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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LINDEMBERG MEDEIROS DE ARAÚJO DA PRÁTICA MÉDICA À PRÁXIS MÉDICA: possibilidades pela Estratégia Saúde da Família JOÃO PESSOA 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

LINDEMBERG MEDEIROS DE ARAÚJO

DA PRÁTICA MÉDICA À PRÁXIS MÉDICA: possibilidades pela Estratégia Saúde da Família

JOÃO PESSOA 2007

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LINDEMBERG MEDEIROS DE ARAÚJO

DA PRÁTICA MÉDICA À PRÁXIS MÉDICA:

possibilidades pela Estratégia Saúde da Família Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (PPGE/UFPB), como exigência para obtenção do grau de Doutor em Educação.

Orientador: Professor Doutor José Francisco de Melo Neto

JOÃO PESSOA 2007

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A663d Araújo, Lindemberg Medeiros de Da prática médica à práxis médica: possi- bilidades pela Estratégia Saúde da Família /Lin- demberg Medeiros de Araújo. – João Pessoa, 2007. 292p. Orientador: José Francisco de Melo Neto Tese (doutorado) UFPB/CE 1. Educação para prática médica 2. Práxis médica 3. Atenção básica 4. Saúde-doença UFPB/BC C.D.U: 37(043)

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LINDEMBERG MEDEIROS DE ARAÚJO

DA PRÁTICA MÉDICA À PRÁXIS MÉDICA: possibilidades pela Estratégia Saúde da Família

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (PPGE/UFPB), como exigência para obtenção do grau de Doutor em Educação.

Aprovada em 19/10/2007

Comissão Examinadora:

Orientador: Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto

Universidade Federal da Paraíba – UFPB

Examinadora: Profa. Dra. Carmen Fontes de Souza Teixeira Universidade Federal da Bahia – UFBA

Examinador: Prof. Dr. Roberto Veras de Oliveira Universidade Federal de Campina Grande – UFCG

Examinador: Prof. Dr. Artur Fragoso de Albuquerque Perrusi Universidade Federal da Paraíba – UFPB

Examinadora: Profa. Dra. Emília Maria da Trindade Prestes Universidade Federal da Paraíba – UFPB

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À população usuária da Estratégia Saúde da Família e aos médicos e médicas que nela se descobrem e, assim, descobrindo-se, nela inauguram uma relação dialógica que abre a possibilidade de construção de uma práxis médica educativa e popular.

Dedico.

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EXERCITANDO O ATO DE AGRADECER

A demonstração de gratidão é, talvez, o momento ímpar do ser humano. A

mais nobre e recompensadora das suas ações. É o momento da afirmação do outro e da

confirmação teleológica desse outro em nós. O agradecimento tem o condão de

enaltecer o benfeitor, mas, também, de elevar o agradecido, na medida em que lhe é

oferecida a chance de exercitar a reciprocidade da humildade, do respeito, da

generosidade, da consideração e do desvelo. Tenho que agradecer a muitos ao concluir

esta pesquisa.

À minha família de origem. Agradecimento nas figuras dos meus pais e dos

meus avós, cujos ensinamentos e exemplos colocaram-me diante da empiria da vida e

definiram os marcos fundamentais do meu caráter;

À família que constituí. Sustentáculo maior, fonte de afirmação e inspiração

mais profunda. O celeiro incessante de amor, de compreensão e de carinho. Nas horas

mais difíceis e tormentosas, foi em Zezinha, João Rodolfo e Pedro Felipe que encontrei

o porto seguro e a calmaria;

Ao meu orientador. O professor José Francisco de Melo Neto foi um

timoneiro tranqüilo e firme, obstinado e terno; paciente e disponível, acima de tudo.

Soube guiar e, ao mesmo tempo, esperar pelo amadurecimento do trabalho que ora é

apresentado;

Aos professores Roberto Veras de Oliveira e Artur Fragoso de Albuquerque

Perrusi. As orientações, na ocasião da Comissão Examinadora do Seminário de Tese,

foram fundamentais para o fortalecimento da consistência do texto da tese;

Ao PPGE. À sua coordenadora, professora Adelaide Dias, dureza de

diamante e delicadeza de orquídea. Aos professores da jornada dos créditos

regulamentares: Roberto Jarry, Edna Brennand, José Neto, Eymard Mourão, Afonso

Scocuglia e Wojciech Kulesza, grandes colaboradores. Aos funcionários, representados

nas pessoas sempre disponíveis e companheiras de Rosilene e Cleomar;

Aos colegas da primeira turma de Doutorado do PPGE. Solidariedade,

amizade, companheirismo foram marcas indeléveis. Impossível esquecer cada uma das

pessoas e do compartilhamento das agruras do pioneirismo. Agradecimentos especiais à

Patrícia, pela disponibilidade na discussão e na crítica colaboradora de algumas partes

dos escritos desta tese, e a Washington, pela criação da capa do texto a ser entregue à

Comissão Examinadora;

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Às companheiras tutoras do Programa de Interiorização do Trabalho em

Saúde – PITS/MS/SES-PB/NESC/CCS/UFPB, Maria de Fátima Ávila Paz Castelo

Branco, Edilene Araújo Monteiro e Tânia Maria Ribeiro Monteiro de Figueiredo. A

parceria, o aprendizado, o diálogo, a convivência profissional e afetiva, junto com o

trabalho bem feito, foram o grande incentivo para que a prática de acompanhamento das

equipes de saúde se transformasse em material de pesquisa para a tese;

À Claudia Luciana Sousa Macena Veras e André Luís Bonifácio de

Carvalho. A convivência na SES-PB, principalmente no Grupo de Condução da ABS,

trouxe lições e experiências importantes para esta pesquisa;

À Ana Fábia da Mota Rocha Farias, colaboradora fundamental para a

pesquisa sobre a prática médica na Atenção Básica à Saúde realizada pela Estratégia

Saúde da Família. Os documentos e textos disponibilizados confirmaram a contribuição

das equipes de Campina Grande na construção da práxis em saúde, que se revela em

muitas das equipes dessa Estratégia, naquele município;

À equipe de Saúde da Família Grotão II. Convivência frutífera através da

inserção de alunos de graduação em Nutrição no dia-a-dia da equipe, ao cumprirem um

dos estágios curriculares do Curso. Imagino um reencontro em breve, retomando o

trabalho temporariamente suspenso;

Aos companheiros do EXTELAR – Grupo de Pesquisa em Extensão

Popular. O esforço em promover a pesquisa no campo da extensão popular, mantendo o

debate conceitual e, ao mesmo tempo, destacando as metodologias de pesquisa

possíveis nas ações de extensão, tem sido um combustível essencial para reflexões e

produções neste campo específico;

Ao DN/CCS/UFPB. A liberação e a solidariedade dos colegas que ficaram

segurando o fardo, enquanto dedicava tempo integral ao Doutorado, não podem ser

esquecidas.

Aos demais aqui não nomeados diretamente. Certamente há, ainda, muitas

pessoas ou estruturas que não estão sendo lembradas, apesar de terem apoiado e, direta

ou indiretamente, contribuído para a realização e para a consistência desta pesquisa. A

esses, também a minha gratidão.

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FREIREANAMENTE

Lindemberg Medeiros de Araújo

O diálogo devora o silêncio...

Aproxima, iguala as pessoas

tece as palavras.

Revela, recria o outro

extrai o sentido da vida

constrói utopias

seduz.

confronta

educa

disputa

liberta

compartilha.

Gera sonhos de autonomia

produz cisões

...e reproduz experiências humanas.

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RESUMO A possibilidade de a prática médica transformar-se em práxis médica, no interior da Estratégia Saúde da Família, constitui o fulcro desta pesquisa. Nela, o diálogo é definido como categoria básica e ferramenta para a construção da práxis. Diálogo inspirado na tradição herdada da sociedade grega antiga e da medicina hipocrática, bem como, no redimensionamento dessa categoria, proporcionado pela filosofia e pedagogia freireanas. No corpo do texto, a prática médica é compreendida como algo inserido num contexto de disputas filosóficas, éticas, científicas, políticas e técnicas, desde o passado mais remoto, sendo, portanto, algo repleto de contradições. São dissecados os conceitos de saúde-doença, de medicina e de prática médica, a partir de suas características em diferentes contextos da trajetória humana. Recupera-se a história das políticas e das práticas em saúde, no Brasil, colocando-se em relevo a prática médica nos diversos períodos da República. Mostra-se que o diálogo esteve ausente ou foi deixado de lado na prática médica dominante. Entretanto, a sua presença vem sendo recuperada e defendida desde a construção do movimento de Reforma Sanitária brasileira que, num amálgama com os demais movimentos sociais e populares, passou a influir nos rumos das últimas conferências nacionais de saúde, no processo constituinte que reformou a Constituição Federal, na legislação ordinária da saúde e demais documentos legais que deram base a que, no presente, se chegasse à prescrição da Política Nacional de Atenção Básica, construída de forma democrática e paritária pelas instâncias do SUS. Analisa-se a prática médica da Estratégia Saúde da Família e ressaltam-se as experiências ora negativas ora exitosas dessa prática no interior desse modelo de atenção, em municípios do Estado da Paraíba. Conclui-se que a transformação da prática médica em práxis médica, apesar de todos os obstáculos existentes, é uma possibilidade concreta.

Palavras-chave: Educação. Saúde-doença. Política de saúde. Atenção básica. Práxis médica.

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ABSTRACT

The possibility that medical practice becomes transformed into medical praxis, within Strategic Family Health, constitutes the kernel of this research. In it, dialogue is defined as the basic element and tool for the formation of praxis. This dialogue is inspired by the traditional inheritance of ancient Greek society and Hippocratic medical practice, as well as the reformulating of this category as determined by philosophical and Freiran teaching. In the body of the text medical practice is understood as something incorporated into contextual philosophical, scientific, political and technical disputes since remotest times, being however, full of contradictions. Prejudices in relation to health/sickness, medicinal and medical practice have been dissected beginning with characteristics in different contexts of the human organism. It restores the history of politics and health practice in Brazil giving distinction to medical practice during various periods of the Republic. It points out that dialogue was absent or put aside in dominant medical practice. Nevertheless, its presence is being revived and defined since the establishment of the Brazilian Sanitarian Reform which, in amalgamation with other social and popular movements, has influenced the direction of National Conferences on Health, in the constitutional process which reformed the Federal Constitution on ordinary health legislation and other legal documents, which have foundations in the present, and whose directives come from the National Political Care Base, made in a democratic and egalitarian way within the norms of SUS. It analyses the medical practice of Strategic Family Health and recuperates experience, albeit negative, but nonetheless effective in practice, within this care model, in boroughs in the state of Paraíba. Finally, it concludes that in spite of existent obstacles, a transformation of medical practice into medical praxis is a concrete possibility. Key words: educação – education, saúde-doença – health-sickness, política de saúde – health politics, atenção básica – basic care, praxis médica – medical praxis

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RÉSUMÉ La possibilité de la pratique médicale peut se transformer en une praxis médicale, à l’intérieur de la stratégie santé de la famille, compose le principal but de cette recherche. En elle, le dialogue est défini comme une catégorie basique et un outil essenciel pour la constituicion de la práxis. Ce dialogue inspire dans une tradition hérité de la société gueque antique et de la médicine chez hycrocrate, ainsi que, auprès de la redimension de cette catégorie établie par la philosophie et la pédagogie freieanne. Dans le corpus du texte, la pratique médicale est comprise comme quelque chose qui se trouve inclus dans un contexte de disputes phylosophiques, éthiques, scientifiques, politiques et techniques, depuis le plus lointain passé, étant, donc, quelque chose pleine de contradicions. On a analysé les concepts de santé-melodie, de médicine et de pratique médicale à partir de leurs caractéristiques dans les contextes de l’histoire de l’humanité. Ainsi, on a l’intention de récuperer l’histoire des politiques et des pratiques de la santé au Brésil, en mettant comme relief la pratique en nombreuses périodes de la République. On démontre que le dialogue était absent ou il a été laissé de côté de la pratique médicale du moment. Pourtant, sa présence commence à être recuperée et définie depuis la construction des mouvements de la Reforme Sanitaire Brésilienne qui réuni un groupe avec d’autres mouvements sociaux et populaires qui a influencé les destins des dermières conférences nationelle de santé, dans un processus constituant qui a reformulé la Constituicion Fédérale, dans la législation ordinaire de la santé et de plusieurs documents légaux qui ont soutenu, au présent, la prescription de la politique Nationale d’attention Basique, élaborée d’une mamière démocratique et paritaire pour les organismes du S.U.S. On analyse la pratique médicale de la stratégie Santé de la Famille et on abserve les expériences qui se présentent dans un moment négatif et parfois exitoses de cette pratique, à l’intérirur de ce modèle d’attention, dans les municipes de l’État de Paraíba. En quise de conclusion, on constate que la transformation de la pratique médicale dans la praxis médicale, malgré toutes les obstacles existentes, c’est une possibilité concrète. Mots-clés: Éducation, Santé-Maladie. Politique de santé. Attention basique. Práxis médicale

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS

ABRANGE – Associação Brasileira de Medicina de Grupo

ABRASCO – Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva

ACD – Auxiliar de Consultório Dentário

ACS – Agente Comunitário de Saúde

AIH – Autorização de Internação Hospitalar

AIDS – Imuno-Deficiência Adquirida

AIS – Ações Integradas de Saúde

APS – Atenção Primária em Saúde

CAP´s – Caixas de Aposentadorias e Pensões

CCHLA – Centro de Ciências Humanas Letras e Artes

CCS – Centro de Ciências da Saúde

CE – Estado do Ceará

CEBES – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde

CEB´s – Comunidades Eclesiais de Base

CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina

CENEPI – Centro Nacional de Epidemiologia

CERESAT – Centro de Referência em Saúde do Trabalhador

CES – Conselho Estadual de Saúde

CF – Constituição Federal

CFM – Conselho Federal de Medicina

CIB – Comissão Intergestores Bipartite

CIMS – Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde

CIPLAN – Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação

CIS – Comissão Interinstitucional de Saúde

CISAT – Comissão Intersindical de Saúde do Trabalhador

CIT – Comissão Intergestores Tripartite

CLIS – Comissão Local Interinstitucional de Saúde

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CNRS – Comissão Nacional da Reforma Sanitária

CNS – Conselho Nacional de Saúde

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CONASEMS – Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde

CONASP – Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária

CONASS – Conselho Nacional de Secretários de Saúde

COSAC – Coordenação de Saúde da Comunidade

COSEMS – Conselho de Secretários Municipais de Saúde

CPC – Centros Populares de Cultura

CRIS – Comissão Regional Interinstitucional de Saúde

CUT – Central Única dos Trabalhadores

CUTV – Central Única de los Trabajadores Venezolanos

DAB – Departamento de Atenção Básica

DAD – Departamento de Apoio à Descentralização

DATASUS – Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde

DIESAT – Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos

Ambientes de Trabalho

DNERu – Departamento Nacional de Endemias Rurais

DOU – Diário Oficial da União

DPS – Departamento de Promoção da Saúde

EC – Emenda Constitucional

ECEM – Encontro dos Estudantes de Medicina

ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública

ESB – Equipe de Saúde Bucal

ESF – Estratégia Saúde da Família

ESF – Equipe de Saúde da Família

EUA – Estados Unidos da América

FAS – Fundo de Assistência Social

FBH – Federação Brasileira de Hospitais

FGV – Fundação Getúlio Vargas

FHC – Fernando Henrique Cardoso

FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz

FMI – Fundo Monetário Internacional

FNS – Fundo Nacional de Saúde

FPM – Fundo de Participação dos Municípios

FUNASA – Fundação Nacional de Saúde

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FUNDACENTRO – Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do

Trabalho

GERUS/UBS – Projeto de Desenvolvimento Gerencial de Unidades Básicas de Saúde

GM – Gabinete do Ministro

IAPAS – Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social

IAP´s – Institutos de Aposentadorias e Pensões

IBASE – Instituto Brasileiro de Análise Sociais e Econômicas

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IFES – Instituição Federal de Ensino Superior

IMS – Instituto de Medicina Social

IN – Instrução Normativa

INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social

INPS – Instituto Nacional de Previdência Social

INSS – Instituto Nacional do Seguro Social

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

JAC – Juventude Agrária Católica

JEC – Juventude Estudantil Católica

JOC – Juventude Operária Católica

JUC – Juventude Universitária Católica

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação

LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social

LRS – Lei de Responsabilidade Sanitária

MAPP – Método Altadir de Planificação Popular

MCS – Mestrado em Ciências Sociais

MCP – Movimento de Cultura Popular

MEB – Movimento de Educação de Base

MEC – Ministério da Educação

MG – Estado de Minas Gerais

MI – Ministério do Interior

MOPS – Movimento Popular de Saúde

MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social

MS – Ministério da Saúde

NESC – Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva

NOAS – Norma Operacional de Assistência à Saúde

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NOB – Norma Operacional Básica

OIT – Organização Internacional do Trabalho

OMS – Organização Mundial da Saúde

OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde

PAB – Piso de Atenção Básica

PACS – Programa Agentes Comunitários de Saúde

PAIS – Programa de Ações Integradas de Saúde

PB – Estado da Paraíba

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PCI – Partido Comunista Italiano

PES – Planejamento Estratégico Situacional

PIASS – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento

PITS – Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde

PNAB – Política Nacional de Atenção Básica

PNH – Política Nacional de Humanização

PPA – Plano de Pronta Ação

PPI – Programação Pactuada Integrada

PR – Estado do Paraná

PREV-SAÚDE – Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde

PRÓ-SAÚDE – Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em

Saúde

PPÓ-RURAL – Plano de Assistência ao Trabalhador Rural

PROESF- Projeto de Expansão do Programa de Saúde da Família

PRMI – Projeto de Redução da Mortalidade Infantil

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira

PSF – Programa de Saúde da Família

RADIS – Reunião, Análise e Difusão de Informações sobre Saúde

REFORSUS – Reforço à Reorganização do Sistema Único de Saúde

REME – Movimento de Renovação Médica

RJ – Estado do Rio de Janeiro

RMPS – Residência em Medicina Preventiva e Social

RS – Estado do Rio Grande do Sul

SALTE (Plano) – Saúde, Alimentação, Transporte e Segurança

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SAS – Secretaria de Atenção à Saúde (até 2003, SAS – Secretaria de Assistência à

Saúde)

SADT – Serviços Auxiliares de Diagnóstico e Tratamento

SC – Estado de Santa Catarina

SE – Estado de Sergipe

SEAMPO – Setor de Estudos e Apoio a Movimentos Populares

SEMSAT – Semana de Saúde do Trabalhador

SENAI – Serviço Nacional da Indústria

SEPLAN – Secretaria de Planejamento da Presidência da República

SES – Secretaria Estadual de Saúde

SESAC – Semana de Estudos de Saúde Comunitária

SESP– Serviço Especial de Saúde Pública

SESU – Secretaria de Ensino Superior

SGETS – Secretaria da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde

SIA/SUS – Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde

SIH – Sistema de Informações Hospitalares

SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação

SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social

SIRENA – Serviço Rádio-Educativo Nacional

SIREPA – Serviço de Rádio-Difusão da Paraíba

SIS – Sistema de Informações em Saúde

SMS – Secretaria Municipal de Saúde

SP – Estado de São Paulo

SUCAM – Superintendência de Campanhas de Saúde Pública

SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

SUDS – Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde

SUS – Sistema Único de Saúde

UBS – Unidade Básica de Saúde

UBSF – Unidade Básica de Saúde da Família

UDN – União Democrática Nacional

UEL – Universidade Estadual de Londrina

UEPB – Universidade Estadual da Paraíba

UF – Unidade Federativa

UFBA – Universidade Federal da Bahia

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UFCG – Universidade Federal de Campina Grande

UFPB – Universidade Federal da Paraíba

UNE – União Nacional dos Estudantes

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância

USP – Universidade de São Paulo

USP – Unidade Setorial de Planejamento

VII CNS – Sétima Conferência Nacional de Saúde

VIII CNS – Oitava Conferência Nacional de Saúde

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SUMÁRIO

1 A PANORÂMICA DA TESE ................................................................................. 21

2 ELEMENTOS PARA A PRÁXIS MÉDICA ........................................................ 24

2.1 A pergunta inicial ................................................................................................... 28

2.2 A prática médica ..................................................................................................... 30

2.3 A práxis como categoria teórica ............................................................................. 32

2.4 A teoria da práxis na saúde ..................................................................................... 33

2.5 A práxis em saúde: diálogo .................................................................................... 38

2.6 O território como espaço do diálogo na práxis médica .......................................... 41

2.7 A práxis médica como popular ............................................................................... 47

2.8 A metodologia e os procedimentos técnicos da pesquisa ...................................... 50

3 A SAÚDE-DOENÇA, A MEDICINA, A PRÁTICA MÉDICA .......................... 54

3.1 A saúde-doença nos povos primitivos ................................................................... 56

3.2 A saúde-doença na antiguidade clássica ................................................................ 59

3.3 A saúde-doença entre a fé e a razão ....................................................................... 63

3.4 A medicina como prática pagã ............................................................................... 68

3.5 A saúde-doença com base científica ...................................................................... 70

3.6 A experiência clínica como medicina científica ..................................................... 75

3.7 A Medicina do Trabalho ......................................................................................... 79

3.8 Da unicausalidade à multicausalidade .................................................................... 81

3.9 Da Medicina do Trabalho à Saúde Ocupacional .................................................... 83

3.10 A sociologia médica ............................................................................................. 86

3.11 A perspectiva de uma prática médica renovada ................................................... 93

4 DAS POLÍTICAS DE SAÚDE À REFORMA SANITÁRIA: BRASIL

REPÚBLICA ............................................................................................................. 100

4.1 A crise na saúde pública e os rudimentos do modelo de previdência social ........ 101

4.2 A República Velha e o Estado Novo .................................................................... 115

4.3 A intervenção do governo Vargas na economia, na saúde, na educação ............. 118

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4.4 O Serviço Especial de Saúde Pública ................................................................... 121

4.5 A onda hospitalocentrista de inspiração flexneriana ............................................ 123

4.6 A saúde na redemocratização do país ................................................................... 125

4.7 A saúde no segundo governo de Getúlio Vargas .................................................. 128

4.8 A política e a saúde: do pós Getúlio à ditadura militar ....................................... 132

4.9 A Reforma Sanitária na redemocratização do país ............................................... 154

5 A REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA: UMA CONSTRUÇÃO TEÓRICO-

POLÍTICA ................................................................................................................ 160

5.1 A invenção do SUS: representação de interesses na ampliação do Estado .......... 161

5.2 Os fundamentos teórico-políticos da Reforma Sanitária brasileira ...................... 165

5.3 A municipalização das ações de saúde: avanços, contradições ............................ 177

6 A ATENÇÃO BÁSICA, A SAÚDE DA FAMÍLIA: UM ESBOÇO DA PRÁTICA

À PRÁXIS MÉDICA ............................................................................................... 182

6.1 A organização da Atenção Básica no Brasil: caminhos para a práxis médica ..... 184

6.2 Os documentos oficiais: a organização da Estratégia Saúde da Família .............. 201

6.3 A Atenção Básica como política nacional ............................................................ 212

6.4 A Política Nacional de Atenção Básica: seus fundamentos, sua organização ...... 217

7 A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA: CONTRADIÇÕES, CONFLITOS,

EM RELAÇÃO À PRÁTICA MÉDICA – UMA VIVÊNCIA ............................. 229

7.1 A Estratégia Saúde da Família na Paraíba ............................................................ 230

7.2 A Saúde da Família como práxis: ecos de uma experiência exitosa .................... 234

7.3 A Paraíba na atenção à saúde do PSF/PITS ......................................................... 238

7.4 A relação gestões municipais x atenção à saúde na vigência do PSF/PITS ......... 241

7.5 O comportamento ético, a prática médica nas equipes do PSF/PITS ................... 251

8 SABERES PARA A MEDICINA, PARA A PRÁTICA MÉDICA ................... 262

8.1 O exercício da Medicina exige humildade, consciência de inacabamento ........... 265

8.2 O exercício da Medicina carece de conhecimento, de competência profissional,

de ética .................................................................................................................. 268

8.3 O exercício da Medicina se estabelece pela apreensão da realidade e pela

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possibilidade de mudanças ....................................................................................... 269

8.4 O exercício da Medicina exige criticidade, reflexão sobre a prática .................... 270

9 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 274

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 279

ANEXO A – Saúde da Família: uma estratégia de organização dos serviços de saúde Documento Preliminar – Março/1996 ........................................................................ 292

ANEXO B – Portaria n.º 648, de 28 de março de 2006 ............................................. 303

ANEXO C – Mapas e Gráficos da Evolução da Implantação e Implementação da Estratégia Saúde da Família no Brasil ........................................................................ 325

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1 A PANORÂMICA DA TESE

O exercício de problematização que compõe esta tese coloca no centro da

análise a possibilidade de a prática médica elevar-se à categoria de uma práxis médica, a

partir da Estratégia Saúde da Família. Nesse sentido, elege-se o diálogo como

ferramenta para a sua construção, tentando-se compreender a prática médica como algo

inserido num contexto repleto de contradições por conta de disputas filosóficas, éticas,

científicas, políticas e técnicas. Disseca-se a prática médica, a partir das suas

características em diferentes contextos. Mostra-se que o diálogo esteve ausente ou foi

deixado de lado na prática médica dominante. Entretanto, observa-se a sua presença em

experiências mais particulares, podendo indicar que a transformação da prática médica

em práxis médica, no âmbito da Estratégia Saúde da Família, é uma possibilidade

concreta.

Considerando-se a organização do texto, o texto introdutório, que

corresponde ao segundo capítulo, apresenta as inquietações primeiras do autor e o seu

percurso por dentro da medicina, no campo da saúde coletiva, uma trajetória que

ofereceu o substrato para a conformação do problema, expresso através de uma

pergunta fundamental que norteia a pesquisa: É possível a transformação da prática

médica em práxis médica, a partir da Estratégia Saúde da Família? A resposta a essa

questão foi positiva e procurará mostrar que a práxis médica se realiza através do

princípio ético do diálogo. Nessa seção, são explicitados, também, os elementos teóricos

e metodológicos norteadores da construção do trabalho.

O capítulo 3 reconstitui a evolução do conceito de saúde-doença, partindo

dos povos primitivos e da Antiguidade Clássica, da Idade Média e da Era Moderna, até

a contemporaneidade. Nessa reconstituição, é contemplada a evolução da medicina e da

prática médica, parametrizadas pelos elementos que entraram na composição do

conceito em cada período histórico. Ao mesmo tempo, é evidenciado que o diálogo,

presente na sociedade grega antiga, onde nasceu a medicina hipocrática, foi, pouco a

pouco, sendo deixado de lado, a partir da queda do Império Romano do Ocidente, e se

fez ausente nos outros períodos históricos, sobretudo durante a Idade Média.

O capítulo 4 apresenta uma reconstituição das questões e dos contextos que

marcaram a história das políticas de saúde no país, no último século. Aqui, também se

procurou demarcar um conjunto de elementos compositores de um cenário que findou

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por condicionar a evolução da saúde, como prática e como política no país. Foi dada

atenção à República Velha, período em que o Brasil começou a fazer a transição lenta e

gradual de um modelo econômico e político, fincado na produção agrária e rural, para

outro baseado na industrialização e na urbanização da sua produção econômica e social,

a tônica do Estado Novo getulista. O capítulo trata, ainda, da evolução da saúde

pública, do nascimento da previdência social e da assistência médico-previdenciária

brasileira, do processo de redemocratização do país, do salto desenvolvimentista e da

consolidação do Brasil como país industrial. Além disso, foi feita uma abordagem sobre

o momento de instabilidade política do início da década de 60, que culminou com o

golpe militar, seus reflexos em todos os campos da vida brasileira e, posteriormente, no

processo de distensão política da ditadura, onde teve início o processo denominado de

Reforma Sanitária brasileira.

O capítulo 5 caracteriza a Reforma Sanitária como uma construção teórico-

política do movimento sanitário nacional. São recuperados os elementos teóricos,

metodológicos e políticos, alimentadores do movimento político e ideológico que

redundou na criação do Sistema Único de Saúde – SUS. Trata da evolução do

arcabouço jurídico-político e da composição dos elementos constituintes da sua prática

em direção à descentralização político-administrativa representada pela municipalização

das ações de saúde, com seus rebatimentos sobre o modelo de atenção e sobre as

práticas em saúde, tendo em perspectiva a sua transformação numa práxis em saúde.

No capítulo 6, constam considerações acerca do Programa de Atenção

Básica à Saúde, como política nacional resultante da construção do movimento da

Reforma Sanitária Brasileira, lócus privilegiado de disputas políticas e ideológicas que

transformaram a face da saúde como política pública no país e do seu potencial crítico e

prático e sua possibilidade concreta de transformar a prática médica. Aponta que é

principalmente via Estratégia Saúde da Família que se dá esse tipo de atenção, e onde

são reveladas as contradições fundamentais da prática médica tradicional, colocada em

xeque pelas concepções do SUS. Além disso, mostra que a Estratégia Saúde da Família,

como modelo de atenção básica à saúde, assume um sentido doutrinário e, ao mesmo,

tempo prático, que possibilita uma reorientação da atenção à saúde e da prática médica,

no sentido de uma práxis médica que educa, sendo popular, e discute as possibilidades

do diálogo como atitude ética na realização da práxis que se deseja para essa estratégia

de atenção.

O Capítulo 7 coloca em evidência os avanços, os conflitos e as contradições

da prática médica na sua trajetória de transformação em práxis médica, em experiências

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da Estratégia Saúde da Família, na Paraíba, a partir da discussão de elementos extraídos

da experiência direta do pesquisador na supervisão e tutoria de profissionais de saúde

(médicos e enfermeiros) durante a implementação do Programa de Interiorização do

Trabalho em Saúde (PITS), uma iniciativa de reforço à Estratégia Saúde da Família

levada a efeito pelo Ministério da Saúde. É também aproveitada a experiência do

pesquisador como gestor público de saúde, momento em que, coordenando a

implementação do SUS na Paraíba, acompanhou, mesmo que de forma indireta, a

atuação da Estratégia Saúde da Família, em Campina Grande (PB). Essa experiência é

resgatada na recuperação de textos oficiais e ilustrada por testemunhos escritos de

profissionais de saúde, gestores e população, recolhidos de publicações da Secretaria

Municipal de Saúde.

O Capítulo 8, ao contemplar a tese proposta, transforma-se numa

especulação filosófica que retoma a pergunta inicial e a tese defendida, constatando que

ela retorna plena de novas interrogações, que precisam ser pesquisadas,

problematizadas, respondidas, abrindo perspectivas para novos desdobramentos. A

especulação se desenvolve, sugerindo-se que a pedagogia freireana é fonte de inspiração

para a transformação da prática médica em práxis médica e que a sua inserção no

desenvolvimento dessa prática possibilita novos sentidos a todo o cabedal de

conhecimentos técnicos adquiridos pelo médico, redirecionando a sua atitude ética,

através da formação da consciência de que a medicina e a prática médica são formas de

intervenção no mundo. Que tudo o que foi aprendido pelo médico pode ser ensinado, e

que ele muito ainda poderá aprender ao intervir, desde que reconheça naqueles que

necessitam dos seus serviços um sujeito de conhecimento, alguém capaz de aprender e

de lhe ensinar algo.

O capítulo das Considerações, que encerra o texto da tese, mas não, as

discussões por ela suscitadas, reafirma as principais questões que estão implicadas na

transformação da prática médica em práxis médica, reconhecendo que estas estão

refletidas na tensa relação entre estrutura e sujeito. Esclarece que a tradução dessa

tensão na práxis médica da atenção básica, promovida pela Estratégia Saúde da Família,

representa um salto de qualidade tanto para a compreensão da prática do médico quanto

para a estrutura dos serviços de saúde, na medida em que novos espaços são abertos

para a transformação das relações interprofissionais e comunitárias. Entretanto, esse é

um processo ainda atravessado por muitas contradições.

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2 ELEMENTOS PARA A PRÁXIS MÉDICA

A história e as experiências teóricas e práticas vividas por qualquer

pesquisador jogam um papel importante na construção de sua pesquisa. Explicam e

justificam a escolha do tema, o desenvolvimento do trabalho e as reflexões feitas a

partir dele. Com esta pesquisa, não acontece diferente. O seu ponto de partida recupera

inquietações que remontam vivências do autor na graduação em Medicina, num período

entre o final dos anos setenta e o início dos oitenta, do século passado, em Campina

Grande (PB). Essas inquietações seguiram reverberando na sua prática, desde lá, para se

expressar numa dada concretude da realidade atual.

Mesmo ainda não tão precisas, aquelas inquietações conformavam: a) uma

preocupação com o conteúdo da formação em medicina; b) o sentimento de que ser

médico implicava a formação da consciência, o exercício da responsabilidade e do

compromisso em relação ao outro e c) a percepção de que a participação livre e

democrática da sociedade na problematização da questão saúde seria o caminho mais

adequado para a síntese e implementação de políticas públicas abrangentes, na

perspectiva do acesso à qualidade de vida.

No centro dessas inquietações, pode-se dizer que havia uma especulação

teórico-prática sobre a possibilidade de construção de uma práxis médica que se

orientasse pela perspectiva da produção da saúde1, nas suas dimensões individual e

coletiva. Três ordens de questões redobravam essas preocupações: o poder nas

instituições médicas, públicas e privadas; o sentido mercadológico preponderante na

organização da prática médica; e o potencial desumanizador que se explicitava nessa

prática, nos modelos de assistência vigentes.

Essas discussões, que derivavam do contexto sócio-econômico, político e

ideológico, atingiam a educação médica e, assim, produziam o combustível fundamental

para os embates internos e externos aos movimentos sociais, entre eles, o estudantil,

particularmente, o movimento dos estudantes de medicina. Parte significativa desse 1 A medicina tradicional, dominante no mundo ocidental contemporâneo, sempre orientou a sua prática no sentido da intervenção assistencial sobre a doença. E mesmo quando se volta ao indivíduo doente, este é absorvido do ponto de vista de um organismo humano avariado; uma espécie de máquina, como sugere a metáfora cartesiana, que precisa ser reparada, medicalizada, curada. Um indivíduo descontextualizado e desprovido de quaisquer qualificativos que não os puramente biológicos, ainda que o seu reconhecimento social seja possível. Um reconhecimento, na maioria das vezes, feito de forma não integrada. Ou seja, o ser social e o ser biológico não são percebidos como uma unidade, mas como coisas estanques e separadas, do ponto de vista do processo saúde-doença.

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movimento denunciava, rejeitava e resistia ao modelo flexneriano2 de educação médica,

que privilegia uma prática médica curativa, individual, tecnificada, especializada e

centrada no atendimento hospitalar.

A denúncia, a rejeição e a resistência guardavam relação com a dificuldade

de acesso da maioria da população a essa modalidade de atenção médica, dado o seu

custo alto e crescente. Há de se reconhecerem, entretanto, os limites práticos e objetivos

do movimento dos estudantes que, além do mais, expressava-se em meio a uma

conjuntura muito desfavorável, em função da situação política e social do país. Depois,

cabe reconhecer que a sensibilidade para questões sociais e econômicas e, portanto, de

cunho mais ideológico, não era, como não é ainda hoje, um traço comum dos estudantes

de Medicina, quase todos pertencentes às camadas mais abastadas e afeitas a valores

materiais, hábitos e tradições convencionais. Apenas as lideranças mais combativas e

atuantes desse movimento detinham uma identidade política e social mais ampla, que se

expressava em outros coletivos que não aqueles mais comuns nas faculdades de

Medicina.

A construção da consciência sanitária impelia aqueles que participavam dos

movimentos sociais da época a um raciocínio de integração dessas três questões. O

espaço dessa integração era a Saúde Coletiva3 que, naquele momento, construía-se

como campo teórico interdisciplinar e como espaço de práticas de resistência e crítica à

mercantilização da medicina e a forma de organização do Sistema Nacional de Saúde.

Para esse campo, a formação em saúde, a prática médica e as políticas de saúde

formavam uma unidade, uma totalidade na realidade e na consciência, enquanto

concreto pensado. Restava, pois, o trabalho de disputar espaços na sociedade, no sentido

de se passar do mundo concreto a uma realidade transformada.

A formação teórica buscada no universo da Saúde Coletiva vinha reforçar

conhecimentos, expandir a visão de mundo e a capacidade crítica, oferecendo os

fundamentos para um repensar do próprio mundo, a partir da realidade em que se estava

2 Referência à filosofia de Abraham Flexner, profissional da educação, contratado no início do século XX pelos governos americano e canadense para enfrentar a crise da formação médica naqueles dois países.3 Saúde Coletiva é uma expressão que designa um campo de saber e de práticas referido à saúde como fenômeno social e, portanto, de interesse público. As origens do movimento de constituição desse campo remontam ao trabalho teórico e político empreendido pelos docentes e pesquisadores de departamentos de instituições universitárias e de escolas de Saúde Pública da América Latina e do Brasil, ao longo das últimas décadas. Esse campo nasceu da crítica aos sucessivos movimentos de reforma em saúde – originários da Europa e dos Estados Unidos – a saber: Saúde Pública e Higiene, Medicina Preventiva, Medicina Comunitária, Medicina de Família, Atenção Primária à Saúde. O movimento dessa crítica é que delineou, de forma progressiva, o objeto de investigação e as práticas em Saúde Coletiva.

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imerso. A formação prática nos seus campos de treinamento, representada pelos

municípios associados ao programa de pós-graduação, oferecia o substrato para a

organização e operação de sistemas locais de saúde e para a prática médica em atenção

primária4. Nesses municípios, favorecidos pelas experiências vividas nos movimentos

mais gerais durante a graduação, podia-se reconverter parte do conhecimento

acumulado nas experiências práticas de saúde. Era privilegiado o contato com a

população que, nas suas necessidades conscientes ou inconscientes, cobrava ou esperava

soluções para os seus males, os nossos males. Lá se exercitavam os conflitos próprios

da organização do sistema de saúde, da formação e das próprias práticas em saúde,

porém, com um diferencial: a liberdade de exercitar neles a implementação de algumas

mudanças na sua condução e nas suas práticas5, mesmo que apenas temporariamente e

por um período curto.

A entrada para a Universidade, como docente, tornou-se conseqüência

lógica dessa trajetória inicial. Atuando no Centro de Ciências da Saúde da Universidade

Federal da Paraíba (CCS/UFPB) voltado para a saúde coletiva, passava-se a conviver

com outros atores no ensino, na pesquisa e na extensão (graduação e pós) e com o ofício

de desvendar com eles as particularidades e singularidades envolvidas nas contraditórias

relações sociais que resultam no processo saúde-doença, no adoecer e morrer da

população e nas políticas de saúde que, em tese, são levadas a efeito para fazer frente

aos problemas de saúde. Esse contato renovava a compreensão de que a vida só nos leva

a caminhos, possibilidades e circunstâncias que nós mesmos construímos.

4 A opção por esse campo foi oportuna em vários sentidos. Primeiro, porque abriu espaço à pós-graduação em Medicina Preventiva e Social, um lócus de resistência ao modelo tradicional de medicina e sua prática médica. Depois, pôde-se recusar o modelo médico-assistencial formal, privatista ou público e evitar a submissão tanto ao esquema de assalariamento proposto pelo regime hospitalocêntrico quanto ao caos da atenção primária praticada nos municípios, que também levava ao assalariamento, só que de natureza estatal. Recusava-se, igualmente, a prática médica baseada no poder médico centralizado, autoritário e antidialogal. 5 A Residência em Medicina Preventiva e Social da UFPB, operada a partir do Departamento de Promoção da Saúde, do Centro de Ciências da Saúde, do ponto de vista legal, selecionava apenas médicos, por ser credenciada pela Comissão Nacional de Residência Médica da SESU/MEC. Porém, como funcionava conjuntamente com outro programa, aberto para as demais profissões da saúde e que formava especialistas em Saúde Pública sob a forma de residência, financiado pelo INAMPS/MPAS, éramos, na prática, uma Residência Multiprofissional. Isso foi fundamental para a construção de saberes coletivos com bases não só multiprofissionais mas também interdisciplinares, o que enriquecia a compreensão crítica do processo saúde-doença e, ao mesmo tempo, a produção e execução de propostas de atuação junto às comunidades em que exercíamos as nossas práticas. A idéia da saúde, enquanto práxis social, poderia não apenas ser teorizada, mas, sobretudo, construída, partilhada, vivenciada, num movimento tenso e, por vezes, complicado, ainda que dialógico.

