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Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 1
Da querência ao mouse:
uma avaliação das mudanças estruturais na
economia gaúcha dos anos 80 aos anos 2000
Octavio A. C. Conceição
―A teoria de Schumpeter, apresentada no seu Business Cycles, faz muitas referências ao fato de que a história do crescimento econômico tende a se dividir em eras e que, dentro de cada uma
em particular, há um conjunto relativamente pequeno de tecnologias e setores que dirigem o crescimento econômico. [...] Recentemente, Carlota Perez e Christopher Freeman propuseram que tecnologias e setores-chave de diferentes eras, geralmente, requerem diferentes conjuntos de instituições de apoio. O argumento deles é que as nações que tendem a ser líderes em diferentes eras são as que tinham, ou trataram de construir, o conjunto apropriado de instituições.‖
Nelson (2006, tradução nossa)1.
Expectativas, governança, credibilidade, padrões de qualidade,
vantagens competitivas, capacitação e aprendizagem, institucionalidade,
estratégias de seleção e adaptação, paradigmas tecnológicos,
financeirização globalizada e outras tantas palavras são conceitos, hoje,
relativamente disseminados no debate econômico. Tais noções, no
Economista, Técnico da FEE, Professor do PPGE-UFRGS. O autor agradece a Marinês Grando, Luiz Faria e Sonia Teruchkin — que, com ele, dividiram a coordenação deste livro — o convívio, as leituras e as sugestões à primeira versão deste texto. Estende sua gratidão às preciosas contribuições do Professor Achyles
Barcelos da Costa e do Professor Cláudio Accurso, que ajudaram a explicitar pontos imprecisos na versão inicial deste texto. Como de praxe, isenta a todos de equívocos porventura remanescentes na atual versão. 1 No original: ―[T]here is a lot to Schumpeter’s theory, presented in his Business Cycles,
that the history of economic growth tends to divide up into eras, and that within any particular era there is a relatively small set of technologies and industries that are driving economic growth. […] Recently Carlotta Perez and Christopher Freeman have proposed
that the key technologies and industries of different eras generally require different sets of supporting institutions. Their argument is that the nations that tend to be leaders in the different eras are those that had, or managed to build, the appropriate set of institutions.” Nelson (2006).
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entanto, raramente apareciam no vocabulário econômico corrente, ou
eram tratadas como questões de menor importância no início dos anos 80.
Naquela época, discutiam-se a crise, os planos de desenvolvimento ou sua
ausência, a dívida externa, a concentração da renda, a superação da
industrialização restringida, a inflação galopante, o déficit público, a
correção monetária e questões relacionadas ao curto prazo. Tais conceitos
municiavam o debate econômico da ainda inominada ―década perdida‖. O
que se quer enfatizar aqui é que as expressões mencionadas no início do
parágrafo ou eram incompreendidas, ou careciam de fundamentos
analíticos para sua compreensão. Naquela época, havia carência de um
instrumental teórico capaz de dar conta da magnitude das transformações
em curso. De lá para cá, mudou a linguagem, mudou a forma de
compreensão dos diferentes conceitos, e estabeleceu-se uma nova agenda
de pesquisa. A questão que se poderia colocar é se mudaram apenas os
termos, ou se esses novos conceitos se originaram de uma ―nova‖ teoria
econômica?
Este texto procura demonstrar que a mudança na percepção
conceitual é decorrente de novos enfoques econômicos, que, hoje, dão
conta, com maior profundidade e densidade teórica, das enormes
transformações gestadas no início dos anos 80. Estabeleceu-se, na
agenda de pesquisa econômica e social, uma nova dimensão analítica,
capaz de nos capacitar a entender a importância das referidas
transformações ou mutações estruturais. Este artigo busca discutir um
dos enfoques que tratam dessa perspectiva analítica, que pode,
genericamente, ser designado como evolucionário e institucionalista.
Poucos períodos da história recente do Rio Grande do Sul foram
palco de tão profundas e complexas transformações como as que
transcorreram ao longo das últimas três décadas. Atravessou-se, desde o
final dos anos 70, um período de uma profunda crise econômica,
associado a um processo inflacionário sem precedente na história do País,
que exigiu uma drástica correção de rumo. Ali, já se podia observar que
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tanto a economia nacional quanto a economia gaúcha exigiam reformas
estruturais profundas para sobreviverem. Tal correção, apesar de lenta e,
às vezes, aparentemente, sem norte, veio ocorrendo desde então,
tornando-se perceptível apenas no início dos anos 90.
Os anos 80 explicitaram a impossibilidade de a economia funcionar,
ou continuar funcionando, da forma como estava estruturada. Para poder
sustentar alguma trajetória de crescimento de mais longo prazo, faziam-
se necessárias reformas (estruturais) que rompessem, simultaneamente,
com a ―lógica‖ da memória inflacionária, com um padrão de ação
governamental que não produzia mais resultados, senão déficits
recorrentes, com um regime de competitividade (que, mais tarde, o
cepalino Fernando Fajnzylber denominou ―competitividade espúria‖)
assentado na desvalorização cambial, com um padrão produtivo herdado
do modelo tecnologicamente passivo do processo de substituição de
importações (PSI) e com uma organização do trabalho incapaz de
propiciar ganhos de produtividade e qualificação da mão de obra. Some-se
a isso o fato de que esse quadro de mudanças ocorreu em meio ao triunfo
do mal denominado ―neoliberalismo‖, que defendia maior flexibilização do
mercado de trabalho, políticas restritivas à demanda agregada e um
padrão de ação estatal avesso a qualquer identificação com o
keynesianismo2. Esse elenco de medidas, que John Williamson chamou de
―Consenso de Washington‖, articulou a grande orquestração
macroeconômica dos anos 80 e 90, que regeu a política econômica das
nações ocidentais. O alinhamento a essas reformas foi responsável, em
grande parte, pelas diferentes performances nacionais ao longo dos anos
90.3
2 O qualificativo aí referido justifica-se pelo fato de que as ditas políticas ―neoliberais‖ seguem os mesmos princípios da doutrina liberal, não se caracterizando como algo novo. Na verdade, a referida concepção tratou de resgatar e reeditar os fundamentos do
liberalismo econômico clássico, os quais, centrados no laissez faire e no Estado mínimo, visavam opor-se às políticas keynesianas implementadas no pós-guerra. 3 A adesão às diretrizes preconizadas pelo Consenso de Washington não foi unânime, o que replicou em diferentes performances econômicas, ao longo do tempo, entre países,
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A série de mudanças levadas a efeito no Brasil, nesse período, não
fugiu desse espectro. Tal processo desencadeou-se de maneira contínua,
irreversível e não sem sobressaltos. Manifestou-se, também, através da
geração de um enorme ônus para a população, para as empresas e para o
próprio Estado, cujo processo de ―ajuste‖, revelado através de sucessivas
mudanças estruturais, transformou irreversivelmente a face das
economias nacional e gaúcha.
A trajetória econômica do RS, desde o início dos anos 80 até os dias
de hoje, não pode ser entendida sem a devida compreensão e sem o
consequente aprofundamento teórico dessas mudanças em curso. É a
respeito delas que se busca tratar ao longo deste texto. Mas, para situá-
las teoricamente, faz-se necessária uma discussão sucinta das abordagens
teóricas que as incluem no centro de sua agenda pesquisa. E a abordagem
evolucionária contempla essa perspectiva analítica.
1 A EVOLUÇÃO ECONÔMICA E O PAPEL DA MUDANÇA
TECNOLÓGICA
A economia evolucionária trata de sistemas complexos que
interagem em um mundo de diversidade, onde as inovações exercem
papel central. Nesse sentido, o processo de crescimento e de
desenvolvimento econômico está inserido em um processo de mudança
estrutural, que permite que as mudanças tecnológicas e institucionais se
alimentem reciprocamente (embora com timings diferentes), operando,
assim, as mudanças sociais. Daí o conceito de paradigma tecnoeconômico.
O conceito de mudança e o processo de mudança estrutural são,
aqui neste texto, entendidos como, simultaneamente, de natureza tanto
tecnológica quanto institucional. Sua compreensão está igualmente
particularmente entre os da América Latina e os da Ásia. Estes últimos, por não aderirem totalmente àquelas normas de conduta — ao contrário de países como o Brasil —, apresentaram altas taxas de crescimento econômico, aumentando sua participação na estrutura produtiva mundial.
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associada à descrição, dentro das diferentes realidades regionais, dos
elementos que constituem o processo de crescimento econômico, que lhes
são específicos. Para tal descrição, porém, é necessário que se realize, no
plano analítico e teórico, a inclusão das instituições que operam dentro do
referido ambiente evolutivo.
Do ponto de vista adotado neste trabalho, compreender crescimento
e instituições ―fora‖ da noção evolutiva, além de empobrecer a análise,
esvazia-a de conteúdo histórico, como, aliás, o fazem as abordagens
convencionais ou standard (Nelson, 2002). Instituições, crescimento
econômico e evolução são noções indissociáveis. Por essa razão, julga-se
pertinente retomar a definição do que vem a ser, em termos atuais, o
conceito de evolução.
Muito se tem discutido sobre as noções evolucionárias. Autores
institucionalistas ligados à tradição de Veblen e do Antigo
Institucionalismo, como Geoffrey Hodgson, vêm dando um tratamento
mais sistemático ao conceito de ―evolução‖, procurando vinculá-lo ao meio
ambiente institucional. Evolução deve envolver os três princípios
darwinianos: variação, herança e seleção. Considerando-se os três
isoladamente, tem-se que, primeiro, deve haver alguma explicação sobre
como ocorre a variedade e como ela é realimentada em uma população.
Não há mecanismos análogos à biologia (como recombinação genética e
mutações) na evolução das instituições sociais, mas a existência e a
realimentação da variedade permanecem sendo uma questão vital na
pesquisa evolucionária (Metcalfe, 1998; Nelson, 1991; Saviotti, 1996,
apud Hodgson; Knudsen, 2006, p. 1).
Deve haver também, em segundo lugar, uma explicação sobre como
uma informação útil, relativa a soluções de problemas adaptativos
particulares, é conservada e passada adiante. Esse procedimento decorre
diretamente de hipóteses relativas à natureza do complexo sistema da
população, através do qual deve haver algum mecanismo pelo qual as
soluções adaptativas são copiadas e difundidas. Na biologia, tais
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mecanismos frequentemente envolvem os gens e o DNA. Na evolução
social, podem-se incluir a replicação de hábitos, costumes, regras e
rotinas, que podem conduzir a soluções para problemas de adaptação.
