representado por Wilhelm Dilthey, embora comprometido em buscar uma legitimidade
epistemolgica s cincias do esprito, pela histria, lamentavelmente apenas estendeu a
concepo iluminista ao fundamentar uma compreenso reprodutiva da Histria
desprovida de uma conscincia histrica e de uma concepo mais alargada de mtodo
daquela preconizada pelo cartesianismo moderno. Diferente do historicismo, que
pensava a compreenso como um reportar-se ao tempo da coisa a ser compreendida,
para compreend-la exclusivamente com o horizonte da respectiva poca, uma
conscincia Hermenutica necessita considerar a distncia do tempo como elemento
essencial para a compreenso produtiva, atravs dos preconceitos positivos. Da a noo
hermenutica de que o fenmeno da compreenso reivindica um dilogo permanente e
frtil entre o passado e o presente.
A distncia temporal se encarrega de filtrar os preconceitos fazendo com que os
preconceitos dos mal-entendidos desapaream e com que os preconceitos verdadeiros se
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destaquem. Isto possvel atravs de uma conscincia histrica efetiva. Tal conscincia
histrico-efetiva subentende que numa compreenso esto subjacentes os efeitos que a
histria causa em ns, o que nos conduz a uma situao hermenutica plausvel,
concebida pelo conceito de horizonte. Por isso que o fenmeno da compreenso
pressupe um processo de fuso de horizontes.
Se por ltimo nos perguntarmos pelo significado e importncia da relao entre a
concepo dos preconceitos e a noo de experincias enquanto reflexo crtica dirigida
noo do saber moderno, segundo Gadamer, podemos afirmar de modo objetivo que a
reconsiderao hermenutica da experincia legitimada pela proposta de reabilitao
dos preconceitos. Ora, ao reabilitar os preconceitos, a hermenutica filosfica no s
dirige um apelo escuta da tradio enquanto alteridade de sentido imprescindvel para
o compreender e interpretar como alarga-se ainda o horizonte histrico-dialgico a
partir do qual a experincia eu-tu, enquanto experincia de abertura e de finitude, ganha
densidade de sentido e no pode mais ser regulada por uma racionalidade limitada pelos
referenciais de uma subjetividade cientfica moderna, e por uma concepo de verdade
indiferente a pluralidade de sentidos que agregam o mundo da vida.
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