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No campo da pesquisa, vale destacar uma experiência vivida na Construção

Civil6, a partir de um trabalho de intervenção e assessoria ao sindicato de trabalhadores

daquela categoria. Naquela oportunidade, desenvolveu-se, entre várias iniciativas, uma

prática médica ambulatorial baseada na proposta de atenção à saúde do trabalhador e

pesquisou-se a relação trabalho e saúde-doença, em que foi empregada a metodologia

do modelo operário7, conjugando a experiência e o saber científico da academia com o

saber e a experiência dos operários.

Talvez tenha sido essa uma experiência basilar em termos de prática

médica, por meio da qual se pode - com base em aprendizagens anteriores e na

acumulação de novos saberes aprendidos com colegas médicos, profissionais da área de

saúde e de fora dela, pesquisadores e trabalhadores - articular os elementos que viriam a

fomentar a reflexão sobre a possibilidade concreta de se poder exercer uma prática

médica horizontalizada, democrática, participativa, dialógica, capaz de elevar-se à

categoria de uma práxis médica e, ainda, ajudar a construir o campo da saúde do

trabalhador, na Paraíba.

O acúmulo e a vivência dessa experiência implicaram a aproximação com o

Projeto Escola Zé Peão8, onde foi travado um diálogo, ora com a coordenação do

projeto e seus alunos/educadores, na formação de competências para o trabalho

educativo com os operários das indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de João

Pessoa, ora com os próprios trabalhadores com quem foi mantido contato em visitas aos

canteiros/salas de aula para diálogos sobre temas específicos da saúde e da atenção em

saúde, numa tentativa de desenvolver estratégias de compreensão do processo

saúde/doença no contexto do trabalho na construção civil e das suas próprias vidas, uma

6 Essa experiência envolveu docentes, estudantes de graduação e de pós-graduação, reunidos em torno do NESC/CCS/UFPB e do SEAMPO/CCHLA/UFPB. Conferir em: ARAÚJO, L.M. – Trabalho e Saúde-Doença nas Indústrias da Construção Civil de João Pessoa (PB). Dissertação de Mestrado. MCS/CCHLA/UFPB, João Pessoa, 1995.7 Metodologia forjada pelo movimento operário italiano, em contato interdisciplinar com técnicos e pesquisadores de várias áreas do conhecimento. Essa metodologia firmava-se nos seguintes princípios: valorização da experiência e da subjetividade dos operários; não delegação da produção de conhecimento; na formação de grupos homogêneos de trabalhadores para reflexão; e na validação consensual das informações e análises. Ver: ODDONE, I. et al. – Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo, CEBES/HUCITEC, 1978. 8 Trata-se de uma experiência de Educação de Jovens e Adultos, desenvolvida conjuntamente pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de João Pessoa – SINTRICOM – e pelo Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba – CE/UFPB. A Escola Zé Peão funciona nos canteiros de obras da construção civil, desde 1991, tendo uma metodologia de trabalho inspirada na filosofia e pedagogia freireanas.

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oportunidade em que todos, de certa forma, reorganizaram o próprio conhecimento, na

perspectiva de construção da cidadania9.

Complementa a trajetória de experiências a atuação na gestão do Sistema

Único de Saúde, nas suas esferas estadual e federal, e na gestão das práticas

profissionais de saúde na atenção primária da Estratégia Saúde da Família10. Através

dessas atividades, foi possível sentir as contradições existentes entre a utopia e a

realidade do ofício de pensar e fazer saúde num país tão complexo, desigual e

multifacetado como o Brasil. Trabalhando de forma direta e indireta, com as

contradições das políticas de saúde e da prática médica no interior das equipes de saúde

e mesmo fora delas, foi possível pesquisar as dificuldades desses profissionais num

trabalho que exige integração e parcerias multiprofissionais, interdisciplinares e

comunitárias.

2.1 A pergunta inicial

A área da Saúde Coletiva é um espaço privilegiado no desenvolvimento de

análises e reflexões sobre as práticas em saúde, em particular, sobre a prática médica,

entendida para além das técnicas ou procedimentos de atendimento ao paciente11 ou à

9 Para uma noção mais exata da experiência, sugere-se a leitura do ensaio que versa sobre a construção do currículo relativo à saúde no Projeto Escola Zé Peão, em que se analisa como alguns elementos da pedagogia freireana entram na discussão da saúde e são introduzidos no currículo específico do projeto, com a finalidade de reorganizar o conhecimento dos seus educadores e educandos. Na discussão, a saúde é entendida como síntese de múltiplas determinações e trabalhada como uma das questões nodais na construção da cidadania de educadores e educandos. ARAÚJO, L.M. – Saúde e educação popular: a organização do conhecimento a partir das experiências e do “mundo da vida”. João Pessoa, mimeo sd. 10 A Estratégia Saúde da Família é a política do Ministério da Saúde para a atenção básica à saúde da população, desde 1994, quando começou a ser implantada. Apesar do batismo inicial dessa política como Programa de Saúde da Família (PSF), designação que se mantém no uso geral e, muitas vezes, nos próprios documentos oficiais, o próprio Ministério da Saúde, posteriormente, adotou em documentos onde explicita de forma mais profunda a sua metodologia de trabalho nessa área de atenção à saúde, o termo Estratégia, querendo afirmar o potencial reorganizador e transformador que essa iniciativa pode encerrar, na medida em que aprofunde o seu caráter de horizontalidade e inclua, em efetiva construção, todos os personagens que fazem parte da sua cena: população, profissionais, gestores e fazedores de políticas, motivo pelo qual adotaremos neste trabalho a mesma expressão. 11 O termo paciente ficou consagrado na linguagem médica como pessoa doente, que está sob cuidados médicos ou que se submete ou espera o resultado de um exame. Entretanto, há outras palavras que, na área da saúde, designam a mesma condição, como é o caso do termo cliente, mais comum na linguagem da medicina privada ou liberal. Há ainda o termo usuário, cunhado mais recentemente para designar aquele que interage com uma ação ou serviço de uma política pública (a política de saúde, por exemplo). É o termo mais utilizado hoje, nos documentos oficiais da saúde e na linguagem dos movimentos sociais, até para tentar fugir de outros significados que o termo paciente adquiriu na língua portuguesa e que, no

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uma comunidade. O uso crítico desse espaço tem permitido que se chegue ao

convencimento de que a Medicina, como área de conhecimento e campo específico de

práticas, não é capaz de, sozinha, dar respostas para a maioria das perguntas que a

realidade de vida e saúde do povo impõe.

Uma dessas evidências está no desenvolvimento da Estratégia Saúde da

Família (ESF) como política de atenção básica à saúde, derivada do Sistema Único de

Saúde (SUS). Essa Estratégia, que já superou as vinte e sete mil equipes de saúde

implantadas no país, vem incorporando o planejamento na gestão, execução e avaliação

das suas ações e serviços. Mas, por mais que se tenha avançado e produzido com esse

modelo de atenção, tanto do ponto de vista da extensão de cobertura com a medicina

clínica quanto da compreensão social do fenômeno saúde-doença, velhas e novas

perguntas se multiplicam, cobrando respostas e promessas até então não cumpridas por

esse campo da atenção primária de saúde.

Essas perguntas reclamam novas formas de abordagem, novas técnicas e

novos olhares sobre situações que compõem o processo saúde-doença da população,

talvez ainda não resolvidas por conta de insuficiências nas práticas profissionais – a

prática médica em particular – que resultam dos modelos de formação, atenção e gestão,

empregados, até então, no âmbito das políticas conformadoras do setor de saúde.

A realidade de trabalho da ESF coloca o médico diante de novas relações

interprofissionais, sociais e comunitárias, reclamando dele, como dos demais

profissionais de saúde ali inseridos, novas formas de abordagem e novos olhares sobre

situações que compõem o processo saúde-doença da população. Coloca o médico numa

arena que exige a transformação da sua prática, pois o processo de trabalho tradicional

não se coaduna com as exigências feitas pelo PSF, mas oferece um terreno fértil para

que novas possibilidades possam florescer e gerar acumulação para a prática

profissional do médico e para a vida dos que o rodeiam.

A preocupação com essa problemática leva à compreensão de que avanços

foram conseguidos, porém o inconformismo em relação à prática médica tende a

continuar. As respostas práticas e, sobretudo, as frustrações diante de obstáculos

insuperáveis, pelo menos em curto prazo, trazem novas interrogações que brotam em

caso da afirmação dos direitos de cidadania, são tidos como pejorativos, por conotarem o seu não exercício. É que o termo paciente também é denotativo daquele que sofre ou é objeto de uma ação, ou daquele que recebe a ação praticada por um agente ou que é vítima de abuso ou de ilegalidade do poder. Define o padecente, o resignado, o conformado. Considerando o exposto, os vários termos serão utilizados, cada um dentro do seu contexto e significação.

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forma de incertezas e dificuldades, impulsionando os pesquisadores para a tarefa de

pensar e levar em frente reflexões e questionamentos sobre as possibilidades da prática

médica. Nesse sentido, faz-se um questionamento inicial: É possível para a prática

médica transformar-se em práxis médica, na Estratégia Saúde da Família?

A resposta a esse questionamento será afirmativa, mesmo que uma série de

reflexões ainda possa ser feita, expondo as contradições, as fragilidades e a tensão

vivida pela prática médica no interior da ESF. Afinal, a prática médica não se encerra

numa estratégia ministerial nem nos sistemas locais de saúde, ainda que ali esteja o seu

lócus. A saúde também não se encerra na atenção. É uma construção social, sendo a

dinâmica sociedade o condicionante por excelência da sua produção.

2.2 A prática médica

Historicamente reconhecida como procedimento da atenção à saúde, a

prática médica tem a sua referência original na medicina hipocrática, nascida e

desenvolvida no contexto da Grécia Antiga – sociedade onde o diálogo era privilegiado

como método para a elevação do conhecimento e dos valores éticos humanos. O diálogo

estava inserido na prática médica grega e constituiu muito do que se apreendeu da

medicina hipocrática. Mas, ao longo da história humana, a medicina e a sua prática

foram afastando-se desse valor ético ao assumir outras atitudes. Por conta disso, o que

se tem, na era contemporânea, é uma prática que quase esqueceu aquele ensinamento ao

ser aprisionada pela técnica e pelo exercício de um saber centrado no profissional de

saúde, ou seja, no médico e nas tecnologias que são postas ao seu serviço.

Considerando-se as reflexões produzidas por Fernandes (1993), pode-se

dizer que, de certa forma, o desenvolvimento da medicina, ao tomar o caminho definido

pela ciência, produziu rebatimentos negativos na relação dialógica do médico com o seu

outro, especialmente com os usuários dos seus serviços. Com o desenvolvimento da anatomia patológica, o interesse médico foi se voltando cada vez mais para as estruturas internas do organismo, à busca de lesões que justificassem as doenças e, com isso, a importância do sujeito foi se tornando cada vez mais secundária. Construiu-se uma nosologia baseada na generalização dos achados anatômicos, sem lugar para o que não possa ser referido ao corpo doente ou, mais especificamente, a órgãos doentes. O lugar

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do indivíduo passou a ser de portador de lesões, estas sim, vistas com interesse e positividade pelo médico. (FERNANDES, 1993, p. 3)

A constatação de tal realidade revela uma contradição, porquanto a prática

médica supõe a existência, a presença e a participação do outro, e não, o seu alijamento.

A idéia da alteridade é inerente às relações humanas, às relações sociais e, por

conseqüência, à prática médica. O distanciamento ou a anulação do diálogo na relação

médico-paciente deixa de ser, pois, apenas uma contradição para se constituir em algo

desumanizador. À verificação e à compreensão de que a prática médica é uma expressão

da própria sociedade, coube o esforço de buscar as contradições, assim como as

possibilidades implicadas nos “quefazeres” da saúde, resultantes da prática médica, tal

qual esta se apresenta nos dias atuais.

A prática médica insere-se no âmbito do trabalho em saúde. É uma prática

reflexiva, porque as decisões a serem tomadas têm implicação na vida e na saúde das

pessoas. Exige, portanto, uma atitude ético-política e uma composição de saberes que

provêm da formação geral (social e humana) do médico, da sua formação técnica

específica e das experiências acumuladas por ele nesses dois âmbitos. Por sua

especificidade, mesmo que não escape à lógica da produção material – responsável, em

última análise, pelas relações humanas – sua normatização técnica nem sempre pode ser

rígida, o que impõe certos limites e dificuldades para uma avaliação mais objetiva da

sua produção. (DELUIZ, 2001, p. 08)

Sendo uma prática social, pois resulta da interação entre os homens, essa

interação é mediada por um conjunto de condições e regras instituídas (ou construídas)

socialmente. Essas situações estão condicionadas pelos aspectos econômicos,

filosóficos, éticos, científicos e técnicos que as envolvem. Assim, reafirmar o caráter

social da prática médica implica ressaltar o seu potencial transformador. A realidade,

entretanto, parece indicar que esse potencial anda esquecido ou, pelo menos, não

aproveitado de modo efetivo12 pelos atores envolvidos nas relações que se dão a partir

dela. Essa constatação revela um primeiro óbice à sua elevação à categoria de práxis.

12 A efetividade deve ser entendida, aqui, como um conceito que resulta de uma síntese de dois outros: eficiência e eficácia. Eficiência, enquanto capacidade de manejar integralmente o conjunto de recursos existentes e presentes numa determinada ação; e eficácia, como a capacidade de auferir resultados positivos a partir de uma ou de um conjunto de ações.

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2.3 A práxis como categoria teórica

A práxis, como ação individual ou social, é uma problemática central na

Filosofia e na Sociologia. E o é, particularmente, para a filosofia marxiana, sobretudo

quando esta aborda a produção material e intelectual do homem, tal qual está exposto

nos Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844. Marx afirma que, assim como a

sociedade produz o homem, esta é, ao mesmo tempo, produzida por ele. Essa produção

resulta da práxis humana e engloba o trabalho propriamente dito, mas, também, as

demais atividades que se objetivam em relações sociais, institucionais, científicas e

artísticas. A práxis é, portanto, a consciência humana objetivada a partir da sua visão de

mundo.

Na tradição marxista, ela pode ser entendida, sob o ponto de vista de

Vázquez (1977), como algo que se traduz na produção e autocriação do homem. Para

esse autor, falar de práxis significa falar da capacidade criadora e transformadora do

homem, da capacidade que ele detém de estar, a partir da sua ação/reflexão/ação,

criando e enfrentando novas necessidades, novas situações e soluções, recriando, nesse

movimento, a si próprio e aos que estão ao seu redor.

A discussão sobre práxis aparece com destaque em Gramsci (1978). Ele

utiliza o termo filosofia da práxis numa concepção em que assimila a unidade teoria-

prática13. Um momento importante dessa discussão é a crítica à décima primeira tese de

Marx sobre Feuerbach, onde está escrito que o papel do homem é mudar o mundo, e

não, apenas interpretá-lo. Escreve nos Cadernos do Cárcere que essa tese não deve ser

tomada como um gesto de repúdio a qualquer espécie de filosofia, mas como afirmação

da unidade teoria-prática. Gramsci concebe que o indivíduo não pode ser separado do

pensamento, o homem, da natureza, a atividade, da matéria nem o sujeito, do objeto.

Enveredar por essas separações pode implicar um conjunto de abstrações estéreis ou

uma das formas de religião.

Considerando as várias atividades humanas, esse pensador define o homem

como um ser em permanente processo. Na sua concepção, o homem não entra em

13 A unidade teoria-prática em Gramsci deu lugar a um conjunto de discussões que fogem ao objetivo central deste trabalho, mas que, sendo da maior importância para a Sociologia contemporânea, abriu espaço para que esse pensador definisse uma série de conceitos capazes de interpretar o mundo com suas estruturas e seus diversos sujeitos: hegemonia, bloco histórico, intelectual orgânico, aparelho de hegemonia, revolução passiva, novo senso comum, conformismo de massa, são alguns desses conceitos.

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relação com a natureza simplesmente por ser ele mesmo natureza, mas por meio do

trabalho e da técnica. Entendido individualmente, ou como um todo social, não só

compreende as contradições da sociedade, mas põe a si mesmo como elemento da

contradição e eleva esse elemento a princípio de conhecimento e de ação.

Entendido dessa forma, o homem é síntese das relações existentes e da

história dessas relações. Isso o remete ao passado. Entretanto essa relação com o

passado não compromete a sua possibilidade de mudar o mundo, uma vez que esse

homem pode se associar aos demais, desejosos da mesma mudança. E caso essa

mudança seja racional, poderá ser obtida uma mudança bem mais radical do que aquela

que, à primeira vista, pode parecer possível.

A práxis, no pensamento gramsciano, é construção de vontade coletiva. E

esta corresponde às necessidades que emergem das forças produtivas objetivadas ou em

processo de objetivação, bem como da contradição entre essas forças e o grau de cultura

e de civilização expresso pelas relações sociais. Está implícito nela, que aparece como

uma concepção filosófica, uma série de ciências da natureza e do homem. Tomadas

isoladamente, tais ciências podem ser consideradas como independentes, porém,

consideradas como expressão da possível contradição entre atividades criativas e

relações comunicativas de tipo social, passam a fazer parte da filosofia da práxis e,

desse modo, podem influir sobre a política, isto é, aquelas mudanças que tornam um

indivíduo ou um grupo capaz de entrever um novo modo de viver e níveis superiores de

civilização.

2.4 A teoria da práxis na saúde

Considerando-se a especificidade da práxis em saúde, o seu estudo convida

à utilização de algumas categorias básicas, presentes nas teorias sociológicas. Dentre

essas categorias, duas aparecem, devido à repercussão filosófica que têm tido e às

implicações teóricas e práticas que têm gerado a partir do viés da saúde coletiva:

estrutura e sujeito. Para Minayo (2001), utilizar esses conceitos constitui-se uma

necessidade, porquanto eles poderão possibilitar um duplo movimento, ora de alargar,

ora de estreitar a compreensão, sobretudo em face das teorias que enfatizam o

determinismo do social como exigência para se compreender o objeto saúde; das

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correntes que conferem um papel ativo à subjetividade; do debate atual inspirado nas

teorias complexas e das repercussões dessa tensão teórico-prática no campo da saúde.

Originário do pensamento das ciências exatas, o termo estrutura data da

transição entre os séculos XVI e XVII e traduz o conjunto de elementos e o modo como

um edifício é construído. Diz da inter-relação das partes constituintes do todo de uma

construção. Mas o conceito de estrutura, mesmo tendo nascido nas ciências exatas, não

se circunscreveu apenas a elas e invadiu as ciências sociais. Durkheim (1985), Marx e

Engels (1986) e Radcliffe-Brown (1973) foram alguns dos pensadores que, em

diferentes perspectivas, serviram-se da idéia de estrutura, no seu sentido figurado, para

o desenvolvimento de suas teorias.

Lévi-Strauss (1974) introduziu o pensamento estruturalista na antropologia,

e Althusser (1980) trouxe para o marxismo toda a força da idéia de estrutura,

constituindo o que se convencionou chamar de marxismo-estruturalista. Ambos

tentaram compreender o homem e a sua ação na sociedade a partir desse conceito, que

Merton (1970) também adota ao desenvolver sua teoria, aproximando-o do conceito de

função, de análise funcional, para entender os tipos ideais de papéis sociais

desempenhados pelos sujeitos dentro das intrincadas redes de relações em que vivem.

Spencer (1885) foi o primeiro a utilizar esse conceito nos seus estudos.

Fazia uma associação direta entre estrutura e função, em analogia com o desempenho

anatômico do corpo humano, para indicar aquilo que se constitui como aspectos estáveis

e conformadores da realidade e os elementos de sua constante atualização. Essa

transferência dos termos das ciências biológicas está presente durante todo o

desenvolvimento da Sociologia de forma problemática, pois, como o mostram vários

críticos sociais, entre a realidade social e o mundo biológico existem profundas

diferenças qualitativas.

A noção de sujeito, da mesma forma que o conceito de estrutura, não é

consensual nas teorias sociológicas. Ela aparece nas ciências sociais em contraposição

às correntes estruturalistas. As teorias compreensivas enfatizam o lugar do sujeito e da

subjetividade na construção social e, a partir daí, analisam as estruturas sociais. É o caso

das teorias fenomenológicas, interacionistas e da ação, estas explicitamente. Sujeito

individual, sujeito coletivo, sujeito histórico e sujeito cultural são alguns termos que as

diversas abordagens sociológicas marxistas utilizam, quando tratam dessa questão.

Pode-se dizer que o papel do sujeito está bem definido no Manifesto

Comunista, quando Marx e Engels definem os elementos da transição de uma formação

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socioeconômica para outra e colocam o homem como sujeito dessa transformação

histórica. Para eles, o papel do homem (sujeito) na história nem é espontâneo nem

automático, mas resultante do desenvolvimento da sua consciência na relação com os

outros homens. Por isso, a afirmação de que a história não faz, não realiza lutas, não

possui. O homem é que faz, luta, realiza e possui tudo. A história não é senão a

atividade do homem que persegue seus fins. Nessa atividade, estão em jogo as questões

do ser humano, da liberdade, da alienação, das forças da luta de classes na história e das

forças subjetivas em conflito e confronto pelo domínio dos processos sociais.

Talvez, por isso, a questão do papel do sujeito na história tenha ocupado

tanto os marxistas, a partir da segunda parte dos anos 70, como comenta Anderson

(1984), ao afirmar que a importância dessa questão para o marxismo reside na natureza

das relações entre estrutura e sujeito na história e nas sociedades humanas. O autor

refere que esse é um tema central no materialismo histórico como explicação de seu

desenvolvimento, sempre com permanente oscilação da compreensão das contradições

entre forças produtivas e relações de produção no papel de motor primário de

transformação histórica. Essa é uma discussão que, de tão importante, ocupou espaço

considerável na obra de autores importantes, como Lukács, Sartre, Gramsci, Thompson,

Kosic, Schaff, dentre outros.

Thompson, que está entre os mais importantes marxistas do século XX,

empenhou-se, nas suas pesquisas, em fazer uma releitura do marxismo. Uma releitura

que apresenta discussões inovadoras referentes à questão do determinismo econômico e

a aspectos considerados fundamentais no materialismo histórico. Seus estudos, dando

ênfase à questão da cultura, proporcionaram um novo vigor à forma de pensar acerca da

experiência da classe trabalhadora, ressaltando a sua resistência14.

O percurso teórico de Thompson, em oposição à tradição stalinista e à visão

althusseriana, traz contribuições importantes para a compreensão das transformações

ocorridas no mundo contemporâneo. Com acuidade e intensa investigação histórica, foi

empreendendo um novo modelo de pesquisa dos fenômenos históricos, mantendo o

rigor teórico, dialogando com a empiria e mostrando que a experiência de homens e

mulheres, na produção de sua vida material, está relacionada à cultura e seu uso no

cotidiano das lutas travadas. Nesse sentido, aproxima-se de Paulo Freire, que considera 14 Thompson é considerado um dos mais significativos teóricos da contemporaneidade. Tem influenciado os estudos no campo da história desde os anos 80. Mais recentemente, a partir do final da década de 90 e início deste século, sua abordagem teórica tem sido inserida no campo da educação, com significativa recepção, embora ainda não tenha alcançado o patamar e a relevância que a sua teoria comporta.

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o ser humano um ser inacabado e em construção. Um ser em relação, mediado pela

leitura do mundo, pela pronúncia da palavra e pela expressão da cultura, um domínio

em que suas experiências sociais se constituem enquanto posicionamento responsável e

ético. Freire (1996) afirma que não se podem negar os condicionamentos genéticos,

culturais e sociais a que estamos submetidos, mas, em nenhum momento, isso significa

que somos determinados. Nas suas palavras, [...] Significa reconhecer que somos seres condicionados, mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático, e não, inexorável. [...] seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Como presença consciente no mundo, não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-se no mundo. Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no mover-se no mundo, e se careço de responsabilidade, não posso falar em ética [...] (FREIRE, 1996, p. 19).

Para Thompson, essa relação do ser humano com a cultura também é

primordial. Ele entende que é pela cultura que os hábitos, os valores, os costumes, as

tradições e os modos de ser dos atores sociais comuns se consubstanciam em suas

formas de produzir, de se relacionar entre si e de participar de um contexto social, num

dado período histórico15.

Em Formação da classe operária inglesa (1987), faz uma história social do

trabalho, tendo como lócus de análise o operariado inglês. Para ele, essa classe não

surgiu por acaso ou de um conjunto de reações em cadeia: “A classe operária não

surgiu tal como o sol numa hora determinada, ela estava presente no seu próprio fazer-

se” (THOMPSON, 1987, p. 89). Em Costumes em comum (1998), ele faz uma

abordagem a partir de uma história da cultura popular, voltando suas lentes para a

experiência cultural dos trabalhadores rurais ingleses pela via de suas tradições e

vivências diárias.

A noção de experiência adquire significado na constituição de suas obras,

tanto em Formação da Classe operária inglesa (1987) quanto em Costumes em comum

(1998) porque nela se vai delineando seu arcabouço teórico-metodológico e

empreendendo dimensionalidade a essa categoria. Na sua visão, foi na luta constante

15 No âmbito da tradição marxista, Thompson deu um novo enfoque para os homens e as mulheres comuns, colocando-os no cenário, e não, nos bastidores, focando-os como protagonistas de sua própria história, pois, ao fazer essa re-elaboração, empreende uma história que pode ser “vista a partir de baixo”, ou seja, daqueles que, tendo participado do processo histórico, ficaram à margem dos seus holofotes.

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travada nas experiências cotidianas que a classe operária inglesa foi-se constituindo

enquanto tal.

Observe-se, porém, que, diferente do que foi construído na obra Formação

da classe operária inglesa, na qual o foco analítico do autor repousou sobre o

operariado, em Costumes em comum, Thompson retrata a experiência cultural de

trabalhadores rurais, salientando seus hábitos e costumes, objetivando que, a partir de

suas experiências e vivências diárias, esses atores sociais se constituíram e, nesse

sentido, sua vida e consciência social foram se delineando. Especificamente quando

chama a atenção à experiência dos trabalhadores rurais, Thompson sublinha que [...] experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas (THOMPSON, 1998, p.189).

O conceito thompsiano de experiência pode ser um fio condutor interessante

na presente pesquisa, onde se procura articular a discussão do exercício da medicina e

sua aproximação com o campo da educação, ressaltando a possibilidade de elevação da

prática médica a uma práxis médica, cuja experiência se realizaria na Estratégia Saúde

da Família. O conceito pode ser tomado como referência para se pensar a questão da

saúde-doença e para que se analise o modo pelo qual a saúde da família tem sido uma

estratégia viável na experiência vivenciada por médicos, demais profissionais, gestores

e usuários participantes desse projeto.

Mais presentemente, Habermas (1989) ocupou-se da relação entre a

estrutura e o sujeito na perspectiva da sociologia crítica da Escola de Frankfurt. Em

Consciência moral e agir comunicativo, mostra a validade de se exumarem as

dimensões da racionalidade, as quais compreendem os conteúdos ético-normativos e

estético-subjetivos humanos. Na sua teoria, defende a necessidade de descolonização do

mundo vital submetido à razão prático-instrumental, dominada pela técnica e pela

tecnocracia.

Quando mira o sujeito, Habermas põe em relevo a concepção instrumental

que o mantém à margem e que olha os outros e o mundo como realização do

conhecimento e do poder. Em contrapartida a essa realidade, propõe a idéia de um

sujeito, em cujo desenvolvimento histórico se situe junto com os outros, e não, sobre os

outros, com o objetivo de compreender-se (a si e ao outro), entendendo o significado

das coisas sensíveis e do agir sobre e através delas no ato de prevalecer sobre elas.

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Reconhece nos sujeitos a capacidade e a possibilidade da ação e vê nessa ação a

possibilidade da crítica capaz de produzir novas ações realimentadoras da sua

capacidade de julgar e definir um agir que busque a transformação.

Ao explicitar o sentido da filosofia de ação comunicativa, sustenta o

conceito de mundo da vida, um espaço social onde se dá o processo cooperativo

hermenêutico, em que os participantes de uma dada realidade se referem ao mundo

objetivo, ao mundo social e ao mundo subjetivo. Essa troca intersubjetiva se apóia,

segundo o autor, no tripé: a) crença nas verdades compartilhadas; b) acordo sobre regras

e normas reconhecidas; c) entendimento das manifestações de vivências subjetivas.

O elemento comum que parece unificar todas as abordagens é a concepção

do ser humano como criador das estruturas, embora estas, em alguma medida, passem a

condicioná-lo. A história figura como produto humano, e a transformação, como ação

humana sobre a história. Estrutura e sujeito constituem conceitos fundamentais

organizadores e diferenciadores de teorias, denotando uma visão particular a respeito

dos processos recorrentes e estáveis da sociedade e das situações de mudança

qualitativa, em particular, do papel produtivo e criativo da subjetividade na construção

do mundo social. Ademais, dentro de posições e premissas diferentes, consciente ou

inconscientemente, muitos pensadores sociais trabalharam/trabalham a temática da

estrutura e do sujeito, ou seja, das permanências e das transformações.

2.5 A práxis em saúde: diálogo

Esta pesquisa propõe a análise das possibilidades de acumulação16 da prática

médica, na perspectiva da práxis – vale dizer enquanto atividade educativa, dialógica –

num contexto, de partida, já contraditório, se considerados os registros relativos aos

modelos de sociedade, de escola e de política social vigentes no país. Ambas

16 O conceito de acumulação, aqui, é emprestado do Planejamento Estratégico Situacional (PES) e do Método ALTADIR de Planificação Popular (MAPP), no sentido de salto de qualidade, de ganho individual e coletivo, auferido a partir da construção coletiva de atores sociais que discutem, planejam, avaliam e redefinem, de forma pactuada, a sua prática. Para maiores detalhes, ver: MATUS, C. Planificacion, Política y Gobierno. OPS, Washington D.C. 1987.

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condicionam as práticas sociais, em geral, e a prática médica, em particular, como

expressão da atenção à saúde.

Nesse sentido, é importante reconhecer que se vive numa sociedade

globalizada, antidialogal e autoritária, conforme já criticava Freire (1987) em

Pedagogia do Oprimido. E, nesse caso, é preciso que não se confunda diálogo com

comunicação e com informação pura e simples, mesmo que esses dois elementos sejam

fundamentais para que ele aconteça. O diálogo pressupõe a comunicação e a

informação, mas, antes de tudo, pressupõe entrega, troca, confiança, fraternidade e

honestidade de propósitos humanos.

O fato de se ter avançado sob o ponto de vista da democracia e da afirmação

de conquistas sociais no terreno da cidadania, em vários setores, entre os quais se

podem incluir as conquistas do setor saúde17, não é suficiente para que se deixe de

reconhecer que se vive, ainda, numa sociedade autoritária. Isso pode ser constatado nos

serviços e nas ações de saúde, mas, também, nos demais serviços e ações ligados às

políticas sociais, inclusive os de educação, quando resistem à partilha, à participação, à

discussão e ao controle social (controle externo). O autoritarismo é avesso ao diálogo.

O homem traz da sua ontologia (LUCÁKS, 1979) e ontogenia

(MATURANA; VARELA, 2001) traços de individualidade18 e competição que, a

depender das condições histórico-sociais, econômicas e culturais, poderão levá-lo a uma

ética da retração, da evitação e da escusa ao diálogo19. Isso aparecerá de forma mais

enfática, no capitalismo, como filosofia e como prática econômica que, resultando

desses traços dos seres humanos, aprofundou neles uma ética fundada no

17 O fim da ditadura militar, o processo de redemocratização do país e o ascenso dos movimentos sociais, populares e sindicais resultaram na chamada Nova República e num processo constituinte que introduziu na Constituição Federal um sem-número de direitos de cidadania, a ponto de essa carta constitucional ter sido apelidada de Constituição Cidadã. Foi exatamente nesse processo constituinte que se conseguiu a criação do Sistema Único de Saúde. 18 Lembrar que “A individualidade é uma categoria social e, por isso, sua explicação não se contrapõe antinomicamente à sociabilidade, antes exige uma interação cada vez mais intensa entre a totalidade social e o indivíduo singular [...] Essa exigência no seu patamar mais elevado é a ética; é esta que ata os fios entre o gênero humano e o indivíduo que supera sua própria particularidade” (LUKÁCS, 1981, v. II, p. 328). 19 No sentido de Lukács (1979), a distinção entre o gênero humano em-si e o gênero humano para-si explica a qualidade das ações dos indivíduos. Há aquelas ações que asseguram a conservação do status quo social (gênero humano em-si), em que o peso da heteronomia é particularmente forte; e aquelas ações que têm como objetivo uma auto-afirmação humana, ou o desenvolvimento de uma personalidade autêntica e livre (gênero humano para-si). Nessa distinção, a ação ética foi considerada por Lukács como momento privilegiado da práxis social, locus onde se realiza a autodeterminação do gênero humano para-si, livre e autônomo.

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individualismo, uma ética que os transforma, antes de tudo, em seres da competição ao

invés de seres do diálogo. Essa competição é, muitas vezes, predatória, astuta, manhosa,

planejada, para que cada um dos competidores se esmere no alijamento do outro, no

sentido de tirá-lo do seu caminho com o fito de alcançar seus objetivos20. A ética

capitalista é, na sua essência, antidialógica.

O que se vive no dia-a-dia das relações familiares, das relações em saúde,

das relações sociais, em geral, produtoras da vida cotidiana, envolvendo pessoas das

diversas classes sociais, povos, nações e etnias, pode dar essa medida. Há uma aura de

aparthaid em diversas dessas relações. Há beligerância explícita, declarada e recusa ao

diálogo e à paz. E isso tem feito prosperar sentimentos e atitudes que denotam, cada vez

mais, o ceticismo de que os homens possam construir ou transformar as suas estruturas

e as suas relações.

É uma das idéias mobilizadoras desta pesquisa a busca da possibilidade de

contração de relações sociais, interpessoais, interprofissionais e comunitárias, com força

para criar prospectivas para uma pedagogia capaz de formular elementos para a

construção coletiva de estratégias educacionais, com potencial para responder

socialmente às insuficiências da capacitação formal dos profissionais médicos. Essas

possibilidades estariam no exercício de uma práxis social educativa, dialógica e popular

capaz de reforçar a população e os profissionais como sujeitos das ações e dos serviços

de saúde.

Quando se está falando de uma práxis médica com esses qualificativos, não

se está falando apenas do médico, mas da relação que se constrói a partir da prática

médica. Isso dá sentido a uma discussão que se quer fazer na linha da quebra da

distância na relação do médico com os seus outros, sejam eles os usuários do seu ato, os

seus parceiros de trabalho na equipe de saúde, sejam os gestores das estruturas de saúde.

20 A se tirar pelas guerras e pelas intervenções militares ou políticas, parece haver em frações muito bem definidas da sociedade mundial uma necessidade, quase que doentia, de dominar o outro, de subjugar determinados grupos, povos ou nações para lhes impor idéias, ideologias ou interesses, sejam eles quais forem. Por isso essas frações são cada vez mais arrogantes e narcisistas, fundamentalistas mesmo. E como se vive num grande processo de globalização, também constituído historicamente, essas atitudes vão, aos poucos, reproduzindo-se para outros campos e povos, o que representa uma ameaça à humanidade e, conseqüentemente, às relações dialógicas, as quais dão sentido ao nosso caráter de humanos. As relações sociais na saúde não fogem a esse comportamento e constituem o exemplo mais importante em se tratando deste trabalho.

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2.6 O território como espaço do diálogo na práxis médica

Para ser educativa, dialógica e popular, a práxis médica precisa avançar no

sentido da criação e da transformação. Nesse sentido, pode-se dizer que a noção de

território, fundamental para a organização das atividades de saúde, revela-se pedagógica

para a prática médica e para a sua inserção nas equipes de saúde. É a partir da

operacionalização desse conceito que a organização do trabalho médico pode

experimentar um salto de qualidade, notadamente no âmbito das equipes de saúde da

família (ESF). O sentido de território aqui é o definido como [...] cenário estabelecido por atores sociais no desenrolar de um processo em que os problemas de saúde se confrontam com serviços prestados e onde necessidades cobram ações. Representa muito mais que uma superfície geográfica, tendo um perfil demográfico, epidemiológico, administrativo, tecnológico, político e social que o caracteriza e se expressa num território em permanente construção. (UNGLERT21, 1999, p. 222)

O território é algo dinâmico e está sempre se transformando ao sabor das

ações que lhe são endereçadas ou mesmo dos seus movimentos intrínsecos. Do ponto de

vista das unidades de saúde, ele é um espelho permanente para a atuação das equipes

nele inseridas. Da mesma forma, reflete, ininterruptamente, a imagem das necessidades

de ação ou reivindicação dos diversos atores que o constituem. Do ponto de vista dos

médicos e demais profissionais, pode ser o princípio crítico norteador e educador da

prática, mostrando os limites a serem superados e as possibilidades a serem assumidas.

O território é, pois, um dos conceitos-chave para a organização das ações de saúde e

para a transformação da prática profissional num processo democrático, dialógico,

educativo e popular.

Unglert (1999) sustenta que o processo de territorialização é um passo

importante para a caracterização da população e de seus problemas de saúde. É através

dele que as equipes de saúde podem acessar, de forma mais abrangente e contundente, a

população sob sua responsabilidade e, assim, dimensionar o impacto da sua ação no

sistema, alimentando o processo de trabalho de cada equipe de saúde e de cada

profissional. A aplicação prática desse conceito aproxima realidade (sujeitos e

21 Mais detalhes, ver: UNGLERT, C.V.S. – TERRITORIALIZAÇÃO EM SISTEMAS DE SAÚDE. In: MENDES, E.V. (Org.) Distrito Sanitário – o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. HUCITEC-ABRASCO, 4ª Edição. São Paulo/Rio de Janeiro, 1999.

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estruturas) e teoria e estimula o protagonismo do médico e seus outros (demais médicos,

enfermeiros, dentistas, técnicos e auxiliares da área da saúde e comunidade em geral).

O processo de territorialização estabelece um vínculo de responsabilidade

entre a população e os profissionais das equipes. É progressivo, em termos do seu

detalhamento e de sua penetração, passando por todos os equipamentos sociais

componentes do espaço-território social, chegando até o domicílio, um lugar a partir do

qual as famílias são nucleadas e onde é realizado o processo de adscrição da clientela às

Unidades Básicas de Saúde (UBS). [...] a territorialização se apresenta como a grande contradição entre a proposta de reforma democrática e a do projeto neoliberal. Para este último, o direito a usufruir do sistema está vinculado à capacidade de pagamento, já que a sua lógica é a do retorno econômico, priorizando a atenção à demanda individual. No caso da reforma democrática, a base territorial é fundamental, constituindo-se num dos princípios organizativo-assistenciais do sistema de saúde. (UNGLERT, 1999, p. 222)

Ao assumir como uma de suas diretrizes a vinculação com uma população,

o PSF assume, na prática, o princípio da universalização da ação de saúde. E mais do

que isso, abre espaço para que o profissional de saúde - e aqui se considere o médico na

sua prática - desenvolva um vínculo efetivo com a sua população, o qual só se faz

através do diálogo da troca de informações e de saberes, próprios dos sujeitos em

relação, consignados no território, no contexto mesmo onde essa relação se dá: na

comunidade, no domicílio, na Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF).