Deve haver algum mecanismo que assegure que tais soluções
(incorporadas nos hábitos ou nas rotinas) resistam e repliquem. De outra
forma, a continuidade de retenção de conhecimento útil não seria
possível. Saliente-se que esse seria o princípio através do qual os
paradigmas tecnoeconômicos se constituiriam, se difundiriam e se
superariam.
Em terceiro lugar, deve haver uma explicação sobre o fato de que as
entidades diferem em suas longevidade e fecundidade. Por meio da
seleção, um conjunto de entidades, uma população, gradualmente,
adaptar-se-á em resposta ao critério definido pelo fator meio ambiente.
Observe-se que os resultados do processo de seleção não são
necessariamente nem morais, nem justos. Além disso, não há qualquer
exigência de que os mesmos sejam ótimos ou melhores em relação a seus
precursores. Por conta disso, a noção de eficiência é relativa a
determinado ambiente, onde, antes de ótima, ela é tolerável.
Saliente-se que esses três princípios darwinianos contemplam uma
interessante analogia com os períodos vividos pela economia gaúcha
nestas três últimas décadas. Sem qualquer veleidade ou pretensão
determinista que alguém possa querer atribuir a este trabalho, pode-se
sugerir que a noção de variação parece adequar-se ao ambiente de
mudança estrutural explicitado na década perdida; da mesma forma, a
noção de seleção parece estar mais presente nos anos 90, quando dos
desafios da reestruturação produtiva; e a noção de herança integra o
legado cultural da economia gaúcha, que teve que se reformular para
subsistir.
Outra noção importante é a da auto-organização. A existência de
resultados auto-organizados, complexos, demonstra que nem sempre se
tem que procurar um designer para explicar sua emergência. Isto é
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relevante porque todas as ciências sociais contêm a visão de que os
fenômenos sociais são resultado de desígnios conscientes. Muitas
instituições humanas eficazes e complexas, tal como a linguagem e a lei
comum, não são resultados de um plano global. Essas referências
evolucionárias são importantes para justificar a relevância do conceito de
mudança (ou variação, em termos darwinianos).
A compreensão da natureza da mudança econômica tem sido um
dos mais férteis campos teóricos da Economia nas últimas três décadas.
Várias correntes articularam-se e desenvolveram-se, buscando responder
o que a determina. Contrasta com essa busca a ausência de tratamento
teórico ao referido processo pelo mainstream ortodoxo, que,
deliberadamente, o negligenciou. Um dos pilares fundamentais no avanço
da compreensão do processo de mudança econômica foi o trabalho
seminal de Richard Nelson e Sidney Winter, publicado em 1982, intitulado
An Evolutionary Theory of Economic Change. Nesse estudo,
desenvolveu-se a base do que seria uma interpretação alternativa ao
processo de crescimento econômico, que exigiria a construção de um novo
marco de análise. Tal tarefa foi levada a efeito pela contribuição então
denominada neoschumpeteriana, que, com vários trabalhos em sequência,
perseguindo uma agenda de pesquisa comum, avançou substancialmente
na compreensão dos fenômenos de crescimento e desenvolvimento
tecnológico, mudança estrutural, paradigmas tecnológicos ou
tecnoeconômicos, trajetórias tecnológicas e sistemas nacionais de
inovação. Além de Nelson e Winter, somaram-se a essa escola Giovanni
Dosi, Christopher Freeman, Lundvall, Carlota Perez, Luc Soete, Brian
Arthur e muitos outros. Para eles, o que dava sustentação ao processo de
crescimento e de desenvolvimento econômico era a forma como se
organizavam e se disseminavam as novas tecnologias, o ambiente
favorável à inovatividade, o padrão de competitividade e o ambiente
institucional mais ou menos propício às mesmas. O grau de êxito ou
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fracasso dos países em direção a esse desiderato era resultante da forma
como, nacional ou regionalmente, operou esse padrão.
O ambiente econômico, ao ser instigado pela necessidade de
mudanças, adapta-se ao novo paradigma, construindo uma rede
institucional capaz de sustentar o espectro de transformações dele
decorrentes. Essas se disseminam no âmbito tanto da firma quanto do
processo de trabalho, na gestão dos novos métodos produtivos,
estabelecendo capacitações (Dosi, 1988a) e aprendizagem. Essas
absorvem os novos padrões de competitividade, decorrentes da mudança
estrutural originária do paradigma dominante e os disseminam. Por essa
razão, na ótica neoschumpeteriana, tecnologia é definida como um
processo de busca de novos produtos e processos, que se difundem por
todo o sistema. Aliás, é por essa razão que Nelson (2008) vem propondo
o conceito de ―tecnologia social‖, que articula as rotinas das firmas com as
instituições e com a tecnologia (Conceição, 2009).
Essa interação produz, ao longo do tempo, mudança nos padrões de
comportamento, nos hábitos, nas normas e nas regras do jogo,
estabelecendo um novo marco institucional. Hodgson (2007) designa essa
noção como de reconstitutive downward causation, que estabelece o nexo
entre os indivíduos, seus hábitos e suas crenças e as instituições, que
determinam e são influenciadas pelos mesmos.
O referido processo, ao contrário da visão dominante no
mainstream, tem pouco a ver com o desenho de uma trajetória de
crescimento convergente a um ponto de ―equilíbrio ótimo‖, compatível
com a noção de steady state, embora possa advir alguma estabilidade
provisória dessas transformações. Mudanças, instabilidade e incerteza
predominam ante o quadro hipotético de convergência à estabilidade e ao
equilíbrio de longo prazo. Douglass North, importante referência da Nova
Economia Institucional (NEI), tem afirmado, em seus trabalhos mais
recentes, que as diferentes performances econômicas dos países (e
consequentemente das regiões) são resultados das mudanças
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institucionais ali operadas. Tal proposição credencia a enfatizar-se a
importância teórica de identificar como as referidas mudanças
institucionais se processaram nos diferentes espaços regionais, entre os
quais se inclui, naturalmente, o caso da economia gaúcha.
1.1 O conceito de paradigma tecnoeconômico
A importância da mudança tecnológica dentro da abordagem
neoschumpeteriana produziu conceitos que procuravam entender todo o
entorno da atividade econômica. Daí o conceito de paradigma
tecnoeconômico ou de noções próximas, como o paradigma tecnológico de
Dosi (1983) ou a trajetória natural de Nelson e Winter (1982). O referido
conceito incorpora não só as mudanças tecnológicas e organizacionais
ligadas a determinado padrão técnico, como a forma de solucionar
problemas dentro de certo domínio do conhecimento. Indo mais além, o
conceito de paradigma tecnoeconômico, proposto por Christopher
Freeman e Carlota Perez (Freeman; Perez, 1988), atinge o elenco de
transformações que afetam a vida das pessoas, constituindo formas
alternativas de atividades econômicas, tecnológicas, sociais e
institucionais, ligadas a determinado padrão produtivo. Após um longo
período de prosperidade, os efeitos de tal ―onda‖ se desvanecem, dando
origem a novo surto de descobertas e inovações4. Saliente-se que, entre
um surto e outro, a economia é abalada por uma profunda crise, de
natureza estrutural, que se ―resolve‖ por meio de novas descobertas,
invenções e ramos de atividade. A alma desse processo era, e continua
sendo, a inovação tecnológica, que orienta a atividade humana.
4 Os limites à expansão devem-se à queda da taxa de lucro, em decorrência da saturação dos mercados e do aumento da oferta dos produtos associados às tecnologias implementadas.
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A história do capitalismo, segundo proposição de Perez (2002), foi
regida por cinco paradigmas tecnoeconômicos, ou cinco grandes ―eras‖. A
Revolução Industrial, a era da máquina a vapor e da estrada de ferro, a
era da engenharia pesada e do aço, a era da produção em massa e a era
da tecnologia da informação. Segundo a referida autora, em 1771, no
alvorecer da Primeira Revolução Industrial, quando irrompeu a
mecanização na indústria têxtil, iniciou-se o primeiro paradigma;
posteriormente, em 1829, surgiu a era do motor a vapor e da estrada de
ferro; em 1875, impôs-se a engenharia pesada e a indústria do aço; em
1908, o modelo-T de Henry Ford inaugurou a era da produção em massa;
e, em 1971, o microprocessador da Intel inaugurou a era da tecnologia da
informação. Atualmente, está-se na transição desse paradigma para a
―era da nanotecnologia‖, ou da biotecnologia, para a qual a crise de 2008
parece ter sido o divisor de águas entre duas eras (Freeman; Louçã,
2001; Perez, 2002, 2004).
Saliente-se, a propósito, que a atual crise econômica é fruto da
transição paradigmática, que sempre eclode em momentos de mudanças
estruturais, face às baixas possibilidades de valorização do capital nas
óticas tecnológica, produtiva e financeira. Tal obstáculo engendra um
processo de busca de novas oportunidades e de inovações, face ao
esgotamento do paradigma então dominante. A isso, Schumpeter (1942)
denominou ―destruição criadora‖. Mantidas as diferenças, poder-se-ia
estabelecer uma analogia da noção de paradigma tecnoeconômico com as
ondas longas, ou os ciclos longos, das economias capitalistas, que se
estendiam por 50 a 60 anos, intermediadas por grandes crises ou
depressões. A diferença é que, para os neoschumpeterianos, quem
estabelece a duração das referidas flutuações é a mudança tecnológica. O
invólucro que caracteriza determinada era — ou ciclo longo, ou paradigma
— é acentuado por características sociais e econômicas que lhe conferem
especificidades, inerentes às diferentes fases históricas da humanidade ou
do capitalismo (Quadro 1).
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Voltando para os objetivos do presente texto, é importante
mencionar-se que, ao longo dos últimos 30 anos, se atravessou uma fase
da economia mundial dominada pelo ―paradigma tecnológico da
informação‖. Esse definiu, para os países periféricos, as possibilidades de
abrir (ou fechar) as ―janelas de oportunidade‖, conforme a forma de
enfrentamento dos desafios da tecnologia e da competitividade. A escolha
de uma ou outra forma é que determinará as condições de avanços
tecnológico, social, econômico e institucional.
O fenômeno da globalização, que tomou forma a partir do início dos
anos 80, está, na ótica neoschumpeteriana, vinculado à ideologia do livre
mercado. Isto porque a necessidade de reconhecer todo o Planeta como
um espaço econômico é uma característica específica da atual revolução
tecnológica e do paradigma tecnoeconômico vigente. Tal ―modelo‖
contrasta com o paradigma anterior. No paradigma de ―produção em
massa‖ (ou paradigma fordista, em linguagem ―regulacionista‖), a
intervenção estatal assumia funções proeminentes dentro das economias
nacionais, definindo formas específicas nos diferentes estados nacionais.