O PSF se preocupa com a garantia da integralidade na atenção à saúde. E,

nisso, estabelece um diferencial filosófico e prático em relação ao modelo da prática

médica tradicional, vez que está preocupado com a integralidade física e moral do ser

humano no seu contexto mesmo de vida. Está preocupado com o acesso e o provimento

de assistência ao usuário, mormente num instante em que se acusa um custo financeiro

progressivo que tende a barrar o acesso da atenção à saúde para os segmentos populares.

Outra característica demarcatória do princípio pedagógico desse modelo em

relação ao modelo tradicional é que ele nasce com o trabalho em equipe, com enfoque

interdisciplinar. Isso provoca uma diferença de qualidade fundamental na atenção à

saúde, com um rebatimento positivo para a educação da prática médica. O médico é

chamado a discutir a sua ação dentro de um processo que pode horizontalizar a sua

relação com os seus outros, revelando positividade para as relações interprofissionais e

para a ação junto à comunidade adscrita. Assim, a integralidade vê-se reforçada.

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A cultura e a política, insumos para a conformação das relações de poder,

quando tratadas numa pedagogia para a autonomia, poderão estar a serviço da produção

da saúde, tarefas do médico e do seu outro na relação profissional/usuário. Mas, ao

mesmo tempo, num contexto da sociedade, como um todo, é tarefa de ambos como

cidadãos, transcendendo o simples tratamento de doenças, num movimento que tende a

vencer os processos de conservação do status quo ou de retardamento ou mesmo

obstaculização da mudança ou da transformação da realidade.

Ao assumir uma atitude dialógica na sua relação com o seu outro,

quebrando a atitude antidialogal assumida pelo médico tradicional, essa nova atitude

pode propiciar a abertura de outro tipo de encontro entre as culturas de ambos. Ao

compreender melhor os termos do seu usuário e ao explicar melhor os seus termos,

ambos expandirão o seu conhecimento sobre o mundo e compreenderão melhor a

situação criada a partir do encontro que promovem. Ao entender melhor o seu outro e ao

se fazer entender, médico e usuário estarão transformando a si próprios e, ao mesmo

tempo, criando possibilidades de transformação do universo social em que estão

inseridos.

Nesse sentido, vale a pena lembrar Maturana e Varela, quando afirmam: [...] vivemos com os outros seres vivos [pensemos nos seres humanos] e, portanto, compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos e nos comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida, a responsabilidade cabe a nós [...] se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação [pode-se dizer pelo diálogo]. Essa posição é estranha a quase tudo o que nos chega por meio da educação formal. (MATURANA; VARELA 2001, p. 10-12)

A tradição da prática médica é aquela que distancia o profissional do seu

outro. Uma distância que se dá pela falsa consciência desenvolvida na sociedade de que

o conhecimento sobre o que ocorre no corpo do outro, num dado momento no papel de

paciente, é uma prerrogativa exclusiva do médico. Na relação médico/paciente

tradicional, o médico é aquele que detém o conhecimento; o paciente, não. Ou, pelo

menos, o seu conhecimento não é absorvido senão como queixa, problema bruto,

portanto, livre de qualquer abstração ou interpretação. É aqui, nesse ponto, que a

medicina, dita moderna, tem descartado o diálogo proposto pela medicina hipocrática

como a arte de perguntar e responder.

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O que ensina a escola médica moderna, cartesiana e representacionista é que

o médico não deve se envolver com o senso comum do paciente. Assim, ele apenas

pergunta e anota, tentando fazer um cotejamento comparativo com a literatura

científica. Devido a isso, muitas vezes, deixa de perscrutar, esquadrinhar, indagar com

escrúpulo, perquirir o seu usuário. Não penetra no seu universo, aquele que vai muito

além do biológico e onde, muitas vezes, tem início o seu adoecer. Aliás, essa postura

não é reflexo de uma característica apenas da escola médica, mas, da escola tradicional,

bancária – aquela que vê no outro, na condição de aluno, um recipiente vazio, que

precisa ser preenchido pelo conhecimento emanado dos seus mestres e educadores.

Nessa escola, o currículo é construído a priori e independe do universo do educando.

No campo da medicina, isso equivale a tornar a anamnese22, construída a

partir do problema trazido pelo paciente, em algo que passa, como que por passe de

mágica, a pertencer ao médico. Este se transforma em senhor e protagonista da história

que, na verdade, é do seu outro, nesse momento transformado em mero figurante. A

realização da medicina parece ser algo que se realiza apenas para os profissionais dessa

área do conhecimento. Talvez, aí resida o primeiro “nó” da relação antidialógica e

desumanizadora que se exprime no encontro médico-paciente tradicional.

O desenvolvimento científico e tecnológico tem trazido uma série de

benefícios para o cuidado em saúde, mas, por outro lado, tem provocado um conjunto

de atitudes que distanciam os profissionais de saúde - o médico, particularmente - dos

seus outros. E essa parece ser uma das chaves que promovem a desumanização da

atenção. Talvez seja a hora de uma reflexão: A pretensa objetividade da ciência e a

eliminação da condição humana da palavra, reduzida à mera informação no exame

clínico, justificam-se, do ponto de vista ético?

Quando o médico preenche a ficha de exame clínico, está, muitas vezes,

apenas recolhendo informações que fazem parte do seu ato técnico. Não

necessariamente escutando, no sentido de uma escuta qualificada, a palavra do paciente

que se encontra a sua frente. Nesse ponto, a relação verdadeiramente humana está

22 A anamnese é o primeiro momento de uma consulta médica. Geralmente parte de uma pergunta que quer revelar a queixa, o sintoma ou o problema trazido pelo paciente É a reminiscência, a informação acerca do princípio e da evolução daquilo que fez com que uma pessoa procurasse o médico ou um serviço de saúde. É quando o paciente, guiado pelo repertório de perguntas do médico, recorda e conta a história da sua doença ou problema atual. Tradicionalmente, é também o momento em que o paciente pode, com tranqüilidade, falar do seu padecimento e ser perscrutado pacientemente pelo médico, recebendo deste, ao final da consulta, as informações sobre o seu estado de saúde e os aconselhamentos sobre a melhor forma de agir diante do seu estado. Como se restringiu muito e quase se anulou o saudável diálogo médico-paciente, a anamnese tem cumprido cada vez menos o seu papel.

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presente? A resposta para essas questões pode ser encontrada nas palavras que estão a

seguir: [...] O ato técnico, por definição, elimina a dignidade ética da palavra, pois esta é necessariamente pessoal, subjetiva, e precisa do reconhecimento na palavra do outro. A dimensão desumanizante da ciência e tecnologia se dá, portanto, na medida em que ficamos reduzidos a objetos de nossa própria técnica e objetos despersonalizados de uma investigação que se propõe fria e objetiva. (BETTS, [2002?])

A medicina tradicional trata, geralmente, de descartar, de não levar em

conta, em nome da cientificidade, a história original do seu usuário. Não que se queira

afirmar que tudo o que é dito por ele deva ser tomado ao pé da letra ou como algo

relevante para o encadeamento do raciocínio clínico. Mas não há como deixar de

considerar que, ao colher a história clínica, o médico deve estar atento para os sinais e

mensagens diretas ou subliminares que podem estar vindo com a comunicação feita pelo

usuário. Ela denota, antes de tudo, a sua cultura, o seu conhecimento, a sua maneira de

ver e de fazer andar a sua vida, não devendo ser desprezada. Isso, no entanto,

demandaria do médico um conhecimento para além do saber da clínica, do saber

científico que lhe é exigido.

O exercício de qualquer profissão, especialmente aquelas de grande

superfície de contato com pessoas, exige noções básicas de Antropologia, Sociologia,

Psicologia, Economia e de História da Humanidade. O médico precisa ser alguém com

um conhecimento amplo da sociedade e do contexto onde estão inseridos os seus outros.

Essa perspectiva pouco está presente na forma de disciplinas do currículo dos cursos de

Medicina. E quando isso acontece, aparece em disciplinas optativas, geralmente não

inseridas ou pensadas na perspectiva da formação do médico ou de uma

reflexão/conexão específica. Às vezes, fato raro, isso acontece por obra de docentes que,

detendo uma perspectiva dialógica, tentam complementar o conhecimento dos seus

alunos chamando-os a uma reflexão mais aprofundada do sentido da prática médica.

Certos projetos de extensão23, na área da saúde, são exemplos dessa raridade tão

oportuna.

23 O Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba tem tradição na organização de Projetos de Extensão Universitária. Há projetos curriculares, como é o caso do Estágio Rural Integrado, que estende serviços e ações à comunidade em dezenas de municípios paraibanos, no caso, interiorizando alunos concluintes das graduações em saúde – os graduandos em Medicina dedicam pelo menos dois meses do seu internato nos Sistemas Locais de Saúde – assim como há projetos extracurriculares, devidamente reconhecidos pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, como é o caso do Projeto Educação Popular e Atenção à Saúde da Família e do Projeto Valentina – Apoio Social, Saúde e Educação Popular. Em ambos os projetos, há alunos de graduação em Medicina, assim como de outros cursos da área da saúde, e mesmo de outras áreas do conhecimento que mantêm intersecção com a saúde.

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Aqui reside um segundo problema: o conhecimento, nas suas diversas

formas, tem sido visto pela ciência moderna como a representação fiel de uma

realidade, geralmente fragmentada, que se desenvolve independente do conhecedor. Ao

olhar o mundo, ao explicar o mundo e ao agir no mundo, o homem constrói

representações, toma o mundo como um objeto e o explora para dele tirar benefícios. O

representacionismo e a fragmentação são marcos epistemológicos prevalentes na cultura

contemporânea. Aí repousa a base do nosso modelo científico de cunho extrativista

(MATURANA; VARELA, 2001).

Como seres da cultura – em cuja essência é construída a pretensa

objetividade humana – os homens têm dificuldade de lidar com tudo aquilo que é

subjetivo e qualitativo. Em outras palavras, porque produzem cultura são humanos e,

em sendo seres da cultura, por vezes, esquecem que são humanos. O homem tem

dificuldade de compreender que objetividade e subjetividade, quantitativo e qualitativo,

geral e particular mantêm entre si uma relação complementar, dialética - qualidades

indispensáveis ao conhecimento e, portanto, à ciência.

Assim, o processo educativo desejado para a relação médico-usuário é

aquele em que os sujeitos dessa realidade se encontrem, em primeiro lugar, como seres

humanos para, depois, reconhecerem-se como tal. Havendo esse reconhecimento

humano, as diferenças que pode haver entre eles – sociais, econômicas, políticas,

filosóficas, culturais – poderão ser o caminho que leva à descoberta de que, sendo

diferentes uns dos outros, não precisam negar-se, mutuamente, como seres da

convivência.

Esse reconhecimento constitui o elemento, o qualificativo da sua identidade,

sendo esta a base primordial sob a qual um se apresenta e se reconhece diante do outro.

Estabelecido esse primeiro estágio, a relação educativa inaugura um segundo momento

de reconhecimento, o da consciência de que o outro detém um conhecimento, uma

experiência, um saber que, por distinto, pode ser trocado, ampliando o horizonte de

conhecimento, de experiência e de saber de ambos.

O desenvolvimento dessa consciência pode ser construído através do

diálogo. O diálogo como abertura respeitosa ao outro e no outro. Outro que se funda e

Esses projetos praticam a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, estão voltados para a atenção primária em saúde, desenvolvem uma metodologia de trabalho, cujo eixo principal é a educação popular, trabalham com um conceito ampliado de processo saúde/doença, fazem uma articulação orgânica com os movimentos sociais e populares e desenvolvem uma consciência crítica em relação à organização dos cuidados em saúde.

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se reflete, ao mesmo tempo, no eu e no tu da consciência humana. Um só é no outro, na

disponibilidade curiosa à vida, no ser mais. Nesse ponto, situa-se a base onde se firma o

ato educativo verdadeiro, criativo, solidário, esperançoso, transformador, libertador.

Essa é uma educação que conduz à autonomia e à liberdade dos sujeitos.

Para realçar a categoria fundamental que muito poderá ajudar no processo

de construção de uma práxis médica voltada para a educação popular, é importante a

recorrência à Freire (1987), num trecho que reforça o poder indispensável do diálogo na

construção de uma práxis com potencialidade para produzir soluções para os problemas

humanos, aqui representados pelos que interferem na consecução do direito à saúde.

Assim se expressa Freire: [...] não há diálogo verdadeiro se não há nos sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade. [...] Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso (Freire, 1987, p. 82).

Ao se chegar à conclusão de que diálogo é tudo isso e exige tudo isso dos

dialogantes, precisa-se mostrar capacidade para mantê-lo mesmo entre pensares

diversos, entre sonhos opostos e, ainda assim, concorrer para o crescimento entre

diferentes, para o acrescentamento de saberes.

2.7 A práxis médica como popular

Um aspecto importante a ser aqui enfatizado é que a relação do médico com

os seus outros, além de educativa, também precisa ser popular. Isso requer uma breve

abordagem acerca do conceito do vocábulo popular e em que sentido deve ser

empregado em relação à prática médica, tendo em vista sua polissemia. O popular

esteve presente em todos os momentos da história da humanidade, desde a antiga

Grécia. Naquela sociedade, o popular apareceu de uma forma lírica na poesia de

Hesíodo, quando este falava e decantava, em versos, a vida e as lutas dos camponeses.

O popular estava ligado a terra, aos homens do campo e às suas lutas. Mas a poesia de

Hesíodo, segundo Jaeger (1995), mantinha, para além da exaltação aos campesinos,

uma forte ligação com o trabalho e com a justiça. Pelas suas características e oposição à

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cultura da nobreza, revelava um outro lado da educação do homem grego: o popular

como uma identidade do homem. Daí uma das heranças do conceito: o popular como

identidade do homem rural frente ao homem grego aristocrático. Na poesia de Hesíodo, consuma-se diante dos nossos olhos a formação independente de uma classe popular (grifo nosso), excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas cria a sua própria forma e o seu ethos (grifo nosso) exclusivamente a partir das profundezas da sua própria vida (JAEGER, 1995, p. 103).

Para Melo Neto (2004), a procura por justiça e pela afirmação de um povo,

de uma comunidade ou de uma maioria, ou mesmo de um tipo comunitário, através do

processo educativo, tornou-se traço constitutivo dos movimentos de contestação, desde

os povos antigos até os nossos dias. Servindo-se de diversos exemplos, afirma estar o

popular presente, como uma marca dos movimentos sociais populares, um grande

esforço no sentido da construção da identidade dos grupos sociais em movimento, como

forma de definição de seu campo de ação política e educativa24.

É esse mesmo autor quem afirma que, na contemporaneidade, o popular

responde pelos processos de organização dos setores proletarizados da sociedade,

através de várias experiências de grupos e partidos políticos que trazem o termo popular

nos seus projetos ou nas suas formulações políticas. Nesse sentido, apresenta uma série

de experiências atuais ou que já fazem parte da história recente da América Latina25 em

que o popular assume diferentes concepções e conseqüências, embora todas elas sejam

unânimes na questão de bandeiras de luta, cujo pano de fundo constitui a igualdade, a

justiça, a cidadania, a democracia, a independência, a autonomia, a liberdade e a

fraternidade entre os homens.

Em síntese, seguindo as pistas de Melo Neto (2004), algo é popular quando

traz consigo uma metodologia, um procedimento, um mecanismo que possibilite,

24 Esse autor, citando vários outros pesquisadores, oferece exemplos da atividade de formação da identidade dos movimentos populares, enquanto afirmação e resistência contra os desmandos da Igreja Católica na Idade Média (CALADO, 1999; HOONAERT, 1986). Na Modernidade, ressalta os freqüentes movimentos que marcaram as lutas pela superação da situação política dominante. Contudo, fixa-se no Marx de “O manifesto comunista”, quando este aponta o encaminhamento à classe proletária (classes trabalhadoras, classes humildes, classes populares): a necessidade de luta e de criação de uma alternativa popular ao apresentar como necessária “a conquista do poder político pelo proletariado” (Marx, 1999, p. 30), fecundando os movimentos de libertação em todo o século XX com a sua célebre conclamação: Proletários de todos os países, uni-vos. 25 Para uma visão mais completa do que acaba de ser dito, sugerimos a leitura do texto no qual nos referenciamos assim como uma obra sugerida pelo próprio Melo Neto: LÖWY, M. O Marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais. Editora Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 1999.

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incentive e amplie a participação das pessoas, ou seja, um meio de veiculação e

promoção para a busca da cidadania. Popular, assim, torna-se sinônimo da própria

prática ou de algo promotor de novas formas de intervenção das massas populares.

Algo é popular se expressa um cristalino posicionamento político e filosófico diante do

mundo, trazendo consigo uma dimensão propositivo-ativa voltada aos interesses das

maiorias. Ser popular é tomar consciência e posicionar-se diante do mundo, assumindo

uma posição promotora de mudanças.

Na lauda do próprio autor, [...] Suas dimensões fundantes são: a origem e o direcionamento das questões que se apresentam; o componente político essencial e norteador das ações; as metodologias apontando como estão sendo encaminhadas essas ações; os aspectos éticos e utópicos que, para os dias de hoje, se tornam uma exigência social. (MELO NETO, 2004, p. 157-158)

Essa perspectiva elege um elemento fundamental com força para embasar

essa práxis humana: o diálogo, como imperativo ético, entendido como abertura

respeitosa ao outro e no outro, como disponibilidade curiosa para a vida e o

acrescentamento de saberes necessários ao enfrentamento dos seus desafios. Consoante

a essas idéias, abre-se a tese de que a prática médica pode elevar-se à categoria de

práxis médica, pelo princípio ético do diálogo. O suporte teórico dá destaque para Marx

e Engels, Gramsci e Vázquez sem, no entanto, perder-se de vista a sua crítica em

autores de dentro e de fora do marxismo. A inspiração de Paulo Freire26 foi o elemento

fundamental da problematização sobre diálogo. Diálogo como categoria fundamental

para a construção de uma práxis médica comprometida com o seu quefazer; com a

compreensão social do processo saúde-doença, com a educação da população usuária

dos serviços e ações produzidos pelo SUS.

Saúde e doença formam parte do processo social, constituem uma realidade

historicamente determinada. Estão envolvidas numa contradição que não permite que

sejam consideradas como um complexo de coisas acabadas. Exigem processos em que a

realidade e os seus reflexos na consciência estejam no incessante movimento gerado

26 Apesar de praticamente toda a obra de Paulo Freire se encontrar perpassada pela discussão da categoria diálogo, as principais referências que serviram de guia a esta pesquisa foram: FREIRE, P. – Educação e mudança. Prefácio de Moacir Gadotti e Tradução de Lilian Lopes Martin. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (16ª edição, 1990); FREIRE, P. – Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 14ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1996 – (Coleção Leitura); FREIRE, P. – Educação Como Prática da Liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; FREIRE, P. – Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

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pelas mudanças qualitativas decorrentes do aumento da quantidade de possibilidades,

criadas por essa mesma realidade.

Historicamente condicionado, o ser humano vive o processo saúde/doença

dentro de um mundo cindido em classes sociais. Essas classes representam as distintas

inserções desse homem na sociedade e, por sua vez, condicionam as distintas formas de

adoecer e morrer dos integrantes dessas mesmas classes e o conjunto de todos os

processos da vida social, política e cultural da humanidade (LAURELL, 1983; MARX,

1988).

Destarte, saúde-doença e prática médica estão envolvidas num fenômeno

concreto que possui um lócus na vida e nas relações contraídas pelas pessoas nos

diversos âmbitos das suas vidas e não apenas nas unidades de saúde quando, em contato

com profissionais da área, tornam-se sujeitos ou objetos de alguma intervenção. Um

fenômeno detentor de propriedades específicas que, devido ao seu caráter social,

reproduz-se continuamente no tempo e no espaço, gerando reflexos positivos ou

negativos sobre a saúde da população e na própria prática médica, a depender da sua

direcionalidade e qualidade.

Refletir sobre essa problemática, considerando os pressupostos expostos,

parece conduzir para um pensar crítico e uma abertura constante ao diálogo. Esses são

combustíveis fundamentais para uma relação solidária capaz de conduzir profissionais e

população à conquista da sua tão desejada autonomia e emancipação. São elementos

indispensáveis, que dão suporte a uma práxis transformadora de relações sociais capazes

de construir e proporcionar uma vida saudável.

2.8 A metodologia e os procedimentos técnicos da pesquisa

Para a elaboração deste trabalho, assumiu-se uma abordagem dialética,

acompanhando a idéia de que o mundo não pode ser considerado como um complexo de

coisas acabadas, mas de processos através dos quais as coisas e os seus reflexos na

consciência, ou seja, os conceitos produzidos, as idéias mobilizadas, as coisas criadas

ou transformadas estão no incessante movimento gerado pelas mudanças qualitativas

decorrentes do modo de produção da vida material, que se encontra condicionado pelo

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conjunto de todos os processos da vida social (inclusive os mentais), política e

econômica.

A metodologia desenvolvida é composta de três movimentos: a) um

primeiro movimento de síntese; b) um movimento seguinte de análise; e, c) e um novo

movimento de síntese. A primeira síntese corresponde à recuperação histórica dos

conceitos de saúde-doença, de medicina e prática médica – partindo dos povos

primitivos até os nossos dias – acompanhados das práticas sociais e políticas inerentes a

cada um desses conceitos. Destaca-se o levantamento das políticas de saúde do período

republicano, no Brasil, onde serão explicitadas as tensões e contradições existentes nas

formulações, mostrando a negligência ou ausência do diálogo. Essa fase de síntese, em

sua parte final, prepara para o momento seguinte da análise.

O momento de análise se constitui na explicitação da prática do Sistema

Único de Saúde e da Estratégia Saúde da Família. Revela os três focos principais e os

procedimentos técnicos da pesquisa. O primeiro foco de análise diz respeito à

construção teórico-prática do PSF e a sua transformação em Estratégia de Saúde da

Família, por dentro do Sistema Único de Saúde. Para esta parte da pesquisa, buscou-se,

além do material empírico relativo aos dados da implantação e implementação da

Estratégia Saúde da Família, como política de atenção básica do próprio SUS (Anexo

C), o levantamento, a leitura e a interpretação dos principais documentos oficiais do

SUS e do PSF e da produção teórica a respeito da evolução da atenção básica à saúde no

Brasil27.

Toda essa parte, que corresponde ao capítulo 6 do texto, é enriquecida pelas

reflexões, em contraponto, do próprio autor, retratando a experiência adquirida quando

gestor público, na organização e gestão das políticas de saúde em nível de Secretaria

Estadual de Saúde da Paraíba (SES-PB) – período 1996-2001 – oportunidade em que

assumiu a Unidade Setorial de Planejamento28 daquela instância gestora estadual do

SUS.

27 Entre os textos oficiais, podem ser destacados: o capítulo da saúde no texto constitucional de 1988; as leis orgânicas (8.080/90 e 8142/90), os documentos do PSF – Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial (1994); Saúde da Família: uma estratégia de organização dos serviços de saúde (1996); a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde – NOB/SUS (Portaria GM n.º 2.203/96); o documento 1997 – O ano da saúde no Brasil:ações e metas prioritárias (1997); a Portaria Ministerial, MS/GM n.º 1.886 (D.O.U. 22/12/1997); o Manual para organização da Atenção Básica (Portaria GM n.º 3.925/1998); e a Política Nacional de Atenção Básica (Portaria GM n.º 648/2006). 28 A Unidade Setorial de Planejamento da SES-PB (USP/SES-PB) é o setor que assume todo o processo de planejamento voltado para a organização das ações e serviços que compõem o Sistema Único de Saúde, no estado da Paraíba. Atua diretamente no processo de assessoramento ao gabinete do Secretário

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O segundo foco de análise corresponde ao desenvolvimento do PSF no

município de Campina Grande, pioneiro na implantação desse modelo de atenção na

Paraíba. Nesse caso, os dados empíricos resultaram: do acompanhamento indireto do

município durante o período 1996-2001, da pesquisa e interpretação de documentos

oficiais e da produção teórica a respeito do modelo de atenção municipal nesse período,

e da coleta de depoimentos de profissionais do PSF em publicações municipais da

experiência. Anotações pessoais do pesquisador, dando conta da sua experiência na

gestão estadual, também foram utilizadas.

O último foco da pesquisa contempla a prática médica do PSF/PITS em 15

municípios da Paraíba – período 2001 – 2003 – e diz respeito à atuação do autor como

médico-tutor do Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS), uma

iniciativa de reforço à Estratégia Saúde da Família, que contou com a participação

quadrangular do Ministério da Saúde, via Secretaria de Atenção Básica daquele órgão;

do Ministério de Ciência e Tecnologia, via Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq); da Secretaria Estadual de Saúde, pela Coordenação

de Atenção Básica e da Universidade Federal da Paraíba, através do Núcleo de Estudos

em Saúde Coletiva (NESC/UFPB).

Os dados dão conta do acompanhamento das ESF/PITS em momentos de

supervisão nas suas respectivas áreas de abrangência e durante a capacitação, sob a

forma de especialização em Saúde da Família, a organização do material empírico

composto de relatórios das visitas às ESF/PITS e anotações pessoais do pesquisador

refletindo as seguintes dimensões: a) caracterização do Programa e sua contextualização

(SUS e PSF); b) normas gerais e critérios de elegibilidade; c) caracterização dos

municípios incluídos no PSF/PITS da Paraíba; d) posicionamento ético das

administrações municipais; e) problemas relativos ao processo de trabalho; f) questões

políticas gerais e sua interferência no Programa; e g) posicionamento ético dos

profissionais nas suas equipes. As análises sobre os últimos dois focos da pesquisa se

encontram desenvolvidas no capítulo 7 do trabalho.

Servirão ainda de contraponto, para o exercício desta análise, os dados da

experiência vivida em nível do Ministério da Saúde (MS), quando, em 2004, assumiu o

Estadual de Saúde, assim como às Coordenações que atuam diretamente no processo de execução das políticas. Dentro da USP/SES-PB, funciona um órgão responsável pela capacitação pedagógica dos recursos humanos daquela Secretaria.

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cargo de Coordenador Geral de Gestão da Informação em Saúde, junto ao DATASUS29,

e em 2005, o cargo de Coordenador Geral de Apoio à implementação de Políticas de

Saúde do Departamento de Apoio à Descentralização30, ambas as estruturas

pertencentes à Secretaria Executiva daquele Ministério. Todas essas experiências, no

conjunto, perfazendo uma década de atuação na gestão e execução do SUS e de

acompanhamento da implementação da Estratégia Saúde da Família.

No terceiro movimento, o da nova síntese, constituída de elementos da

primeira síntese e elementos da análise, será apresentada a possibilidade de acumulação

do diálogo como atitude ética capaz de transformar a prática médica tradicional

antidialogal, numa práxis educativa e popular. Nesse momento particular do trabalho, a

teoria sobre práxis e diálogo, que permeou os capítulos relativos à primeira síntese e à

análise, reaparece aprofundando a discussão do diálogo como constituinte da prática que

se transforma em práxis. Assim, o diálogo, como categoria teórica, será apresentado

como a ferramenta da práxis, conferindo materialidade a esta, que, em geral, tem um

sentido abstrato. Portanto, tenta-se conjugar os dados da experiência, até então vivida, com

questões históricas e teóricas que afloram do exercício da prática médica, em condição

de lançar luz sobre alguns aspectos dessa prática e de suas implicações sociais -

aspectos, talvez, ainda não suficientemente resolvidos no processo de implementação da

Estratégia Saúde da Família. Um desejo de promoção da saúde como um processo

social de educação coletiva e solidária.

29 O Departamento de Informação e Informática do SUS (DATASUS) é o órgão da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, cuja responsabilidade é a de coletar, processar e disseminar informações sobre saúde. Sendo um órgão de informática de âmbito nacional, representa papel importante como centro tecnológico de suporte técnico e normativo para a montagem dos sistemas de informática e informação da Saúde. Suas extensões estaduais constituem a linha de frente no suporte técnico às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. Sua missão é prover os órgãos do SUS de sistemas de informação e suporte de informática, necessários ao processo de planejamento, operação e controle do Sistema Único de Saúde. 30 O Departamento de Apoio à Descentralização é uma estrutura da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, com as seguintes atribuições: articular os órgãos do Ministério no processo de avaliação de políticas no âmbito do SUS; subsidiar os processos de elaboração, implantação e implementação de normas, instrumentos e métodos necessários ao fortalecimento do modelo de gestão do SUS, nas três esferas de governo; promover, articular e integrar as atividades e ações de cooperação técnica a Estados, Municípios e ao Distrito Federal, visando a fortalecer a gestão descentralizada do SUS; formular e propor a adoção de diretrizes necessárias para o fortalecimento dos sistemas estaduais e municipais de saúde; planejar, coordenar e articular o processo de negociação e de contratualização, visando ao fortalecimento das instâncias de pactuação nas três esferas de gestão do SUS; promover a articulação e a integração de ações entre os órgãos e unidades do Ministério e os gestores estaduais e municipais do SUS; e participar do processo de negociação e da definição de critérios para a alocação de recursos físicos e financeiros, nas três esferas de gestão do SUS.

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3 A SAÚDE-DOENÇA, A MEDICINA, A PRÁTICA MÉDICA

Os sistemas filosóficos com os quais se tentou, desde a antiguidade até os

nossos dias, explicar o mundo, suas circunstâncias e eventos fundamentais, influem na

produção social e no direcionamento da ciência e do conhecimento. Isso inclui a

abordagem do processo saúde-doença, da medicina e da prática médica. Desse modo, a

recuperação da história tem mostrado que saúde-doença, medicina e prática médica

sempre resultaram, de um lado, da evolução do conhecimento e, de outro, da realidade

social, econômica e política – e suas relações com o poder – em cada contexto. Isso

conduziu a medicina e sua prática a formarem parte de um intenso debate, em cujo

centro se encontrava uma produção derivada da observação, da experiência, da perícia,

do raciocínio e, portanto, da cultura e da inteligência humana31, condicionada àquelas

realidades.

A saúde e a doença têm sido abordadas como conceitos distintos e

articulados, compreendendo um processo. Porém, qualquer que seja a forma de

abordagem, tratar dessas duas questões sempre significou enfrentar uma equação

recheada de variáveis que se imbricam a todo instante, o que talvez ocorra porque tal

enfrentamento implica o reconhecimento das suas relações com a cultura, com as

ideologias e com os sistemas dominantes de crenças de cada sociedade, em cada período

histórico. Implica compreendê-las no âmbito das diferentes formas de organização da

sociedade, suas instituições político-jurídicas, suas estruturas econômico-sociais e seus

estágios de desenvolvimento do conhecimento, da ciência e da técnica.

A complexidade das diversas relações possíveis se aprofunda à medida que

se avança na compreensão de que saúde e doença não são antônimos nem conceitos

independentes entre si, posto que compõem um processo dialético cujo deslindamento é

fundamental, contribuindo para o entendimento da sociedade e das instituições que as

mantêm. O mesmo raciocínio pode ser estendido à medicina e à prática médica que,

resultantes e, ao mesmo tempo, estruturantes do processo histórico-social, são

31 Há uma série de observações empíricas muito antigas relativas às enfermidades. Os hindus, por exemplo, já indicavam a presença de açúcar na urina de certas pessoas, hoje sabidas como diabéticas, pelo menos dois mil anos antes de ser cientificamente comprovado. Isso também é válido para a relação entre malária e algumas linhagens de mosquitos, assim como a descoberta de sinais clínicos que denotavam a ocorrência de fraturas em pessoas acidentadas ou que haviam sofrido traumas. Todos esses exemplos demonstram que a observação, a experiência e o raciocínio eram os elementos fundamentais de definição de saúde e doença.

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indissociáveis e sempre tiveram a tarefa histórica de responder pelo processo saúde-

doença das populações. São produtos do conhecimento e das políticas vigentes em cada

contexto, podendo se constituir em práxis32 contínua, capaz de transformar o homem e

as relações humanas.

A tentativa de compreensão do processo saúde-doença precisa ser tratada no

contexto do desenvolvimento da medicina e da prática médica. Apreendendo-se os

movimentos33 desses processos e a inserção de cada um deles na história das sociedades

é que se poderá revelar a convergência que sempre existiu entre eles. Nessa perspectiva,

revela-se útil a pista oferecida abaixo: A análise histórica torna possível penetrar nas estruturas sociais do passado e nas mudanças que elas sofreram, aumentando nossa compreensão do processo de desenvolvimento que nos conduziu ao presente, dando conseqüentemente um significado, um sentido que um estudo limitado do segmento contemporâneo não poderia fornecer (ROSEN, 1979, p. 59).

Com a identificação desses movimentos e a articulação existente entre eles,

podem-se perceber: a) as condições de emergência e as configurações específicas

assumidas por essa articulação na sociedade, historicamente; b) suas implicações na

realidade de vida, trabalho e saúde das pessoas e das populações, nos diversos contextos

históricos; e, c) a importância de se buscarem, nas origens dos processos sociais, a

origem de suas instituições, sua organização, idéias e funcionamento, para melhor

compreender os significados dessa equação, nos dias de hoje.

A sociologia médica não é recente, e o estudo das relações entre os

fenômenos da saúde e os fatores e contextos sociais, ao contrário do que enfatizaram

durante muito tempo os cientistas sociais, têm profundas raízes históricas. Muito antes dos cientistas sociais terem identificado a sociologia médica como uma especialidade, homens interessados nos assuntos de Estado – economistas, médicos, reformadores sociais, historiadores e administradores

32 O sentido que se quer dar aqui à práxis é o do clássico conceito de ação/criação/produção consciente do homem a partir da apreensão da realidade que o rodeia e o envolve; o que implica uma síntese que inclui questões objetivas e subjetivas, internas e externas a ele, enquanto sujeito criador e, que, portanto, produz a história e a vida social sua e de seus semelhantes. No dizer de Marx e Engels, recuperado por Vázquez, “as circunstâncias fazem o homem na medida em que este faz as circunstâncias [...] Ao produzir seus meios de vida, o homem produz indiretamente a sua própria vida material [...] Tal e como os indivíduos manifestam sua vida, assim são. O que são coincide, portanto, tanto com o que produzem quanto com o modo como produzem. O que os indivíduos são depende, por conseguinte, das condições materiais de sua produção” (MARX & ENGELS, 1959, apud VAZQUEZ, 1977, p. 165-166) 33 Movimento aqui tem o sentido produzido por Heráclito, na longínqua e ao mesmo tempo tão presente antiguidade grega, pré-socrática e cosmológica. Movimento enquanto exercício teórico-prático de apreender a realidade que nos acompanha e da qual somos parte ativa, consciente ou inconscientemente, desde os primórdios, quando passamos a nos interessar pela dinâmica das coisas.

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– estiveram preocupados com problemas médicos e ofereceram significantes contribuições para a sua solução (ROSEN, 1983, p. 27).

Essas contribuições estiveram sempre fundamentadas em determinada visão

do processo saúde-doença. Derivam das condições de desenvolvimento do

conhecimento e das relações sociais que produzem a cultura, o poder e a ciência em

cada contexto, ou seja, as visões de mundo dos diversos atores sociais.

Isso é importante, na medida em que, mesmo depois de uma história que

remonta milênios, ainda nos dias de hoje, sente-se a presença, por vezes marcante, de

idéias, hábitos, costumes ou mesmo preceitos que dominaram uma época passada e, em

virtude da conservação de fortes tradições culturais, subsistiram e continuaram no

imaginário e nas práticas populares ou mesmo científicas. Por isso, não é raro haver

alusões ao clima, à religiosidade, aos astros e a outras forças do homem e da natureza

para explicar e justificar crenças e atitudes humanas, diante de eventos relacionados à

saúde-doença.

3.1 A saúde-doença nos povos primitivos

A historiografia médico-antropológica, ao retratar os povos primitivos,

mostra os seus conceitos de saúde e de doença, medicina e prática médica perpassados

pelo sentimento mágico-religioso. As idéias que sustentavam a medicina da época

estavam intimamente relacionadas à natureza, ao sobrenatural e às crenças religiosas

que esses povos detinham acerca da conformação do mundo e do processo saúde-

doença. A relação que mantinham com a natureza, com o mágico e com o religioso os

colocava numa espécie de camisa de força, quando se tratava de explicar eventos

ligados à morbi-mortalidade das populações. O medo do desconhecido e da

possibilidade de violação de uma crença ou regra cultural religiosa gerava superstições e

maus presságios. Um acidente ou qualquer coisa externa que atingisse o homem era

tomado como algo desencadeado pela influência de forças sobrenaturais e pelo

lançamento de maus agouros. Os astros, o clima, os insetos e outros animais ligados às

doenças também eram justificadores diretos de doenças em indivíduos ou comunidades

inteiras (BARATA, 1985).

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As doenças eram sempre interpretadas como uma ameaça externa34, física

ou mental. Nessas condições, a chave do poder curativo do médico primitivo residia na

sua capacidade de liberar as forças físicas ou psíquicas do indivíduo enfermo. Para

tanto, esse médico que, naquela conjuntura, assemelhava-se mais a um mago ou a um

xamã, exercia a sua atividade através da preparação e administração de remédios

extraídos da própria natureza. Esses remédios eram, muitas vezes, administrados menos

pelas suas qualidades naturais e mais pela crença do próprio ministrante de que eles o

ajudariam no controle das forças ocultas causadoras da enfermidade. Assim, a coleta de

ervas, a preparação dos remédios e a sua administração eram quase sempre

acompanhadas de rituais secretos só conhecidos por ele mesmo e pelo seu paciente.

Enquanto o pensamento primitivo apontava que as doenças se deviam a

possíveis desvios das regras religiosas estabelecidas ou a ataques sobrenaturais, o

médico primitivo poderia contar, durante esses rituais, com poderosos recursos

terapêuticos, inclusive de ordem psíquica. A confissão do enfermo, por exemplo, era um

recurso muito utilizado. Entendia-se que, se admitisse ou confessasse faltas morais, o

enfermo se livraria de sentimentos de culpa, de ansiedade e de angústias que sofresse e

que, no mais das vezes, estavam na base do seu adoecer.

Isso explica, inclusive, os ritos de purificação prescritos e administrados

através da água35, dos jejuns, das dietas, dos vomitórios e purgantes. Essas condutas

eram direcionadas à cura do enfermo, mas não se pode perder de vista que, por vezes,

também atendessem a um outro objetivo: o de alimentar o inconsciente coletivo e

manter a ordem estabelecida. Aquele que confessava uma falta estava se colocando à

margem das regras ou crenças, o que poderia muito bem ser entendido como uma

violação que transcendia o individual, influindo no coletivo.

Igualmente, não se pode esquecer que aqueles que exerciam a medicina

estavam investidos de um poder conferido e reconhecido pela própria comunidade e,

principalmente, pelos seus dirigentes. É plausível que não estivessem imunes à lógica

de manutenção ou perpetuação desse poder a partir de atitudes fraudulentas ou

desviantes, forjadas através do controle e da manipulação da própria sociedade. Nada 34 Os assírios, egípcios, caldeus e hebreus podem ser arrolados nessa concepção. Eles acreditavam que o corpo humano funcionava como um receptáculo passível de ser penetrado por elementos externos, naturais ou sobrenaturais, com potencialidade tanto para causar doenças em indivíduos sãos quanto para restabelecerem a saúde de pessoas doentes (BARATA, 1985). 35 Os incas tinham, a cada ano, um dia de purificação nos rios. Acreditavam que lavavam naquelas águas os seus pecados e impurezas que, depois, eram levados ao mar. Ainda hoje são conhecidos os rituais hindus nas águas do rio Ganges. É também conhecido o uso de banhos de vapor pelos índios pré-colombianos como parte de um ritual religioso e higiênico para a cura das enfermidades.

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pode garantir que a relação médico-paciente primitiva não fosse utilizada para outros

fins.

Os egípcios consideravam a saúde como o estado natural do ser humano. A

doença podia ser classificada em dois grupos: a) o daquelas cujos sinais e sintomas

eram evidentes e para as quais não se apelava para explicações sobrenaturais ou

mágico-religiosas – os traumatismos, feridas, fraturas e queimaduras podem ser

arrolados neste grupo; e, b) as doenças cujas causas eram desconhecidas ou não

perceptíveis e que abriam espaço para as explicações do tipo mágico-religiosas.

Como havia uma relação de dependência considerável com o rio Nilo, a

tradição egípcia relacionava estágios do rio a saúde e a enfermidade. Os momentos de

subida do nível das águas significavam abundantes colheitas e saúde, enquanto os de

baixos níveis acarretavam fome e epidemias. Os egípcios acreditavam que alimentos

bem ou mal combinados podiam manter a saúde ou causar doenças. Faziam uso

freqüente de banhos e abluções, razão por que eram conhecidos como povos

extremamente higiênicos (PUERTO SARMIENTO, 1997).

A civilização egípcia antiga ficou conhecida pela sua intensa atividade

laboral, em especial, no que concerne ao trabalho relacionado às construções de seus

imponentes palácios, das belas e intrigantes pirâmides e dos túmulos dos faraós. Todo

esse trabalho, bastante intenso e pesado, era reservado aos escravos daquela sociedade.

Na verdade, a maioria deles era formada por povos conquistados nas guerras de

expansão dos domínios territoriais das dinastias dirigentes do Egito antigo. Em termos

de saúde-doença, mesmo que não se pesquisasse naquela época a relação entre

ocupação e saúde, é possível encontrar, num papiro egípcio, comentários sobre a vida

difícil daqueles trabalhadores e os efeitos do trabalho sobre os seus corpos e a sua

vitalidade (ROSEN, 1983, p. 27).

Os povos hindus e chineses, por seu turno, concebiam saúde-doença dentro

de uma dicotomia que ora resultava em equilíbrio, ora em desequilíbrio entre os

elementos e humores constituintes do organismo humano. A explicação para esse

movimento oscilatório estaria na influência positiva ou negativa que os astros, animais,

insetos e o próprio clima causavam à energia vital animadora dos seres humanos. Mas,

diferente de outros povos, eles acreditavam que o homem desempenhava um papel ativo

nas causas do adoecimento e, mesmo que fossem naturalizadas, não tinham o caráter

mágico-religioso imperante em outras concepções. Portanto, aprofundaram-se na

concepção do corpo como um complexo de energia vital susceptível de momentos de

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equilíbrio e desequilíbrio e desenvolveram um extenso e variado conjunto de técnicas e

práticas para a manutenção ou o restabelecimento do equilíbrio entre a energia vital e os

humores orgânicos (BARATA, 1985, p. 13-14).

O saber anátomo-fisiológico da China antiga era parametrizado pela

cosmologia e presidido pelo número 5, fazendo a correspondência entre cinco elementos

básicos da natureza (terra, ar, água, madeira e metal) e cinco órgãos principais do corpo

(coração, pulmão, rim, fígado e baço) e cinco órgãos secundários (intestino delgado,

intestino grosso, uretra, vesícula biliar e estômago). Todos, por sua vez, estavam em

correspondência com os planetas e as estações do ano. O desequilíbrio entre o Yin

(energia positiva) e o Yang (energia negativa) levava a desordem entre os cinco

elementos, caracterizando a enfermidade. A causa última dessa desordem que resultava

nas enfermidades poderia estar nas mudanças excessivas do clima, da dieta, das relações

afetivas, da umidade, do frio excessivo, dos venenos e dos espíritos malignos. Para o

diagnóstico, empregavam-se os cinco sentidos, mas o pulso era considerado elemento

de maior importância nesse processo. Como métodos terapêuticos, destacavam-se a

acupuntura e a moxabustão (PUERTO SARMIENTO, 1997).

3.2 A saúde-doença na antiguidade clássica

Considerada como o berço da mais tradicional e bem sucedida expressão da

medicina da antiguidade, a Grécia desenvolveu uma compreensão do processo saúde-

doença que tem a ver com a experiência oriental hindu e a chinesa, pois trabalhava com

conceitos de isonomia e disnomia para indicar harmonia ou desarmonia em relação aos

quatro elementos que entravam na composição do corpo humano: terra, ar, água e fogo.

Na visão grega, fatores externos agiriam no organismo, causando desequilíbrios entre

esses componentes, expressando doenças. Barata (1985) faz referência a uma passagem

atribuída a Platão que bem retrata a maneira como os gregos encaravam a doença: [...] a maneira pela qual elas (as doenças) se formam pode ser clara a qualquer um. O corpo é composto da mistura de quatro elementos: terra, fogo, água e ar. A abundância ou falta desses elementos, fora do natural; a mudança de lugar, fazendo com que eles saiam de sua posição natural para outra que não lhes seja bem adaptada; ou o fato de que um deles é forçado a receber uma quantidade que não é própria para ele, mais conveniente para

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outra espécie, todos esses fatores e outros similares são as causas que produzem distúrbios e moléstias (PLATÃO, apud BARATA, 1985, p. 15).

Jaeger (1995) comenta que foi a tradição hipocrática que enriqueceu e deu o

peso definitivo aos fundamentos gregos da medicina, válidos até os dias hoje, e

informantes da prática clínica e da cuidadosa observação da realidade circundante das

pessoas necessitadas de cuidados para a sua saúde. Basta observar a riqueza de detalhes

de um trecho da introdução do escrito de Hipócrates, Dos Ventos, Águas e Regiões,

onde está descrito o bom procedimento para quem se aventura pela arte da medicina: Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar, há de ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais, mas diferem radicalmente quanto à sua essência específica e quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelos característicos de cada região. Deve ter presentes também os diversos gêneros de águas. Estas se distinguem não só pela densidade e pelo sabor, mas ainda por suas virtudes. Quando um médico (que é considerado, como era habitual naquela época, médico ambulante) chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais, a posição que ela ocupa quanto às várias correntes de ar e quanto ao curso do Sol... assim como anotar o que se refere às águas... e à qualidade do solo... Se conhecer o que diz respeito à mudança das estações e do clima, e o nascimento e o ocaso dos astros... conhecerá antecipadamente a qualidade do ano... Pode ser que alguém julgue isto demasiadamente orientado para a ciência, mas quem tal pensar pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a Astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem está relacionada com a mudança do clima. (JAEGER, 1995, p. 944-45)

O trecho atribuído a Hipócrates, pode-se notar, incorpora uma variedade de

raciocínios que traduzem a observação e o senso prático presentes nos conhecimentos e

na formação do médico grego. Há um esforço da inteligência grega em articular os

eventos da natureza com sinais e sintomas manifestados no organismo humano. Com

essa leitura, as enfermidades orgânicas ganham uma dimensão que ultrapassa o próprio

corpo biológico. As doenças e afecções diagnosticáveis nas pessoas e nas coletividades

passam a ter um outro sentido, uma outra dimensão. Passam a ser perscrutadas nas

interferências positivas ou negativas para a saúde, dos hábitos, costumes e atitudes

cotidianas, em função de problemas com o ambiente natural e suas relações.

Na correspondência que os grupos faziam entre saúde-doença e o

equilíbrio/desequilíbrio com o ambiente natural, é possível perceber como havia toda

uma preocupação dos médicos da época com a regulamentação de uma dieta e de um

conjunto de exercícios adequados ao clima e às estações do ano, numa espécie de

política medicinal de equilíbrio que envolvia a prescrição de muitos alimentos sólidos e

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poucos líquidos nas estações frias e poucos alimentos sólidos e muitos líquidos nas

estações quentes, com o intuito de se buscar o equilíbrio do organismo com as

condições de umidade e secura predominantes em cada uma das estações (JAEGER,

1995, p. 978-79). Nessa perspectiva, o médico é, antes de tudo, alguém dotado de

grande sensibilidade e inteligência prática para perceber a harmonia ou desarmonia

homem/natureza e quando isso significa realmente ruptura de uma relação de isonomia.

Segundo Gonçalves36 (2003), a medicina grega [...] se constitui naquela ciência da prática cujo saber enfrenta o confronto entre necessidades e acaso. Em outras palavras, ela precisa se aproximar da ordem necessária das coisas do movimento, que incorporam também o casual, o aleatório, o imponderável. Assim, para saber como intervir, o médico precisa contar com a técnica, imaginação engenhosa e iniciativa que, entre os gregos, dizem respeito à deusa Métis, ou às qualidades desta deusa: a inteligência prática. (GONÇALVES 2003, p. 47)

Ainda que a antiguidade clássica não estivesse preocupada com a saúde dos

trabalhadores ou com a relação entre trabalho e saúde-doença, nem com a forma de

distribuição dos cuidados médicos às diferentes classes sociais, a influência de certas

ocupações não deixou de ser observada por médicos e leigos do mundo greco-romano.

Rosen (1983, p. 27) faz referência aos escritos hipocráticos, a Plínio, o velho; a

Lucrécio, Juvenal, Martial, Lucan, Galeno, Silius, Itálicus e Statius, como alguns que

registraram, nas suas obras e discursos, essa preocupação. Segundo o mesmo autor, no

século V a.C, Platão verificou a grande diferença entre o cuidado médico dispensado ao

trabalhador manual e aquele dispensado ao homem rico. Ao mesmo tempo, fez a mesma

comparação entre o escravo e o homem livre.

A ilustração de um diálogo entre Sócrates e Glauco, retirado dos fragmentos

406a-e e 407a-e da obra A República37, oferece elementos para que se entendam as

diferentes concepções de cuidado à saúde e a diferença de tratamento que se dispensava

36 Esse autor, citando Marilena Chauí, esclarece, numa nota de rodapé da sua obra, que Mètis, na mitologia grega, é mulher de Zeus, rei dos deuses do Olimpo, e tem três filhos: Skótus (sombra, treva, ausência de luz), Poros (o estratagema, o que sabe encontrar um caminho onde não há caminho, onde há aporia) e Tecmar (o que produz sinais e indícios para percorrer um caminho e chegar ao final do percurso). Esclarece, também, que Mètis dá origem à oposição primordial que define a técnica: a oposição entre a treva ou a aporia e o estratagema astucioso, que se vale de sinais e índices para resolver dificuldades. Contemplando essa alegoria, parece não haver síntese mais feliz sobre o sentido da medicina e do ser médico. 37 Dentro desse diálogo, o tradutor da obra faz duas observações para esclarecimento dos leitores, que julgamos importante repassar. A primeira diz respeito à palavra barrete, uma espécie de chapéu de feltro que os médicos antigos, por vezes, mandavam usar e que para o leitor moderno seria mais sugestiva, mesmo que menos exata, a equivalência com “emplastos”. A segunda trata-se de uma explicação sobre quem foi Focílides, um poeta gnômico grego do século VI a.C, muito apreciado pelos antigos, mas de quem só se conhecem citações como a utilizada por Glauco no fragmento exposto.

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às diferentes classes sociais gregas. O diálogo é intercalado e começa com Glauco, que

diz para Sócrates:

– Um carpinteiro, quando está doente, pretende do médico que lhe dê a beber um remédio que o faça vomitar a causa da doença, ou que o liberte, purgando-o ou usando de cautérios ou praticando uma incisão. Mas, se alguém lhe prescrever uma dieta a longo prazo, pondo-lhe um barrete na cabeça e o mais que se segue, em breve lhe diz que não tem tempo para ficar doente nem lhe serve de nada viver assim, com o espírito entregue às doenças, descurando o trabalho que tem na frente. E depois disso, manda embora um médico desses, entra na sua dieta normal, e fica são, vivendo para o seu trabalho. E se o seu corpo não é capaz de resistir, a morte liberta-o de dificuldades. – É realmente essa a terapêutica que parece servir a um homem assim. – Acaso porque tinha uma ocupação que, se não a exercesse, não lhe valia a pena viver? – É evidente. – Ao passo que quem é rico, como dizíamos, não tem nenhuma ocupação premente desta espécie, de que possa ser forçado a abster-se, sem que a vida se lhe torne impossível. – É o que se diz. – Nunca ouviste o dito de Focílides, de que quando se tem com que viver, se deve praticar a virtude? – E antes disso também, entendo eu. (PLATÃO, 2001, p. 100)

Esse diálogo indica que o melhor cuidado médico requeria tempo e

circunstâncias favoráveis que não estavam apenas no tirocínio dos médicos. Poucas

pessoas poderiam cuidar da sua saúde levando em conta os recursos que seriam

necessários em face das recomendações formais de então. Isso reforça o vínculo da

saúde-doença sofrendo influência do poder, da economia, da política e da cultura, o que

não deixou de acontecer no caso da Grécia antiga, possivelmente em função da forma

de organização da pólis grega. Como antes, isso continua a acontecer na sociedade

atual, revelando, talvez, certa pedagogia. Uma pedagogia que distingue diferentes

cidadanias, em que uns parecem fadados a sua própria sorte, enquanto outros podem

usufruir da condição ocupada, em face do poder conquistado ou herdado.

Rosen (1983), referindo-se ao comentarista de Sobre a Dieta, trabalho

atribuído a Hipócrates, afirma que este concordou que a massa do povo, devido à

pobreza, levava uma vida ao sabor da sorte e, negligenciando tudo, não podia cuidar da

sua saúde. Plutarco, em um ensaio sobre como conservar a saúde, 500 anos mais tarde,

enfatizou que estava escrevendo para eruditos e homens públicos, e não, para homens

engajados nos trabalhosos negócios de colher e cuidar de plantações38.

38 As referências utilizadas pelo autor estão assim grafadas, pela ordem: Hipócrates, Diet. Littré, VI, pp. 594-604; Plutarco, “Advice about Kepping Well”, Moralia. Trad. Frank Cole Babbit. London, William Heinemann, Ltd., 1928, II, p. 291.

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As sociedades primitivas e as que formaram a Antigüidade Clássica, em

termos de saúde-doença, medicina e prática médica, eram baseadas num conhecimento

construído a partir da observação e da experiência vivida no contato com a natureza -

caso específico dos gregos - mas, também, pela construção mitológica acerca daquilo

que a experiência e o conhecimento da época não eram capazes de explicar - caso dos

próprios gregos e dos povos que lhes antecederam.

Tem-se que os médicos ou aqueles que, por suas qualidades específicas,

tinham a tarefa de cuidar da saúde dos cidadãos, não eram pessoas comuns. Eram

detentoras do poder e do reconhecimento dos demais pelo seu conhecimento sobre a

relação homem/natureza, pelas suas posses e relação com os dirigentes da sociedade ou

mesmo por outros critérios próprios da cultura de cada povo, como a tradição e a

religião.

A tradição histórica mostra que eram sociedades autoritárias, arbitrárias e,

não raro, antidialogais. A possibilidade de diálogo era restrita àqueles que podiam ser

considerados cidadãos, uma minoria, em se tratando da Grécia antiga e do Império

greco-romano. Era uma sociedade onde reinava uma profunda desigualdade em todos os

aspectos. Isso incluía o cuidado com a saúde, que obedecia à posição ocupada por cada

classe de pessoas naquelas sociedades e, em sendo a maioria composta de escravos,

restavam-lhes a servidão, o trabalho pesado e nenhum cuidado.

3.3 A saúde-doença entre a fé e a razão

Longe de poder ser considerado um período homogêneo, até por conta da

sua longa duração, a Idade Média39 representou, para a Europa, um período de transição

39 A Era Medieval pode ser subdividida em períodos históricos. Num dos modos de classificação, ela é separada em dois períodos: Alta Idade Média, que decorre do século V ao X, e Baixa Idade Média, que se estende do século XI ao XV. Outra classificação divide-a em três períodos: Idade Média Antiga (ou Alta Idade Média ou Antigüidade Tardia), que decorre do século V ao X; Idade Média Plena (ou Idade Média Clássica), que se estende do século XI ao XIII, e Idade Média Tardia (ou Baixa Idade Média), correspondente aos séculos XIV e XV. Certas sociedades, fora da Europa, como o Japão, por exemplo, atravessaram períodos históricos "de transição" que chegam a ser denominados também como Idade Média, porém o período medieval é um evento estritamente europeu. Para uma boa retrospectiva da historiografia desse e de outros períodos da trajetória da humanidade, há uma infinidade de obras à disposição dos interessados. Particularmente, sugerimos: VICENTINO, C. História Geral: Idade Média, Moderna e Contemporânea, incluindo Pré-História, Grécia e Roma. 5ª edição. São Paulo: Scipione, 1994.

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e adaptações até se chegar ao Renascimento e à Modernidade. Com a invasão dos povos

bárbaros e a implosão do Império Romano, os grandes proprietários construíram

castelos medievais a fim de se proteger, e a maior parte das pessoas optou pela vida no

campo, onde julgavam estar mais seguras. Disso decorreu que o europeu ocidental foi

perdendo contato com o Oriente, e a língua grega acabou por ser esquecida. Isso é

importante para se compreender como o acesso aos tratados originais dos filósofos

clássicos se perdeu, ficando apenas versões desse conhecimento. As traduções, segundo

consta, eram de má qualidade. Algumas haviam sido truncadas ou, em alguns casos,

deturpadas pelos romanos, quando da sua passagem para o latim (RONAN, 1983;

VICENTINO, 1994).

A Igreja Católica resistiu à desintegração do Império Romano e manteve o

que restou da força intelectual do período anterior, enclausurando-a nas bibliotecas da

vida monástica. Os homens instruídos desses séculos eram quase sempre clérigos ou

pessoas que gravitavam em torno dos conventos, para quem o estudo dos

conhecimentos naturais era uma pequena parte de sua escolaridade. Esses estudiosos

viviam numa atmosfera que dava prioridade à fé e tinham a mente mais voltada para a

salvação das almas do que para o questionamento de detalhes do universo físico40.

Os pensadores cristãos, principalmente a partir do século V, perceberam a

necessidade de aprofundar a fé que estava amadurecendo e evoluíram, com o intuito de

harmonizá-la com as exigências do pensamento filosófico. A Filosofia que, até então,

detinha traços marcadamente clássicos e helenísticos, passa a receber influências da

cultura judaica e cristã. E alguns temas, antes ausentes do universo do pensamento

grego, como: providência, revelação divina e criação, passaram a fazer parte das

temáticas filosóficas (RONAN, 1983).

A questão-chave que vai atravessar todo o pensamento filosófico medieval é

a harmonização de duas esferas: a fé e a razão. O pensamento de Santo Agostinho

(Século V) reconhecia a importância do conhecimento, mas defendia uma subordinação

maior da razão em relação à fé, por crer que esta última vinha restaurar a condição

decaída da razão humana. Já Santo Tomás de Aquino (Século XIII) defendia uma maior

40 Há várias referências históricas ao comportamento da igreja nesse período da vida humana, em cuja recuperação os compêndios de História Geral são pródigos. Porém, há uma trama histórico-policial do escritor, filósofo e lingüista italiano Umberto Eco, O Nome da Rosa (Il nome della Rosa, 1980), obra depois passada para o cinema. Mesmo se tratando de uma ficção, merece aqui alusão por retratar o ambiente monástico da Idade Média, o pensamento e as ações da Igreja Católica em relação à Ciência e ao Conhecimento, no contexto da Inquisição.

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autonomia da razão na obtenção de respostas, apesar de não negar tal subordinação da

razão à fé (RONAN, 1983). A partir do século IX, desenvolve-se a principal linha

filosófica do período, a Escolástica. Essa filosofia ganhou acentos notadamente cristãos

surgidos da necessidade de responder às exigências de fé, ensinada pela Igreja Católica,

considerada, então, como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a

cristandade e responsável pela unidade de toda a Europa. A Escolástica combinava

elementos do pensamento platônico com valores de ordem espiritual reinterpretados

pelo Ocidente cristão. No século XIII, Santo Tomás de Aquino introduz elementos da

filosofia de Aristóteles no pensamento escolástico (RONAN, 1983).

A forte influência religiosa na Idade Média limitou a criatividade e o

desenvolvimento de novos conhecimentos devido ao controle imposto pela Igreja

Católica que, temendo perder sua autoridade, reprimia toda idéia que pudesse traçar

novos caminhos para a ciência e tentava impedir o seu livre desenvolvimento. Isso não

quer dizer que a ciência deixou de seguir o seu desiderato, mas é fato reconhecido que o

obscurantismo do clero combateu a ciência que se manifestava baseada na experiência e

na razão. Quem se interessasse pelos segredos da natureza e ousasse investigar por meio

de experiências, ficava comprometido em perigosa associação com os mágicos,

feiticeiros e alquimistas. Estes seriam os conspiradores dedicados a descobrir os

segredos que Deus velara de mistérios (KOSMINSKY, 1960).

Para Ronan (1983), no entanto, apesar desse posicionamento da Igreja

Católica, entre os cristãos havia divergências no que diz respeito ao estudo do mundo

natural criado por Deus. Existiam aqueles que ignoravam os estudos científicos para se

concentrar no tema da salvação da alma, temendo que a ciência, ao se dedicar aos

escritos gregos pagãos, acabasse por contaminar as almas cristãs com idéias perigosas.

E havia cristãos cuja crença era de que, estudando o trabalho de Deus, através da

ciência, seria permitido aos homens um aumento da consciência em relação à

onipotência e à sabedoria divina.

Heer (1968) descreve que o padrão de desenvolvimento das idéias

medievais quanto à ciência era composto de numerosos elementos contraditórios e

diversos. Seus métodos eram uma combinação de empirismo e especulação, mas o peso

de pressões religiosas era tal que, embora essas atividades satisfizessem o indivíduo, o

que emergia delas não era de certeza científica. Os diferentes assuntos estavam tão

intimamente ligados que se tornavam híbridos – química com alquimia, astronomia com

astrologia, tecnologia com magia, medicina com filosofia. A mentalidade básica na

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Idade Média relacionava-se com a visão racionalista do universo, produto da conjunção

da filosofia grega com a concepção cristã de Deus. Aceitando a existência de uma

unidade cosmológica, o homem medieval via todas as coisas ligadas entre si (FRANCO

JÚNIOR, 1992).

Em relação ao processo saúde-doença, a imposição da filosofia cristã, ao

longo da Idade Média, resultou numa espécie de estagnação do desenvolvimento da sua

visão. A concepção grega, que perdurara durante vários séculos – até a desintegração do

Império Romano do Ocidente, por volta do século V da era cristã – aos poucos foi

sendo deixada de lado em favor de uma visão de mundo teológico-cristã, que se refletiu

na prática médica. As causas das doenças continuaram sendo atribuídas à variabilidade

dos humores corporais e à natureza, mas a fé e a religiosidade passaram a ser

consideradas como elementos imprescindíveis ao tratamento, e a cura ficava a cargo da

igreja e dos sacerdotes, confundindo-se em muitos momentos com as práticas religiosas

(FRANCO JÚNIOR, 1992).

Coincidentemente, ou não, essa foi uma era de grandes epidemias e pestes

que dizimaram uma parte significativa da população, chegando a colocar em perigo a

continuidade do homem na face da terra. Para se ter uma visão mais clara do

retardamento que significou esse período da humanidade, para esse conhecimento

específico, basta que se veja que, por volta dos séculos XIV e XV, ou seja, já no final da

Idade Média, a causa das doenças continuava sendo atribuída à mesma variabilidade dos

humores corporais. Segundo as crenças disseminadas pela Igreja Católica, as doenças

atingiam, principalmente, as pessoas que estavam em pecado (GUTIERREZ;

OBERDIEK, 2001).

Ao contrário da veneração pela saúde corporal, típica do classicismo greco-

romano, com suas academias e dietas, nos primeiros séculos da Idade Média, o

tratamento das doenças, aos poucos, fora transferido para os monastérios onde se

pregava o aperfeiçoamento do espírito em detrimento do corpo físico. A doença era

explorada como uma forma de purificação da alma e expiação dos pecados e tratável

pelo arrependimento, pela mortificação, pela penitência, pelas orações e súplicas, pela

busca dos milagres ou mesmo pela compra de indulgências às autoridades religiosas

(GUTIERREZ; OBERDIEK, 2001).

E como se vivia em um estado cristão no Ocidente, os inimigos da coroa e

da fé eram considerados pagãos, hereges e foras-da-lei, sendo perseguidos, presos,

acorrentados e, dependendo da situação, submetidos a exorcismos, porquanto se

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acreditava que, por não serem cristãos, muitos eram possuídos por espíritos imundos ou

praticavam bruxarias e viviam sob seu efeito41. Como se pode notar, esse era um

verdadeiro retrocesso e aprisionamento, em se tratando das conquistas que o

conhecimento e a filosofia já houveram operado na sociedade, com implicações para as

práticas em saúde, em particular, a prática médica, e para a medicina ocidental européia

que, nessas condições, pouco ou quase nada tinha de dialogal.

Havia, entretanto, outras variáveis, além da político-ideológica, que

contribuíam para a situação de indigência em relação à saúde-doença. E uma delas eram

os grandes deslocamentos de pessoas provocados, de um lado, pelas cruzadas e, de

outro, pelas aglomerações nas cidades que nasciam sem a mínima estrutura sanitária e

sem planejamento, o que fazia aumentar ainda mais o risco e a ocorrência de grandes

epidemias. Em meados do século XIV, a peste negra42 devastou a população européia.

Os historiadores calculam que aproximadamente um terço dos habitantes morreram

dessa doença (BARATA, 1985; MCNEIL, 1976).

Além do mais, os conventos e monastérios atribuíam a esse mal fatores

comportamentais, ambientais ou religiosos, retomando a teoria do contágio já

encontrada no Velho Testamento. Essa situação, inclusive, foi uma das propulsoras para

que outras teorias sobre a causação das doenças aparecessem ou fossem retomadas.

Continuava-se acreditando no poder dos astros e sua influência na causação das

doenças. As explicações culpabilizavam os leprosos, os judeus, ou mesmo os

endemoninhados pelo envenenamento de mananciais, utensílios e objetos.

É famosa uma passagem citada em Barata (1985), recolhida dos escritos de

um monge franciscano italiano, que se refere à epidemia de peste ocorrida em 1374,

naquele país:

41 Impossível, nesse contexto, não se fazer uma alusão aos processos e aos tribunais inquisitórios da Igreja Católica. A Inquisição, cuja instituição remonta ao Concílio de Verona, ocorrido em 1183, foi talvez a marca indelével de um período histórico em que o poder eclesiástico, ao se confundir com o poder real, aliou a força da fé à força da lei, da coação e da violência; torturou e eliminou aqueles que eram entendidos como inimigos do Estado e, conseqüentemente, da Igreja. Assim, sufocava-se qualquer anseio de liberdade, de autonomia e de afirmação do elemento humano comum, como alguém capaz de conhecer e fazer conhecida a sua criação. Era um estado de absoluta censura e total controle sobre os corações e mentes que naquela época ousassem afirmar o homem do povo como capaz de fazer andar a sua própria vida. 42 A peste negra era transmitida através da picada de pulgas de ratos doentes. Esses ratos chegavam à Europa nos porões dos navios vindos do Oriente. Como as cidades medievais não tinham condições higiênicas adequadas, os ratos se espalharam facilmente. Após o contato com a doença, a pessoa tinha poucos dias de vida. Febre, mal-estar e bulbos (bolhas) de sangue e pus espalhavam-se pelo corpo do doente, principalmente nas axilas e virilhas. Como os conhecimentos médicos eram pouco desenvolvidos, a morte era certa. (MCNEIL, 1976)

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Devido a uma infecção do hálito que se espalhou em torno deles, enquanto falavam, um infectava o outro... e não só faziam morrer quem quer que falasse com eles como, também, quem quer que comprasse, tocasse ou tirasse alguma coisa que lhes pertencesse (MICHELE PIAZZA, monge franciscano, 1374. Apud. BARATA, 1985, p. 16).

Ao admitir o contágio das doenças e relacioná-lo a locais miasmáticos, o

conhecimento da época recuperava a tradição hipocrática e a sistematização galênica

que dava ênfase aos fatores físicos do ambiente como produtores de doenças. Os

miasmas advinham de lugares onde, de alguma forma, existiam águas pútridas, matéria

orgânica em decomposição ou algo que infestasse o ar. Aceitava-se, ainda, que se

processavam nesses lugares alterações atmosféricas a partir de uma conjugação maligna

dos astros. Esse ar, ao ser inalado, provocava alteração na natureza dos corpos,

evidenciando a doença. Porém, um fato se confrontava com a realidade: era o de que

nem todos que estavam submetidos a essas circunstâncias ficavam doentes. Isso levava

a concluir que havia alguma predisposição individual envolvida no adoecimento. E,

nesse caso, a desconfiança se voltava para os aspectos ligados à higiene dos lugares e

dos corpos das pessoas.

Assim, faz-se necessário reconhecer que, embora o cristianismo desse maior

importância às coisas do espírito – retratadas na punição ou salvação da alma no outro

mundo – em detrimento do corpo físico e da vida terrena, o homem medieval - e aqui se

entendam os clérigos e as classes mais abastadas, que viviam sob sua orientação - era

educado no sentido da higiene pessoal e dos bons hábitos de alimentação. Isso

prolongaria a vida na terra e as possibilidades de praticar boas obras, aspecto

fundamental para se ter um bom julgamento no Juízo Final, razão por que os conventos

incentivavam o consumo de frutas e legumes, mesmo em refeições muito simples.

3.4 A medicina como prática pagã

Heer (1968) revela que, ao largo da Igreja Católica, desenvolveu-se, na

Idade Média, uma medicina “pagã”, relacionada com uma visão particular do mundo.

Essa medicina era fruto da absorção dos ensinamentos da medicina clássica e da

filosofia médica concebidas por médicos árabes e judeus. A formação dos médicos

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dessa tendência indicava que o aprendiz ou praticante em formação precisava viver pelo

menos um período no Mediterrâneo, onde haveria uma atmosfera livre-pensadora

esclarecida. Nessa formação, relata o autor, a teoria e a prática da medicina cresciam

lado a lado43 e, de forma ousada, investigava-se o corpo humano. A ousadia firmava-se

numa espécie de desafio às crenças católicas, em que dissecar44 o homem era como

dissecar a Deus, visto que o corpo do homem, segundo a Igreja Católica, representava a

imagem do corpo de Cristo. Assim, dedicavam-se ao estudo da anatomia, prática

considerada pagã e inumana por essa religião.

Apesar de algumas análises históricas, principalmente em face de a ação da

Igreja Católica exagerar a influência do catolicismo nesse período, chegando a

caracterizá-lo como uma idade das trevas, para o conhecimento, isso deve ser

relativizado. Os períodos de retrocessos causados pelas migrações e pelas ondas de

invasões estrangeiras foram, ao longo do tempo, vencidos, propiciando o renascimento

urbano e comercial, a ampliação de culturas e fronteiras agrícolas, o crescimento

econômico, o desenvolvimento científico e grandes evoluções tecnológicas.

Por volta dos séculos XII e XIII, são fundadas as primeiras universidades –

Paris, Coimbra, Bologna e Oxford – e, em 1500, já seriam mais de 70. Começa, então,

um forte movimento de tradução de documentos árabes e gregos, que tornam o

conhecimento do mundo antigo novamente disponível para os eruditos europeus. Tudo

isso possibilitou um grande progresso em conhecimentos como os da Astronomia, da

Matemática, da Biologia e da Medicina. O fim da Idade Média está relacionado a

grandes transformações, dentre elas, podem-se destacar: a ascensão das monarquias

européias, o início da recuperação demográfica e econômica, os descobrimentos

marítimos e o movimento de redescoberta da cultura clássica, por volta do século XV

(RONAN, 1983).

43 Mesmo que isso não seja categoricamente assumido ou dito pelo autor, pode-se inferir que a abordagem da Medicina, aqui caracterizada como pagã, tenha sido, pela sua característica de associar, já na formação médica, teoria e prática, uma medicina mais voltada para o diálogo. 44Apesar de a medicina dever seu avanço à prática das cirurgias feitas pelos cirurgiões do exército, os professores universitários desprezavam seus trabalhos, pois, nas universidades, “a medicina era inteiramente um assunto de sabedoria de livros, com particular referência aos textos clássicos” (HEER, 1968, p.322). A partir de então, a prática da medicina (clínica) passou a ser uma carreira de família. Essa continuidade era importante, pois formava uma tradição e dava segurança aos profissionais.

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3.5 A saúde-doença com base científica

A Idade Moderna foi palco da transição do feudalismo para o capitalismo.

Assistiu a uma época de renascimento quando o mundo experimentou grandes avanços

em todos os campos, notadamente nas ciências, que deram um grande salto qualitativo.

E mesmo que continuasse e até evoluísse a teoria do contágio – que sustentava e

reforçava a doença como algo externo ao homem, colocando-o na condição de um quase

impotente receptáculo de doenças e agravos – a reforma protestante, o questionamento

da verdade absoluta representada pela Igreja Católica e a queda paulatina de sua forte

influência nas cortes da Europa, foram, aos poucos, deslocando o eixo das discussões

sobre causalidade, fazendo com que a discussão assumisse posições mais científicas.

Nessas condições, a medicina voltou ao laicismo e foram retomados e

mesmo revelados os experimentos clínicos que, mesmo proscritos pela igreja, foram

feitos, muitos na clandestinidade. Os relatos desses experimentos passaram a ter grande

influência e credibilidade, mesmo que continuassem hegemônicas as idéias do contágio

que, a essa altura, evoluíra para a teoria dos miasmas. A teoria miasmática afirmava que

a origem das doenças situava-se na má qualidade do ar proveniente das emanações

resultantes da decomposição de animais e plantas. Essa teoria, como a do contágio que,

em si, já denotava uma determinada linha de “raciocínio epidemiológico” e que

dominou o pensamento médico oficial até metade do século XIX, pode ser assim

caracterizada: Há diferentes constituições em diferentes épocas. Elas não se originam nem do calor, nem do frio, nem da umidade, nem da secura, elas dependem de certas misteriosas e inexplicáveis alterações nas entranhas da terra. Pelos seus eflúvios, a atmosfera torna-se contaminada e os organismos dos homens são predispostos e determinados (SYDEHAM, apud. BARATA, 1985, p. 18).

O empirismo, entretanto, baseado na observação e na explicação racional

para os fenômenos naturais, inaugurara uma era de descobertas científicas em todos os

campos. Na saúde, os estudos se voltaram para o desenvolvimento da clínica e das

teorias acerca da causalidade das doenças. Um conjunto de estudos que merece destaque

é o desenvolvido por Bernardino Ramazzini45, primeiro trabalho de que se tem notícia a

45 A obra desse autor, De Morbis Artificum Diatriba, foi publicada pela primeira vez em 1713. O texto original em latim teve uma revisão e tradução para o inglês pela Universidade de Chicago em 1940. Foi traduzida e publicada no Brasil pela FUNDACENTRO, órgão da estrutura do Ministério do Trabalho, em 1971. Há também uma tradução impressa e publicada pela mesma Fundação, na década de oitenta do

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relatar a preocupação com relação à saúde da população e dos trabalhadores, em

particular, considerando-a do ponto de vista dos diversos ofícios existentes àquela

época. Nos seus estudos baseados na observação, chegou a descrever os padecimentos

relacionados a cinqüenta e quatro ocupações distintas. Suas conjecturas normalmente

levavam em conta o contato laboral com substâncias manipuladas, odores, poeiras e

emanações tóxicas e irritantes para o organismo. Também faziam referência à violência

do trabalho sobre o corpo, às posições forçadas e inadequadas que, assumidas durante a

jornada laboral, aos poucos iam adoecendo e produzindo graves enfermidades nos

trabalhadores.

Sobre os agricultores italianos, Ramazzini escreveu: As doenças que costumam atacar a população agrícola, pelo menos na Itália, e especialmente às margens do rio Pó, são pleurisia, inflamação dos pulmões, asma, cólica, erisipelas, aftalmia, amigdalite, dor de dentes e cárie dentária... Os erros que observei no tratamento desta classe de homens são muitos, e surgem do fato de se supor que a classe camponesa, por causa de sua constituição forte, é capaz de tolerar remédios fortes melhor do que o povo da cidade (RAMAZZINI, 1940, apud. ROSEN, 1983, p. 30).

Já sobre os oleiros, observou: Trabalhadores desta espécie vêm principalmente da classe camponesa: assim, quando são atacados pela febre, dirigem-se para suas choupanas e deixam o caso inteiramente à natureza, ou senão são levados para o hospital e lá são tratados, como toda gente, com remédios comuns, purgantes e sangria. Os médicos nada sabem do modo de vida destes trabalhadores, que estão exaustos e prostrados pelo incessante trabalho [...] Para estes desgraçados trabalhadores, o melhor remédio seria um banho de água fresca, no estágio inicial, quando começam a ter febre, pois seus corpos estão descuidados e ásperos de imundície e, umedecendo a pele e abrindo os poros, seria dado passagem à febre (RAMAZZINI, 1940, apud. ROSEN, 1983, p. 30).

Os dois fragmentos transcritos permitem, pelo menos, duas observações: a

primeira expressa uma posição que indica, já naquela época, ser possível se analisar a

doença segundo um perfil de classe social, que poderia assumir características diferentes

de acordo com as ocupações, os tipos de trabalho e a forma de prescrição das tarefas,

considerando a própria constituição do trabalhador frente às cargas laborais e ao

processo de desgaste determinado pelo trabalho46. A segunda observação diz respeito à

século passado. A referência completa da publicação mais recente é a seguinte: RAMAZZINI, B. – As doenças dos trabalhadores. São Paulo: FUNDACENTRO, 1985; 46 O conceito de carga de trabalho é mais ou menos recente e diz respeito aos elementos do processo de trabalho que interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador, gerando os processos de adaptação e desgaste. As cargas podem ser divididas em vários tipos: físicas, químicas, biológicas, ergonômicas ou fisiológicas e psíquicas. Já o conceito de desgaste diz respeito à perda de capacidade potencial ou efetiva, corporal e psíquica do trabalhador. Para um aprofundamento desses dois conceitos e

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constatação em relação à visão de saúde-doença predominante na medicina da época,

que não considerava, nos seus diagnósticos e tratamentos, as condições de vida e de

trabalho das pessoas.

Isso foi de suma importância para aquela época, da mesma forma como

ainda o é hoje, visto que, em muitos casos, a Medicina, por questões ideológicas ou por

sua tradição reducionista marcada pela biologia, não se permitia ao diálogo com outras

formas de conhecimento para explicar a saúde e a doença, optando, no mais das vezes,

por uma visão representacionista e marcadamente cartesiana. A essa altura, já por volta

do século XVIII, evoluíam os estudos sobre anatomia, fisiologia e patologia,

informados por experimentos precursores que já datavam de séculos anteriores47.

Evoluía, ainda, a linguagem dos sinais e sintomas e a relação das doenças com órgãos

do corpo, estudos que deram base empírica para novos avanços da Medicina.

No plano político-ideológico, a Idade Moderna foi a era das grandes

revoluções. A Revolução Inglesa do século XVII representou a primeira manifestação

de crise do sistema moderno, identificado com o absolutismo. O poder monárquico,

severamente limitado, cedeu a maior parte de suas prerrogativas ao Parlamento e

instaurou-se o regime parlamentarista que permanece até hoje. O processo começou

com a Revolução Puritana, de 1640, e terminou com a Revolução Gloriosa de 1688. As

duas fazem parte de um mesmo processo revolucionário, daí a denominação de

Revolução Inglesa do século XVII. Esse movimento revolucionário criou as condições

indispensáveis para a Revolução Industrial do século XVIII, limpando o terreno para o

avanço do capitalismo. Nesse sentido, deve ser considerada a primeira revolução

burguesa da história da Europa (AQUINO, 1999; ARRUDA, 1978).