Na globalização, cuja inserção se dá no paradigma da produção
flexível, ou da ―tecnologia da informação‖, poderia ser social e
politicamente esboçada uma outra forma de sustentar o desenvolvimento
global e o pleno emprego. Em outros termos, a globalização não precisa
necessariamente ser ―neoliberal‖. Ou seja, uma ―versão pró-
desenvolvimentista da globalização‖ ainda não foi e não tem sido
devidamente defendida. Poder-se-ia argumentar que, sem ela, como vem
acontecendo, tem sido muito difícil relançar o desenvolvimento no
Hemisfério Sul, como também superar a presente instabilidade, os
desequilíbrios e as tendências recessivas oriundas das economias do
Norte. Esse aspecto repercute diretamente sobre as trajetórias das
economias brasileira e gaúcha. E isso tem a ver com a natureza da crise
norte-americana de 2008, que afetou toda a economia mundial e pôs em
xeque a própria noção de globalização.
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Sob a ótica de Perez (2007), o período atual, após o colapso da
grande bolha da tecnologia, estaria no ponto médio da grande onda
corrente, que ocorre quando as tensões estruturais realçam as
instabilidades e as tendências recessivas, as quais, por sua vez, exigem
outra recomposição institucional. Assim, o momento presente é, pelas
razões expostas, o mais apropriado possível para se levarem adiante
corajosas propostas para um profundo redesenho da regulação global e
das instituições.
No que tange às previsões de duração da crise e de sua superação,
adverte-se que não há data final, uma vez que a disseminação de cada
revolução tecnológica persiste após a sua maturação (deployment), em
um processo de lento declínio e de migração para periferias ulteriores,
enquanto outras revoluções já estão tomando forma. Há, portanto, uma
longa sobreposição entre as ondas.
Como as cinco grandes ―eras‖ de desenvolvimento, sustentadas por
sucessivas ―revoluções tecnológicas‖, transformaram a economia
capitalista em escala mundial, cada um desses ―vendavais de destruição
criadora‖ articulou uma constelação de novos insumos, produtos e
indústrias, uma ou mais infraestruturas, envolvendo também novas
formas de transporte de bens, pessoas e informações, bem como fontes
alternativas de energia e novas formas de acesso às mesmas. Cada uma
delas explorou novas frentes, trazendo riqueza e possibilidades de
inovações nos campos tecnológico, produtivo e, mais tarde, financeiro,
caracterizando uma fase de gold rush. Entretanto é importante salientar-
se que essas fases não seguem a cronologia schumpeteriana usual dos
ciclos longos ou ―ondas longas‖. Isto porque não representam um
(re)começo de uma expansão, mas a erupção de uma revolução
tecnológica, quando a anterior atingiu a maturidade e quando a economia
demonstra dar sinais de um lento declínio e de estagnação. Assim, a
noção de paradigma tecnoeconômico:
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[...] captura a semente da mudança futura antes que a
mesma possa ser registrada nos agregados econômicos. O
autor propôs o termo Grande Onda de Desenvolvimento para referir-se ao processo de difusão e assimilação social de
cada revolução tecnológica como um todo, do big-bang à
maturidade (Perez, 2002, p. xxx, tradução nossa).5
Portanto, é sob essa forma que ocorre a mudança tecnológica, que
arrasta consigo — não de forma automática, mas ―induzida‖ pelo processo
de busca — as mudanças institucionais que proliferam em conjunto e de
forma articulada. São essas as circunstâncias que levam ao progresso
econômico.
1.2 Instituições e mudança institucional
Dentro desse contexto, pode-se definir instituição como conjunto de
normas, regras, hábitos e sua evolução (Hodgson, 2000; North, 1990;
Nelson, 1995). Daí, infere-se que a instituição passa a viabilizar, em
função das raízes históricas e estruturais que lhes são específicas,
distintas trajetórias de crescimento econômico. Por essa razão, os
conceitos de instituição, crescimento econômico e paradigma
tecnoeconômico são interligados.
Essas ponderações recolocam a ênfase em questões que,
formalmente, nunca deveriam ter sido omitidas, tais como a de que
crescimento econômico constitui-se em: (a) um processo de rupturas e
reconstruções; (b) as características da transição de um velho para um
novo processo de crescimento são elementos decisivos para a análise; (c)
as mudanças estruturais de natureza tanto tecnológica quanto
institucional são fundamentais; e (d) apesar de o mesmo sempre se
apresentar quantitativamente como um incremento na relação
5 No original: ―[…] captures the seed of future change before it can be registered in economic aggregates. The author has proposed the term Great Surge of Development to refer to the whole process of diffusion and social assimilation of each technological revolution, from big-bang to maturity‖ (Perez, 2002, p. xxx).
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capital/produto — ou aumento da acumulação de capital per capita
superior ao crescimento populacional, ou ainda crescimento da
produtividade do trabalho em relação ao aumento da população —, ele se
reveste de características bastante distintas de região para região, às
vezes sequer comparáveis. E é exatamente desses aspectos que se ocupa
a tradição institucionalista: a história importa, as formas de crescimento
capitalista são diferenciadas e múltiplas, o processo de crescimento é
contínuo e tem raízes históricas profundas (North, 2005, Hodgson, 2002).
Genericamente, podem-se agrupar as correntes institucionalistas em
três: o Antigo Institucionalismo Norte-Americano, de Veblen, Commons e
Mitchell; a Nova Economia Institucional, de Coase, Williamson e North; e o
Neoinstitucionalismo, de Hodgson, Samuels e Rutherford (Samuels, 1995;
Hodgson, 1993).
A semelhança entre essas três correntes dá-se pelas razões
expostas acima, quais sejam: entendem crescimento econômico como
―processo‖; incorporam seu ambiente histórico e suas especificidades
locais; rejeitam o pressuposto de que trajetórias de determinadas
economias possam ser historicamente copiadas; e enfatizam que o
desenho institucional para o crescimento é necessariamente marcado pela
―incerteza‖ e pela especificidade histórica. Em suma, o processo de
crescimento econômico funda-se no ambiente microeconômico da ação
individual dos agentes, das firmas e das organizações, os quais definem
as diferentes trajetórias.
As três abordagens citadas não são excludentes, embora o que uma
priorize a outra coloque em segundo plano. Elas concordam com a
importância da mudança institucional e tecnológica como fator
desencadeador do processo de crescimento. O que se procura extrair
dessa discussão é que os institucionalistas estão em linha de convergência
com o campo de pesquisa evolucionário, que avança, conforme referido
por Nelson (2002), na construção de uma ponte entre a incorporação do
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conceito de instituição e a compreensão do processo de crescimento
econômico.
1.3 A relação entre instituições, crescimento e (nem sempre)
eficiência
Para os seguidores do Antigo Institucionalismo de Veblen — como
Hodgson, por exemplo —, há forte discordância sobre a ideia de que os
rígidos pressupostos da racionalidade (substantiva) da teoria econômica
sejam capazes de proporcionar explicações factíveis e realísticas, no
sentido de que o comportamento humano seja considerado efetivamente
―eficaz‖, em contextos onde já exista uma considerável experiência
comum. Já para os teóricos afiliados à NEI, as instituições definem,
modelam e mantêm o referido ―comportamento racional‖ nos diferentes
contextos: os indivíduos não deduzem ou pensam por si mesmos sobre o
que é uma ação adequada, senão que atuam apenas fazendo o que é
convencional no respectivo contexto (Nelson; Sampat, 2001).
A diferença entre uma teoria que estabelece que as instituições
implicam uma planificação consciente e coordenada e uma teoria que as
concebe como resultado de um processo evolutivo não coordenado não se
traduz, necessariamente, em uma diferença sobre se as instituições
vigentes são ―eficientes‖ ou não. Dentro da tradição institucionalista
neoclássica, os trabalhos de Demsetz sobre direitos de propriedade
incluíam a pressuposição de que ―[...] a lei era eficiente e que as
mudanças legais refletiam mudanças em regras socialmente ótimas‖ (op.
cit., 2001, p. 24). Da mesma forma, parte dos estudos sobre organização
dos negócios supõe que as formas organizacionais são escolhidas
racionalmente, sendo, portanto, ótimas.
Atualmente, observa-se, nas escolas institucionalistas,
principalmente dentro da NEI, um afastamento dessas posições. Douglass
North, que, nos primeiros estudos, supunha que as instituições evoluíam
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 16
de forma a alcançar níveis mais elevados de eficiência (Nelson; Sampat,
2001, p. 25), tem defendido que sociedades que possuem instituições
relativamente eficientes são relativamente mais afortunadas. Nesse
sentido, a ideia de que não é necessário que as instituições sejam
eficientes desencadeia uma nova vertente teórica, segundo a qual são as
instituições vigentes que, em última instância, explicam as diferenças de
desempenho econômico entre os países, e que as mesmas assumem
distintos arranjos institucionais locais. Estudos mais recentes de North e
Nelson revelam essa convergência. Depreende-se daí que ―construir‖ um
ambiente institucional adequado e mutante não implica, necessariamente,
torná-lo mais eficiente: só a construção e a evolução do mesmo poderão,
no futuro, fornecer essas respostas, com base na experiência histórica
adquirida.
1.4 Três visões da relação entre instituições, crescimento e (isto
sim) mudança
Matthews (1986), embora reconheça certa convergência nas
modernas abordagens institucionalistas, argumenta que há várias
diferenças entre elas. A começar pelo próprio conceito de instituição, que,
segundo ele, gravita em torno de três eixos. O primeiro identifica
instituições econômicas alternativas como resultado de sistema de
―direitos de propriedade‖ (property rights) alternativos. Essa noção é
particularmente importante para as abordagens seguidoras de Coase
(1937). A segunda definição associa instituição a convenções ou normas
de comportamento econômico, servindo como suporte à execução e ao
cumprimento das leis. Nessa abordagem, não há uma vinculação tão
direta à economia dos custos de transação. Na França, desenvolveu-se
uma derivação dessa concepção, constituindo a denominada ―Economia
das Convenções‖, cujo expoente é Olivier Favereau (1995). E uma terceira
derivação centra-se nos tipos de contrato, que pode refletir-se em
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 17
diferentes formas de autoridade. Essas são as razões que levam a
definição de ―instituição‖ a assumir conotações múltiplas.