A Revolução Americana de 1776, conhecida como a Guerra da

Independência dos Estados Unidos da América, foi a segunda delas. Desfechada contra

o domínio inglês, constituiu-se um movimento de ampla base popular, cujo principal

sua relação com a saúde dos trabalhadores, indicamos a leitura de LAURELL, A.C & NORIEGA, M. Processo de Produção e Saúde: Trabalho e Desgaste Operário. São Paulo, Hucitec, 1989. 47 Datam dos séculos XVI e XVII os estudos de William Harvey (1578-1657), que retomou estudos anteriores de Miguel Servet (1511-1553) e avançou sobre a circulação sangüínea, inicialmente nas ovelhas e depois no próprio homem, iniciando e dando força aos estudos posteriores de anatomia comparada. Os estudos de André Vesálio (1514-1590), Ambroise Paré (1509-1564), Pierre Franco (1500-1561), Gabriele Fallópio (1523-1563) e Tagliacozzi (1546-1599), impulsionaram, por outro lado, a área da anatomia e da cirurgia, inclusive a cirurgia plástica, que tem seu início nesse período. Para uma recuperação consistente da história da saúde pública, nesse e noutros períodos, sugerimos um texto de GUTIERREZ, P. R. e OBERDIEK, H. I. – Concepções sobre a Saúde e a Doença. In: Selma Maffei de Andrade, Darli Antônio Soares, Luiz Cordoni Júnior (orgs.). Bases da Saúde Coletiva. Londrina: EDUEL, 2001.

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motor foi a burguesia colonial. Essa revolução foi particularmente importante porque,

pela primeira vez na História da expansão européia, uma colônia48 tornava-se

independente por meio de um processo revolucionário. O seu pioneirismo pode ser

constatado no fato de organizar uma Constituição que definia uma federação de estados

dotados de grande autonomia, consignava os direitos individuais dos cidadãos, definia

os limites dos poderes dos diversos estados e do governo federal e estabelecia um

sistema de equilíbrio entre os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, de modo a

impedir a supremacia de qualquer deles, além de outras disposições inovadoras

(AQUINO, 1999; ARRUDA, 1978).

Falcon e Moura (1989), entretanto, relativizam o caráter revolucionário da

independência porque o saldo do movimento foi a tomada do poder das mãos da

oligarquia metropolitana pela burguesia colonial, como expressa o fragmento seguinte: Ideologicamente identificada com a burguesia européia dessa época, e talvez até mais ainda com as idéias da Revolução Inglesa do século XVII, a Revolução Americana conduziu à formação de uma República em que se procurou eliminar o excesso de autonomia dos Estados, antigas colônias, em benefício da autoridade federal. Nada melhor do que os debates que presidiram a elaboração da Constituição Americana em seus aspectos econômicos, sociais, políticos e ideológicos. O seu caráter revolucionário talvez só possa ser entendido e aceito adotando-se uma perspectiva bem mais ampla, que nos permita abranger também a ‘guerra civil americana’, já na segunda metade do século XIX (FALCON; MOURA, 1989, p. 301).

A Revolução Americana, assim como as idéias iluministas, influenciou

outra revolução: a Revolução Francesa (1789). Considerada como o acontecimento que

deu início à Idade Contemporânea, essa revolução aboliu a servidão e os direitos feudais

na França e proclamou os princípios universais de liberdade, igualdade e fraternidade.

Alterou o quadro político e social da França ao provocar a derrocada do Ancien Régime,

representado pelo absolutismo e pelo capitalismo comercial. Acabou com os privilégios

e a autoridade do clero e da nobreza, ainda que, sob Luís XVIII, de certa forma, tenha

sido derrotada pela tentativa de retornar aos padrões políticos, sociais e institucionais do

Antigo Regime, através de um movimento denominado de Restauração. Mas é

importante lembrar que a Revolução Francesa semeou novas ideologias na Europa,

conduziu guerras e foi inspiração para novos movimentos libertários.

48 Na verdade, em relação aos Estados Unidos, o correto seria falar-se de colônias, já que a revolução envolveu treze colônias britânicas do hoje território americano. A proclamação da independencia, em 04 de julho de 1776, deu-se num documento histórico que defendia o direito à independência e à livre escolha de cada povo e de cada pessoa, e que o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade era inalienável e de origem divina.

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Para Hobsbawm (1989), o legado da Revolução Francesa deixou frutos que

vão além do tempo e do espaço. A Revolução Francesa dominou a história, a própria linguagem e o simbolismo político ocidental desde a sua irrupção até o período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial [...] Assim, por quase um século e meio, a bandeira tricolor francesa forneceu abertamente o modelo para as bandeiras da maioria dos Estados recém-independentes ou unificados no mundo: a Alemanha escolheu o preto, o branco e o vermelho; a Itália, verde, branco e vermelho [...] Mesmo na América, as bandeiras que mostram a influência tricolor superam o número das que mostram influência do Norte (HOBSBAUM, 1989. Apud. MOTA, 1997, p. 210).

Outro acontecimento importante, na Europa, foi a revolução industrial49

inglesa, que organizou o trabalho fabril. Inicialmente, essa revolução baseou-se nas

indústrias têxteis para, logo depois, ir se diversificando e se alastrando por toda a

Europa assim como pelas Américas que, seguindo os passos do que acontecia no velho

continente, tiveram que fazer os seus movimentos de independência e depois, aos

poucos, se alinharem, não sem traumas, ao contexto das nações modernas

consolidadoras do Estado liberal que impulsionou o início da Idade Contemporânea. Os

Estados Unidos, primeiro, e o Brasil, cinqüenta anos depois, são os exemplos mais

importantes, na América do Norte e na América do Sul, dessa expansão política e

ideológica, até mesmo por suas grandes dimensões geográficas e populacionais.

Mota (1997) entende que a revolução industrial foi muito mais que uma

revolução técnica e científica. Defende que ela representou uma mudança social

profunda na medida em que transformou a vida dos homens, sem se preocupar com os

custos sociais e ambientais dessa mudança. Para a autora, uma das primeiras

transformações diz respeito ao significado da palavra trabalho. Este que, na ideologia de

até então, significara dor, humilhação e pobreza, passou a ser fonte de propriedade,

riqueza, produtividade e até mesmo expressão da condição humana. Com a ideologia

capitalista industrial, o trabalho passou a dignificar o homem e a qualificá-lo, tornando-

se um indicador de posição social. Adquiriu, portanto, uma posição de centralidade na

sociedade, passando a organizar a vida das pessoas. A mudança mais relevante é que o

controle técnico do trabalho passou para as mãos do capitalista que, nessa situação,

passava a definir o processo de produção. A evolução desse processo é que instituiu a

49 A Revolução Industrial aconteceu na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII (entre 1760 e 1850), para depois se alastrar pela Europa, América e Ásia. Encerrou a transição entre feudalismo e capitalismo, a fase de acumulação primitiva de capitais e de preponderância do capital mercantil sobre a produção. Completou ainda o movimento da revolução burguesa iniciada na Inglaterra no século XVII, por volta de 1670.

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divisão e o parcelamento do trabalho, resultando na alienação50 do trabalhador, do

produto do seu esforço laboral. Ele perdia a noção global do processo de produção.

3.6 A experiência clínica como medicina científica

A partir dos conceitos de saúde-doença da época contemporânea, pode-se

dizer que foram vividas, nesse período histórico, profundas e complexas disputas

político-ideológicas, que se deveram, em grande parte, ao fenômeno social da revolução

industrial a que foi feito referência no final da secção anterior e aos reflexos desse

evento na sociedade ocidental e nas condições objetivas de vida do povo dessa mesma

sociedade. A consolidação dos estudos sobre anatomia, fisiologia e patologia, por outro

lado, jogou um papel importante nessa conjuntura, como fenômeno científico, bastando

ver o que revela Foucault (1980), ao afirmar que o grande corte na história da medicina

ocidental data, precisamente, do momento em que a experiência clínica se tornou o

olhar anátomo-clínico.

Há, no entanto, outras interpretações mais rigorosas e cientificistas que

assinalam que o estatuto científico da Medicina só pode ser considerado a partir do dado

concreto da revolução bacteriológica, com a descoberta dos microorganismos feita por

Pasteur. Para muitos, só a partir dela a Medicina teria passado a ser cientificamente

praticada. A bacteriologia poderia explicar todas as epidemias que castigaram as

populações humanas, notadamente na Idade Média. Explicaria, ainda, grande parte dos

adoecimentos humanos e impulsionaria uma convincente teoria das epidemias.

A revolução bacteriológica foi particularmente importante porque deu um

substrato material, biológico, à explicação do evento doença. Mas essa não se constituiu

numa unanimidade. Havia outras explicações para o evento saúde-doença e para os

conflitos sociais nessa época marcada por disputas acirradas entre duas alas: uma,

baseada numa visão higienista51 da organização das cidades, e outra, que encontrava nas

50 Segundo Giddens (1994), por alienação deve ser entendida a noção de que nossas próprias potencialidades, enquanto seres humanos, são realizadas ou assumidas por outras entidades. O termo foi utilizado, pela primeira vez, por Marx querendo indicar a projeção de poderes humanos nos deuses. Depois, ele o empregou para referir-se à perda de controle do trabalhador sobre a natureza e o produto do seu trabalho. 51 O higienismo diz respeito à intervenção estatal, num primeiro momento em que este passa a olhar com mais atenção para a saúde das cidades e de seus habitantes. Evolui do conhecimento da Higiene um ramo

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questões sociais resultantes da urbanização e da produção econômica a causa do adoecer

e morrer da população. As duas visões, entretanto, detinham um limite: o de se

expressar pelo prisma da unicausalidade.

A centralidade do trabalho, na vida humana, e a organização econômica

capitalista, com suas repercussões na sociedade, formaram o motor desses grandes

conflitos, inicialmente, entre o que podemos chamar de socialistas utópicos52, de um

lado, e de liberais, do outro, em pleno alvorecer do século XIX. Os socialistas utópicos

desejavam reformar o capitalismo nascente na Europa, mais precisamente na Inglaterra.

Tiveram papel importante junto aos movimentos que faziam oposição aos condutores da

revolução industrial inglesa. Mas o grupo mais efetivo contra os capitalistas foi mesmo

o dos socialistas científicos, cujos representantes foram Fredrich Engels e Karl Marx

que, com a sua teoria sócio-econômica da história, representada pelo materialismo

histórico, produziram uma filosofia e uma sociologia consistentes e com uma força

explicativa sem precedentes na história contemporânea.

Inspirada na filosofia marxiana e na realidade concreta de vida e trabalho do

operariado europeu, evoluíra uma corrente da medicina denominada de medicina social,

que denunciava o reducionismo da teoria biologicista do processo saúde-doença. A

medicina social questionava os supostos avanços da economia liberal resultante da

revolução industrial em marcha e acusava o novo sistema produtivo de explorar e ceifar

da medicina que busca a origem das enfermidades em fatores ambientais e visa à prevenção da doença a partir da educação em relação a hábitos de limpeza e de asseio. Data dos séculos XVIII e XIX e advém da necessidade de se manterem determinadas condições de saúde, nos ambientes das cidades, mediante a instalação de água corrente, esgotos e iluminação das ruas, e de se poderem controlar as epidemias. Até meados do século XIX, predominava por esforços individuais, sobretudo de médicos desejosos de cuidar da saúde urbana. Na sua concepção, era necessário proteger três elementos básicos: o ar, a água e o solo. Protegidos e mantidos em quantidades e qualidades adequadas, poder-se-iam defender as cidades dos miasmas e dos vapores malignos que se desprendiam dos corpos enfermos ou substâncias em decomposição e colocavam em perigo os habitantes das cidades. Punha em prática algumas estratégias urbanas como: aterrar monturos e retirar indústrias, matadouros e cemitérios de áreas centrais das cidades. Numa segunda etapa, o movimento higienista saiu do âmbito público e estendeu-se à vida privada nas residências, proclamando-se a necessidade de construção de banheiros, regulamentando-se a altura mínima dos tetos, uma adequada ventilação dos ambientes e recomendando-se a limpeza periódica das casas. Com as investigações de Koch e, principalmente, de Louis Pasteur – quando se descobre que as enfermidades se relacionam com microorganismos, e não, com emanações de substâncias em decomposição – a higiene passa a ser uma questão social mais ampla e tecnificada. Passa a fazer uso de analises bacteriológicas das águas e mananciais e utiliza o cloro para tratamento da água e para desinfetar os ambientes. 52Os socialistas utópicos eram teóricos idealistas, normalmente vindos das classes burguesas. Procuravam conciliar, numa sociedade ideal, os princípios liberais em voga com as necessidades emergentes do operariado fabril, resultante da revolução industrial. Pela atuação destacada junto aos socialistas científicos e anarquistas, ao lutarem em favor do operariado inglês, tiveram importância histórica.

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vidas e de levar à exaustão homens, mulheres e até crianças, sem a necessária

retribuição econômica e social53, além de tolher a liberdade e a autonomia humanas.

A partir da leitura de Barata (1985) e Rosen (1983), é possível ilustrar o

presente texto com alguns posicionamentos de dois importantes defensores dessa

corrente da medicina que, mesmo contra-hegemônicos, deram base para as lutas que,

hoje, são travadas sobre a interpretação do processo saúde-doença. Se a doença é uma expressão da vida individual sob determinadas condições desfavoráveis, a epidemia deve ser indicativa de distúrbio, em maior escala da vida das massas [...] As epidemias não apontarão sempre para as deficiências da sociedade? Podem-se apontar como causas as condições atmosféricas, as mudanças cósmicas gerais e coisas parecidas, mas, em si e por si, estes problemas nunca causam epidemias. Só podem produzi-las onde, devido às condições sociais de pobreza, o povo viveu durante muito tempo em uma situação anormal (VIRCHOW, 1848, apud BARATA, 1985, p. 19). A ciência médica é intrínseca e essencialmente uma ciência social; enquanto isso não for reconhecido na prática, não seremos capazes de desfrutar de seus benefícios e teremos que nos satisfazer com um vazio e uma mistificação. (NEUMANN, 1847, apud ROSEN, 1983, p. 51).

A força do argumento da Biologia e as suas comprovações empíricas, numa

discussão dominada pela interpretação unicausal e pelo cartesianismo, deram a

hegemonia da explicação do processo saúde-doença às conclusões de Louis Pasteur. A

Biologia, ao dar materialidade e comprovação empírica às epidemias de então e de

épocas passadas, reforçava a tendência higienista das instituições do Estado e o discurso

liberal que, fazendo uso ideológico do conhecimento científico, defendia-se dos

contestadores da organização capitalista da produção. Munida da comprovação

científica, a medicina, por seu turno, trabalhava a idéia generalizadora de que existiria

para cada doença um microorganismo, e que estes deveriam ser combatidos por vacinas

e medicamentos ou prevenidos por medidas de higiene.

Mas o discurso médico-científico, baseado na teoria microbiana e no

higienismo, com o tempo, demonstrou insuficiência ao ser aplicado no contexto da

53 Nesse período da revolução industrial, foram produzidos muitos relatórios. Eles denunciavam a situação de penúria, de miséria e de exploração em que viviam as grandes massas da população, e pelo menos um, produzido enquanto essa realidade se dava, merece ser lembrado: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels (1845), por sua riqueza monumental, seu estilo vibrante, erudito e sua extrema lucidez, imprimindo a essa obra um valor histórico inesgotável. Há ainda uma obra de uma historiadora brasileira da atualidade, retratando essa mesma época, cujo título é Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. A autora é Maria Stella M. Bresciani. A referência completa das duas obras é: ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução de Rosa Camargo Artigas & Reinaldo Forti, Global Editora, 1985; e BRESCIANI, M.S.M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. Editora Brasiliense, 6ª edição, (Coleção Tudo é História, n.º 52) São Paulo, 1990.

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crescente urbanização dos países europeus e da consolidação do sistema fabril. Ao

imprimir à produção ritmos intensos com jornadas extensas e absorver

indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, o sistema acelerava e desgastava os

trabalhadores, trazendo como conseqüência um aumento exagerado no consumo da

força de trabalho. Isso se traduzia em estatísticas alarmantes de acidentes e mortes

(ENGELS, 1985; MARX, 1982).

Essa realidade, à medida que gerava momentos de intenso conflito na

relação capital-trabalho, propiciava o surgimento de movimentos reivindicatórios que,

apoiados pelas correntes socialistas da época, vinculavam a situação reinante – de

miséria, doença e morte – ao novo modo de produção (ROSEN, 1983; SILVA, 1985).

Era a análise das condições objetivas de existência e a força crescente da concepção da

causação social abrindo espaço para a construção de uma teoria social da Medicina, que

relacionava às condições de vida e trabalho das populações o aparecimento das doenças.

O ambiente, antes, origem e explicação para praticamente todas as doenças, deixava,

momentaneamente, de ser natural para revestir-se de social. As causas das doenças

passavam a ser buscadas também nas condições de vida e de trabalho da população.

As tensões provocadas pela disputa de duas visões distintas de explicação

do processo saúde-doença e a necessidade de regulação do conflito resultaram, por volta

da metade do século XIX, num conjunto de ações do Estado que, absorvendo a

efervescência política da época, foi forçado a responder com medidas legislativas

regulamentadoras do trabalho fabril no que dizia respeito, entre outras coisas, à

diminuição da jornada de trabalho e ao trabalho da mulher e das crianças (ENGELS,

1985; MARX, 1982; ROSEN, 1983). Todo um processo de reforma sanitária foi

implantado dando, evidentes sinais de que a problemática da saúde e sua interface com

o processo de trabalho já estavam colocadas.

Todas as medidas baixadas pelo Estado contavam com a resistência da

burguesia industrial, que se opunha a qualquer regulação que não fosse a do mercado e a

qualquer intervenção que não fosse a sua própria. Mas isso não quer dizer que não

estivessem preocupados com os problemas de saúde da força de trabalho. Estavam e

buscavam alternativas para resolvê-los, porém dentro de um horizonte de visibilidade

próprio da burguesia, àquela época, influenciada pela ciência positivista (SILVA, 1985).

Resguardando a prática liberal, essa burguesia entendia ser esse um problema

eminentemente médico. E é sob esse pressuposto que nasce, no interior da fábrica,

centrada no médico e na ciência médica, a Medicina do Trabalho, abordada a seguir.

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3.7 A Medicina do Trabalho

Mendes e Dias (1991) ilustram como surge a Medicina do Trabalho,

enquanto especialidade médica, e o primeiro serviço de Medicina do Trabalho, em

1830, na Inglaterra. Um industrial têxtil, preocupado com a debilidade da saúde e da

assistência médica dispensada aos seus empregados, a qual, àquela época, resumia-se às

instituições filantrópicas, buscou auxílio junto ao seu médico particular, Dr. Robert

Baker, que lhe deu o seguinte conselho: Coloque no interior da sua fábrica o seu próprio médico, que servirá de intermediário entre você, os seus trabalhadores e o público. Deixe-o visitar a fábrica, sala por sala, sempre que existam pessoas trabalhando, de maneira que ele possa verificar o efeito do trabalho sobre as pessoas. E se ele verificar que qualquer dos trabalhadores está sofrendo a influência de causas que possam ser prevenidas, a ele competirá fazer tal prevenção. Dessa forma, você poderá dizer: meu médico é a minha defesa, pois a ele dei toda a minha autoridade no que diz respeito à proteção da saúde e das condições físicas dos meus operários; se algum deles vier a sofrer qualquer alteração da saúde, o médico unicamente é que deve ser responsabilizado (MENDES; DIAS, 1991, p. 341).

De tão eficiente, o conselho valeu ao médico uma contratação e o

reconhecimento da história como o fundador da Medicina do Trabalho. Essa

especialidade rapidamente se expandiu na Inglaterra, depois, junto com a

industrialização, nos países vizinhos, para finalmente chegar até os países periféricos,

acompanhando o movimento de expansão e reprodução do sistema e a

transnacionalização da economia.

A instituição do médico do trabalho, com tais poderes e prerrogativas,

operava o milagre de transferir a responsabilidade do adoecimento, do processo e das

condições de trabalho para o médico e para a medicina, desviando-se, portanto, a

discussão do problema do seu foco real. O que se tinha, mais uma vez, era o reforço da

prática médica como uma medicina que se afastava do seu desiderato, assumindo uma

atitude nada ética, considerando-se os princípios hipocráticos. Uma medicina alienada e

antidialogal. Uma medicina do capital54. Algo que se instalava no interior das fábricas,

54 Um estudo nessa perspectiva é referido por Garcia (1983), quando lembra a obra de Jean-Claude Polack: La Medicine del Capital. Madrid, Editorial Fundamentos, 1974. Esse autor, um militante sindical na juventude, depois médico graduado em Psiquiatria e Psicanálise e diretor do Cahiers Pour la Folie, afirmava que uma medicina a serviço do povo e, portanto, científica, só poderia se dar com o desaparecimento do capitalismo. “a prevenção supõe uma inversão das finalidades sociais da produção; o mercado capitalista impõe à medicina o caminho de uma economia da morte. A utilização honesta dos

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não com a perspectiva de atender, em primeiro plano, à saúde dos trabalhadores, mas de

selecionar os mais aptos, os mais saudáveis, para a produção capitalista.

A assistência promovida pela Medicina do Trabalho, desde o seu início,

além de não se constituir uma simples dádiva dos patrões, redundava no aumento da

dependência dos operários e no controle das empresas sobre a sua força de trabalho.

Perdurou por todo o restante do século XIX e primeira parte do século XX, período em

que permaneceu praticamente inalterada e em mãos exclusivamente privadas, sendo

apenas atualizada pela ciência médica. Esse tipo de assistência significou, na prática, a

vitória do liberalismo sobre as correntes socialistas e os defensores da assistência à

saúde de natureza pública, já que, em face da debilidade dos sistemas de atenção à

saúde, a Medicina do Trabalho acabou sendo, em muitos casos, a única assistência

existente para os trabalhadores, e, não raro, para as suas famílias55.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho, o Serviço de Medicina

do Trabalho designa um serviço organizado nos locais de trabalho ou em suas

imediações, destinado a: a) assegurar a proteção dos trabalhadores contra todo o risco

que prejudique a sua saúde e que possa resultar de seu trabalho ou das condições em que

este se efetue; b) contribuir para a adaptação física e mental dos trabalhadores, em

particular, para a adequação do trabalho e sua colocação em lugares correspondentes às

suas aptidões; c) contribuir com o estabelecimento e a manutenção do nível mais

elevado possível do bem-estar físico e mental dos trabalhadores (MENDES; DIAS,

1991, p. 342).

As recomendações da OIT vinham sintonizadas com um conjunto de idéias

e princípios formulados pelo Taylorismo56 e pelo Fordismo57 a respeito da

conhecimentos médicos em uma prática terapêutica desalienada requer a morte desta economia da exploração” (POLACK, 1974, apud GARCIA, 1983, p. 118). 55 Somente no final da segunda década do século XX é que a problemática da saúde do trabalhador volta à cena mundial, dessa vez, por obra de um organismo internacional, recém-criado, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que passa a incluir, no espectro das suas preocupações específicas, a questão da assistência à saúde dos trabalhadores. Porém, é só com o final da segunda grande guerra e seguindo todo o esforço de reconstrução da Europa e a reestruturação do capitalismo em escala mundial que esse organismo internacional se torna mais insistente em relação à questão específica da proteção à saúde dos trabalhadores. Tanto que a Conferência Internacional do Trabalho, realizada em 1959, aprovou um documento que define, nos seus vários aspectos, os Serviços de Medicina do Trabalho. 56 Sistema de organização do trabalho derivado das idéias de F. W. Taylor (1856-1915). Recomendava a adoção de métodos e normas, visando à maximização do rendimento da mão-de-obra, com base numa análise minuciosa de cada tarefa a ser executada, não comunicação entre os trabalhadores, criação da gerência científica, separação sistemática entre concepção e execução das tarefas e criação das linhas de montagem, com controle absoluto do ritmo do trabalho. 57 Doutrina econômica desenvolvida por Henry Ford (1863-1947) baseada na fabricação em massa de bens padronizados (como os automóveis), uso de máquinas especializadas e trabalhadores semi-qualificados.

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administração científica do trabalho, princípios que já se encontravam bastante em voga

àquela época. Portanto, a tentativa de assimilação daqueles princípios ao ideal de defesa

da saúde dos trabalhadores e à constituição dos Serviços de Medicina do Trabalho era

algo natural e respondia às suas principais preocupações: a seleção cuidadosa dos mais

aptos e com maior capacidade produtiva, a diminuição do absenteísmo e dos gastos com

obrigações sociais, em favor de uma melhor relação custo/benefício e, portanto, de uma

maior lucratividade.

Oliveira e Teixeira, estudando as relações entre trabalho, saúde e

previdência, no caso específico do Brasil, retratam o que acabamos de afirmar e

acrescentam: Outro aspecto é a possibilidade de obter um retorno mais rápido da força de trabalho à produção, na medida em que um serviço próprio tem a possibilidade de um funcionamento mais eficaz 'nesse sentido', do que as habitualmente 'morosas' e 'deficientes' (nesse sentido, repetimos) redes previdenciárias e estatais, ou mesmo a prática liberal sem articulação com a empresa. Um último elemento a apontar é a política de pessoal mais 'atraente' que a posse de serviços médicos próprios possibilita, ao afastar os empregados tanto dos gastos individuais com saúde quanto das filas e outros empecilhos freqüentes nas Previdências Sociais e outros órgãos assistenciais. Os resultados desse último aspecto são coisas tais como melhor desempenho na competição interempresarial por mão-de-obra qualificada, ‘paz social’ no interior da empresa etc. (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986, p. 223).

Aqui se tem o raciocínio dominante da medicina, compondo uma sinérgica

relação com a nova administração do trabalho, na busca dos seus fins básicos: o

aumento da produtividade e do lucro. Mas, sobretudo, podemos sentir a primazia do

privado sobre o público começando a se esboçar. Já mais adiante, com a consolidação e

expansão do capitalismo e os avanços da tecnologia, inclusive no campo da medicina,

esse setor se torna uma excelente via de acumulação de capital. Isso, abrindo espaço

para a constituição de empresas de serviços médicos e empresas de seguros, embriões

dos convênios médicos da medicina de grupo e das previdências privadas custeadas

direta ou indiretamente pelos trabalhadores.

3.8 Da unicausalidade à multicausalidade

O século XX veio trazer ao campo da saúde outra disputa político-

ideológica, só que, agora, não mais em termos da unicausalidade, mas da

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multicausalidade. Como no século anterior, duas posições antagônicas: uma, centrada

no ambiente, tido como origem de todas as doenças; e outra, com foco na própria

sociedade e na sua organização social, política, econômica e cultural, como responsável

pelo processo saúde-doença. Os defensores da primeira visão, inicialmente, partiam de

um modelo através do qual a saúde representava um estado de equilíbrio entre fatores,

diversos e múltiplos, e a doença, um estado de desequilíbrio a partir de um ou mais de

um deles; uma visão ecológica multifatorial que, em determinado momento, chegava até

a incorporar o social como um dos fatores da causação.

Os defensores da visão fundada na determinação social do processo saúde-

doença, por outro lado, centravam a sua posição nas condições de vida e de trabalho das

pessoas. Essa é uma concepção multicausal, que rejeitava a utilização de fatores

puramente biológicos, para assumir que a determinação social poderia ser expressa na

dialética relação de determinantes e condicionantes da vida social, que interferem na

forma de viver, de adoecer e de morrer das pessoas58.

No modelo tido como biologicista, eram reconhecidos três grupos de

fatores: os ligados a um agente agressor, normalmente um microorganismo; os ligados

ao hospedeiro, ou seja, às condições orgânicas internas de cada indivíduo, e os ligados

ao meio-ambiente externo. Esses grupos de fatores teriam o mesmo potencial para

provocar doença e morte no homem. A saída contra o adoecimento estaria, pois, no

conhecimento e na observância de medidas preventivas, de cunho individual, que

manteriam o equilíbrio entre os fatores. Esse modelo, no decorrer do tempo, sofreu uma

alteração com a introdução de um quarto grupo de fatores: os psico-sociais,

conseqüência do movimento da medicina integral norte-americana, que passava a

58 Quando se fala de determinantes, faz-se referência aos elementos econômicos que estão no nível da infra-estrutura da sociedade capitalista. Ao passo que, quando se fala de condicionantes, a referência é para a superestrutura político-jurídica e ideológica dessa mesma sociedade. Porém, quer-se deixar claro que infra-estrutura e superestrutura são uma produção humana e não existem ou agem separadamente, mas em contínua relação e é o resultado (ou resultados) dessa relação que determina e condiciona a sociedade, ou seja, a produção social dos homens: “na produção social da vida, os homens constroem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência”. MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política, São Paulo, Ed. Flama, 1946 in IANNI, O. (Org.) Marx - Sociologia INTRODUÇÃO, 1. A produção da sociedade capitalista, 6. ed., São Paulo, Editora Ática, 1988. Trazendo isso para a especificidade da saúde, o capitalismo expressa as relações econômicas de produção travadas na infra-estrutura da sociedade. E o modo como os homens organizam-se no processo produtivo (que está na razão da superestrutura) condiciona a saúde e a doença na população.

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definir o homem como um ser bio-psico-social59, sendo que, nessa visão, o social era

definido como um atributo do homem, e não, da existência humana; uma redução

ideológica que escamoteava o social como elemento de determinação (BARATA,

1985).

A multicausalidade fundada no ambiente biológico exprimir-se-ia por mais

uma evolução desse modelo, que admitia a existência de uma rede de causalidade60,

onde nem todas as causas precisavam ser conhecidas. Bastava a atuação de medidas

preventivas sobre elos visíveis da cadeia para se evitar a doença. Para os defensores da

teoria da causação social, isso representava mais uma manobra para escamotear o social

como determinante, uma vez que as causas não visíveis seriam justamente as que

encontravam explicação na sociedade e suas organizações.

Um último refinamento dessa concepção de saúde-doença pode ser

representado pelo modelo ecológico, em que as inter-relações entre os diversos fatores

são apresentadas na forma de um sistema triangular fechado, com um feedback

regulador, que controlaria a atividade e a sobrevivência de agentes e hospedeiros através

do ambiente. Nessa inter-relação, os diversos fatores se alterariam mutuamente,

provocando desequilíbrios (doença) e reequilíbrios (saúde). Os desequilíbrios desse

sistema permitiriam a evolução do processo até a cura, óbito ou outros estados

intermediários. O modelo da História Natural da Doença61 era a representação mais

típica dessa visão que destacava a saúde-doença como um processo dinâmico

condicionado pela inter-relação entre fatores.

3.9 Da Medicina do Trabalho à Saúde Ocupacional

A segunda guerra trouxera mais que catástrofes e esforços de reconstrução.

59 A Organização Mundial de Saúde (OMS), na Carta Magna de 07 de abril de 1948, possivelmente influenciada por esse movimento, estabeleceu o conceito de saúde como: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de afecção ou doença”. Mesmo sendo o mais difundido nos últimos cinqüenta anos, esse conceito encerra uma visão subjetiva e abstrata de saúde, que precisa ser traduzida do ponto de vista da riqueza de detalhes da realidade social em que vivem as populações humanas. 60 O modelo em questão, em todos os seus detalhes, pode ser encontrado em MACMAHON, B. & PUGH, T.F. Princípios e métodos da epidemiologia. Rio de Janeiro, McGraw-Hill do Brasil, 1978. 61 Conferir em LEAVELL, H. & CLARK, E. G. Medicina Preventiva. Rio de Janeiro, McGraw-Hill do Brasil, 1976.

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Na verdade, estabelecera uma nova ordem industrial – não se deve esquecer todo o

processo de substituição de importações e a expansão do capitalismo periférico que

caracterizou esse período – assim como uma nova divisão internacional do trabalho. O

período bélico fora um momento incomum de progresso da ciência. Afinal, para

sustentar o conflito, de parte a parte, a pesquisa e a síntese de novos materiais e

equipamentos alcançaram um impulso tecnológico e industrial nunca visto. Com o

armistício, toda a tecnologia pôde ser reconvertida em novos produtos, insumos

químicos, máquinas pesadas e equipamentos, com avanços significativos do ponto de

vista do capitalismo. Principalmente na Europa, onde houvera a maior destruição, essa

nova realidade trouxe muita confusão ao mundo do trabalho, fazendo-se sentir a

insatisfação de trabalhadores e empresários.

Os primeiros, porque arcaram dentro e fora da guerra com o maior ônus – a

produção, nesse período, além de tudo, acelerara, ainda mais, o desgaste da mão-de-

obra e multiplicara as doenças do trabalho e os acidentes com invalidez e morte de

milhares de trabalhadores. Os empresários, por seu turno, reclamavam dos aumentos

dos custos da produção, inclusive, por conta das elevadas despesas diretas e indiretas

relativas à saúde dos trabalhadores.

É diante desse novo contexto de reestruturação política e econômica, em

que o sistema de relações de trabalho, até então em voga, demonstra a sua

obsolescência, que a racionalidade da administração científica do trabalho se vê com a

incumbência urgente e necessária de introduzir modificações profundas nas relações de

trabalho, intervindo com novas políticas na área da gerência de recursos humanos e na

modificação ou introdução de novos processos técnicos.

As medidas tomadas, embora prometessem promover o tão sonhado

reequilíbrio da relação capital-trabalho, considerando inclusive as questões ligadas à

saúde dos trabalhadores, que advinham de todas as transformações processadas no

interior do processo produtivo, não conseguiam esconder o disfarce de que, antes de

qualquer coisa, serviam às estratégias do empresariado na perspectiva da garantia e da

ampliação da capacidade de reprodução do capital. Daí, até a avaliação de que a

Medicina do Trabalho não era mais capaz de sozinha dar uma resposta satisfatória aos

problemas colocados pelo novo tempo e pela nova organização do trabalho industrial,

foi um passo previsível.

Principalmente nas grandes empresas, ampliava-se a necessidade de se

acoplar ao conhecimento médico o instrumental de outras áreas do conhecimento, como

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a engenharia e as ciências sociais, e de se deslocar o eixo de intervenção do trabalhador

para o meio ambiente. Essa intervenção se fez instituindo-se a Saúde Ocupacional, uma

nova prática de atenção à saúde dos trabalhadores que, deixando de ser centrada

exclusivamente na medicina, continuaria, entretanto, hegemonizada por esta – na figura

do médico, que reuniria progressivamente em seu entorno diversos outros profissionais

e seus conhecimentos específicos – agora sob o signo da interdisciplinaridade e da

multiprofissionalidade.

A evolução da Medicina do Trabalho para a Saúde Ocupacional assentou-se

num movimento que teve seu epicentro na academia, onde se destacaram, de um lado,

as escolas de saúde pública, americanas e inglesas, sobretudo, com um enfoque centrado

na higiene ocupacional, em detrimento de uma relativa desqualificação do enfoque

médico e epidemiológico da relação trabalho-saúde; e, de outro, na sociologia médica,

que se consolidava como um campo teórico específico das ciências sociais. Ambas

tentavam responder, tardiamente, a todo um movimento que vinha na esteira das

transformações ocorridas no mundo do trabalho.

Nesse período, a visão da medicina mantinha-se consubstanciada na teoria

multicausal do processo saúde-doença – que vinha dominando, até então, todo o século

XX – através da construção de vários modelos sucessivos que se caracterizavam pela

intensificação da medicalização da sociedade, numa tendência de redução do social e

sua descaracterização através de construções a-históricas e biologicistas já descritas.

Mas, a verdade é que a Saúde Ocupacional, em que pesem todos os avanços

prometidos, evidenciou muito rapidamente a sua insuficiência. Não se mostrou capaz de

dar conta das grandes transformações por que passava a sociedade industrial no seu

movimento de expansão, tanto nos países centrais, quanto nos países periféricos,

transformando-se num festival de promessas não cumpridas62dentre as quais, podem ser

ressaltadas:

a) a não superação do paradigma mecanicista da Medicina do Trabalho:

tanto na abordagem teórico-causal como nas ações concretas, que continuaram

centradas no plano do individual e do caso clínico, mesmo que, agora, a atenção fosse

multiprofissional;

62 Quer-se aqui afirmar tão somente a insuficiência do modelo frente aos avanços do processo produtivo, o que não quer dizer que mudanças superficiais ou condizentes com o modelo ideológico dominante tanto no campo das ciências sociais como no da saúde não tenham ocorrido. Como é o caso, por exemplo, da criação de Institutos de Saúde Ocupacional, nos principais centros do mundo e mudanças na legislação sobre o trabalho.

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b) a não concretização da interdisciplinaridade: não havia uma real

integração dos diversos corpos do conhecimento, ficando cada profissional da equipe

multiprofissional a trabalhar de forma isolada sobre o mesmo objeto: o trabalhador;

c) a não adequação da produção do conhecimento e da formação dos

recursos humanos: não se imprimiram, nessas áreas, modificações suficientes para

fazerem frente às transformações que se operaram na indústria e, portanto, não se

reorientou o perfil dos recursos humanos que atuariam na nova realidade; e,

d) a inadequação da atuação sobre o ambiente: apesar da promessa, o que

deveria significar a tentativa de abolição dos riscos do trabalho, ou seja, a atuação sobre

o processo de trabalho, privilegiou-se a monetização dos riscos e danos.

3.10 A sociologia médica

Garcia (1983) observa que, até os anos 60, predominavam, entre as

correntes do pensamento da sociologia médica, as concepções positivistas da

efetividade da medicina, do poder de transformação social das instituições médicas e do

efeito positivo do desenvolvimento sobre a saúde63. Porém, o final da década de 60

trouxe consigo o início do declínio do pensamento ecológico, matriz por onde se

expressavam as concepções relativas à saúde. Assim, questões concretas, como os

efeitos negativos da medicalização e o desvelamento de todo o poder e controle

representado pela Medicina e pelas instituições médicas são denunciados e questionados

nos seus resultados teóricos e práticos, ao mesmo tempo em que ganha corpo a proposta

de desmedicalização da sociedade.

Nesse sentido, os principais questionamentos se firmavam: na denúncia do

caráter ideológico do saber e da prática médica, que colocava em dúvida se a atenção

médica seria, necessariamente, a causa do melhoramento da saúde das populações; na

afirmação de que a prática médica conteria, em si mesma, um potencial iatrogênico, ou

seja, seria perigosa para a saúde e, portanto, geradora de novas doenças; que a prática

médica ampliava cada vez mais o seu campo de atividade ao definir um maior número

de condições humanas como doença, processo designado como medicalização; que o

63 Na sociologia médica, segundo Garcia (op.cit.), essa visão estava representada por autores como: Sigerist (1946) e Stern (1941, 1948 e 1949), entre outros.

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profissionalismo representava constantemente uma defesa de privilégios ocupacionais e

de classe, em lugar de um mecanismo para manter altos níveis de atenção; e, finalmente

que, do ponto de vista do conhecimento epidemiológico, o processo de mudança de um

grupo, do trabalho na agricultura para o trabalho industrial, ou de um ambiente rural

para um ambiente urbano, estava associado a mudanças negativas no nível de sua

saúde64.

Essas conclusões representavam correntes materialistas65, hegemonizadas

pelo Marxismo, para as quais [...] o estudo da medicina, definida como um conjunto de práticas e saberes específicos, deve realizar-se em sua relação com a totalidade social e com cada uma das instâncias que a integram e que consistem em: uma estrutura econômica composta de forças produtivas e relações de produção, e uma superestrutura que compreende uma instância jurídico-política e uma ideológica. (GARCIA, 1983, p. 109)

Esses teóricos, embora frontais ao positivismo66, divergiam bastante em suas

posições, dependendo dos pressupostos de onde partiam. Havia os que, como Sigerist

(1946) e Stern (1941, 1948 e 1949), defendiam que o desenvolvimento da medicina e

sua articulação com a sociedade estavam na razão direta do desenvolvimento das forças

produtivas. Por outro lado, havia outros tantos, entre os quais se destacavam os ligados

à Escola de Frankfurt, que estavam convencidos de que as relações de produção é que

constituíam a base desse processo. Essa corrente dava especial relevância às instâncias

da ideologia, da consciência e da legitimidade e ao papel mediador das instituições e das

idéias. Foram os seus integrantes os iniciadores, durante a década de 60, dos estudos

sobre a relação da medicina com a sociedade, principalmente a partir dos

acontecimentos de maio de 68, na França.

Para eles, a sociedade industrial contemporânea superara a hipótese 64 Tais conclusões estão discutidas e detalhadas nos trabalhos de Brown, 1973; Cassel, Jenkins, e Patrick 1960; Cassel e Tyroler, 1961; Cochrane, 1973; Ehrenreich e Ehrenreich, 1975; Ehrenreich, 1978; Eyer, 1975; Illich, 1976; McKeown, 1965; Powles, 1973; Spieler, 1972; Zola, 1978. Todos citados por Garcia, (1983, p. 120-122). 65 A referência aqui é ao materialismo histórico, que Marx define assim: “Na produção social da existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual.” MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. In: IANNI, O. (Org.) Marx – Sociologia. 6. ed., São Paulo: Ática, 1988.66 Na verdade, ao tratar das correntes de pensamento no campo da saúde, Garcia (1983) não se refere apenas e de forma genérica ao positivismo, mas o distingue em termos de duas correntes idealistas – a neokantiana e a neopositivista, que tiveram como seus representantes máximos, especialmente nos países ibero-americanos, respectivamente, Lain Entralgo e Talcott Parsons.

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marxiana sobre a potencialidade explosiva e revolucionária das forças produtivas a

partir do instante em que as relações de produção, domesticando o desenvolvimento das

forças produtivas, assumiram a essência do processo em sua totalidade. E a dialética

clássica entre as forças produtivas e as relações de produção é interpretada como

variante terminológica de um conflito redutível à esfera única das relações de produção

(GARCIA, 1983, p. 115).

O conjunto das abordagens referidas pode ser completado com, pelo menos,

mais duas correntes que também obtiveram destaque no combate às posturas

mecanicistas, que dominaram por longo tempo o campo da sociologia e da prática

médica. Trata-se do Estruturalismo e da Fenomenologia.

O estruturalismo ganhara notoriedade no interior das ciências humanas,

durante as décadas de 60 e 70, como uma orientação metodológica importante para

fração considerável da corrente marxista. Esse construto teórico coloca em primeiro

lugar a análise da estrutura do objeto investigado e tem permitido delinear e solucionar

importantes problemas relativos à criação de um sistema geral de métodos para o

conhecimento científico-natural e social. Michel Foucault, um dos mais reconhecidos

pensadores dessa corrente, fez da medicina um dos seus mais importantes objetos de

estudo67.

A Fenomenologia, como corrente de pensamento, ocupou um espaço

próprio e importante no campo da sociologia médica durante a década de 70. Atuando

com idéias, em muitos momentos, próximas ao Marxismo, vinha engrossar o corpo

teórico do movimento contrário às posturas positivistas, especialmente na crítica ao viés

ideológico e reprodutor do saber médico, enquanto que, no campo da prática médica,

destacava-se no surgimento dos programas alternativos de auto-cuidado e na atenção

primária, principalmente no que diz respeito à organização da participação popular.

No campo da saúde, os fenomenólogos acreditavam que são valores,

símbolos e sistemas de significados compartilhados que dão sustentação à cura e que

isso seria exatamente o inverso do que ocorreria com a medicina moderna, já que,

quanto mais se tornava científica, mais se afastava da experiência da vida cotidiana.

Acreditavam, ainda, que, somente na vida privada, o indivíduo experimentaria um 67 As obras de Michel Foucault exerceram, e têm exercido ainda, uma grande influência na medicina social latino-americana e, particularmente, no Brasil. Suas obras mais importantes sobre a História da Medicina são: Enfermedad Mental y Personalidad. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1964; História da loucura em la Época Clássica. México: Fondo de Cultura Econômica, 1967; O Nascimento da Clínica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1977; Medicina e História. Washington, D. C., 1978 e Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1981.

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sólido sentido de identidade – nos pequenos grupos como a família, grupos religiosos,

associações voluntárias e na vizinhança. Essas seriam estruturas mediadoras – que se

daria uma estabilidade à vida privada capaz de proteger o indivíduo da influência

negativa das grandes estruturas sociais ou das megaestruturas (GARCIA, 1983, p.124).

Ainda segundo Garcia (1983), apoiados nessas posições, e criticando o

Estado e as instituições médicas, os fenomenologistas adquiriam uma forte aura radical

e se identificavam claramente com os grupos minoritários. Mas uma análise mais

apurada – e principalmente feita a posteriori – das posições difundidas pela

Fenomenologia, não desmerecendo a sua contribuição na resistência às posições

positivistas, revela que elas vinham contaminadas de elementos potencialmente

reacionários, como a religiosidade, o misticismo, o naturalismo, o humanismo

exacerbado, que conformam uma atitude holística e dão certo caráter messiânico à ação

comunitária.

Inteligentemente apropriada e legitimada pelo Estado, a experiência da

Fenomenologia, no campo da saúde, resultou no estímulo a um comunitarismo radical,

em que as iniciativas e as perspectivas de solução acabaram sendo controladas pelas

instituições ou reduzidas à fragmentação, ao senso comum e ao voluntarismo dos seus

participantes, trazendo, por conseguinte, face à sua diluição, poucos resultados

concretos ou visíveis. Entretanto, a apropriação e o reconhecimento, por parte da

maioria, do fracasso dessa corrente, naquele momento, não deve obscurecer que esta

cumpriu, na América Latina, um papel fundamental no reordenamento da discussão

teórica sobre a articulação do campo da saúde na sociedade.

Em termos de Brasil, a Fenomenologia influenciou sobremaneira os

programas de Medicina Comunitária que formaram parte dos médicos nas décadas de

70 e 80 do século passado. Esses programas se firmavam no princípio de que o

conhecimento biológico precisava fazer conexão com o conhecimento das ciências

humanas. E como faziam a crítica da especialização precoce e estavam voltados para a

Atenção Primária em Saúde, acreditavam que o caminho para a transformação do setor

era a aproximação do médico com a comunidade. Ou seja, era preciso formar novos

médicos e uma nova mentalidade de prática médica.

Por isso, apostavam na formação do médico generalista, isto é, um

profissional com consistente formação nas cínicas básicas: Pediatria, Ginecologia e

Obstetrícia e Clínica Médica (Geral) e que atuasse numa rede de postos e de serviços

ambulatoriais de saúde, ficando mais próximos da população e da sua vida cotidiana. A

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Fenomenologia baseava essa conexão nos conhecimentos da Antropologia, da

Psicologia e da Educação.

Por outro lado, havia também os programas de Medicina Preventiva e

Social, que encampavam os aspectos gerais da visão crítica desenvolvida pelos

seguidores da Fenomenologia, porém com uma orientação epistemológica diferente,

embasada mais na Ciência Política, na Economia e na Sociologia. Havia, nesse grupo,

nuances relativamente fortes do Estruturalismo na sua relação com o Marxismo. Eles

foram particularmente importantes na formação de médicos que, depois, transformaram-

se em quadros de destaque dentro de Universidades no contexto nacional68, onde foram

formar os departamentos de Medicina Preventiva, lócus privilegiado de onde emanaram

as formulações do movimento sanitário e a construção da Saúde Coletiva, como campo

de conhecimento da área da saúde.

Essas duas correntes distintas de visão da medicina e da prática médica

materializaram aproximações e distanciamentos típicos da divisão ideológica das várias

esquerdas que se formavam em face da estratégia de resistência ao regime autoritário.

Sofriam influência das várias experiências da social democracia européia e,

principalmente, das experiências do socialismo que se encontrava em marcha em Cuba,

na China e na União Soviética.

Cabe, agora, entender qual o papel assumido por essas teorias e sua

repercussão na denúncia das insuficiências e promessas não cumpridas pela prática

médica que se explicitava nos Serviços de Medicina do Trabalho, de Saúde Ocupacional

ou mesmo na assistência médico-previdenciária que era endereçada àqueles que se

constituíram na real força produtiva, nos diretamente afetados pelas relações sociais de

trabalho, sobre as quais se erigiram as teorias e propostas de atenção à saúde – os

trabalhadores.

A explicação para o fracasso da Medicina do Trabalho, da Saúde

Ocupacional, assim como da assistência médico-previdenciária, não se resumiu única e

exclusivamente às transformações operadas no capitalismo e tampouco às evoluções da

academia no terreno da sociologia médica. Existiu outro elemento que, subjacente a essa

conjuntura, evidenciou-se de forma inconteste: a reconstituição da classe operária como

força ativa social e politicamente - um novo sujeito coletivo surgido da reflexão dentro 68 Universidade Estadual de Campinas; Escola Paulista de Medicina; Universidade de São Paulo (capital e Ribeirão Preto); Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade Federal de Minas Gerais; Universidade Federal da Bahia; Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade Nacional de Brasília, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entre outras.

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dos ambientes de trabalho e de uma articulação forte com os intelectuais de dentro e de

fora da academia. Um movimento social renovado, revigorado e redirecionado surge nos países industrializados do mundo ocidental – notadamente Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos e Itália – mas que se espraia mundo afora. São os anos da segunda metade da década de 60 (maio de 68 tipifica a exteriorização desse fenômeno) marcados pelo questionamento do sentido da vida, o valor da liberdade, o significado do trabalho na vida, o uso do corpo e a denúncia do obsoletismo de valores já sem significado para a nova geração. Esses questionamentos abalaram a confiança no Estado e puseram em xeque o lado ‘sagrado’ e ‘místico’ do trabalho – cultivado no pensamento cristão e necessário na sociedade capitalista (MENDES; DIAS, 1991 p. 344-45).

Um salto de qualidade importante no nível de consciência dos trabalhadores

e a conquista de vários direitos69, inseridos na legislação do trabalho de diversos países

da Europa e da América do Norte: Itália e Estados Unidos, (1970), Inglaterra e Suécia

(1974), França (1976), Noruega (1977), Canadá (1978), foi a resultante desse

movimento, que voltou a denunciar os males e a exploração do capitalismo, e a exigir

participação na discussão de soluções para problemas de saúde e segurança ligados a

processos de trabalho considerados inadequados e ofensivos aos trabalhadores70.

Neste novo quadro, Mendes e Dias (1991, p. 346) identificam uma série de

mudanças que abalam, de forma definitiva, a hegemonia do modelo da Saúde

Ocupacional. Essas mudanças estão relacionadas à nova atitude dos trabalhadores, a

alterações sensíveis nos processos de trabalho, à introdução de novas tecnologias, e,

finalmente, à evolução das pesquisas sobre saúde e trabalho. Nesse contexto:

a) os trabalhadores explicitam sua desconfiança nos procedimentos técnicos

e éticos dos profissionais da Saúde Ocupacional, no que diz respeito aos exames pré-

admissionais, periódicos e demissionais, denunciando o seu uso para práticas

discriminatórias;

b) estudos confirmam os efeitos nocivos de doses - até então tidas como 69 Entre esses direitos, podemos citar o direito à informação: os trabalhadores deverão ser informados quanto a riscos, medidas de controle e saneamento dos ambientes de trabalho tomadas pelas empresas, resultados de exames médicos e avaliações ambientais periódicas; direito à recusa ao trabalho: os trabalhadores poderão recusar o trabalho em situações de risco iminente, tanto para a saúde como para a sua vida; direito à consulta prévia: os empregadores consultarão os trabalhadores sempre que tencionarem promover mudanças na tecnologia, métodos, técnicas e novas formas de organização do trabalho; direito à participação: os trabalhadores participarão da formulação de critérios e da escolha de tecnologias e até da escolha dos profissionais que atuarão nos serviços de vigilância à saúde do trabalhador. 70 Para uma descrição e análise mais circunstanciada desse processo, ver: MENDES, R. A prática da integração da saúde ocupacional no setor saúde: análise de alguns modelos estrangeiros. In: Revista Brasileira de saúde ocupacional. 17 (65): 07-15. São Paulo, 1988; PARMEGGIANI, L. A nova legislação de segurança e saúde dos trabalhadores. In: Revista Brasileira de saúde ocupacional. 15 (50): 19-27. São Paulo, 1985; e ROUSTANG, G. Os trabalhadores e a higiene e segurança na França. In: Revista Brasileira de saúde ocupacional. 13 (05): 40-46. São Paulo, 1988; além de MENDES e DIAS (1991) e BERLINGUER (1978).

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baixas, de chumbo e de outros compostos orgânicos - desmontam a lógica do conceito

de exposição segura, fazem desmoronar o mito dos limites de tolerância e jogam por

terra os critérios, até então vigentes, de proteção à saúde;

c) a organização do trabalho amplia sua superfície de contato com a questão

da saúde, e novas estratégias para a modificação de condições de trabalho são

requeridas, rompendo com a lógica ambiental instituída pelo modelo ecológico da

Saúde Ocupacional;

d) a utilização de novas tecnologias como a automação e a informatização,

se em alguns casos melhoraram as condições de trabalho, em outros introduziram novos

riscos e doenças ligadas aos novos processos de trabalho;

e) modificações do processo de trabalho, decorrentes da terceirização da

economia e dos processos de automação e informatização, acrescentados à eliminação

de antigas condições de trabalho, levam a um deslocamento do perfil de morbidade

ligada ao trabalho e, assim, doenças profissionais clássicas tendem a desaparecer,

enquanto novas condições passam a ser valorizadas, como por exemplo, as doenças

cardiovasculares – hipertensão arterial e doença coronariana – os distúrbios mentais, o

stress e o câncer.

Essas mudanças não foram uniformes. Mesmo no mundo desenvolvido e em

termos de países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, como era o caso do

Brasil, assistiu-se a uma superposição de problemas clássicos e graves com novas

condições de risco, adoecimento e morte. Mas, de qualquer forma, a interferência dos

trabalhadores alterou de forma sensível a prática médica, fazendo surgirem novas

formas de atuação sobre a saúde da população com a participação dos próprios usuários

desses serviços71. E, mesmo que a maioria dessas novas práticas não tenha vingado – e,

talvez até por isso mesmo – elas trouxeram novos questionamentos para a discussão

teórico-metodológica da relação saúde-trabalho-sociedade.

Berlinguer (1978) e Ruzzenenti (1990), exemplificando o caso da Itália,

consideram que iniciativas como o inquérito A Saúde nas Fábricas (1967/68), realizado

com a participação dos trabalhadores, assim como o Encontro de Gênova (1967) sobre

o mesmo tema, promovido pelo Partido Comunista Italiano (PCI), foram alguns dos

muitos episódios que incubaram a explosão de um grande movimento pela saúde do 71 Essas novas formas de atuação se deram tanto pela iniciativa dos próprios trabalhadores quanto das instituições governamentais e se constituíram em várias direções como programas alternativos de auto-cuidado, de assistência primária e extensão de cobertura em saúde com tecnologia simplificada, todas com apelo à participação comunitária.

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trabalho. O amadurecimento cultural e político dessas experiências é ainda penoso, tortuoso, combatido, mas certamente foi ajudado na Itália a partir de 1967-1968, pelo aparecimento do tema exploração = doença e pelo crescimento gradual de sua antítese ação coletiva = saúde. Nada disso aconteceu espontaneamente. Mesmo o 'outono quente' de 1969, no qual os novos objetivos contratuais mobilizaram massas operárias e conquistaram um vasto consenso do povo, foi longamente preparado (BERLINGUER, 1978, p. 17).

Essa foi uma iniciativa fundada no princípio da valorização da experiência e

da subjetividade dos operários e na formação de grupos homogêneos de trabalhadores,

para reflexão e validação consensual das informações produzidas como ferramentas

para a sua intervenção, na não delegação da produção de conhecimento e da vigilância à

saúde dos trabalhadores e na recusa a qualquer tipo de monetização dos riscos e danos

produzidos pelo trabalho.

Contando com o auxílio dos instrumentais da tecnologia, da epidemiologia e

das ciências humanas, elegeram ainda para a sua atuação os seguintes pressupostos

básicos: a) conhecer o ambiente de trabalho; b) estabelecer um novo patamar no

relacionamento entre operários e técnicos; e, finalmente, c) exigir a constituição de um

sistema de saúde, público, descentralizado, eficiente, eficaz e voltado para a prevenção

da saúde dos trabalhadores, como única forma de, coletivamente, negociar melhorias e

avanços na relação capital-trabalho.

A prática desses princípios e pressupostos resultou na formulação de uma

metodologia operária de intervenção sobre os ambientes de trabalho, que ficou

conhecida como modelo operário italiano72. Essa metodologia funcionou como um

reforço importante para o processo de contratação coletiva no interior das fábricas e

como um instrumento de conquistas legislativas para os trabalhadores italianos.

3.11 A perspectiva de uma prática médica renovada

O ressurgimento dos movimentos sociais e os avanços consubstanciados na

legislação relativa ao trabalho, nos países capitalistas centrais, aliado à crise do petróleo,

em escala mundial, e a uma conjuntura particular de recessão e desemprego nos países

72 Para um conhecimento detalhado da teoria e da prática do modelo operário italiano, ver ODDONE, I. et. al. – Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo, CEBES/HUCITEC, 1978.

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subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, inauguram uma nova etapa de profundas

modificações na economia e nos processos de trabalho.

Nos países desenvolvidos, com os avanços sociais, o capital passou a

investir numa nova tendência, a da terceirização da economia, fazendo declinar o setor

industrial em detrimento do setor de serviços, com uma evidente mudança no perfil da

mão-de-obra ocupada. Esse movimento foi seguido de uma transferência, para os países

subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, das empresas intensivas de mão-de-obra,

especialmente aquelas produtoras de eletro-eletrônicos, que vão formar os paraísos das

zonas francas do continente latino-americano. Por outro lado, face às enormes barreiras

para a instalação e a continuidade de operação, naqueles países, das indústrias

consideradas sujas73, há todo um processo de exportação dessas empresas para os países

subdesenvolvidos que, sequiosos de resolver os seus problemas cruciais com relação à

geração de empregos, aquecimento da economia e acúmulo de divisas, aceitam o

desenvolvimento a qualquer preço.

Considerando esse contexto e retomando a questão da atenção à saúde dos

trabalhadores, especificamente, na América Latina, pode-se notar que, num primeiro

momento, ela se resumia à continuidade de ações com caráter eminentemente clínico,

comandado pelos serviços médicos de empresa e órgãos de seguridade social, para, num

momento seguinte, investir na criação de instituições governamentais com finalidades

específicas para essa área. Essas instituições74, como é o caso, no Brasil, da Fundação

Centro Nacional de Segurança, Higiene e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO),

instituída pela Lei nº 5.161, de 21 de outubro de 1966, tinham, entre outras finalidades,

a função de desenvolver pesquisas sobre acidentes e doenças profissionais e do trabalho,

estudos sobre a produtividade e o bem-estar da mão-de-obra, formação e treinamento de

trabalhadores, assessoramento e assistência técnica na formulação de políticas

específicas para a área.

Mas é somente nos anos 70, longe das ações estritamente governamentais,

ainda que não totalmente fora do aparelho estatal, que as investigações sobre a saúde do

trabalhador vão adquirir um caráter sistemático, envolvendo os diversos atores sociais e 73 As indústrias consideradas sujas são aquelas que lançam resíduos tóxicos no ambiente, poluindo o ar, ou solo e mananciais, trazendo repercussões negativas aos ecossistemas e à saúde da população; ou ainda, aquelas que põem em risco a vida e a saúde dos trabalhadores em função dos processos de trabalho insalubres (agrotóxicos, chumbo, mercúrio, asbesto, além de diversos outros produtos químicos, gases e poeiras). 74 Foram criadas, em algumas capitais latino-americanas, como Lima, Santiago e Brasília, por iniciativa dos governos desses países, versões dos Institutos de Saúde Ocupacional, tal qual acontecera nos principais centros da Europa, a partir da década de 50.

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as diversas áreas do conhecimento, inclusive as Ciências Sociais. Isso se dará,

principalmente, a partir da criação e do redirecionamento dos departamentos de

Medicina Preventiva e Social no interior das Universidades e dos centros de pesquisa e

a sua articulação com os movimentos sociais, então em franco ressurgimento nos

diversos países latino-americanos75. Este interesse tardio pelo estudo da saúde do trabalhador não é um fato fortuito, mas sim, relacionado com o processo econômico, político e social do continente. Processo que, também, explica porque, uma vez assumida a problemática, esta é abordada simultaneamente na sua forma mínima e máxima. Ou seja, ao mesmo tempo em que se torna urgente a aplicação e socialização do corpo de conhecimentos da medicina ocupacional dominante, inicia-se a elaboração de delineamentos globais de interpretação da relação trabalho-saúde que implicam a superação do suporte teórico-metodológico da Medicina do Trabalho. [...] O fato é que se começa a especificar a saúde do trabalhador como objeto de estudo e as formas que assume sua exploração estão vinculadas ao processo de maturação industrial e à modalidade particular pela qual este processo se estrutura nos países latino-americanos. Assim, é necessário destacar a rapidez do processo de industrialização, a grande heterogeneidade dos processos de trabalho concretos, as implicações da nova divisão internacional do trabalho, o caráter efêmero dos ‘milagres econômicos’ e a profunda transformação da estrutura de classes que, frente a tais fatos, conduz à emergência de uma classe operária industrial jovem (LAURELL, 1985 p. 255).

A autora em questão, analisando o surgimento da pesquisa nesse campo

específico, destaca que a investigação em saúde do trabalhador se origina em pelo

menos três diferentes disciplinas: a medicina ocupacional, a epidemiologia crítica e as

ciências sociais. Essas três disciplinas implicam, obviamente, caminhos distintos, tanto

do ponto de vista da escolha e construção do objeto como da abordagem teórico-

metodológica empregada.

Nessa perspectiva, a medicina ocupacional estudaria as doenças originadas

75 “Em 1974, na Argentina, a faculdade de Buenos Aires desenvolveu um trabalho junto aos militantes sindicais; no México, os trabalhadores eletricistas, protagonistas das mobilizações operárias mais importantes de 1972-75, realizaram, junto com a organização sindical dos médicos residentes, um estudo das condições de saúde; no Brasil, em 1979, a Semana de Saúde do Trabalhador foi implementada pelos sindicatos do ABC e pelo sindicato médico; na Colômbia, hoje confluem profissionais de diferentes origens à Escola Nacional Sindical, para abordar, junto com os sindicalistas, os problemas de saúde no trabalho; na Venezuela, a CUTV (Central Única de los Trabajadores Venezolanos) estabeleceu um departamento especial encarregado do estudo da saúde operária, assessorada pelos universitários” (LAURELL, 1985, p. 257). Complementando a autora e retomando o dado da iniciativa da Semana de Saúde do Trabalhador (SEMSAT), realizada no ABCD paulista, é preciso registrar o trabalho da Comissão Intersindical de Saúde do Trabalhador (CISAT) que, em 1979, realizou as SEMSAT I e II. Essa comissão, em Agosto de 1980, transformar-se-ia no Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (DIESAT), entidade mantida pelo movimento sindical, com a finalidade de estudar e assessorar o movimento sindical em questões específicas relacionadas ao binômio trabalho-saúde, que teve uma atuação fundamental na discussão da atenção à saúde relacionada ao trabalho com repercussões importantes para a organização da prática médica a ser exercida junto aos trabalhadores.

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no trabalho. A epidemiologia crítica, inserida na medicina social latino-americana,

transformaria as ciências sociais no elemento explicativo central da relação processo de

trabalho e processo saúde-doença. E as ciências sociais, com uma grande

heterogeneidade de enfoques, provenientes da Sociologia, da Antropologia e da

Psicologia, abordam, sob os mais diversos aspectos, a complexa questão da condição

operária.

A observação de que a posição de classe explica muito melhor que qualquer

outro fator biológico a distribuição da doença na população, o equívoco da suposição

desenvolvimentista de que as condições de saúde melhorariam como resultado

automático do crescimento econômico, a percepção de que o desenvolvimento da

atenção médico-hospitalar não implicou um avanço substancial na saúde dos grupos

cobertos por ela e a noção de que a distribuição desses serviços entre os diferentes

grupos e classes sociais – que está em relação inversa às necessidades de cada um – não

depende de considerações técnicas e científicas, mas, principalmente, de considerações

econômicas, políticas e ideológicas, vieram embasar todo o movimento contrário às

posturas até então adotadas pela Medicina do Trabalho e pela Saúde Ocupacional

(DIAS, 1991; LAURELL, 1976, 1983, 1985; LAURELL; MARQUEZ, 1983;

LAURELL; NORIEGA, 1989; NUNES, 1983, 1985; TAMBELLINI, 1987).

É daí que surge, a partir de um enfoque centrado no trabalho e no processo

produtivo, como organizadores da sociedade e produtores potenciais de doenças, a

reconceituação de processo saúde-doença e a concepção da determinação social das

doenças, com um forte poder explicativo e uma grande potencialidade transformadora

das práticas médico-epidemiológicas e sociais.

É importante ressaltar o surgimento e a consolidação da corrente da

medicina social que, através de suas inúmeras investigações76, tem se constituído a

principal referência teórica para as questões relacionadas ao processo saúde-doença e

trabalho, e a corrente responsável, nas últimas três décadas, na América Latina, pela

transformação da saúde dos operários num objeto de estudo específico. Sua abordagem

incorporou elementos importantes das ciências sociais, especialmente da sociologia

médica e da sociologia do trabalho, evidenciando o caráter social dos processos saúde-

doença e trabalho-saúde, e a necessidade de se entenderem esses dois conceitos na sua

articulação com o processo produtivo.

76 Laurell (1989), no capítulo I: A investigação latino-americana sobre trabalho e saúde relaciona uma série de investigações desenvolvidas por autores latino-americanos em seus diversos países.

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Também contribuiu para integrar a experiência operária no processo de

produção de conhecimento, ou seja, propiciou o diálogo entre dois mundos

aparentemente distintos e distantes. Por último, favoreceu à geração de conhecimento, a

partir do horizonte da classe operária, reflexões que induziram a mudanças na prática

médica exercida sobre os trabalhadores, fazendo-a, em alguma medida, ser

transformada numa prática médica exercida com a participação dos trabalhadores77.

A década de 70 veio trazer concepções mais globalizantes sobre a questão

da saúde. A divulgação do Relatório Lalonde78 (1974), retratando as experiências

canadenses no campo da saúde, representou uma primeira amostra dessas novas

concepções. O relatório procurava articular quatro dimensões explicativas para o

processo saúde-doença: biologia humana, estilos de vida, meio ambiente e serviços de

saúde. Pode-se ver, nesse relatório, a articulação da noção de saúde com a da melhoria

das condições de vida. Lá se defendia que o ambiente pode ter papel curativo

importante, assim como a existência de serviços confiáveis de saúde pode exercer

função preventiva pelo sentimento de confiança que cria na população. Essa visão trazia

para um mesmo plano de discussão e intervenção algo que sempre tendia a ser tratado

separadamente: ações curativas e preventivas.

Essa década se caracterizou por intensos debates e intercambio de idéias, no

plano internacional, e pode ser caracterizada pela confluência de varias posições

próximas à visão da determinação social do processo saúde-doença, constituindo no

continente americano um forte movimento que reeditou, mesmo que num outro

patamar, os elementos fundamentais que estavam nas discussões travadas na Europa dos

séculos anteriores, que conformaram a medicina social como o processo histórico

conhecido.

77 Fruto da evolução, do amadurecimento e da consolidação de todas as lutas que foram travadas a partir da emergência da Saúde do Trabalhador, enquanto teoria e enquanto prática, o país já realizou, nas últimas décadas, três conferências nacionais – sempre acompanhadas de rodadas de conferências estaduais e municipais que lhes dão legitimidade e consistência – e possui, formalmente, uma Política Nacional de Saúde do Trabalhador e uma rede, hoje já considerável, de serviços municipais e Centros de Referência em Saúde do Trabalhador. Aqui na Paraíba, por exemplo, a UFPB constituiu, no início da década de noventa do século passado, o seu Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CERESAT), ligado ao Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/CCS/UFPB), como uma rede formada por profissionais de diferentes campos de conhecimento. O CERESAT está organizado em quatro programas: a) investigação; b) implementação e desenvolvimento de ações e serviços; c) formação de recursos humanos e trabalhadores; e, d) desenvolvimento e cooperação técnica. Ou seja, ao longo dessa mais de uma década, tem articulado práticas de ensino, pesquisa e extensão que já impulsionaram inúmeras iniciativas exitosas no Estado e na região nordestina. 78 A referência original dessa publicação é: LALONDE, M. – A New Perspective on the Health of Canadians. Ottawa: Health and Welfare Canadá, 1974.

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Esse movimento, trabalhando dentro de uma visão marxista do processo

produtivo e das relações sociais de produção, defendia que é no modo como o homem

se apropria da natureza, em um dado momento, uma apropriação que se realiza por meio

do processo de trabalho, baseado em determinado desenvolvimento das forças

produtivas e relações sociais de produção, que deve ser compreendido o processo saúde-

doença. Esse processo social tem raízes históricas e detém determinantes e

condicionantes econômicos, político-jurídicos, sócio-culturais e ambientais.

A evolução da teoria social da medicina na América Latina resultou numa

definição, talvez a mais acabada, em que consta: Por processo saúde-doença da coletividade entendemos o modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo biológico de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares a presença de um funcionamento biológico diferente, com conseqüências para o desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da doença. [...] O processo saúde-doença é determinado pelo modo como o homem se apropria da natureza em um dado momento, apropriação que se realiza por meio do processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção. [...] o padrão social de desgaste e reprodução biológica determina o marco dentro do qual a doença é gerada. É nesse contexto que se deverá recuperar a não especificidade etiológica do social e, inclusive, do padrão de desgaste e reprodução biológica relativo à doença, pois não se expressa em entidades patológicas específicas, mas no que chamamos de perfil patológico, que é uma ampla gama de padecimentos específicos, mais ou menos bem definidos (LAURELL, 1983a p. 151-158)79.

Compreendendo-se assim, os homens são, a um só tempo, corpos biológicos e corpos

sociais, e a dupla determinação biológica e social da saúde-doença tem um caráter

histórico de reprodução, em que o padrão social de reprodução biológica determina o

viver/adoecer/morrer das pessoas e da coletividade.

Nas últimas décadas, a concepção do processo saúde-doença, enquanto uma

relação dinâmica entre determinantes e condicionantes econômicos, políticos, sociais,

biológicos, psicológicos e culturais, tem evoluído consideravelmente. Hoje, entende-se

que o meio familiar e profissional do indivíduo, assim como o grau de satisfação e

produtividade são importantes variáveis na definição do gradiente de sanidade. É sabido

que as situações de trabalho são dinâmicas e conduzem tanto ao prazer quanto ao

sofrimento e, a depender da prescrição e da psicodinâmica que se imprima ao trabalho,

este pode relacionar-se tanto com saúde quanto com doença. Em seu sentido mais

abrangente, alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente e ecossistema,

79 A leitura completa do artigo onde se encontra essa definição está em: LAURELL, A. C. A saúde-doença como processo social. In: Nunes, E.D. Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. Coleção Textos n.º 3, Global Editora, 1983.

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trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, paz, acesso e posse de terra e acesso a

serviços de saúde, assim como a conservação e utilização racional dos recursos, da

justiça social e da eqüidade, são requisitos fundamentais para a saúde.

Saúde e doença resultam, pois, das formas de organização social da

produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. Na

sociedade, existem comunidades, famílias e indivíduos com maior probabilidade do que

outros de apresentar problemas de saúde, acidentes, mortes prematuras. Em

contrapartida, há aqueles com maior probabilidade de apresentarem boas condições de

saúde. Portanto, saúde e doença não são conceitos abstratos, mas, antes, definem-se no

contexto mesmo da sociedade, num dado momento de seu desenvolvimento. A saúde,

no sentido da sua conquista, constitui-se um dos objetos impulsionadores das lutas

cotidianas da população. E a atuação dos profissionais de saúde, aqui incluídos os

médicos com a sua prática, deverá se caracterizar pela produção/ação do conhecimento,

de forma que lhe propicie sempre a melhor e mais adequada intervenção sobre as

variáveis que constituem as condições sobre as quais ela possa ser alterada em favor dos

seres humanos.

Contudo, cabe uma pergunta: Como essa discussão vem ocorrendo aqui no

Brasil?

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4 DAS POLÍTICAS DE SAÚDE À REFORMA SANITÁRIA – BRASIL

REPÚBLICA

O Brasil do início da república era um país que tentava se consolidar numa

nova ordem estatal80, apesar de nos planos interno e externo, desde a sua proclamação,

enfrentar relações econômicas, políticas e sociais conturbadas. Os historiadores,

segundo Nunes (2000), marcam esse período como sendo o momento em que se

estabeleceu uma contraditória aliança entre os militares e os cafeicultores paulistas. Os

primeiros, influenciados pelo positivismo, pretendiam dar um caráter mais ideológico à

República81. Os cafeicultores queriam o federalismo, o liberalismo econômico e

político, uma nova Constituição. Foi uma época de crises, com sucessivas rebeliões

militares e trocas de ministros nessa pasta. O Exército defendia a centralização político-

administrativa, enquanto os cafeicultores apostavam na descentralização como solução

para os problemas. Conseqüência: ocorre logo cedo uma ruptura da aliança.

Rompida essa aliança, que vai de 1889 a 1894, os cafeicultores aliam-se às

oligarquias regionais dominantes, em São Paulo e Minas Gerais, com predomínio dos

interesses da exploração do café sobre o conjunto da sociedade nacional. Essa

conjuntura se estende de 1894 a 1914, momento em que o Brasil se vê atingido pelo

seguinte efeito da Primeira Guerra Mundial: a diminuição das importações de café e de

borracha. 80 A República (Santos et. all, 1964) resultara de lutas travadas pelos grandes contingentes urbanos das camadas médias apoiados por todos os setores populares da nação, da burguesia nascente e da fração do latifúndio do café que abandonara o trabalho escravo. O operariado, mesmo na sua incipiência, em face da estrutura industrial daquele momento, também deu a sua contribuição. O Exército, representando a vanguarda da classe média e de todas as classes sociais que apoiavam a mudança do regime, fora o artífice direto da Proclamação da República. 81 Para além da aliança entre os militares e os cafeicultores, Carvalho (1990) faz referência a pelo menos três tendências ideológicas civis que disputavam a definição do regime republicano: o liberalismo de influência norte-americana, o jacobinismo e o positivismo. Assim se expressa o autor: “No jacobinismo, por exemplo, havia a idealização da democracia clássica, a utopia da democracia direta do governo por intermédio da participação direta de todos os cidadãos. No caso do liberalismo, a utopia era outra, era a de uma sociedade composta por indivíduos autônomos, cujos interesses eram compatibilizados pela mão invisível do mercado. Nessa versão, cabia ao governo interferir o menos possível na vida dos cidadãos. O positivismo possuía ingredientes utópicos ainda mais salientes. A República era vista dentro de uma perspectiva mais ampla que postulava uma futura idade de ouro em que os seres humanos se realizavam plenamente no seio de uma humanidade mitificada” Mas esse acirramento ideológico se dava entre grupos pequenos que participavam dos círculos do poder, em detrimento de uma massa enorme da população que estava excluída das discussões e que assistiu, bestializada, aos desfechos com a Proclamação da República, como conta o autor, fazendo referência à frustração de Aristides Lobo, considerado o grande propagandista da República.

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4.1 A crise na saúde pública e os rudimentos do modelo de previdência social

A crise do modelo econômico agrário-exportador será a principal

característica da conjuntura de 1914 a 1930. Com ela, não apenas se instala um forte

controle social e institucional das camadas médias e do operariado, como também há

um crescente aumento do custo de vida e baixa salarial. Rebeliões e conflitos irão

eclodir a cada instante, fruto da instabilidade e das profundas mudanças e rupturas, com

a crescente complexificação da vida urbana82 (MEHRY, 1985).

Olhando-se as primeiras décadas da República, do ponto de vista da

articulação da economia e da política, com a saúde, tem-se que o modelo agrário

exportador, apesar de ainda vigente, começava a sentir os seus primeiros sinais de

fraqueza, por conta do baque resultante da abolição da escravatura e da necessidade de

substituição da mão-de-obra negra por uma legião de trabalhadores livres, formada em

grande parte por homens e mulheres que para aqui emigraram vindos do continente

europeu em busca de vida melhor.

Os preços dos produtos brasileiros aos poucos se tornavam menos

competitivos, pois, além de sofrer com as exigências específicas do mercado,

acumulavam queixas sanitárias decorrentes da necessidade de saneamento do sistema

portuário. Não se conseguiam esconder as mazelas brasileiras no campo da Saúde

Pública. O problema chegou a ponto de o país quase ver inviabilizadas operações de

exportação, a partir dos seus portos principais. Os navios estrangeiros e os parceiros

comerciais ameaçavam aqui não mais atracar, alarmados pela situação de doenças

endêmicas que a todo instante explodiam em surtos epidêmicos como os da peste, da

varíola e da febre amarela (NUNES, 2000).

A situação grave da saúde pública não era uma questão que se resumia aos

portos nem era perturbadora apenas para os interessados nas transações comerciais. Era

apenas uma extensão, uma mostra do que acontecia em grande escala nas cidades, nos

lares, na vida do povo. Por isso, além dos reclames dos interessados nos negócios da

economia e da exportação, movimentos sociais formados pelas camadas médias 82Para Mehry (1985), as relações entre capital industrial e agrário, entre burguesia e revolução democrática, obedecem a padrões próprios de desenvolvimento para cada país, daí o fato de o processo de instauração da República no Brasil ter refletido as especificações próprias do desenvolvimento capitalista da nossa sociedade, sem ter que reproduzir os mesmos passos do desenvolvimento econômico social dos países centrais.

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urbanas, apoiadas por setores populares nos grandes centros do país, também exerciam

pressão e denúncia das condições sociais e sanitárias. A situação se agravava por conta

do crescente da carestia e da baixa relativa dos salários, ampliando a penúria e a

degradação das condições de saúde.

Desde o Brasil Colônia, o povo se sentia desassistido. Não havia uma

preocupação sistemática com a higiene pública, com a prevenção de doenças ou uma

atuação social e educativa na saúde. Os médicos, raríssimos, como destaca Serrano

(1986), posto que as condições da Colônia não eram atrativas, realizavam o

atendimento em domicílio, em caráter individual, mediante pagamento direto de seus

abastados pacientes. Praticavam uma medicina elitista, baseada em aconselhamentos e

em fármacos que vinham da Europa ou eram manipulados pelo próprio médico ou

boticários, a partir de princípios ativos importados ou extraídos da flora. A população

procurava a medicina popular desenvolvida pelos jesuítas, boticários e práticos. Na sua

atenção, eles davam um sentido mágico-religioso à cura ou apenas conforto ao enfermo.

A feitiçaria e a pajelança, realçadas por seus rituais e simpatias, atraíam uma fração

importante dos mais pobres que, assim, encontravam guarida para os seus males nas

mãos de seus curandeiros.

Até fins do século XVIII, não se vão encontrar significativas mudanças

nesse panorama. E mesmo com a vinda da família real para o Brasil, no início do século

XIX, e os avanços em vários dos setores sociais daí decorrentes, as atividades sanitárias

limitavam-se ao controle de navios e portos, principalmente na cidade do Rio de

Janeiro. Até o começo do século XX, não havia assistência médica de caráter público. A

Medicina, como no Império, era exercida como uma prática liberal (MACHADO,

1978).