Sob essa perspectiva conceitual, o fenômeno do crescimento
econômico deve ser entendido como manifestação de mudanças
institucionais. Portanto, o vínculo entre crescimento e instituições deve ser
realizado pelo conceito de mudança, que pressupõe inovações (Matthews,
1986, p. 908). Assim, o processo de mudança econômica, institucional e
tecnológica é completamente diferenciado de um processo de melhoras
sucessivas e adaptativas, que levam a uma única situação de
convergência ao ótimo paretiano. Na realidade, há uma série de fatores
que obstaculizam tal perspectiva, como o papel do Estado, as interações
não voluntárias, a inércia e a complexidade. Matthews conclui seu artigo
enfatizando que as mudanças institucionais são mais lentas e mais difíceis
de ocorrer do que as mudanças tecnológicas, embora raras vezes ambas
não ocorram simultaneamente.
John Zysman (1994) enfatiza que as trajetórias de crescimento são
criadas historicamente, a partir do desenvolvimento de trajetórias
nacionais institucionalmente inventadas ou enraizadas (Historically Rooted
Trajectories of Growth). Ou seja, as instituições importam, porque
determinam diferentes trajetórias de crescimento econômico nos diversos
ambientes nacionais. Há várias formas de se organizar as economias de
mercado, os mercados são diferentes, e há vários tipos de capitalismo.
Essa abordagem procura associar mais diretamente o
institucionalismo à teoria econômica, estabelecendo nexos entre escolhas
individuais, tipos de contrato e estrutura dos problemas enfrentados pelas
suas respectivas empresas e organizações. Tal concepção é uma espécie
de ―institucionalismo histórico‖, sem deixar de referir que levanta
problemas e propõe soluções, considerando aspectos relacionados ao
microeconomic-based institutionalism. Nesse sentido, diferentes
conformações históricas e institucionais desenham, nos diversos contextos
regionais, os sistemas nacionais de inovação, que distinguem as
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 18
trajetórias tecnológicas. Por isso, institucionalismo e evolucionismo são
fenômenos impossíveis de serem compreendidos de maneira
desvinculada.
Nesse contexto, é importante mencionar-se que são as estratégias,
quer em nível empresarial, quer governamental, que, ao exercerem
influência decisiva sobre as inovações, formam um ambiente adequado
para os novos produtos e processos. Estabelece- -se daí um importante
ponto da passagem micro para a macro, pois não é o Governo quem
define estratégias para as firmas implementarem, mas o contrário, pois,
analiticamente, o salto manifesta-se do particular para o geral. Em outros
termos, a capacidade do Governo de produzir resultados em mercados
específicos não cria inevitavelmente vantagens de crescimento no mais
longo prazo, e, alternativamente, seu fracasso em gerar ou criar
vantagens não produz inevitavelmente desvantagens.
Tais conclusões requalificam o debate sobre formas alternativas de
crescimento, colocando o mercado e suas especificidades nacionais como
fator condicionante primordial para tal objetivo. Entretanto tal entidade
(ou, melhor dizendo, instituição) deve ser entendida não como um
princípio regulador e racionalizador de decisões ótimas, mas como produto
de interações, estratégias, decisões frente à incerteza, que repercutem,
favoravelmente ou não, através da atuação de toda uma rede
institucional, que lhe assegura sustentabilidade. Por essa razão, a noção
de mercado é indissociável da noção de instituição, pois a primeira, mais
do que produto da segunda, é sua própria manifestação.
Segundo Zysman, as trajetórias de crescimento — cujas instituições
são fontes geradoras — dão-se tanto pela existência de padrões de
inovação quanto pelo desenvolvimento tecnológico. Através de rotinas e
políticas específicas, estabelecem-se os termos do desenvolvimento
econômico. A opção que determina quem é perdedor ou ganhador se
torna parte do problema de alocação de custos nas mudanças industriais,
envolvendo, independentemente do modelo de desenvolvimento industrial
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 19
adotado, três aspectos sempre presentes: capacidade técnica da ação do
Estado na economia; estabelecimento de uma política de alocação de
custos da mudança industrial; e processo político para permitir tais
cumprimentos.
Essa é a ideia motora da abordagem de crescimento institucional,
pois não basta a geração de investimento para criar as bases para um
processo de crescimento. Faz-se necessária a construção de um ambiente
institucional adequado, capaz de transformá-lo em crescimento, o que,
obviamente, implica uma série de outros fatores:
A tecnologia, assim como os processos de mercado, não é desincorporada. Ela se desenvolve em comunidades; tem raízes locais. Os processos de aprendizagem que dirigem seu desenvolvimento são moldados pela comunidade e pela estrutura institucional, e, consequentemente, as trajetórias tecnológicas só podem ser definidas se tomarem como referência sociedades particulares (Zysman, 1994, p. 261, tradução nossa).6
Portanto, as instituições não são neutras e podem proporcionar
explicações sobre trajetórias específicas. Assim, uma dada estrutura
política e institucional induz à formação de uma lógica de mercado que
orienta e dirige a trajetória de crescimento.
Para Douglass North (1990), o fundamental no campo do
desenvolvimento econômico é buscar a formulação de uma ainda
inexistente ―teoria da dinâmica econômica‖. E essa reside,
fundamentalmente, na compreensão e na sistematização do processo de
mudança. Em sendo assim, as trajetórias das mudanças institucionais são
elementos essenciais na definição das diferentes formas de crescimento
econômico, o que revela notável semelhança com o pensamento
evolucionário.
6 No original: “Technology, like market processes, is not disembodied. It develops in
communities; it has local roots. The processes of learning that drive its development are shaped by the community and institutional structure, and consequently the technological trajectories can only be defined in reference to particular societies.‖ (Zysman, 1994, p. 261).
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 20
Para North, a mudança econômica de longo prazo é uma
―consequência cumulativa‖ de inúmeras decisões de curto prazo tomadas
por políticos e empresários, que, direta ou indiretamente (via efeitos
externos), determinam a performance econômica. Entretanto a
consistência entre os resultados e as intenções dos empresários refletirá o
grau através do qual os seus modelos são efetivamente ―verdadeiros‖.
Isto porque os modelos refletem ideias, ideologias e crenças, que são, na
melhor das hipóteses, apenas parcialmente refinadas e melhoradas por
feedback de informações sobre as consequências atuais das políticas
tornadas legitimamente legais. Em outros termos, as consequências de
políticas específicas não são apenas incertas, mas imprevisíveis.
Em seu livro de 2005, North reforça a argumentação da necessidade
de se compreender o processo de mudança econômica como principal
fonte de explicação dos fenômenos vinculados ao processo de
crescimento. Ao tentar desvendar a lógica de tão complexo processo, que
necessariamente deve contemplar analiticamente aspectos institucionais
relevantes e de difícil sistematização, North, mais uma vez, confronta tal
necessidade com a fragilidade do instrumental neoclássico, apesar de seus
notáveis avanços na área quantitativa. Para ele, o processo de mudança
econômica (e institucional) deve, necessariamente, contemplar os
seguintes aspectos: a incerteza em um mundo não ergódico; os sistemas
de crenças, cultura e ciência cognitiva; a consciência e a intencionalidade
humanas. Esses aspectos, em conjunto, definem o que ele designa de
arcabouço de interações humanas que permitem a construção da
estrutura institucional. North salienta ainda que a mudança institucional
segue cinco proposições centradas: na importância da interação entre
instituições, organizações e, portanto, na competitividade que se
estabelece; no conhecimento derivado dessa interação; na estrutura de
incentivos; nas formas de percepção dos agentes sobre as regras de como
o ―jogo é jogado‖; e nas economias de escopo, nas complementaridades e
nas externalidades da rede de uma dada matriz institucional. Assim: ―[...]
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 21
essa caracterização da mudança institucional é o bloco estrutural mais
importante em nossa construção da compreensão do processo de
mudança econômica‖ (op. cit., p. 64, tradução nossa)7. Essa afirmativa
revela importante insight a respeito da complexa relação entre instituição
e crescimento econômico, que tem, na mudança institucional, seu traço
mais revelador.
2 TRÊS DÉCADAS DE EVOLUÇÃO DAS ECONOMIAS GAÚCHA E
BRASILEIRA
A instrumentalização teórica de noções como as de mudança
tecnológica e institucional integra uma rica agenda de pesquisa, que,
entende-se, vem repercutindo, de maneira ainda tímida, sobre o ambiente
econômico nacional e regional. Poucos estudos ocupam-se dessa questão.
A forma como vêm operando, no espaço regional, as referidas
transformações econômicas (entendidas como mudanças tecnológicas e
institucionais) é fundamental para que se entenda o atual desenho da
economia gaúcha, sua relação com a dinâmica nacional, sua forma de
inserção no exterior e os desafios futuros daí decorrentes. Este artigo
supõe que a literatura institucionalista e evolucionária vem dando
importantes passos nesse sentido. A partir dessa visão, seria pouco
frutífero, senão impossível, tentar compreender-se o amplo elenco de
mudanças que ocorreram nas economias gaúcha e brasileira, no período
em questão, sem a incorporação do instrumental teórico evolucionário e
institucionalista, que acabou de ser discutido.
A economia gaúcha, outrora denominada ―celeiro do Brasil‖, tem
hoje outro caráter. Inclui um setor industrial fortemente integrado
nacionalmente, como o metal-mecânico; vários segmentos produtivos
7 No original: “[...] [t]his characterization of institutional change is a major building block in our construction of an understanding of the process of economic change.‖ (op. cit., p. 64).
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ligados à exportação; segmentos industriais ligados à tecnologia da
informação; outros ligados à automação; um agronegócio modernizado e
integrado internacionalmente, etc. Mas subsistem também segmentos
tradicionais à margem da modernidade, como a pecuária extensiva,
alguns segmentos industriais pouco integrados aos avanços tecnológicos e
setores resistentes a qualquer mudança de hábitos e rotinas. Enfim, há
segmentos sintonizados com a ―inovatividade‖ e com os novos padrões de
competitividade, e outros segmentos totalmente à margem desse
ambiente.
A hipótese deste artigo é que, apesar de certa letargia que persiste
em setores não vinculados ao paradigma tecnológico dominante — como
alguns segmentos da agropecuária e a indústria ―antiga‖, herdada do
padrão substitutivo, cuja estratégia de sobrevivência, via ganhos de
produtividade, de competitividade e de busca de inovação, não evoluiu —,
a economia gaúcha tem encontrado, principalmente a partir da ―abertura
externa‖ e da ―estabilidade‖ advinda do Plano Real, importantes fontes de
modernização e avanço tecnológico. Entendendo-se a tecnologia como um
processo de ―busca de novos produtos e processos‖, assume-se que os
setores produtores gaúchos mais capacitados e com maiores condições de
avançar são justamente os mais ―sintonizados‖ com o paradigma
tecnológico nacional, ou, melhor dizendo, com a forma difusa e nebulosa
que o mesmo, de maneira periférica, assumiu no território nacional.