Era uma medicina para ricos. O atendimento era, geralmente, domiciliar,

principalmente quando se tratava das zonas rurais. Mas os médicos também montavam

seus consultórios nas cidades, sobretudo nas maiores, onde prestavam atendimento

mediante consulta para os não acamados, para quem o tratamento era sempre domiciliar,

pois não havia hospitais, senão nos grandes centros.

A medicina liberal assumia um caráter familiar. O médico, por ser um

generalista, estava em condições de atender a todos os membros de uma família,

independente da posição em que cada componente se encontrasse no ciclo de vida. O

médico era alguém muito próximo do núcleo familiar que atendia. Isso lhe permitia, por

vezes, participar da intimidade da família, onde se colocava na posição de alguém com

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capacidade para entender mais de perto a natureza humana. Isso lhe dava uma série de

elementos a mais, para cuidar daquelas pessoas ou mesmo influir em decisões da

família, quer os assuntos estivessem conectados ou não com a saúde.

Porém, a proximidade do médico com a família não era uma garantia de

uma prática médica dialógica. O médico do início do século, pela posição que ocupava

no seio da sociedade, era alguém que detinha um poder incomensurável, conferido

historicamente pela própria sociedade. Na verdade, um duplo poder83 representado, de

um lado, pelo prestígio social de ser filho da burguesia rica e tradicionalmente poderosa,

e, de outro, devido ao saber científico acumulado depois de anos de formação. Isso o

colocava em tal posição de verticalidade em relação aos seus semelhantes que obstruía a

possibilidade do diálogo.

Fora da oportunidade de participar desse tipo de medicina, a maioria da

população, pobre, dependia do atendimento filantrópico representado pelas Santas

Casas de Misericórdia, hospitais mantidos pela Igreja Católica ou entidades laicas de

caráter religioso. E como, em geral, o atendimento da filantropia nem de longe dava

conta das necessidades de atenção à população, esta tentava socorrer-se com o que ao

final lhe restava: as benzedeiras e os curiosos e curiosas que exerciam a medicina laica,

baseada no conhecimento popular, nas ervas e nas plantas medicinais.

A situação de desassistência da população e a sua estratégia de buscar

socorro na medicina popular desagradavam à classe médica, que abria confronto com

essa modalidade de assistência. As instituições médicas de então mantinham boas

relações com as esferas do poder estatal, inclusive prestando-lhes serviços relacionados

à organização da atenção médico-social. Assim, valendo-se dessa condição, colocavam

como ponto central na sua relação com os aparelhos do Estado, o combate, sem tréguas,

a que classificavam como práticas de charlatanismo.

Sobre essa questão, Machado (1978) faz-nos concluir que essas instituições

se preocupavam com a saúde pública, mas estabeleciam como moeda de troca a defesa

83 Essa questão do poder e da relação entre poder e saber está retratada na obra de Michel Foucault, Microfísica do Poder, quando esse pensador afirma que o poder está disseminado na estrutura social e se exerce de forma variada nas relações de pontos da rede social. Nessa perspectiva, o poder se transforma em algo que se constrói historicamente dentro das relações sociais. Foucault também discute as relações entre saber e poder ao esclarecer que o saber tem a sua gênese em relações de poder. Saber e poder estariam, assim, implicados mutuamente, não havendo relações de poder sem a constituição de um campo de saber e, reciprocamente, relações de saber que não estejam constituídas também enquanto relações de poder. FOUCAULT, M. – Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Editora Graal, 5ª edição, 1985.

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do saber médico e sua legitimação pelo Estado frente ao charlatanismo. A proscrição do

charlatanismo84, como se pode ver, era ponto de honra. Ao mesmo tempo em que a medicina enquanto medicina social oferece ao Estado seus préstimos no combate às epidemias, na elaboração da legislação, distribuição da justiça, urbanização, cobra dele a luta contra o charlatanismo e o reconhecimento da exclusividade do saber sobre a saúde (MACHADO, 1978, p. 199).

A classe média e a burguesia, mesmo estando, teoricamente, numa situação

menos desconfortável, já que tinham condições de custear os seus tratamentos de saúde,

também se rebelavam contra a situação sanitária, pelo fato de se sentirem desprotegidas

em relação às condições sanitárias inadequadas em que eram obrigadas a viver. A

burguesia industrial e comercial em expansão entendia que as epidemias manchavam o

nome do país e atrapalhavam os seus negócios. Naquela época, dependiam da mão-de-

obra imigrante, que era atraída para o país e, em boa parte, destinava-se ao trabalho

fabril e ao comércio. Como se vê, motivos não faltavam aos diversos movimentos para

o questionamento da atuação do governo da República no encaminhamento das

soluções dos problemas sócio-sanitários.

O setor saúde sofreu e sofre forte influência, um condicionamento mesmo

do capitalismo nacional e internacional. A história das políticas de saúde e da prática

médica na República Velha, como nos demais períodos republicanos, está diretamente

relacionada à evolução das políticas sociais e econômicas do Estado brasileiro, não

sendo possível uma dissociação entre elas. As lutas sociais por saúde sofreram a

influência dos movimentos e dos contextos sócio-políticos e econômicos, mas, em

vários momentos, também influenciaram a construção social e política do Estado

Brasileiro (CARVALHO LIMA, 2006).

Naquele tempo, para fazer frente às pressões específicas da saúde, a

estratégia do governo da República se assentava numa visão que articulava as questões

da saúde com o saneamento das cidades, principalmente, as maiores e de maior

importância econômica. Por isso, destacou Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e Emílio

Ribas, em São Paulo, centros que estavam entre os de maior aglomeração e maior

importância econômica, para deflagrarem campanhas de saúde pública com o fim de

combater as endemias e epidemias que assolavam a vida do povo. As campanhas de

84 O charlatanismo a que se referiam as organizações médicas estaria configurado no exercício ilegal da medicina e da farmácia por pessoas da população, religiosos e boticários que ofereciam consultas, tratamentos de saúde e manipulavam e comercializavam substâncias, sem a devida formação ou autorização sanitária.

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saúde pública eram organizadas como campanhas militares, dividindo a cidade em

distritos, encarcerando os doentes de moléstias contagiosas e obrigando, pela força, o

emprego de práticas higiênico-sanitárias85.

O traço autoritário, policialesco e controlador do governo da República, na

relação com a população, no mais das vezes, gerava protestos e verdadeiras guerras

entre autoridades sanitárias e as organizações da população, especialmente na capital

federal, centro nervoso do poder. Tornou-se emblemático e conhecido o episódio da

revolta da vacina, na primeira década do século passado, no Rio de Janeiro86. Durante

quase uma semana, para fazer frente a uma campanha de vacinação contra a varíola, em

que os agentes de saúde tentaram usar a polícia para obrigar a adesão da população,

ergueram-se barricadas, e o povo lutou bravamente contra o modo como a estrutura de

saúde comandada por Oswaldo Cruz organizou e fez executar o processo de vacinação.

A atitude do governo era considerada como uma invasão da privacidade dos lares e dos

costumes.

A capital da República ficou, então, dividida. De um lado, os movimentos

populares, defendendo a participação popular na definição das ações para a sua

proteção, afirmavam que ninguém poderia obrigá-los e por isso não poderiam permitir a

campanha. Nisso contavam com o apoio dos militares que, auto-definindo-se como

positivistas, afirmavam reconhecer a ciência, mas a imposição de campanhas era

contrária aos direitos dos cidadãos. De outro lado, a administração sanitária

considerava a revolta absurda e defendia que a saúde era um caso de polícia e, como tal,

85 O cuidado para com as epidemias nas cidades, principalmente as portuárias, como Santos e Rio de Janeiro, esteve na origem da criação das duas maiores instituições de pesquisa biomédica e de saúde no Brasil: O Instituto Soroterápico Federal (atual Fundação Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro, e o Instituto Butantan, em São Paulo. Nessas instituições, uma nova geração de médicos formados, segundo o paradigma da bacteriologia e influenciados pela pesquisa científica praticada na França e na Alemanha, começaria a exercer forte influência nas concepções sobre as doenças transmissíveis e nas propostas de ações em saúde pública (CARVALHO LIMA, 2006). 86 O episódio da revolta da vacina é uma das referências mais constantes quando se faz menção à história da saúde pública brasileira e fluminense, do início do século XX. Há inúmeras referências e citações do fato. Particularmente, indicamos três obras, entre tantas: SEVCENKO, N. – A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. Brasiliense, São Paulo, 1984; COSTA, N. R. – Lutas urbanas e controle sanitário: origens das políticas de saúde no Brasil. Vozes-Abrasco, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1985; CARVALHO, J. M. – Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Também são citados Meihy e Bertolli Filho (1990) quando assinalam que a história da saúde pública se coloca como uma variação ou ramo da história social, espaço útil para se refletir sobre a continuidade e/ou ruptura das relações entre o poder, as atitudes médicas vinculadas à população em geral e as implicações íntimas, constantes na prática da ética política. Trata-se de uma história da circulação da vontade governante manifestada nos cuidados médicos e nas aceitações populares.

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deveria ser tratada. A não cooperação com as campanhas deveria ser entendida como

atos de rebeldia e desobediência civil de inimigos da Saúde Pública.

Pode-se ver que a Revolta da Vacina assumiu um conteúdo de luta pelo

respeito e pela participação autônoma, livre e esclarecida da população na definição das

medidas que deveriam ser tomadas para sua proteção. Por parte do governo, havia todo

um interesse em desenvolver assistência e proteção à saúde da população, ficando

evidente a dificuldade política e prática da sua formulação ao não incluir nela elementos

pedagógicos que permitissem dialogar com a vida comunitária, seus costumes, modos

de vida, conhecimento, cultura e formas de sociabilidade.

O modelo campanhista vinha de uma inspiração pasteuriana, que organizava

ações de saúde nos moldes científicos da bacteriologia e da microbiologia. A maior

parte de suas ações eram voltadas para a imunização e prescrição de medidas sanitárias

focadas em hábitos de higiene87. As suas práticas visavam atingir algumas das doenças

infecto-contagiosas que grassavam na população. Tecnicamente, e bem articuladas, elas

tinham o poder de conferir uma razoável resposta pontual contra surtos epidêmicos,

porém a grande crítica feita, no caso, com absoluta pertinência, era que essas medidas

não detinham o condão de interferir no mais importante: os determinantes da

deterioração das condições objetivas de vida e de trabalho da população. Por outro lado,

já que esse modelo não conseguia ser eficaz, desacreditava a própria Saúde Pública.

Insistindo na questão dos determinantes das condições de vida e trabalho,

pode-se buscar o apoio de Moraes (1983). O autor atesta que, apesar de ausente em boa

parte da bibliografia histórica brasileira, o debate sobre condições de vida e de trabalho

era muito presente nas manifestações políticas e culturais. Indica que basta se

observarem os jornais, as peças teatrais, músicas e os textos produzidos nas primeiras

décadas daquele século, para se concluir que artistas e militantes políticos, ligados

principalmente aos anarquistas e aos socialistas, faziam o nexo entre as condições de

existência e o estado de saúde da população. Eram esses meios de comunicação e de

mobilização da cultura fontes de informação, educação e politização dos movimentos

reivindicatórios da época.

87 As políticas de saúde, que tiveram início efetivo em fins da década de 1910, estavam associadas aos problemas de integração nacional e à consciência da interdependência gerada pelas doenças transmissíveis. São, segundo Hochman (1998), os resultados do encontro de um movimento sanitarista, organizado em torno de políticas de saúde e saneamento, com a crescente consciência, por parte das elites, quanto aos problemas de saúde. É importante destacar, ainda, que as políticas de saúde e saneamento propostas pelos sanitaristas não eram viáveis sem o fortalecimento da autoridade Estatal e do papel do governo federal (CARVALHO LIMA, 2006).

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As sociedades médicas eram outro ator importante nesse processo por causa

da sua atuação em face do Estado e dos movimentos reivindicatórios. Há alguns

trabalhos88 que fazem referências ao papel dessas sociedades, algumas vindas da época

do Império, como era o caso da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro e

da Academia Imperial de Medicina que, durante a República, transformou-se em

Academia Nacional de Medicina, ou mesmo analisam a fundo seu discurso e prática.

Essas instituições definiam seus objetivos na defesa da ciência médica e do

saber médico e demonstravam preocupação com a saúde pública. Tinham um corte

liberal e, na sua relação com o Estado, ofereciam os seus préstimos no combate às

epidemias, na elaboração da legislação, distribuição da justiça, urbanização, mas

cobravam dele o reconhecimento da exclusividade do saber sobre a saúde, como pode

ser conferido em Machado (1978).

Moraes (1983) constata que a Academia Nacional de Medicina não

consegue impor seu projeto médico em face da sociedade. A pista oferecida pelo autor é

de que, mesmo falando em universalização da atenção médica, a proposta da Academia,

ao invés de indicar um projeto de medicina de massa, apontava para uma prática clínica

baseada na especialidade, com um modelo de intervenção individual que implicava em

vultosos custos. Por outro lado, analisa que, em um Estado, cuja ideologia é liberal, a

medicina se identifica com ele, em sua prática e no seu modelo de medicina social.

Porém, outras questões, além dessas, definem a escolha e a ação do Estado que, nesse

período da República, representavam outros setores e alianças sociais que não estavam

na Academia Nacional de Saúde.

O Estado brasileiro houvera feito a escolha do Higienismo89 como o seu

projeto médico-social dominante, e o sanitarismo campanhista exprimia-se como braço

operacional do próprio Higienismo, que diz respeito a um conjunto de idéias

desenvolvidas pelo campo da saúde e da medicina, que defende a possibilidade de se

melhorar a qualidade de vida e a saúde física e mental da população, através do

88 MACHADO, R.; LOUREIRO, A.; LUZ, R. & MURICY, K. – Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Graal, Rio de Janeiro, 1978; MORAES, N. A. – Saúde e poder na República Velha: 1914-1930. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1983; OLIVEIRA, C. R. – Medicina e Estado - origem e desenvolvimento da medicina social - Bahia: 1866-1896. Dissertação de Mestrado. Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 1983; CARVALHO, M. A. R & LIMA, N. T. – O argumento histórico nas análises de saúde coletiva, pp. 117-242. In Fleury (org.). Saúde Coletiva: questionando a onipotência do social. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1992; 89 Um fato marcante que demonstra a escolha higienista do Estado brasileiro foi a sua atuação decisiva na criação da Sociedade Brasileira de Higiene, em 1923. Essa sociedade médica tinha a sua sede no Rio de Janeiro.

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desenvolvimento de ações higiênicas e de prevenção de doenças ligadas a algumas

situações da vida humana, tais como: habitação, saneamento, alimentação, hábitos e

educação. Nesse sentido, estavam informadas pelos mecanismos de contaminação e

transmissão de doenças.

Pesquisando o Higienismo, Mendonça e Boarini (2004) fazem uma

associação dele com o Eugenismo90, professado pela Liga Brasileira de Hygiene Mental.

Defendem que essa associação acabava por cumprir outros papéis como o de, em nome

do Estado, exercer o controle sobre a organização da vida em sociedade. Nessa

perspectiva, as autoras afirmam: O higienismo/eugenismo no Brasil fizeram sua história a partir do movimento social que instituiu a Liga Brasileira de Hygiene Mental. A Liga foi criada em 1923, pelo médico Gustavo Riedel, que, juntamente com outros intelectuais da época, estavam interessados [sic] em realizar no Brasil o aprimoramento da raça em prol do desenvolvimento da nação. Dentro da perspectiva positivista, que compreende o funcionamento social a partir de leis naturais de desenvolvimento e organização, as dificuldades pelas quais a nação passava se deviam à natureza multirracial de seu povo. Essa natureza conjugava aspectos hereditários negativos, tais como a indolência, a preguiça, o gosto pelo ostracismo, a tendência à criminalidade etc. (MENDONÇA; BOARINI, 2004, p. 49).

E no parágrafo seguinte, concluem o seu raciocínio: A partir dessa compreensão da natureza da organização social, a Liga Brasileira de Hygiene Mental visava defender a mentalidade da raça, combatendo o alcoolismo e os vícios sociais”, selecionando a imigração, controlando os casamentos, esterilizando compulsoriamente os degenerados, fazendo seleção e orientação profissional, dando atendimento à infância com vistas a um desenvolvimento mental sadio e eugênico (MENDONÇA; BOARINI, 2004, p. 49-50).

Com isso, pode-se dizer que a filosofia higienista encerrava uma pedagogia

e uma visão de educação autoritária, positivista e antidialogal, que se aproximava do

debate educacional correspondente ao período pós-Primeira Guerra Mundial, quando o

país foi sacudido por uma onda nacionalista que terminou por influenciar as discussões

e as demandas por educação. Essa tal onda nacionalista tinha um caráter de reação ao

próprio projeto educativo autônomo das famílias de imigrantes que se situavam no

90 Eugenia, tal qual se encontra definido no Dicionário Aurélio, é a ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da espécie humana. Segundo Boarini (2003), as idéias eugenistas datam da antiga Grécia e estão presentes, por exemplo, em A República, de Platão. Na modernidade, Francis Galton publicou, em 1869, Hereditary Genius. Atualmente, ainda para esta autora, o avanço da genética e da biologia celular tem tornado a eugenia uma possibilidade cada vez mais real. Na história do Brasil, a eugenia se desenvolveu envolvida por outra disciplina que lhe é próxima, o higienismo.

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centro sul e não esperavam pelas iniciativas governamentais e, como viés, um forte

entusiasmo pela educação91.

Esse entusiasmo perpassava a própria categoria médica e pode ser ilustrado

pela posição do médico Miguel Couto92, ligado ao Higienismo e para quem o grande

mal do país seria o analfabetismo, algo que precisava ser extirpado do organismo

nacional. Paiva (1983) reproduz o núcleo do discurso desse profissional, bem carregado

no jargão médico: O analfabetismo não é só um fator considerável da etiologia geral das doenças, senão uma verdadeira doença, e das mais graves”. Vencido na luta pela vida, nem necessidades nem ambições, o analfabeto contrapõe o peso morto de sua indolência ou o peso vivo de sua rebelião a toda idéia de progresso, entrevendo sempre, na prosperidade dos que vencem pela inteligência cultivada, um roubo, uma extorsão, uma injustiça. Tal a saúde da alma, assim a do corpo; sofre e faz sofrer; pela incúria contrai doenças e pelo abandono as contagia e perpetua. [...] o analfabeto é um microcéfalo: a sua visão física é estreitada, porque, embora veja claro, a enorme massa de noções escritas lhe escapa; pelos ouvidos passam palavras e idéias como se não passassem; o seu campo de percepção é uma linha, a inteligência, o vácuo; não raciocina, não entende, não prevê, não imagina, não cria (PAIVA, 1983, p. 99).

A despeito do nacionalismo e da sua influência nas questões sociais e nos

posicionamentos éticos repletos de higienismo/eugenismo, Santos (1985) identifica,

91 O entusiasmo pela educação, na visão de Paiva (1983), parte de perspectivas externas ao campo. TTem no seu cerne a idéia do progresso, do domínio da técnica da leitura e da escrita, pelo maior número possível de pessoas, e da ascensão social. Datando do já distante século XIX, essa visão entusiástica da educação foi assumida tanto pela igreja, com cujo humanitarismo pretendia expandir os seus serviços religiosos e educacionais, como pelos ideais capitalistas que, a partir do evento da revolução industrial, queriam, a todo custo, o desenvolvimento do seu modo de produção. Os socialistas, por seu turno, também podem ser considerados como adeptos dessa posição, uma vez que viam na educação um instrumento de conscientização das massas na sua luta pelo poder político e elevação do padrão de vida das sociedades socialistas. Fica evidente, em qualquer das ideologias que se considere que tenham essa posição, a preocupação quantitativa.92 A partir da Academia Brasileira de Letras (www.academia.org.br), tem-se que o médico e professor Miguel Couto era poliglota e profundo conhecedor da língua portuguesa. Participou de vários congressos de Medicina, nos quais se destacou pela sua competência profissional, sendo considerado um dos mais notáveis clínicos de sua época. Envolvido nas questões da educação nacional, combateu a imigração japonesa, que considerava poder vir a constituir sério perigo para o Brasil. Ainda antes da Revolução de 1930, em 1927, proferiu, na Associação Brasileira de Educação, uma conferência em que apresentou um projeto sobre Educação, depois largamente distribuído em todas as escolas normais e institutos profissionais da então Capital Federal. Nesse documento, sugeria a criação do Ministério da Educação, com "dois departamentos: o do ensino e o da higiene". A 14 de novembro de 1930, um decreto do Chefe do Governo Provisório da República criava "uma Secretaria de Estado, com a denominação de Ministério da Educação e Saúde Pública, sem aumento de despesa". O apelo de Miguel Couto na Associação Brasileira de Educação dera o seu fruto. O "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova", lançado em 1932, reproduziu o que já pregara Miguel Couto cinco anos antes: "Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum subleva em importância e gravidade o da educação". Eleito deputado federal na Constituinte, que elaboraria a Constituição de 16 de julho de 1934, continuou a defender suas idéias sobre educação e problemas da imigração japonesa. Presidiu a Academia Nacional de Medicina durante 21 anos consecutivos. Deixou, entre suas mais notáveis obras - as "Lições de Clínica Médica"; "Só há um problema: a Educação"; a tese de concurso "Dos espasmos nas afecções dos centros nervosos" e, também, uma seleção de discursos pronunciados em diversas cerimônias.

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nesse período, duas correntes de pensamento nacionalista. Para uma corrente, o

crescimento e progresso das cidades eram sinais da conquista civilizatória. Um Brasil

moderno significava um Brasil europeizado93. Só a imigração branca e européia poderia limpar os brasileiros da nódoa do passado escravocrata e dos efeitos perniciosos da miscigenação. O sangue novo – ‘sangue bom’ – permitiria ao brasileiro redimir-se e purificar-se da contaminação de raças supostamente inferiores (SANTOS, 1985, p. 02).

Posicionamentos dessa natureza não apenas firmavam o pensamento da elite

intelectual participante dos ciclos de poder da época como davam uma idéia de como a

Medicina, a partir das suas organizações, assim como os médicos, individualmente,

enquanto intelectuais, viam a população que supostamente deveria ser destinatária dos

seus cuidados. Essas personalidades eram formadoras de opinião e mestres nas escolas

médicas da época, portanto, mestres das gerações de mestres e profissionais que

consolidaram a medicina tradicional brasileira do último século, hegemônica nos dias

atuais.

A outra corrente estava preocupada em recuperar, no interior do país, as

raízes da nacionalidade e buscava integrar o sertanejo ao projeto de construção nacional.

A essa corrente do pensamento social da época, afiliou-se boa parte dos médicos

sanitaristas, concorrendo para a mudança do modo de pensar o Brasil e os problemas da

população, especialmente a rural. Tal mudança se dá a partir de uma revisão das teses

enfatizadoras da inferioridade racial do brasileiro, colocando o foco no tema do

abandono pelo poder público como principal obstáculo para os projetos civilizatórios.

Seguindo os passos de Santos (1985), vale a pena destacar o papel dos

médicos sanitaristas na conformação desse pensamento, cujo trabalho94 permitiu às

elites urbanas uma visão contundente das condições médico-sanitárias e sociais no

grande sertão. Indo além das questões estritamente sanitárias, denunciaram vários

aspectos da organização social dos sertões: a família não existia legalmente por falta de

registro civil, os filhos quase nunca eram registrados, o trabalho forçado em vastas áreas

de maniçobais no Piauí e na Bahia era prática corrente, assim como o aliciamento de

mão-de-obra infantil nos vilarejos ao longo do rio São Francisco.

93 A crença nesse posicionamento era tão firme que levou o médico Gouvêa de Barros, deputado federal por Pernambuco e ex-diretor do serviço sanitário de seu Estado, a proclamar, na Câmara dos Deputados, que o Brasil tinha uma população fraca, sem resistência às doenças dos trópicos (Santos, 1985). 94 Dois deles, Artur Neiva e Belisário Pena, após empreender viagem pelos estados do Nordeste e de Goiás, denunciaram em seus relatórios as péssimas condições de vida no interior do País.

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Santos (1985) destaca a obra de Belisário Pena, denominada Saneamento do

Brasil, onde a questão sanitária aparece como um tema essencialmente político.

Segundo o documento, o Brasil cuidava apenas das suas capitais e de algumas cidades. As populações rurais permaneciam no mais completo abandono. As estatísticas sobre as endemias rurais refletiam tal situação: o amarelão atacava 70% da população; 40% eram vítimas da malária; a doença de Chagas atingia 15% da população rural. Estas eram as endemias mais sérias em todo o País, às quais o governo central deveria dar combate através de uma política integrada de saneamento. Para Belisário, pouco poderia ser feito em favor das populações desassistidas sem que se unificassem e centralizassem os serviços de saúde pública. Só o poder central possuía os instrumentos necessários para sobrepor-se à inação ou à resistência oligárquica e promover campanhas pelo saneamento em todo o território nacional. Entretanto, a mudança nas regras do jogo político era considerada por Belisário Pena uma condição necessária para que o governo central pudesse assumir o controle do sistema de saúde pública em todo o País (SANTOS, 1985, p. 09).

Os anos vinte foram de efervescência tanto cultural quanto política. Basta

lembrar a Semana de Arte Moderna e o fortalecimento da esquerda que, já contando

com os anarquistas, ampliou-se com o surgimento do Partido Comunista do Brasil

(PCB). O país assiste a um confronto de idéias que coloca no debate, além dos

entusiastas pela educação, os otimistas pedagógicos95, representados pelos profissionais

da educação, que começam a aparecer dentro e fora do governo da República, e com os

realistas em educação96 que, em geral, ligados à esquerda e ao comunismo,

reivindicavam uma atitude mais efetiva do governo nesse campo.

95 O otimismo pedagógico finca-se numa perspectiva interna e numa visão qualitativa da educação. Para os adeptos dessa posição, a educação se finda num evento unilateral e técnico, que se preocupa unicamente com aspectos ligados à eficiência e à qualidade dos sistemas educativos. A educação não é vista do ponto de vista social, econômico e político. Apenas se preocupa com os seus próprios aspectos administrativos, com a formação técnica dos professores e o aperfeiçoamento dos currículos e métodos de ensino. Resume-se no professor bem formado e eficiente, no pedagogo atento às questões da escola e da escolarização como um serviço de qualidade a ser colocado à disposição da sociedade. Negligenciando os aspectos práticos do dia-a-dia da política, da economia e da vida social, em geral, o otimismo pedagógico acaba, no mais das vezes, por servir de braço da ordem estabelecida, justificando-a e conformando-a. Ao não articular as questões da pedagogia e da educação com os ingredientes que fazem a vida do país, cai no diletantismo e se torna ineficaz. 96 A terceira posição, a do realismo em educação, é uma síntese crítica das duas anteriores e conjuga as perspectivas interna e externa para compor uma educação que seja vista sem unilateralismos, integrada à vida econômica, política e social, preocupada com a qualidade do ensino, com a sua expansão a todas as camadas sociais e com o seu desenvolvimento enquanto sistemas educativos que respondam aos anseios da sociedade. Profundamente penetrados pelas ideologias, os adeptos dessa posição estão longe de formar um bloco monolítico e homogêneo. Ao contrário, conservadores, mudancistas e revolucionários formam um complexo jogo na abordagem e no tratamento dos fenômenos educacionais e pedagógicos.

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Paiva (1983) identifica, no Brasil dos primeiros trinta anos do século XX97,

pelo menos duas correntes dessa última posição. Em primeiro lugar, uma corrente

liberal, que pode ser representada na figura de Anísio Teixeira, educador escolanovista,

aluno e discípulo de Dewey98, e um dos nossos maiores expoentes em termos de luta

pela reforma e construção de um sistema educação nacional democrático, forte e

qualificado. A seriedade e o trabalho desse educador e o seu esforço para que o país

tivesse uma escola e um sistema educativo de qualidade, em todos os seus aspectos,

podem levar a uma falsa impressão de ligação com a posição do otimismo pedagógico,

o que, numa análise mais profunda, não deve ser considerado. A atuação desse grupo

deu-se especialmente a partir dos anos 20.

A segunda corrente dessa posição é a da esquerda marxista, que tomou

corpo também na década de 20. Esse grupo nasce do Partido Comunista e se diferencia

do ecletismo e de certa confusão ideológica representada pelo movimento modernista e

suas repercussões, depois da Semana de Arte Moderna de 1922. Está preocupado com a

instrução do povo e vê nessa instrução um instrumento para a tomada de consciência da

situação política, econômica e social vivida à época. Tinham, assim, preocupações tanto

quantitativas como qualitativas, ao contrário de algumas posições ditas socialistas ou

humanitárias, ligadas ao entusiasmo pela educação, que viam na própria educação o

grande problema nacional, o mal a ser atacado, em cuja resolução residiria a solução de

todos os outros. Entendiam que era preciso formar cidadãos conscientes e instruídos,

capazes de revolucionar as nossas estruturas, de modificar a base produtiva do nosso

sistema econômico - o grande responsável pela desigualdade e pela miséria material e

intelectual do povo. Nesse caso, a educação poderia ser um combustível importante para

a tomada de posição rumo a uma revolução proletária.

Nesse grande mosaico, destaca-se a discussão acerca da Educação dentro do

Estado brasileiro. A fortaleza, a pertinácia e a intransigência - podendo-se falar mesmo

de prepotência e arrogância - das posições higienistas é que não se deixavam oxigenar

97 A autora identifica figuras do último período do Império, como é o caso de Rui Barbosa, no seu célebre parecer-projeto sobre a reforma proposta por Leôncio de Carvalho, ligadas ao debate da política educacional. No caso, o parecer do político e intelectual baiano trazia componentes muito claros ligados ao realismo em educação, mesmo que calcado na idéia do progresso, normalmente ligado aos classificados como adeptos do entusiasmo pela educação. 98 John Dewey (1859-1952), filósofo e pedagogo norte-americano, é reconhecido como um dos fundadores da escola filosófica de Pragmatismo. Foi ainda um pioneiro em psicologia funcional e representante principal do movimento da educação progressiva norte-americana durante a primeira metade do século XX. A idéia básica do seu pensamento sobre a educação está centrada no desenvolvimento da capacidade de raciocínio e espírito crítico do aluno.

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pelas outras idéias em discussão, que propunham alternativas no tratamento dos

problemas sociais que eram muitos e que iam muito além da saúde. Aliás, a situação de

saúde das maiorias era apenas uma das conseqüências da forma como estava organizada

a sociedade.

A ideologia sanitarista dos anos vinte desempenhou um papel de

mobilização política. Apesar de ser um movimento de elite, tomou grande impulso

atraindo setores das classes médias, formando correntes favoráveis às teses sanitaristas

dentro do Congresso Nacional e agitando a imprensa. Em torno da idéia de saneamento

do Brasil, deu-se a politização da questão saúde durante o primeiro período republicano.

Observe-se, contudo, que o movimento esteve focado principalmente nos aspectos

ideológicos do problema, e não, em suas realizações práticas. Talvez aí resida parte da

explicação da causa de não haverem logrado a erradicação das endemias urbano-rurais.

Voltando à caracterização desse período e mantendo a articulação com as

questões econômico-políticas e ideológicas da Velha República, pode-se agora fazer

referência ao processo de industrialização que, aos poucos, firmava-se no país99. E à

constituição do movimento operário, a organização de suas lutas em face do trabalho, da

saúde e da proteção social100. E, nesse caso, é preciso reconhecer que os imigrantes

tiveram uma importância fundamental no processo, notadamente os alemães e os

anarquistas italianos, espanhóis e portugueses que para aqui vieram e se destacaram na

composição do movimento operário e na formação da consciência operária como classe

em si e para si101.

99 Considerando-se os estudos de Dreifuss (1981), entre 1890 e 1920, o país passou de 600 para aproximadamente 14.000 estabelecimentos industriais. Havia nesse crescimento uma forte participação do capital estrangeiro, no caso britânico e no americano, com supremacia dos britânicos que respondiam, em torno de 1930, por cerca da metade do capital estrangeiro no Brasil, ficando os americanos com aproximadamente 25%, tendência que se inverteria durante os períodos seguintes quando os britânicos praticamente se retiraram, e os americanos cresceram. 100 O processo de industrialização brasileiro vinha afirmando-se a partir da segunda metade do século XIX com os primeiros ensaios de substituição de importações. Junto com esse processo também se dá início às movimentações operárias, inicialmente através das Organizações de Socorro Mútuo. Segundo Simão (1966), as primeiras três mútuas surgem por volta de 1872/3 e congregam membros da colônia alemã, artífices gráficos e assalariados de diversas categorias profissionais, respectivamente. Na cidade de São Paulo, foram criadas 19 mútuas entre esse período e 1900. Partes dessas organizações mais tarde foram transformadas em ligas operárias e passaram a compor o movimento sindical propriamente dito, durante a República. 101 Há uma farta bibliografia dando conta da formação inicial do operariado brasileiro e dos primórdios do sindicalismo no país. Mas, especificamente sobre o sindicalismo amarelo, que é como ficou conhecido o anarco-sindicalismo, e para uma maior fundamentação do leitor, citamos: HARDMAN, F. F.– Nem pátria nem patrão: vida operária e cultura anarquista no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1983; VIANA, L. W. – Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; HARDMAN, F. F. & LEONARDI, V. – História da indústria e do trabalho no Brasil: das origens aos anos vinte. São Paulo, Kairós, 1982; SIMÃO, A. – Sindicato e Estado. São Paulo, Dominus, 1966.

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Nas primeiras duas décadas, a produção industrial crescera no Brasil,

sobretudo com o início da política de substituição de importações, quando a importação

de diversos produtos – tecidos, calçados e chapéus, principalmente – fora impedida pelo

acontecimento da primeira guerra mundial, o que gerou a necessidade de sua fabricação

no próprio país. Mas uma questão preocupava os industriais: eram as constantes revoltas

dos trabalhadores contra as condições de trabalho. Em 1917, essas relações se agravam

com o estouro de greves por fábrica culminando, em São Paulo, com a primeira greve

geral de trabalhadores, obrigando os patrões a negociarem, retomando-se as atividades

fabris.

Por volta desse mesmo período, acontece a epidemia da gripe espanhola.

Sofre, mais uma vez, a população paulistana, que assiste a milhares de mortes. Sofre a

saúde pública, atingida no seu cientificismo e, mais uma vez, batida pela epidemia.

Nova onda de protestos acontece contra o governo e contra os dirigentes da Saúde

Pública, acusados de nada fazerem em defesa da população. Há o aproveitamento

religioso, por parte da Igreja Católica, que começa a pregar que os médicos não

conseguiriam fazer nada contra a moléstia porque a gripe seria um castigo dos céus

contra os pecadores. Todos iriam perecer. Um flagrante desrespeito ao conhecimento,

mostrando a alienação e o uso ideológico da religião numa espécie de pedagogia da

ignorância.

Vale aqui ressaltar a atitude ideológica, positivista e antidialógica, do

Estado e da ciência médica a seu serviço. Juntos, não conseguiam enxergar os

condicionantes e determinantes do processo saúde-doença, ainda que toda a discussão

sobre o papel da organização social na produção da doença e da saúde já houvesse sido

posta há mais de setenta anos na Europa onde, inclusive, continuava sendo formada boa

parte dos nossos médicos. Ambos, Estado e Medicina, não conseguiam enxergar que os

seus quefazeres encerravam uma pedagogia e uma educação autoritárias.

É compreensível o papel dos anarquistas, imigrantes europeus, na

constituição do movimento sindical e dos movimentos sociais em geral em função da

luta por direitos básicos de cidadania no trabalho, e mesmo por condições objetivas de

vida e, entre outras coisas, pela constatação da inexistência de uma assistência médica

pública, capaz de fornecer a devida cobertura aos cidadãos e à classe trabalhadora. O

início e a continuidade dessa movimentação foi o que possibilitou o aparecimento de

organizações mutuais ainda durante o Império. Elas, agora, já na República, serviram

como uma espécie de modelo para a composição das Caixas de Aposentadorias e

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Pensões102 (CAP´s). Era a primeira vez que o Estado interferia para criar um mecanismo

destinado a garantir ao trabalhador algum tipo de assistência. Os operários passavam a

ter a possibilidade de assistência médica para si e seus dependentes. Porém, apenas as

grandes fábricas conseguiram sucesso com essa política. As pequenas ficaram de fora103.

Considerando o específico da saúde, o período da República Velha, aqui

caracterizado como o período em que se priorizou a saúde pela via do saneamento, foi

um momento de crescimento da consciência das elites em relação à situação sanitária do

país e da percepção de que o Estado nacional deveria assumir a responsabilidade pelas

questões relativas à saúde. Nesse período, foram assentadas as bases para a criação de

um incipiente Sistema Nacional de Saúde, caracterizado pela concentração e

verticalização no governo federal, situação, de certa forma, ainda mantida nos dias de

hoje, mesmo com o impressionante processo de descentralização conseguido pela

criação e implementação do Sistema Único de Saúde.

4.2 A República Velha e o Estado Novo

Voltando ao plano mais geral e às questões relativas ao poder político que

dava sustentação ao governo, à economia e aos mecanismos que tentavam segurar as

tensões sociais, tem-se que o final da década dos anos 20 foi bastante conturbado,

colocando em xeque a República Velha, a essa altura já apresentando sinais de exaustão.

Abria-se espaço para um novo ciclo do Estado brasileiro, iniciado com a Revolução de

102 Essas Caixas eram um sistema de arrecadação financeira voltado para a prestação de serviços e benefícios, tais como: pensões, aposentadorias e assistência médica aos filiados e seus dependentes. Eram organizadas por empresa e contavam com as contribuições dos trabalhadores e empregadores. A evolução desse tipo de associação levou a que acabassem regulamentadas através da Lei Elói Chaves, em 1923. 103 A Lei Elói Chaves regulamentou as CAP´s apenas para os estabelecimentos acima de 50 empregados, para os quais, além de assistência médica também ficava assegurado o direito de aposentadoria. Os marítimos, os ferroviários e os empregados nos ramos da exportação foram os primeiros a conseguir o benefício, comprovando que a legislação fora fruto da pressão, principalmente desses setores, que eram os que estavam intimamente ligados à economia de maior desempenho. Tanto que os têxteis, num primeiro momento, até ficaram de fora. Ficava claro que além da lei era preciso pujança econômica, organização e força sindical. As CAP´s se constituíram num embrião da previdência social brasileira. Para um aprofundamento sobre o significado dessa legislação para a constituição da previdência social no Brasil indicamos, entre tantas, três interessantes obras: OLIVEIRA, J. A. A. e TEIXEIRA, S. M. F. – (Im)previdencia Social: 60 anos de história da previdência no Brasil, Petrópolis, Vozes/ABRASCO, 1986; MALLOY, J. – Política de Previdência Social no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1986; BRAGA, J. C. S. & PAULA, S. G. – Saúde e previdência: estudos de política social. CEBES-Hucitec, São Paulo, 1981.

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30, que colocou Getúlio Vargas no poder. Para se compreender essa revolução, convém

explicitar alguns elementos econômicos e políticos da conjuntura que a antecedeu e, de

certa forma, determinou-a. Esses elementos, como se poderá ver, produzirão

rebatimentos importantes sobre as políticas sociais do período, particularmente na saúde

e na educação.

Do ponto de vista econômico, diversos setores, tais como charqueadores,

produtores de açúcar, de cacau, de borracha, de arroz e mesmo os segmentos industriais,

não viam com bons olhos a política de priorização do café. Sentiam-se discriminados

pelo governo, sem incentivos. Depois, não se pode esquecer o outubro de 1929, quando

aconteceu o "crack" da Bolsa de Valores de Nova York, cujas conseqüências se fizeram

sentir no mundo inteiro, inclusive no Brasil, tendo em vista a grande carteira de

exportação de café brasileiro para aquele país.