Entende-se que, cada vez mais, a sinergia oriunda da integração
tecnológica responderá pelas novas janelas de oportunidade, capazes de
relançar produtivamente o RS. E as oportunidades de emprego, de
melhoria de renda, de conhecimento e de aprendizado advirão dessa
estratégia, tal como ocorreu em vários países de industrialização tardia.
Ou seja, o atraso industrial não condena as nações submetidas a
esse padrão à fatalidade histórica da irreversibilidade de tal situação. As
dificuldades inerentes a essa superação não necessariamente levam a
uma situação de impossibilidade de superação, a qual, por sua vez,
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 23
conduziria a sociedade a uma situação de passividade social e política. Da
mesma forma, mas em sentido contrário, não se acredita que a retórica
das receitas únicas para a superação do atraso e do subdesenvolvimento,
oriundas dos fundamentos de eficiência e racionalidade dos mercados,
possam levar os países ao catching up. Neste texto, a trajetória de
superação das debilidades e das fragilidades estruturais será enfrentada
com percalços, descontinuidades e contradições, que somente se
revelarão mediante o avanço de seu próprio movimento em direção a seu
respectivo processo de desenvolvimento econômico. Essa, aliás, é a
primeira lição extraída dos autores discutidos anteriormente: não há
roteiro prévio para o desenvolvimento econômico, e sua busca dá-se
através da forma como operaram as mudanças tecnológicas e
institucionais.
2.1 Cenário produtivo
O cenário de crise na década perdida dos anos 80 sugeria que a
economia gaúcha tinha sua grande vocação centrada em duas vertentes.
Uma seria a promissora alternativa voltada à exportação de calçados, que
se constituiu em um forte setor da economia regional. Além da abertura
de novos mercados, principalmente o norte-americano, a modernização do
setor calçadista regional permitiu visualizarem-se novos nichos de
mercado para exportação. Porém muito dos estímulos setoriais ao referido
ramo era oriundo da desvalorização cambial, originária da elevada taxa
inflacionária, que utilizava o câmbio como forte estímulo à exportação,
determinando um padrão de competitividade considerado ―espúrio‖. Outro
setor que incorreu em forte estímulo foi o de máquinas e implementos
agrícolas, tendo crescido fortemente, apoiado na exportação e na
modernização do Setor Primário regional, apesar da forte crise. O setor
metal-mecânico como um todo foi o carro chefe da indústria gaúcha no
período de crise e permitiu que os desafios rumo a um novo padrão de
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 24
competitividade começassem a ser percebidos nas formas organizacionais
ali gestadas. Exemplos foram as novas técnicas de trabalho ali esboçadas
(Just in Time, Kanban, Círculo de Controle de Qualidade), que tiveram,
nesse setor, o palco de importantes ensaios de aprendizado, capacitação e
learning by doing, embora o ambiente, abalado pela crise,
desaconselhasse, inadvertida e equivocadamente, novos ensaios
inovadores.
A par das transformações que começaram a tomar forma nos
setores mencionados, a indústria gaúcha movia-se lentamente nos demais
segmentos. Isto porque a crise da década de 80 e as expectativas de
hiperinflação estabeleceram estratégias de sobrevivência ―defensivas‖8.
Tal postura impedia avanços na ótica produtiva, colocando o setor,
passivamente, no aguardo da definição de um ambiente mais estável para
o crescimento, que se demonstrava cada vez mais difícil, distante e menos
visível.
O que importa reter-se aqui não é examinar pormenorizadamente as
mudanças no âmbito de estrutura produtiva regional — isso será realizado
no Volume 2 desta obra —, mas enfatizar, isto sim, a amplitude dessas
mudanças, que se esboçaram no plano microeconômico da firma e se
disseminaram no âmbito mesoeconômico, conferindo certa especificidade
na forma como o paradigma tecnoeconômico se desenvolveu no interior
da estrutura produtiva local. Explicando melhor: o esgotamento do
paradigma de produção em massa, que respondeu por enormes avanços
industriais nas economias brasileira e gaúcha, nos anos 50 a 70, deu
sinais de esgotamento nos anos 80. Perda de competitividade,
desestímulo a inovações tecnológicas, passividade tecnológica e ajustes à
8 Saliente-se que esse tipo de ―estratégia defensiva‖ foi típico na economia brasileira, mas de forma mais visível nos anos 90, quando as empresas, para sobreviverem ante a
abrupta abertura externa, adotaram estratégias de enxugamento de seus quadros funcionais, downsizing, etc., que, muito mais do que revelar um quadro de modernização dos ganhos de produtividade do trabalho frente às novas tecnologias, geraram forte precarização do mercado de trabalho (Castro, 1996; 1997).
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 25
estrutura de custo dada, sem busca de novas tecnologias e, portanto, sem
ganhos de produtividade, inibiram as frentes de expansão produtiva,
culminando em estratégias defensivas e ganhos eventuais em
lucratividade, via câmbio ou via inflação.
Esse padrão criou um ambiente produtivo pouco ousado e pouco
eficiente, explicitando o esgotamento do padrão industrial originado pelo
PSI. As mudanças faziam-se necessárias, mas a base produtiva regional,
em sua grande maioria, não percebia para onde as direcionar. Essa
indefinição culminou na denominação ―década perdida‖, ou na ausência de
novas janelas de oportunidade.
O que se sucedeu a partir daí foi o aparecimento de uma série de
transformações cumulativas, que poderiam originar uma ―nova‖ economia
brasileira e uma ―nova‖ economia gaúcha. Pôs-se em marcha o processo
de destruição criadora, encorajado pelo surgimento de mutações internas.
Sob essa ótica, a abertura externa, no início dos anos 90, surgiu não
como fruto de uma decisão ―autônoma‖ nacional, face à precária inserção
nacional no padrão de competitividade internacional, mas, isto sim, como
uma necessidade estrutural às novas condições de crescimento da
economia brasileira, ainda longe de serem visualizadas no espaço
produtivo nacional. Não se sabia o que adviria daí, mas era certo que a
economia brasileira deveria ter um desenho estruturalmente diferente do
que persistira até o início dos anos 90. O mesmo diz-se para a economia
gaúcha.
Dois outros fatores de natureza interna — foram eles a
desindexação com o Plano Real e a convivência com a paridade cambial
fixa — terminaram por quebrar (de forma supostamente definitiva) os
hábitos, as regras e os padrões de conduta herdados do PSI, que se
enraizaram na forma de ―produzir‖ dentro da economia brasileira (e
gaúcha). Trata-se do padrão de comportamento associado à inflação,
onde o produtor habituou-se a incorporar, no seu preço final, as
expectativas inflacionárias, delegando aos ganhos de produtividade e de
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 26
eficiência produtiva um padrão marginal e exógeno à linha de produção
nacional. Esse comportamento precário e refratário frente aos desafios da
competitividade explica, em parte, a fragilidade tecnológica do padrão
produtivo nacional herdado do referido processo. A mudança de regras
para a sobrevivência aos novos padrões (mais modernos) de
competitividade não se fez sem grandes transtornos, falências,
quebradeiras. Autores como Conceição Tavares, parodiando Schumpeter,
mas em sentido negativo, preferiram designar esse período como o de
―destruição não criadora‖ (Tavares, 1999). O estudo do ECIB buscou, com
grande fôlego, identificar, de maneira precisa, os desafios dessa época
(Coutinho; Ferraz, 1994).
2.2 Cenários político e social
Não só do ponto de vista produtivo ocorreram as transformações
dos anos 80. Dos pontos de vista social e, principalmente, político, muitas
mudanças também ocorreram, originando novos cenários nacional e
regional. O fenômeno urbano foi alvo de ampla proliferação, dando lugar a
grandes metrópoles, que se agigantaram, à medida que a crise se
aprofundava. As desigualdades acentuaram-se, e a deterioração dos
postos de trabalho também, dando origem à denominada precarização do
trabalho, que, no ambiente dos anos 80, encontrou condições ideais para
sua disseminação. A deterioração do quadro social nacional foi visível. No
Rio Grande do Sul, tal situação também se agravou, mas em escala menor
que a nacional, face à menor desigualdade em relação aos parâmetros
nacionais. Esses pontos serão explorados detalhadamente nos demais
artigos que compõem esta obra.
Do ponto de vista político, a redemocratização ocorreu em meio ao
agravamento da crise econômica, revelando que a construção de um novo
país foi, simultaneamente, acompanhada por uma semidevastação do
cenário econômico, atrofiado pela ameaça constante da hiperinflação.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 27
A abertura democrática, as eleições diretas e a Constituição de
1988 conferiram à nação novo status, cuja degradação econômica não
conseguiu enfraquecer. Pelo contrário, estabeleceram-se daí elementos
institucionais que permitiram ingressar nos anos 90, com uma maior
visibilidade política sobre quais mudanças deveriam ser implementadas.
Em outros termos, o regime democrático possibilitou que se elegesse uma
plataforma de transformações sociais e políticas que a década seguinte
tratou de efetivar. Entretanto todo esse processo passava pela vitória da
luta contra a inflação, que acabou consumando-se e consolidando-se
apenas em meados dos anos 90, com o Plano Real. Esses elementos
sugerem genericamente uma periodização das últimas três décadas,
conforme se segue.
QUADRO 2
2.3 Anos 80: inflação e corrosão da herança substitutiva
A década perdida dos anos 80 revelou perda de dinamismo da
economia brasileira, que, depois do período de grande crescimento,
caracterizado pelo ―milagre econômico‖ de 1967-73, desacelerou, no pós
74, sua taxa de crescimento até chegar a variações negativas do PIB já
em 1981. Até então, não se tinha conhecimento, dentro da estrutura
produtiva brasileira, de crescimento negativo, pelo menos desde a
construção da industrialização via PSI. Vários artigos e textos, que se
tornaram clássicos, analisaram essa questão, e não caberia recapitulá-los
aqui. O fundamental é destacar-se que importantes elementos de
natureza estrutural bloquearam, impediram e obstaculizaram a
possibilidade de a economia nacional — e, consequentemente, as
economias regionais — continuar ―crescendo‖ e ―funcionando‖ nos moldes
vigentes. Esgotara-se a capacidade de acumulação de capital via
substituição de importações. O aparecimento da capacidade ociosa não
planejada nos segmentos industriais líderes (bens de capital e bens de
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 28
consumo duráveis), já em meados dos anos 70, prenunciava que a crise
dificilmente poderia ser resolvida através de uma distribuição de renda
aos segmentos sociais das classes menos favorecidos pelo ―milagre‖. Nem
mesmo o crédito doméstico abundante e barato, que se encarregou de
suprir o consumo das famílias no final do milagre, conseguiria reverter a
crise imanente já instalada no regime de acumulação da economia
brasileira. Ela se agravaria, como ocorreu com o primeiro e o segundo
choques do petróleo (de 1973 e 1979 respectivamente), mesmo se ambos
não tivessem eclodido. A única possibilidade de contornar a crise
estrutural, ainda latente, na economia brasileira dos anos 70, residiria na
adoção de profundas e necessárias transformações na matriz produtiva
nacional, que o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), de 1974,
tratou de explicitar parcialmente. Tal estratégia, que ficou conhecida
nacionalmente como ―marcha forçada‖ (Castro, 1985), deu sobrevida à
estrutura industrial cambaleante herdada do milagre. Tal plano
estabeleceu as bases de uma economia fortemente ancorada em uma
avançada matriz energética, na implantação de setores de insumos
modernos e bens de capital e na descentralização dos polos industriais
pelo País.
Ensaiava-se, assim, uma ―nova‖ estrutura na evolução econômica
brasileira, com mudanças na esfera econômica, tecnológica e institucional.
Elas explicitavam, de um lado, o esgotamento da matriz produtiva que
viabilizou a construção das bases da estrutura industrial voltada ao
consumo de bens finais duráveis para as famílias de altas rendas, e, de
outro, evidenciava-se que tais mudanças emergiam como estratégias de
adaptação e sobrevivência aos novos tempos, oriundos da crise do
petróleo e da necessidade de a economia avançar em áreas deficientes em
bens de capital, insumos intermediários e energia. Porém tal processo
articulava-se com um desenho institucional não compatível com o que
emergiria na década de 80: a presença do Estado, até então, fazia-se
central e ativa, tanto como empresário quanto como indutor da atividade
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 29
econômica. Inexistia, e nem se criava internamente, uma contrapartida
em termos de uma participação mais efetiva dos capitais privados, tanto
na inovação tecnológica quanto na busca de novos padrões de
competitividade, compatíveis com a (nova) dinâmica na estrutura
produtiva nacional. Avançava-se no capital físico sem uma contrapartida
no capital humano. Nem se tentava endogenizar o processo de avanço
tecnológico com a incorporação de novos processos e rotinas.
Genericamente, a ―competitividade espúria‖, aliada ao baixo dinamismo
das inovações e à precariedade do sistema de P&D — ou à inexistência de
um ―sistema nacional de inovação‖ à la Nelson —, imprimiu ao País
escassas condições capazes de reverter o quadro recessivo da produção
doméstica que se avizinhava. Somem-se a isso as pesadas restrições
externas, advindas dos dois ―choques‖ do petróleo e do colapso do
sistema financeiro internacional em 1981 (que, literalmente, fizeram
explodir as taxas de juros internacionais), fazendo recair o ônus do
―ajustamento‖ (em linguagem convencional) ou a própria ―crise do
paradigma‖ (em linguagem neoschumpeteriana) sobre os países
endividados. Incluía-se aí um choque frontal com a economia brasileira
(Belluzzo; Almeida, 2002).
A despeito da modernização induzida pelo Estado através do II PND,
extraiu-se daí uma segunda lição, que os anos de crise tratariam
dolorosamente de explicitar. Não obstante isso, o brutal esforço de
indução ao investimento público nos programas setoriais, que, meritória e
reconhecidamente, adiaram a crise do ―milagre‖ para o início dos anos 80,
sua capacidade efetiva de reversão da crise estrutural era bastante
limitada. Isto porque as exigências oriundas da inserção no paradigma
tecnológico da informação, em fase de ―montagem‖ nas principais nações
avançadas, exigiam não apenas um substancial montante físico de
investimentos produtivos, que o País não dispunha, mas também um perfil
qualitativo dos mesmos, que era precariamente compreendido pelos
formuladores de políticas de desenvolvimento. Não bastava apenas
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 30
investir, mas criar internamente condições tecnológicas e institucionais
para a disseminação e a incorporação das novas tecnologias. E,
relembrando Zysman, tais condições se materializariam não apenas no
plano ―macro‖, como ocorrera no II PND, mas essencialmente no plano
―micro‖. Faltou-lhes a construção de uma plataforma organizacional, no
âmbito das firmas, para a modernização tecnológica. Sem isso, quaisquer
esforços produtivos se esvairiam, pois a ―novidade‖ trazida pelo salto
tecnológico teria escassas oportunidades de êxito. Faltou a construção de
um ambiente institucional capaz de criar, internamente, sinergias e
janelas de oportunidade para o novo modelo.
Aqueles setores que, na economia gaúcha, se aperceberam dessa
mutação conseguiram sobreviver e se modernizaram no avançar dos anos
80. Foi o caso dos segmentos metal-mecânico, de equipamentos
eletrônicos, dos setores ligados à informática e à automação. Quem
reeditava práticas do ―velho‖ paradigma estava condenado à extinção, ou,
na melhor das hipóteses, a reorientar ou a reconverter drasticamente suas
estratégias de sobrevivência. Esse fenômeno passou genericamente a ser
chamado, mais explicitamente na década subsequente, de ―reestruturação
produtiva‖.
Em outros termos, a reorientação produtiva capaz de ―reverter‖ a
crise estrutural, originária do esgotamento do ―milagre econômico‖ dos
anos 70, só seria possível mediante profunda reestruturação macro e
microeconômica da forma de produzir. E esta deveria estar sintonizada
com os desafios, já em marcha em outros países, como o Japão. Saliente-
se que, na época, esse fenômeno era extremamente difícil de ser
percebido, já que seus ecos dificilmente poderiam ser convenientemente
decifrados no combalido ambiente econômico nacional. Leia-se: as
instituições nacionais não percebiam que era necessária uma drástica
modificação em seus hábitos, suas rotinas e seus padrões de
comportamento.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 31
2.3.1 A inevitabilidade do desastre: a inflação inercial
A incompreensão das mudanças em curso reeditou, no plano das
―convenções‖ ou das normas de comportamento doméstico (leia- -se
instituições), práticas produtivas totalmente incompatíveis com a
―modernidade‖ de então. Como estratégia de sobrevivência à dramática
crise dos 80, o mecanismo de reindexação dos ativos como forma de
proteção ao setor financeiro — que, diga-se de passagem, fora criado em
1966 pela Reforma Campos-Bulhões, que instituiu o expediente da
correção monetária — disseminou-se por toda a economia. Tal mecanismo
não se constituiu apenas em proteção dos ativos financeiros contra a
inflação, mas contagiou todos os contratos da economia, desde os
financeiros de crédito, os de compra e venda, até os de trabalho e
tributação e, mais importante, passou a fazer parte da decisão de produzir
dos agentes. A decisão empresarial de qualquer empreendimento embutia
a expectativa de inflação no período, que passou a superar qualquer risco
oriundo da própria atividade capitalista. Ingressava-se no pior dos
mundos: a produção sem risco, caucionada pela inflação e avalizada pela
dívida pública interna, que também passou a financiar-se com o referido
processo (Quadro 2).
A perversidade dessa política é por demais conhecida como
elemento altamente concentrador da renda. Além disso, a instituição da
convenção do ―crescimento com inflação‖ (Castro, 1997) minava qualquer
possibilidade de modernização da economia brasileira, já que anulava
quaisquer perspectivas de enfrentamento de novas estratégias frente à
crise. O ―curto prazismo‖ e as preocupações com a inflação e com o
consequente financiamento da mesma, via aplicações financeiras,
alimentaram não só um processo de resistência à desinflação, como
fomentaram uma voraz financeirização, que obstaculizava a queda da
inflação. O cálculo econômico das empresas, das famílias e do Governo
sancionava a vigência e a suposta necessidade do referido mecanismo. As
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 32
estratégias empresariais de modernização eram, assim, bloqueadas, e as
aplicações de curtíssimo prazo passaram a reger a economia brasileira.
As tentativas de reverter esse processo, que só alimentava a
concentração da renda, resultaram em grande fracasso. Os planos
heterodoxos de combate à inflação não conseguiam quebrar a inércia
desses mecanismos. O Plano Cruzado, o Plano Bresser, o Plano Verão —
e, posteriormente, os Planos Collor I e II nos anos 90 — não conseguiram
romper com a memória inflacionária, que nada mais era senão a
institucionalização da inflação dentro da economia brasileira. Fazia-se
necessária uma ―nova economia‖, que começou a ser construída apenas
em meados da década seguinte.
Genericamente, pode-se concluir que a década de 80 foi perdida pelo
fato de não se ter conseguido construir qualquer possibilidade de
recuperação econômica. Isso se deu por três razões: pela precária
capacidade de inserção no paradigma tecnológico em construção; pela
cegueira generalizada em relação a perspectivas de longo prazo que o
processo de aceleração inflacionária trouxe; e pela inexistência de um
padrão de ação estatal capaz de vislumbrar alternativas de política
econômica para reverter esse caótico quadro.
Mais ainda, nos anos 80, explicitou-se que não bastava à política
econômica governamental ―querer‖ acabar com a inflação, era necessário
que a população acreditasse em tais intenções. Em outros termos, era
necessário combinar intenção e consistência macroeconômica com
credibilidade no âmbito microeconômico dos agentes e tomadores de
decisão. Essa foi a terceira lição herdada dos tempos da crise: não basta
a política econômica ter intenção de extirpar elementos nocivos à
economia enraizados institucionalmente no País. Era e continua sendo
necessário estabelecer um horizonte de credibilidade capaz de torná-los
aceitáveis e passíveis de incorporação no âmbito microeconômico das
decisões descentralizadas dos agentes econômicos. Leia-se, é
fundamental uma mudança de hábitos (à la Veblen), para obter-se tal
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 33
objetivo. Em outros termos, o fracasso dos planos heterodoxos de
combate à inflação, nos anos 80, deveu-se menos à consistência interna
dos mesmos (que, como se viu anos mais tarde, também era
problemática) do que à falta de um ambiente institucional e
microeconômico para sua aceitação.
2.4 Os anos 90 e a necessidade de reestruturação
O ingresso nos anos 90 ocorreu em meio a grandes perspectivas de
mudanças. O País acabara de ter eleições diretas para a Presidência da
República, a inflação encontrava-se em elevação acelerada, e o fracasso
dos choques heterodoxos, herdados da era Sarney, exigia drásticas
―correções de rumo‖ (para se usar expressão da época). Sucederam-se
daí os Planos Collor I e II, em 1990 e 1991, respectivamente, que não só
foram incapazes de reverter a inércia inflacionária, como desorganizaram
ainda mais a economia do País.
Entretanto uma medida relevante foi tomada: a abertura comercial.
A abrupta exposição às condições de competitividade externa revelou a
precariedade da estrutura produtiva nacional para sobreviver a condições
adversas. A fragilidade do padrão de competitividade vigente no País
explicitou-se não só como resultado direto do mecanismo de proteção
cambial, oriundo do regime de alta inflação, mas também como resultado
de anos de convívio com uma economia fechada (pouco exposta à
concorrência externa), fruto do PSI, que, nessa época, explicitava seu
esgotamento. O ajuste foi dramático, e várias empresas faliram. Mas,
estruturalmente, tal exposição foi necessária, visto que, anos mais tarde,
as empresas sobreviventes saíram fortalecidas. Estava em marcha o
mecanismo de destruição criadora a que Schumpeter se referia. E a
economia gaúcha valeu-se desse mecanismo.
Apesar do duro e penoso desafio de reinserção externa — sem uma
contrapartida doméstica em termos de infraestruturas organizacional,
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 34
produtiva e tecnológica para enfrentar os padrões de concorrência do
―novo‖ paradigma tecnológico em plena ascensão —, tornou-se clara a
necessidade de reestruturação produtiva brasileira. E isso foi feito,
caracterizando a primeira grande mudança estrutural dos anos 90. Vários
estudos trataram dessa questão e não será feita uma releitura dos
mesmos (Coutinho; Ferraz, 1994; Franco, 1995). Interessa reter-se aqui
que a economia brasileira buscava novos fundamentos para sua evolução,
cujo primeiro passo havia sido dado.
O episódio do impeachment de Collor e a posse de Itamar Franco,
em 1992, evidenciaram a imperiosidade em reverter-se, e rapidamente, o
caótico cenário de instabilidade inflacionária, que carregava consigo a
ameaça de hiperinflação e a perda total da governabilidade do País.
Começou-se a gestar aí um novo desenho de estabilização econômica: um
outro plano, mas sem congelamento de preços, sem choques, sem
surpresas, sem bloqueio de liquidez, com regras claras de desindexação e
alguma garantia de que a população não seria surpreendida com
congelamento de preços, como acontecera em planos anteriores. Além
disso, implícita nesse novo plano estava a preocupação central com o
ajuste fiscal e com o papel do Governo como gerenciador da política
econômica. Tais elementos constituíram a base do Plano Real,
implementado em julho de 1994.
Originou-se daí a segunda mutação estrutural nos alicerces da
economia brasileira dos anos 90, que, simultaneamente, operou duas
outras mudanças institucionais de grande profundidade. De um lado,
mudou o regime monetário, introduzindo uma nova moeda, com paridade
cambial equivalente ao dólar, e, de outro, mudou a forma de ação do
Estado, que passou a perseguir ajuste fiscal, metas de superávit fiscal,
controle monetário e compromisso orçamentário. Desfazia-se o Estado
empresário da substituição de importações, e incorporavam-se novos
elementos compatíveis com um maior rigor fiscal.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 35
Como se viu, mudança não significa ―melhora‖, mas evolução,
mutação, o que implica afirmar-se que o novo desenho institucional do
Estado passou a compatibilizar-se com o ideário da globalização. Como
salientado por Perez, a nova função do Estado, introduzida com o Plano
Real, passou a sintonizar-se com o denominado ―Consenso de
Washington‖, seguindo os princípios, ditos neoliberais, de Estado mínimo,
privatizações, superávit fiscal e renúncia a atividades produtivas (ou
empresariais). Com o ambiente de estabilização e sem inflação, tais
funções passaram a ser exigidas, já que o financiamento do déficit via
inflação, como ocorrera na década de 80, não mais seria possível. O papel
do Estado redefiniu-se, e as metas de superávit fiscal passaram a
desempenhar papel proeminente, embora o endividamento financeiro do
mesmo continuasse elevado.
No Rio Grande do Sul, a visualização mais clara desse novo papel do
Estado foi percebida durante o Governo Britto, que coincidiu com o
primeiro mandato de FHC.
O desenho institucional do País e do Estado, nesse período, passou a
orientar-se por uma adesão explícita ao modelo vigente nos países
desenvolvidos, orientados pelo que se convencionou chamar de Consenso
de Washington. Ideias liberalizantes, controle da ação estatal,
flexibilização dos mercados e privatizações passaram a ser a tônica da
gestão pública, revelando uma total fragmentação do ―velho‖ estado
desenvolvimentista, sem se apropriar de um novo papel, a não ser uma
oposição aos princípios até então dominantes.
Tal falta de rumo foi acompanhada por um brutal crescimento da
dívida pública, herança do regime inflacionário, sem a constituição de
maior rigor fiscal, que tornou a administração pública extremamente
difícil. Tal processo se deu na órbita tanto federal quanto estadual. No
âmbito federal, a perseguição de uma maior carga fiscal, via contração
fiscal (que, nos manuais de macroeconomia, é traduzido como aumento
de tributos e contração dos gastos públicos), teve dois efeitos. De um
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 36
lado, os esforços da União para debelar o processo inflacionário (via maior
rigor fiscal e monetário) expunham à população a firme intenção de criar
um ambiente de estabilização, fomentando expectativas nesse sentido, e,
de outro, induzia uma mudança de mentalidade, através da tentativa de
zerar a memória inflacionária. Entretanto, mesmo com aumento da carga
tributária, a ação estatal não conseguia ―fazer caixa‖, gerando uma
situação de deterioração financeira, que, apesar das tentativas de
governos posteriores, persiste até os dias de hoje.
Todo esse quadro revela que o custo da estabilização, que se
consolidava ao longo da década, do ponto de vista da gestão estatal,
principalmente nos estados regionais, foi extremamente difícil, implicando
perda de controle sobre os gastos, o que, por sua vez, gerou aumento da
dívida pública dos estados, oriunda da escassez de fontes de
financiamento em um regime sem inflação. Por conta desse processo,
reduziu-se sobremaneira a ação estatal, delegando à administração
governamental pouca (ou nenhuma) autonomia em relação à decisão de
expandir ou estimular a capacidade produtiva, frente à incapacidade de
investimento.
Esse processo, porém, cunhou uma nova realidade de administração
pública: criou a consciência e a premência de controle dos gastos, a
necessidade de metas de receitas e despesas (para que esta última
coubesse na primeira), a busca de maior equilíbrio fiscal, e, naturalmente,
o encolhimento da capacidade de ação estatal, no sentido de gerar
investimentos produtivos. O Estado, no âmbito tanto nacional quanto
regional, deixou de ser ―empresário‖ para se constituir em gerente,
parceiro e gestor. Essa mudança institucional foi fundamental para o
desenho da nova forma de ação estatal, que se tornou mais clara na
década seguinte.
2.4.1 A incapacidade de crescer: um ambiente em mutação
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 37
A persistência do quadro referido acima, pautado pelas dificuldades
oriundas das diretrizes da estabilização, trouxe consigo a ―convenção‖ de
que sem ―arrumar a casa‖, ou, em linguagem corrente na época, construir
―bons fundamentos macroeconômicos‖, dificilmente poderia ser trilhada
qualquer trajetória de crescimento mais consistente. Por essa razão, a
economia brasileira e a gaúcha não conseguiam obter saltos expressivos
em termos de taxa de crescimento do produto.
A reversão das expectativas inflacionárias, que se foi consolidando
com o Plano Real, realizou-se mediante um desenho de política econômica
centrado no tripé metas de inflação, superávit fiscal e juros altos. Tal
opção, além de não deixar muito espaço para que novas trajetórias de
crescimento econômico pudessem ser trilhadas, reforçou o alinhamento da
política econômica nacional — e, por derivação, o ambiente regional da
economia gaúcha — às regras vigentes no ambiente econômico
internacional, orientado pelos princípios do Consenso de Washington.
Contraditoriamente, o cenário econômico externo experimentou, ao longo
dos anos 90, um surpreendente — mas não sustentável — clima de
prosperidade e de crescimento econômico (aparentemente)
autossustentado, amparado pela forte financeirização e pela expansão dos
mercados asiáticos.
A economia brasileira, ao contrário, amargou uma situação de
baixas taxas de crescimento doméstico, pesada carga tributária, rígido
controle da demanda agregada e forte fluxo financeiro externo,
sintonizado com os altos juros praticados internamente. Como resultado,
elevaram-se a dívida pública interna e os desequilíbrios fiscais,
inviabilizando estratégias governamentais mais ousadas, principalmente
no sentido de vincular as decisões de investimento às atividades
geradoras de inovação em P&D. Dessa forma, deixou-se de estimular um
padrão de organização industrial mais sintonizado com os avanços do
novo paradigma tecnológico da informação, inviabilizando um ambiente
mais propício a sinergias e janelas de oportunidade nesse sentido.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 38
De fato, o País cresceu pouco, mas as mudanças institucionais foram
significativas. Vivia-se o novo, sem o conhecimento prévio do que, de
fato, este se constituiria. E negava-se o velho, com a certeza de que
jamais voltaria a predominar. Tal foi o quadro da mutação dos anos 90
que deixou um legado fundamental para o primeiro decênio do século XXI.
As reformas econômicas operaram de forma agressiva, não obstante os
avanços sociais não terem ocorrido de forma expressiva. Porém o terreno
para que tais avanços se consumassem estava virtualmente construído.
Caberia aos futuros governantes abrir janelas de oportunidade nesse
sentido. O palco histórico dos anos 2000 revelaria ou sepultaria tais
possibilidades.
2.5 Os anos 2000 e a década do “reordenamento obediente”
A economia brasileira ingressou no século XXI instigada por dois
momentos que, literalmente, puseram em xeque os alicerces
macroeconômicos, construídos a partir dos primeiros desdobramentos do
Plano Real. O primeiro momento ocorreu em janeiro de 1999, quando do
início do segundo mandato de FHC, que explicitou a crise cambial de
1999. Na época, temia-se que a mesma abalaria os alicerces da
estabilização nacional. A reação de então, respondida pela adoção da
política de maior flexibilização cambial, superando o mecanismo de
paridade fixa (com bandas cambiais), foi capaz de contornar os efeitos
nefastos do obstáculo externo e inspirou o desenho de uma nova política
macroeconômica, que, em linhas gerais, persiste até os dias de hoje. Ao
invés da âncora cambial como mecanismo de estabilização dos preços
domésticos, que fora inaugurada com o Plano Real, passou-se a adotar o
regime de metas inflacionárias, que combinava uma maior flexibilidade da
taxa de câmbio, a fixação de um alvo de inflação com patamares fixos de
variação para mais ou para menos e uma rígida e obstinada política de
geração de superávits fiscais.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 39
Os resultados dessa política logo se fizeram sentir, apesar das
profundas críticas de economistas heterodoxos de formação
desenvolvimentista. Para eles, estariam privilegiando-se metas de
estabilização, ao invés de se estimularem políticas de crescimento. Apesar
do aumento da carga fiscal, a política cambial produziu efeitos positivos
sobre a balança comercial, e o temor da volta da inflação desvaneceu-se.
Reconhecendo a procedência da crítica heterodoxa, o País pagou o preço
da estabilização, sacrificando expressivos passos rumo à constituição de
um ambiente para o crescimento. Entretanto esse processo trouxe uma
importante lição para os tempos futuros. A construção de uma plataforma
consistente para o processo de crescimento econômico não poderia ser
feita sem a vigência de um maduro (leia-se estável e duradouro)
ambiente de estabilização econômica. E a opção de política econômica
adotada consolidou esse processo. Essa foi a quarta lição herdada do
duro período de ajustamento estrutural: a estabilização dos preços é um
processo lento, penoso, e que não necessariamente (leia-se
automaticamente) conduz ao crescimento econômico, mas, por definição,
é uma condição necessária para tal desiderato. A adoção do novo desenho
da política econômica foi consolidando um novo ambiente
macroeconômico e fiscal, que vem persistindo e que explicitou um novo
compromisso com a gestão pública: metas de geração de sistemáticos
déficits orçamentários passaram a ser banidas em ambientes de
estabilização9.
O segundo momento que balançou os alicerces da estabilização
construída através do Plano Real ocorreu em dezembro de 2002. A eleição
9 Em defesa de Keynes, se é que hoje o referido autor precise dela, saliente-se que tais práticas também explicitaram o equívoco do nexo causal entre políticas de inspiração keynesiana com práticas fiscais gastadoras ou irresponsáveis, herança de uma má formação teórica de economistas obstinadamente antikeynesianos. Reitere-se, mais uma vez, que um Estado keynesiano moderno não é incompatível com a perseguição de
superávits fiscais. A circunstância e a inserção da política econômica nortearão as decisões governamentais, que não podem prescindir do seu legado. Em outros termos: ser keynesiano não implica ser favorável à geração sistemática de déficits públicos e irresponsabilidade fiscal.
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 40
presidencial de Lula criou expectativas de que um suposto (e
conceitualmente ―falso‖) desenvolvimentismo superaria a equivocada
dicotomia ―estabilização versus crescimento‖, fazendo crer, aos mais
inadvertidos, que o novo Presidente mudaria drasticamente (e até
ingenuamente) os rumos da economia brasileira e, por consequência, os
próprios fundamentos da estabilização.
No imediato pós-eleição, os índices de preços dispararam, sugerindo
que a inflação rapidamente se (re)instauraria. Obviamente, se tal
infortúnio ocorresse e se a suposta mudança de rumo se consumasse, o
caminho para a ingovernabilidade estaria aberto, e o retorno ao ambiente
de descrédito na política econômica (tão comum e reiterado na década de
80) voltaria à cena.
Passada a turbulência inicial, oriunda da frustração de expectativas
inflacionárias crescentes — e por conta de uma drástica mudança de rumo
que não ocorreu —, o País passou a colher frutos de uma inserção externa
mais competitiva, de uma recuperação expressiva do mercado interno e
de um novo desenho para o crescimento econômico, que contemplava
maior dinamismo das exportações e um crescimento doméstico puxado
pelo consumo das famílias. Tal quadro foi abalado seriamente quando da
eclosão da crise financeira, oriunda da subprime norte-americana, de
setembro de 2008, que parece ter sido, atualmente, superada, pelo
menos em escala nacional.
O que ficou desse processo? Apesar das mudanças percebidas no
âmbito das firmas, que operam no ambiente econômico nacional, e das
mudanças institucionais, que caminharam no sentido de conferir uma
maior maturidade econômica ao País, essas transformações, não
perceptíveis pelo simples exame dos principais agregados
macroeconômicos, sugerem a consistência das mudanças em curso. O
exame dos principais agregados revela uma perceptível melhora no
desempenho econômico nacional, tanto em termos internos quanto no
front externo (ver principais séries: PIB, dívida pública, exportações,
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010 41
superávit comercial, metas fiscais, produção agrícola e industrial, mercado
de trabalho, desemprego, etc.). É a esse resultado que se chama de
―reordenamento obediente‖, uma vez que a conformação produtiva
nacional e regional passou a sintonizar-se mais com as mudanças
ocorridas no ambiente externo (ditadas pelo paradigma tecnológico da
informação), cuja busca por ganhos de competitividade e produtividade
nesse âmbito, aliada a um projeto macroeconômico desenhado a partir do
Plano Real, gerou um comportamento doméstico de aceitação dessas
regras e estratégias de adaptação ao referido padrão tecnológico. A
disciplina macroeconômica passou a ser perseguida e obedecida pela
política econômica vigente.
Chama-se, portanto, de ―reordenamento‖ não apenas a adesão às
regras de política macroeconômicas estabelecidas, sem miragens, nem
milagres, mas também às sucessivas tentativas de inserção na ordem
tecnológica vigente, e de ―obediente‖, na medida em que a busca de
aprofundamentos dentro da mesma vai criando, ao longo do tempo,
janelas de oportunidade, que se entreabrem recursivamente dentro desse
(novo) ambiente. Em outros termos, o País vem buscando, e de forma
mais visível nesse início de século, o estabelecimento de condições que
permitam alcançar substanciais melhoras nos níveis de ―expectativas,
governança, credibilidade, padrões de competitividade, etc.‖. Em suma,
busca-se avançar nos conceitos propostos no início deste texto. E o RS
deve estabelecer estratégias capazes de tirar proveito dessas condições.
A lição que se extrai desse processo é que a aposta na
―continuidade‖ do processo de ajustamento estrutural produzido pelo
Plano Real revelou não só a maturidade da economia brasileira em
conviver com um novo regime de preços, mas de adequar-se a uma nova
realidade mundial, onde a busca por competitividade, por novos
mercados, por novos processos de trabalho e por novas tecnologias é não
somente irreversível, como também deve constituir-se em meta micro e
macroeconômica. E tal busca, ao contrário do que possam supor,
Conceição, O.A.C. Da querência ao mouse: uma avaliação das mudanças estruturais da ......
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equivocadamente, alguns estudiosos avessos à compreensão do processo
de avanço tecnológico, não pode impedir avanços sociais. Dito de outra
forma, a melhoria de indicadores sociais — que, por herança histórica,
têm sido dos mais baixos do mundo — deve ser buscada e alcançada
tendo por suposto o cenário econômico construído a partir desse novo
desenho estrutural, recém-montado no País, cuja abertura externa e o
Plano Real foram dois importantes desencadeadores e artífices. Os dois
novos fundamentos institucionais daí decorrentes — a saber, a moeda e o
novo padrão de concorrência entre as empresas — são elementos que
vieram para ficar no novo desenho institucional, que vem orientando o
País. O mesmo se diz do papel do Estado nessa ―nova economia‖.
Entretanto, apesar de alguns avanços, percebe-se que a capacitação
tecnológica interna para as novas janelas de oportunidade, abertas pelo
novo paradigma tecnológico em formação, ainda são tímidas. Assim, é
importante que se estabeleçam, internamente, novos vínculos com a
capacitação tecnológica e com a montagem de um efetivo sistema
nacional de inovação. Tal sistema deverá, por definição, articular firmas,
Estado e universidades, para gerar o estabelecimento de uma plataforma
para o crescimento econômico e para o desenvolvimento tecnológico. Só
assim a enorme dívida social, que continua assolando o País, poderá ser
equacionada.
Entende-se que a superação da fase de ―reordenamento obediente‖
da última década deverá ser orientada por uma política mais agressiva de
P&D, sintonizada com os avanços tecnológicos do paradigma em gestação.
Maiores gastos em pesquisa, educação e capacitação profissional serão
elementos decisivos para a construção de um novo modelo de crescimento
autossustentado, distributivo e com maior qualificação tecnológica e
social. O primeiro passo no sentido da construção de instituições capazes
de assegurar essa nova etapa parece que vem sendo dado, na medida em
que a economia brasileira vem respondendo positivamente, mas ainda de
maneira tímida, aos desafios desse novo ambiente.
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Em termos de Rio Grande do Sul, o cenário é o mesmo. Apesar de
uma dimensão regional que contém suas especificidades, o desafio é
idêntico ao enfrentado em termos nacionais. O peso do agronegócio na
estrutura produtiva local sugere vantagens ainda maiores de uma inserção
competitiva, tecnológica e inovadora, se confrontadas com a capacidade
nacional de inserção no novo paradigma tecnológico das nanotecnologias
e biotecnologia, em fase de gestação. Caberá aos agentes locais tirar
proveito dessas oportunidades, caso contrário o que se terá será
localmente um ambiente involuído. E isso contraria a tradição histórica da
economia gaúcha.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O exame das transformações ocorridas ao longo das três últimas
décadas, na economia gaúcha, explicitou que todas as suas formas
institucionais de estrutura sofreram mutações. A moeda mudou seu papel,
o padrão de concorrência foi drasticamente reconcebido (até por conta da
estabilização econômica), o papel do Estado sofreu um profundo
redesenho, as relações salariais foram tornando-se mais flexíveis, a
precarização do mercado de trabalho aumentou, e, por fim, o padrão de
inserção externa também se transformou, havendo, hoje, uma
participação mais efetiva, ainda que relativamente baixa.
A economia, do ponto de vista produtivo, teve que se reorganizar,
de forma a se adaptar aos desafios dos tempos modernos. E, nesse
sentido, a noção de paradigma tecnoeconômico parece ser uma
interessante trilha teórica a ser perseguida, de forma a compreender-se o
sentido em que as mudanças estão operando. Por essa razão, os termos
incluídos no título deste artigo não são meros artifícios de retórica, mas
símbolos ou ícones de duas eras sobrepostas, cuja dominância da última
é, por demais, eloquente.
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O que fica de concreto de toda essa discussão é que a velha herança
do passado não mais consegue gerar progresso econômico sem que haja,
de fato, a incorporação das mudanças estruturais (aqui entendidas como
mudanças simultaneamente tecnológicas e institucionais) dentro do
ambiente interno das firmas e do processo de trabalho. E tais mudanças
operam de forma visivelmente vinculada ao paradigma tecnológico
dominante, que tem, na tecnologia da informação, seu traço mais
perceptível. Caberá tirarem-se vantagens da inserção nesse ambiente,
pois, caso contrário, só restará a lembrança de um tempo que já se foi. Só
restará a lembrança da querência!
REFERÊNCIAS
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