Além dessas questões, no quadro conjuntural mais geral, é importante

considerar: a) a emergência de uma classe média que, aos poucos, ampliava-se como

fruto do desenvolvimento urbano, passando a reclamar direitos que entendiam não estar

sendo garantidos pela República; b) o tenentismo, movimento formado por militares

radicais oriundos, em sua maioria, das dissidências oligárquicas, o qual estivera

presente nos levantes da década de 1920 e que agora se articulava mais uma vez,

visando desencadear um novo movimento revolucionário; c) uma burguesia que, mesmo

incipiente, encontrava-se sequiosa por ocupar mais espaços nas rodas do poder; e d) o

movimento operário que, apesar de algumas conquistas, sentia-se oprimido pelos seus

patrões e pelo governo, que não encaminhava soluções, no sentido das suas

reivindicações. Todos esses segmentos, insatisfeitos com a República Velha,

contribuíram para a derrocada do status quo. A Revolução de 30 foi, portanto,

impulsionada pelos setores das classes dominantes que não estavam ligados à

exportação do café, tendo o apoio das camadas médias urbanas, de intelectuais,

profissionais liberais e demais setores descontentes.

A Revolução de 1930 colocou na ordem do dia a necessidade de se pôr em

prática uma nova política social no país. A criação do Ministério do Trabalho, Indústria

e Comércio, e o de Educação e Saúde, logo depois da vitória do movimento

revolucionário, indicou a disposição do Governo Provisório de alterar os rumos das

políticas sociais até então adotadas pelos governos da República Velha. Com o novo

arcabouço jurídico-legal e administrativo, o governo pretendeu atacar praticamente toda

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a agenda que estava implícita nas reivindicações dos diversos setores presentes na

Revolução de 30.

Como controlava os Estados, o governo tinha tranqüilidade e apoio para agir

e fazer as mudanças pretendidas. Passava a ter um ministério forte, que concentrava as

questões relativas ao confronto capital x trabalho e comércio interno e externo, que

acumulava, talvez, a maior fonte de crise política, posto que representava um nervo

exposto diante das oligarquias rurais e da burguesia industrial urbana, assim como

diante do sindicalismo, com evidentes rebatimentos nas relações internas e externas do

país e na ordem vigente. O governo partia do pressuposto de que apenas com a

intervenção direta do poder público seria possível amortecer os conflitos entre capital e

trabalho, que já se faziam presentes no mundo da produção que se modernizava104.

Para Santos (1998), o conceito-chave para compreender a política

econômico-social pós-30 é o conceito de cidadania regulada. Em relação à cidadania

regulada, o autor entende que as raízes do conceito de cidadania encontram-se não em

um código de valores políticos, mas, em um sistema de estratificação da sociedade.

Assim, a partir da década de 1930, a cidadania regulada estará na base de tudo. Sem ela,

o sistema de controle sindical e de distribuição de benefícios previdenciários e de

assistência médica, de caráter compensatório, perde em eficácia. O Estado passava a

regular tudo, ou quase tudo, sempre que o conflito ameaçasse ultrapassar os limites que

a elite considerasse apropriados. Nessa idéia, as lutas por saúde, as de caráter

corporativo, estarão atreladas a essa engenharia, em que a burocracia estatal e a

burocracia sindical desempenham papel importante.

Por fim, ao dar status de ministério a duas questões cruciais da agenda

política: a saúde e a educação, que tantas preocupações geraram para os governos

anteriores da chamada Velha República, o governo, além de dar uma resposta direta aos

setores médios, populares e sindicais, conseguia igualmente acenar para o capital

interno e externo que propugnava por uma mão-de-obra mais sadia e qualificada.

104 Essa intervenção ganhou expressão concreta em março de 1931, quando, pelo Decreto n° 19.770, foi estabelecida a Lei de Sindicalização. A nova lei tinha como objetivo geral fazer com que as organizações sindicais de empresários e trabalhadores se voltassem para a sua função precípua de órgãos de colaboração do Estado.

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4.3 A intervenção do governo Vargas na economia, na saúde, na educação

Partindo-se para o plano das políticas sociais e econômicas, pode-se dizer

que o governo Vargas era de tendência nacionalista, posto que controlava ao máximo a

entrada de capital estrangeiro no país. No seu governo, aumentou sobremaneira a

intervenção estatal na economia, inicialmente como planejamento econômico, para

depois, durante o Estado Novo, passar à participação direta com o investimento na

montagem de grandes empresas estatais. Utilizava, para isso, o grande bolo de recursos

da previdência social, que teve um avanço sem precedentes no seu governo.

Sodré (1982) concebe que o governo Getúlio, malgrado os efeitos da

depressão de 1929, que se estenderam por muito tempo, obteve relativo sucesso no

controle da economia no que diz respeito ao crescimento do mercado de outros

produtos, aliás, uma das reivindicações dos demais setores que compunham a economia,

que não as atividades do cultivo do café. O algodão foi um dos produtos que se destacou

na carteira de exportações durante declínio relativo das exportações de café.

O que o autor destaca, no entanto, é o crescimento que foi proporcionado ao

mercado interno, que passou a crescer em função da produção de itens produzidos no

interior do Brasil e que antes eram importados. Esse crescimento permitiu que se

fizessem baixar em até 60% as importações desses produtos. Ele acrescenta, no caso

amparado nos estudos de Celso Furtado105, que o fator dinâmico principal dos anos que

seguem à crise passa ser o mercado interno. E completa: “... qualquer teoria ou

planejamento que esqueça a importância a que já atingira o mercado interno brasileiro

está condenada ao descrédito” (SODRÉ, 1982, p. 324).

Getúlio Vargas colocou em prática uma política inspirada no New Deal,106

proposta por Keynes para os Estados Unidos, pós-depressão. Uma política que visava

ao equilíbrio entre o custo de produção e o preço, entre a cidade e o campo, entre os

105 A referência do autor está na página 230 da obra: FURTADO, C. – Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1959. 106 Série de programas implementados nos Estados Unidos, entre 1933 e 1937, sob o governo do Presidente Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia e assistir os prejudicados pela depressão de 1929. Através dessa política, o Estado indenizou os agricultores, que reduziram as suas áreas de cultivo para diminuir a produção, e concedeu créditos para pagamento de dívidas. Foram fixados limites à produção industrial e tabelaram-se os preços dos produtos, de modo a se evitarem as crises de superprodução e concorrências. Foi criada uma legislação financeira para controlar a atividade da Bolsa e do setor bancário. Em relação aos trabalhadores, foi estabelecido o salário mínimo, reduzido o horário de trabalho e foram introduzidas medidas de proteção: auxílios desemprego, doença, velhice e invalidez.

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preços agrícolas e os preços industriais, reativação do mercado interno pelo controle dos

preços e da produção pela valorização dos salários e do poder aquisitivo das massas,

isto é, dos lavradores e operários, pela regulamentação do emprego com alta dos

salários e redução do dia de trabalho, entre outras medidas. Toda a legislação

trabalhista, regulamentando o trabalho, assim como a instituição do salário mínimo e o

incentivo aos diversos setores agrícolas e industriais da época, confirma a intenção

governamental desse presidente.

Em termos das políticas de saúde, logo no início do seu período de governo

provisório, por meio de decreto, foi uniformizada e centralizada a estrutura dos serviços

de saúde. O Estado getulista queria ter o controle das ações para depois levá-las para o

interior. Foram criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões, os IAP´s, que viriam

substituir as CAP´s. A visão do governo era de que estas eram poucas e ineficientes, o

que, do ângulo da sua cobertura e resultados, não deixava de ser verdade.

Os Institutos criados por Getúlio, diferentemente das CAP´s, passaram a ter

a participação do Estado na sua administração e a ser financiados pela contribuição dos

trabalhadores, das empresas e do governo. Tinham um caráter de seguro social: um

desconto era feito no salário do trabalhador, das empresas e do governo, e o fundo assim

formado era investido para gerar a massa de recursos necessários para pagar

aposentadorias e pensões. Eram organizadas por categoria profissional e havia

representação tripartite (trabalhadores, empresas e governo) nas suas decisões

(BRAGA; PAULA, 1981; MALLOY, 1986; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).

Os recursos dos IAP´s foram, desde a sua criação, aplicados pelo governo

no financiamento da industrialização do país. Na compreensão do governo, era uma

soma de recursos muito alta para ficar parada, o que tinha razão de ser, desde que a sua

administração fosse transparente e socialmente justa. Porém, com os IAP´s, continuou

acontecendo mais ou menos a mesma coisa que com as CAP´s, ou seja, manteve-se a

existência de institutos mais fortes e pujantes em detrimento de outros mais fracos. Os

bancários, ferroviários e marítimos, por exemplo, eram mais combativos, ganhavam

mais e, portanto, contribuíam com mais recursos, dando poder ao seu instituto e,

conseqüentemente, oferecendo uma gama de serviços maior. Essas categorias estavam

ligadas à indústria, à exportação e ao comércio, atividades que, na época, eram

fundamentais para o desenvolvimento do país (BRAGA; PAULA, 1981; MALLOY,

1986; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).

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Assim, o sistema cobria apenas o universo de trabalhadores formalmente no

mercado de trabalho, naquele momento menor do que a metade da população

economicamente ativa. A estratégia de criação dos IAP´s foi, portanto, mais uma

sagacidade de Getúlio107, uma vez que unia os trabalhadores nas suas corporações e os

desunia em termos das diferenças que passavam a existir entre eles como classe. As

categorias, forçosamente, tinham salários, benefícios e assistência médica de qualidades

distintas. E a maioria não tinha absolutamente nada.

Mas os IAP´s não eram a única estratégia de atenção à saúde dos

trabalhadores. A formação do capitalismo brasileiro, a partir do início do século XX, e o

seu processo de desenvolvimento e consolidação, materializado nas ações e políticas do

governo Vargas, trouxeram para o universo da industrialização brasileira a discussão e a

prática de uma medicina que articulava trabalho com saúde-doença. Uma estratégia de

atenção à saúde que evoluíra na Europa desde o século XIX e que aqui conquistou

espaço, na esteira do desenvolvimento do capitalismo industrial.

O Governo getulista tinha um objetivo prioritário: o de desenvolver e

consolidar a industrialização brasileira. O próprio momento político e econômico

nacional e internacional colocava a necessidade de uma indústria de base para o país. Só

que esse ramo da indústria, para ser alavancado, exigia pesados financiamentos, que os

capitalistas industriais não estavam dispostos a arcar. A par disso, o Estado foi

gradativamente assumindo a responsabilidade pela produção de alguns insumos básicos,

de um lado, como parte do esforço de guerra, e de outro, movido por uma visão mais

estratégica acerca do futuro desenvolvimento do país (DREIFUSS, 1981).

Getúlio investe na indústria a partir de 1940. Nesse ano, cria a Companhia

Siderúrgica Nacional de Volta Redonda, produtora de ferro e aço. A maior parte do

financiamento da Usina sai dos recursos da previdência social (IAP´s). Na continuidade

dos primeiros anos da década de quarenta, foram sendo criadas as demais grandes

empresas estatais brasileiras108. A previdência, recursos dos trabalhadores ou destinado

107 Getúlio criou toda uma legislação trabalhista fundada na Consolidação das Leis do Trabalho e na criação de um sistema previdenciário fundado nos IAP´s que formava um sistema de proteção ao trabalhador. Esta legislação imposta por Getúlio fora toda inspirada na “Carta del Lavoro” italiana e constituía uma estrutura corporativista próxima da existente no regime fascista, cujos traços perduraram até a Constituição de 1988. 108 Em 1942, foi criada a Companhia Vale do Rio Doce, para a exploração das jazidas de ferro de Minas Gerais. Em 1943, foi a vez da Companhia Nacional de Álcalis, para a produção de soda e barrilha, e da Fábrica Nacional de Motores. Por fim, em 1945, foi constituída a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, com vistas ao abastecimento de energia elétrica para o Nordeste do país. Boa parte das iniciativas governamentais mencionadas só teria sua completa realização em períodos bem posteriores. Assim, a produção de petróleo só experimentaria um real crescimento após 1946, e a primeira refinaria

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a eles, é quem financia a produção capitalista travestida de capitalismo de Estado. E a

assistência médica previdenciária, baseada nos IAP´s, segue o seu curso (BRAGA;

PAULA, 1981; MALLOY, 1986; OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).

4.4 O Serviço Especial de Saúde Pública

Os anos trinta foram de muitas e profundas mudanças em vários setores da

vida social, econômica e política do país. Importante fazer-se referência à política

educacional do Estado Novo getulista, onde, em que pese a quebra da normalidade

democrática e da participação livre dos diversos segmentos sociais, várias iniciativas

foram tomadas em função da ampliação do ensino elementar e da educação de adultos.

Tem-se um primeiro ciclo real de industrialização e urbanização, a trazer consigo o

crescimento do comércio e do setor de serviços que, aos poucos, exige uma

reformulação completa do sistema educativo com expansão do ensino elementar e

médio e do profissional.

Era necessário que o sistema educativo se preocupasse com a questão da

mão-de-obra adequada para os diversos tipos de postos de trabalho. Emerge o ensino

técnico com escolas organizadas pelos ramos da indústria (SENAI) e as academias do

comércio e mesmo os colégios adotando cursos ginasiais que introduziam disciplinas

como prática de comércio e prática de escritório (PAIVA, 1983).

Logo com o início do período, em 1937, foram instituídas as Conferências

Nacionais de Educação que, juntamente com as Conferências Nacionais de Saúde,

constituíam-se importantes momentos de diagnóstico, reflexão e planejamento dessas

duas políticas tão fundamentais para o desenvolvimento social. Nesse aspecto, tem-se

um governo com políticas sociais mais integradas, uma diferença em relação à

República Velha, quando as discussões e os avanços da Educação ficavam confinados

àquele setor, que não dialogava com o restante das políticas sociais.

Por outro lado, esforçando-se para valorizar a vida rural e manter o homem

no campo, o setor rural agrário exportador e os grandes fazendeiros passam a exigir e somente entraria em operação em 1947-48. A Companhia Nacional de Álcalis teria de esperar o final dos anos 50 para iniciar operação efetiva. Já a Fábrica Nacional de Motores não sobreviveu como projeto empresarial. Entretanto, o sentido das transformações esboçadas - forte participação estatal no estímulo ao crescimento industrial - iria marcar o desenvolvimento do país nas décadas seguintes.

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organizar, junto com o governo Vargas, as escolas rurais. Era uma forma de manutenção

do poder agrário e suas oligarquias, que não aceitavam perder poder para o

industrialismo urbano e para o setor de serviços. Tratava-se, pelo lado do governo,

naquele momento, de manter o necessário equilíbrio entre esses dois mundos (o rural e

o urbano) que davam sustentação ao governo nacional.

É um período, portanto, de crescimento da Educação tanto nas grandes

cidades industriais quanto nas pequenas cidades quase rurais. Importante não esquecer o

quanto de cargos públicos para professores e o quanto de poder político era mobilizado

nas distribuições desses cargos, sem contar com a velha e antiga máxima estabelecida

com o final do império e o início da república: cada alfabetizado, um eleitor, cada

eleitor, um voto. Era o sentimento do quantitativismo dos entusiastas da educação em

ação, mesmo que, na esteira do ensino técnico, houvesse o momento e o crescimento do

otimismo pedagógico com as suas preocupações relativas a currículo, a eficiência

administrativa e certa neutralidade, muito conveniente naquele momento político

(PAIVA, 1983).

Mesmo não participando, formalmente, do primeiro período da segunda

guerra mundial, o país passa a trabalhar com a sua perspectiva. O esforço da guerra

exigia uma grande quantidade de borracha, e o país possuía uma das maiores reservas

mundiais dessa matéria-prima. O Brasil passa, então, a comercializar esse produto com

os EUA, que aqui financia a sua extração. As questões ligadas ao comércio de

exportação da borracha, a necessidade de abertura de novas frentes de trabalho nesse

ramo extrativista, e, ao mesmo tempo, a ameaça da eclosão de epidemias de malária, em

face da mobilização de milhares de trabalhadores em áreas de floresta, levam o governo

a criar, em 1942, o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Isso foi feito através de

um contrato de financiamento com a Fundação Rockfeller, norte-americana, que já

detinha uma tradição de trabalho, no país, na área de saúde.

O SESP foi criado para combater a malária e proteger os soldados da

borracha, mas logo passou a organizar grandes campanhas de vacinação, fazer

educação sanitária, pequenas obras de saneamento e assistência médica das populações

pobres e ribeirinhas que passaram a se estabelecer ao longo da bacia hidrográfica

amazônica. Esse Serviço Especial de Saúde Publica, assim como a Superintendência de

Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), criada anos depois, concentravam a

preocupação sócio-sanitária do governo central e assumiram a coordenação das ações de

saúde pública, mormente quando se criou o Ministério da Saúde. Essas duas instituições

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teriam uma grande repercussão sobre a saúde das pessoas que estavam e,

principalmente, que entravam no caminho da borracha, rumo ao norte do país. Porém as

ações educativas e de prevenção de doenças eram carregadas da mesma aura autoritária

do modelo campanhista.

A ação do Estado no setor de saúde dividia-se em dois braços: um, ligado à

Saúde Pública, de caráter preventivo, conduzido por campanhas sanitárias e por uma

rede de unidades de saúde que desenvolvia atenção primária de saúde para determinadas

populações, tidas como de risco. Possuía um financiamento específico do governo. E

outro ligado à Assistência Médica Previdenciária, de caráter curativo, conduzido através

da ação dos IAP´s, que compunham o sistema de previdência social (BRAGA; PAULA,

1981).

4.5 A onda hospitalocentrista de inspiração flexneriana

O Estado Novo teve o seu fim com a deposição de Getúlio Vargas em

outubro de 1945. O regime comandado pelo presidente ditador já vinha se esgarçando

desde os primeiros anos da década, principalmente depois da entrada do país na

Segunda Guerra Mundial. Com o final da beligerância, o mundo voltava a respirar ares

democráticos e, nesse contexto, o anacronismo do regime do Estado Novo era flagrante.

Enfrentando fortes resistências de vários setores, o presidente vê-se compelido a realizar

eleições gerais.

O período entendido como da redemocratização do país, pós-Estado Novo,

durou quase duas décadas e se estendeu até 1964, quando então sobreveio o golpe de

Estado que jogou o país numa ditadura militar. Mas é a promulgação da Constituição de

1946 que demarca esse período relativamente curto da historiografia brasileira. O

retorno da democracia, o mandato presidencial de cinco anos, eleições diretas em todos

os níveis e a manutenção dos direitos trabalhistas conquistados ao longo da era Vargas

foram os traços principais e mais relevantes dessa Carta Magna promulgada sob o

governo Dutra.

O país conseguia, depois de um período de governo revolucionário que se

transformou num golpe de Estado e instalação de uma ditadura civil com apoio militar,

manter, não sem sobressaltos, períodos tensos e tentativas frustradas de golpes à ordem

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estatal, eleger, de forma direta e democrática, quatro presidentes e garantir a posse de

um vice-presidente, numa circunstância de renúncia do titular. O país cresce, consolida-

se como país industrial, desenvolve-se, moderniza-se, realizando sua transição rural-

urbana. Contudo, mantêm uma produção e uma atividade agrário-exportadora

importante, fruto da mecanização do trabalho agrícola. Essa política de crescimento e

modernização jogou para as periferias urbanas centenas de milhares de trabalhadores

que, expulsos das suas terras pela monocultura e pela pecuária, não tiveram outra

alternativa senão a do êxodo para tentar sobreviver.

Com todas essas movimentações e transformações, o populismo foi a forma

encontrada pelos governantes desse período para tentarem conciliar diferentes interesses

de classe. E mesmo que a liderança de um bloco de poder oligárquico-industrial tenha

pontificado, quase todo o tempo, o populismo possibilitou, em várias situações agudas,

um espaço político no qual a classe trabalhadora foi capaz de colocar suas

reivindicações e fazer valerem direitos conquistados no período do Estado Novo. Nesse

particular, o desenvolvimento das organizações de trabalhadores foi tamanho que, em

alguns momentos, ameaçou quebrar a camisa de força ideológica e política imposta pelo

próprio populismo.

Caracterizou-se o governo Dutra, nos seus primeiros dois anos, por uma

política econômica liberal tipo laissez-faire109, com redução da intervenção do Estado,

de forma a facilitar o acúmulo de capital à custa de baixos salários e expansão das

empresas estrangeiras, uma política que, para as características brasileiras de país

exportador de matérias-primas e produtos agrícolas, e de considerável importação de

manufaturados, esgotaram as divisas acumuladas no período varguista, notadamente no

período correspondente à Segunda Guerra Mundial (DREIFUSS, 1981).

O fracasso inicial da economia levou a que medidas de controle cambial,

associadas ao controle das importações, com priorização da compra de máquinas e

equipamentos industriais, elevassem o desempenho desse ramo da economia. A

atividade produziu impacto na região Sudeste, a mais desenvolvida nessa área. O

109 A expressão refere-se a uma ideologia econômica surgida no século XVIII, através de Montesquieu. Ele defendia a existência de mercado livre nas trocas comerciais internacionais, ao contrário do forte protecionismo baseado em elevadas tarifas alfandegárias, típicas do período do mescantilismo. Segundo esta teoria, que teve em Adam Smith um dos seus principais defensores – é dele a famosa teoria da mão invisível do mercado – o comércio internacional isento de impostos alfandegários traria maiores benefícios para as nações envolvidas do que a protecção da produção nacional. Autorizar a livre troca de mercadorias entre países, por permitir uma maior especialização da produção e o aumento das economias de escala, favoreceriam o melhor aproveitamento das vantagens comparativas de cada país e a economia mundial.

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governo investiu ainda num plano que previa o aperfeiçoamento da assistência estatal

nos setores de saúde, alimentação, transporte e energia.

Esse plano ficou conhecido pela sigla SALTE, numa alusão às letras iniciais

dos setores que queria atingir. Pode-se dizer que, no plano interno, o presidente

pretendeu acatar os objetivos de interesse da classe dominante. A burguesia nacional,

beneficiada pelo período getulista, fizera a sua acumulação primitiva de capital e

passara a querer participar mais de perto das decisões governamentais, obrigando o

governo a investir em questões que eram cruciais para o seu desenvolvimento e

proteção da sua mão-de-obra.

Abriram-se as portas da economia brasileira a inúmeras importações norte-

americanas de bens supérfluos e obsoletos, e a moeda foi desvalorizada, para tentar

evitar o crescimento excessivo das importações. A ala nacionalista do PCB fez cerrada

campanha contra o governo, obrigando-o a recuar, em algumas situações, no seu

entreguismo110. Por outro lado, as oligarquias industriais, a fim de garantir o acúmulo de

capitais, exigiram o congelamento do salário-mínimo, provocando seguidas greves.

Mais de 100 sindicatos sofreram intervenção governamental, com o intuito de encurralar

o movimento sindical e popular. Parte dessas intervenções era justificada ou imputada à

contaminação comunista naquelas instituições (DREIFUSS, 1981).

4.6 A saúde na redemocratização do país

Durante esse período em que se amplia a influência norte-americana no

país, o Brasil passa a copiar seus modelos. A educação e a formação técnica na área da

saúde podem ilustrar essa influência através da absorção do modelo flexneriano de

ensino médico e prática médica. Esse modelo prescrevia uma educação mecanicista e

biologicista, através da qual o organismo humano era concebido como uma máquina

biológica a ser decomposta em partes (órgãos e sistemas) para ser estudada e

110 Em termos da política externa, o general Dutra alinhou-se com os norte-americanos na Guerra Fria, enquadrando-se na divisão mundial entre os blocos capitalista e socialista. Isso levou ao rompimento das relações do país com a URSS, o que gerou como conseqüência a cassação do registro do PCB, sendo cassados os mandatos dos representantes eleitos pela sigla. Os comunistas, com essa medida, voltaram a agir novamente na ilegalidade.

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medicalizada. Fazia parte dessa concepção uma visão de saúde-doença que não

reconhecia outras causas que não as estritamente biológicas.

A atenção à saúde, por sua vez, era vista como um modelo assistencial de

caráter individual voltado para a medicalização crescente de novas situações

compreendidas, agora, como doença. Nessa linha de pensamento e ação, a assistência

individual deixava de lado aspectos da saúde-doença que tinham um caráter coletivo. O

hospital era o local de atendimento, e o especialista era o profissional que atendia nesse

estabelecimento, preocupando-se única e exclusivamente com os problemas da esfera

clínica. Era o modelo representacionista cartesiano e positivista dominando, cada vez

mais, as ciências biológicas.

Vivia-se o pós-armistício e, com ele, uma intensa reconstrução das nações

européias destruídas pela guerra. Havia uma intensa geração de novos conhecimentos

derivados das pesquisas científicas que sustentaram a guerra e que agora, em tempos de

paz, poderiam ser reconvertidos para os mais diversos campos de atuação da sociedade.

A área da saúde foi, assim, a destinatária de grande parte desse esforço, que

impulsionava e expandia o setor, servindo ao aumento cada vez maior da participação e

acumulação de capital na área da saúde111.

Durante o período acima mencionado, ganha corpo um intenso debate sobre

os custos econômicos das doenças como obstáculo ao desenvolvimento dos países. A

expansão agrícola e a produtividade do trabalho seriam as áreas mais afetadas pelas

doenças. A partir dessa idéia, institui-se que a saúde é um bem de valor econômico e

que investir no capital humano seria fundamental para o desenvolvimento e o

progresso, especialmente dos países subdesenvolvidos.

As idéias desenvolvimentistas tinham o seu foco voltado para a

industrialização, a modernização e a racionalidade do cálculo econômico. As discussões

sobre as relações entre doença e subdesenvolvimento ganham força, mesmo que a saúde

não ocupe mais o mesmo lugar no discurso civilizador quanto ocupara nas três

primeiras décadas do século XX. Para Lima, Fonseca e Hochman (2005), a visão da

doença como um limitante do desenvolvimento social era uma expressão do que se

111 Os países centrais que faziam o núcleo da guerra precisavam investir em novos medicamentos, novas técnicas de diagnóstico e tratamento. A guerra produzira feridos que precisavam ser recuperados rapidamente para os seus exércitos. Depois, durante a própria guerra e, especialmente depois com o seu final, restou uma grande quantidade de mutilados que precisava de alguma forma ser reabilitada tanto no sentido da sua saúde física, como mental e social. Era a inauguração e expansão de uma parte da indústria de artefatos e equipamentos médicos que passava a permitir procedimentos de substituição de partes do corpo perdidas ou deterioradas, por órteses e próteses.

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convencionou chamar otimismo sanitário vigente no cenário internacional do pós-

guerra. Propugnava-se o poder da ciência e da medicina em combater e mesmo erradicar, mediante novos recursos tecnológicos e terapêuticos – especialmente os inseticidas de ação residual, como o DDT, e os antibióticos e antimaláricos – as doenças infecto-contagiosas em todo o mundo (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005, p. 47).

Eles citam a mensagem do Presidente Eurico Gaspar Dutra, enviada ao

Congresso Nacional em 1949, para exemplificar a importância econômica da saúde e o

seu significado nos projetos de desenvolvimento. As condições sanitárias de um País circunscrevem-lhe rigidamente o desenvolvimento econômico-social. No caso do Brasil – onde talvez se processe, como já foi assinalado por inúmeros estudiosos, a maior experiência de adaptação da civilização européia a um ambiente tropical – a melhoria geral das condições sanitárias e o desenvolvimento econômico-social são, verdadeiramente, termos co-extensivos do mesmo problema, isto é, asseguração da possibilidade de progresso (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005, p. 48).

Nessa época, parte dos profissionais de saúde brasileiros – os médicos, em

particular – passaram a fazer formação nos EUA e na Europa, voltando especializados.

Assim, surgem novas especialidades e, depois, novas profissões, que vão resultar na

divisão social do trabalho na área da saúde. Tudo isso representava a tecnificação

precoce e crescente do ato médico, assim como toda uma ênfase na medicina curativa e

na sua potencialidade na acumulação de capital.

Já do ponto de vista da relação médico-paciente, o ato médico continuava a

sua tradição disciplinadora, autoritária e antidialogal. Os médicos concentravam-se nos

centros maiores e mais desenvolvidos, e a grande massa da população que estava fora

do mercado formal de trabalho – isso representava mais de 50% da população

economicamente ativa – mantinha-se fora do escopo de qualquer assistência medica

qualificada. Ou seja, fora do circuito produtivo, poucas mudanças haviam ocorrido na

atenção à saúde dos mais necessitados, que se espalhavam pelo interior do país. A

medicina mantinha-se como uma prática liberal, à disposição daqueles que pudessem

consumi-la, ou então era organizada em instituições filantrópicas nem sempre de grande

expressão ou alcance.

Nos grandes centros, o hospital de médio ou grande porte era o lócus por

excelência dos médicos especialistas, concentrando o atendimento de uma região e

colocando em segundo plano a organização de uma rede de saúde baseada em postos,

consultórios e ambulatórios, que poderiam funcionar com bem mais baixo custo. O

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hospital passa a ser um estabelecimento que concentra muitos equipamentos e diversas

especialidades médicas que exigem um consumo cada vez maior de medicamentos e

artefatos médicos. A estrutura e o funcionamento dos grandes hospitais atendem, assim,

às necessidades crescentes de uma florescente indústria farmacêutica e de equipamentos

médicos. É o chamado complexo médico-assistencial de natureza hospitalocêntrica, que

vai dominar a atenção à saúde durante quase todo o século XX.

A ideologia e a pedagogia que estavam implícitas na formulação flexneriana

eram adequadas para o momento mundial de guerra ideológica entre os mundos

capitalista e socialista ou mesmo para os ciclos de crise e dependência existentes nas

relações internas que envolviam o capitalismo central e o capitalismo periférico. O

modelo flexneriano servia bem aos interesses e mecanismos de controle e

disciplinamento social e da reprodução e manutenção da força de trabalho, tão

necessária numa sociedade em transição, de uma situação agrário-rural para uma outra

urbano-industrial112.

4.7 A saúde no segundo governo de Getúlio Vargas

Na sua volta ao poder, Vargas retoma as grandes obras do período do

Estado Novo. Segundo Dreifuss (1981), nessa segunda fase getulista, foi tentada uma

política nacionalista de desenvolvimento, que combinava empresas industriais estatais e

privadas. Pretendia o governo combinar crescimento econômico com democracia social,

em que interesses agrários, industriais e operários pudessem, de alguma forma,

conviver113. Isso significava um aparelho administrativo formulador de diretrizes

políticas livre da influência exclusiva das classes dominantes, capaz de apoiar a empresa

112 Mas, o modelo flexneriano por si só não dava conta das modificações que estavam se operando na prática médica, enquanto prática assistencial. É preciso entender o movimento da saúde pública que criou o modelo dos Serviços Especiais de Saúde Pública (SESP). Vale a pena ainda fazer-se menção ao desenvolvimento da sociologia médica que analisava a conexão entre prática médica e trabalho, no contexto de desenvolvimento do capitalismo e ao modelo da Saúde Ocupacional, questões já apresentadas. 113 Nesse segundo governo, de certa forma repetindo uma linha já assumida no primeiro governo, Getúlio Vargas concebe a Educação como um dos motores do desenvolvimento urbano e rural. Neste sentido, já a partir de 1951 são criados “Centros de Iniciação Profissional” na zona urbana e no ano seguinte (1952) a Campanha Nacional e Educação Rural (CNER) que desenvolveu uma metodologia toda voltada para a educação comunitária.

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nacional e limitar os interesses multinacionais. Na esteira das grandes obras, vale a pena

ressaltar a controvertida criação da Petrobrás, depois de uma grande campanha

nacionalista que envolveu praticamente todos os setores sociais, ficando conhecida pelo

slogan o petróleo é nosso.

Esse novo governo de Getúlio Vargas pode ser caracterizado por três

períodos mais ou menos distintos: a primeira fase, que vai até o meio de 1953, quando o

governo admite uma forte presença industrial, leva a cabo uma política de controle da

inflação que fracassa e procura, de forma entusiasmada, a ajuda financeira do capital

americano, que não se concretiza.

A segunda fase começou na segunda metade desse mesmo ano, após uma

reforma ministerial. Vargas tenta atrair com relativo sucesso os diversos setores da

classe trabalhadora, numa polarização político-ideológica em torno de assuntos

nacionalistas e trabalhistas. Nesse movimento, passa a contar com a antipatia do

exército, do empresariado e de setores conservadores, especialmente os ligados à UDN.

A terceira fase diz respeito à forte pressão militar, empresarial e americana,

sofrida pelo governo, as quais tiveram como palco a imprensa, principalmente a do Rio

de Janeiro, centro nervoso e capital da República, e o Congresso Nacional, locus onde

passaram a se expressar com veemência todas as forças de oposição comandadas por

Carlos Lacerda, liderança da UDN.

Nessas condições, o país passa por uma grande efervescência política, com a

oposição exigindo a renúncia de Getúlio, fundamentada em seguidos fatos políticos,

criados com o intuito de incriminar o presidente e o seu governo em casos de desvios de

verbas e atos de corrupção. A pressão é enorme, a ponto de um golpe ser engendrado, e

o presidente, sob forte pressão e emoção, suicidar-se, dando uma resposta ambígua para

a continuidade política brasileira. O país passa por um período relativamente longo de

dezesseis meses de instabilidade política, só vencida com a posse de Juscelino

Kubitschek, em 1956, a partir de eleições realizadas em 1955.

Convém destacar, nesse segundo mandato de Getúlio, a criação do

Ministério da Saúde, visto que a estrutura de saúde se complexificava com a criação de

várias estruturas de campanhas de saúde pública, uma para cada endemia importante.

Essas estruturas geravam um aumento exorbitante dos custos que sustentavam o

sanitarismo campanhista e a necessidade de se reverem os conhecimentos e métodos de

atuação nessa área de atenção. É nessa conjuntura que as ações do SESP passaram a ser

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ampliadas, perdendo aquela característica original de apenas fazer o caminho da

borracha, próprio do período da segunda guerra mundial.

As ações de saúde pública do SESP se expandem bastante em relação aos

seus métodos de trabalho, passando esse órgão a adotar práticas mais voltadas para o

estudo dos modos de transmissão das doenças, ações de vigilância epidemiológica e

incorporação do social como um dos fatores condicionantes das doenças. Essa mudança

de eixo, mais compatível com a ideologia desenvolvimentista que começava a ser

introduzida na América Latina, seria responsável futuramente por uma troca não apenas

semântica na designação do sanitarismo praticado. Ao invés de campanhista, a

designação de sanitarismo desenvolvimentista passou a ser mais adequada.

Para Lima, Fonseca e Hochman (2005), isso não quer dizer que houvesse

consenso nos debates internos desse novo sanitarismo. Ao contrário, havia diferentes

abordagens na análise das relações entre saúde e bem-estar econômico no sanitarismo

desenvolvimentista. A primeira tensão era relativa à causa do subdesenvolvimento.

Havia um grupo hegemônico que acreditava no controle ou na erradicação das doenças

infecciosas como pré-requisito para o desenvolvimento e outro defensor da idéia de que,

embora o controle das doenças fosse necessário, era o desenvolvimento econômico-

social que criaria as condições definitivas para a melhoria da saúde. Esse grupo

apresentava uma premissa bastante sedutora, do ponto de vista da racionalidade

econômica, ao sustentar que a doença e a miséria não seriam controladas por meio de

maiores gastos em serviços de saúde, mas sim, com um maior desenvolvimento

econômico que levasse à melhoria das suas condições de vida.

Havia outra questão que dividia esses dois grupos: a forma de organização

dos processos de controle das doenças. A corrente hegemônica era da concepção de que

as campanhas deveriam ser dirigidas verticalmente contra cada doença específica e

imposta de fora a moda da tradição. Já a corrente contra-hegemônica concebia que as

campanhas contra as doenças deveriam ser organizadas horizontalmente, em relação ao

conjunto das doenças, e envolver a promoção de condições básicas de infra-estrutura

sanitária.

Esses autores defendem que a dinâmica da sociedade brasileira,

principalmente na década de 50, possibilitou o desenvolvimento dessas visões distintas

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da relação saúde-desenvolvimento e a formulação de novas propostas de mudanças nas

políticas de saúde, feitas pelos sanitaristas desenvolvimentistas114. Em discursos de 1955, por exemplo, o ministro da saúde do governo Café Filho, Aramys Athayde, já defendia abertamente a idéia da saúde como questão de superestrutura, isto é, não como causa do desenvolvimento econômico e social, mas uma conseqüência dele (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005, p. 54).

Pelo lado da assistência médico-previdenciária, os IAP´s passaram a ter

cada vez mais contribuintes, frutos do reforço de novos institutos criados por conta da

expansão econômica e da organização dos trabalhadores em busca de proteção e

assistência médica. Continuava e se aprofundava, entretanto, a diversidade de poder

econômico e político dos IAP´s, sendo que a maioria deles não prestava serviços de

qualidade para os seus contribuintes, enquanto uma minoria, mais organizada

politicamente e mais poderosa economicamente, oferecia serviços melhores, chegando

ao ponto de construírem os seus próprios hospitais, seguindo o receituário flexneriano.

Essa situação, como já comentado na análise do primeiro período getulista, era um fator

de dissensão entre os próprios trabalhadores, que assumiam um viés cada vez mais

corporativo. Porém, mesmo com tudo isso, as ações de saúde pública continuavam

predominando sobre a assistência médica individual.

O governo, que cada vez mais aumentava o seu poder na administração dos

IAP´s, começava a acenar para a possibilidade de unificação desses num único Instituto,

como forma de vencer as insatisfações dos trabalhadores que, por sua vez, temiam,

principalmente aqueles mais organizados e com melhores serviços, que as ações do

novo órgão de assistência médica previdenciária fossem niveladas por baixo. Muitas

empresas não estavam satisfeitas com a assistência dos IAP´s. Essa insatisfação fez

surgir mais uma idéia que facilitava a intervenção capitalista no setor: a da criação de

empresas especializadas na prestação de serviços privados para trabalhadores e

empresas. Eram as empresas de Medicina de Grupo chegando com o embrião da

assistência e previdência privadas.

114 Há vários exemplos da coexistência das duas correntes no seio do movimento sanitário e até mesmo dentro de uma mesma instituição. Um deles foi protagonizado por dois médicos do SESP, Marcolino Candau e Ernani Braga, que durante do VII Congresso Brasileiro de Higiene de 1948, defenderam a posição de não separação entre ações preventivas e curativas nas ações de saúde. Outras críticas podem ser exemplificadas, principalmente as referentes à centralização das ações de saúde e a defesa da ampliação dos municípios e a necessidade de melhor aparelhar os serviços sanitários, especialmente nas áreas rurais.

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4.8 A política e a saúde: do pós-Getúlio à ditadura militar

Segundo D´Araújo (2002), ao fim do segundo governo de Getúlio Vargas, o

país havia experimentado um conjunto de mudanças estruturais, que ocorreram com

maior velocidade a partir dos anos trinta. Essas mudanças diziam respeito às bases do

desenvolvimento, ao modelo econômico adotado, à ênfase na industrialização orientada

pelo Estado, à liberalização política e ao controle social e sindical. Nos anos 30 e 40, o

país fez a passagem do mundo rural para o mundo urbano industrial, trazendo profundas

repercussões em vários aspectos da vida do país. Uma das mais importantes, do ponto

de vista político, foi a emergência do populismo como recurso de poder, tanto para

grupos ou tendências conservadoras e autoritárias, quanto para tendências

revolucionárias ou democráticas, e a incorporação ao processo político de toda a

população alfabetizada maior de 18 anos. A urbanização cresceu de forma acelerada,

facilitando a expansão desordenada das cidades. O Brasil vivia o seu chamado processo

de modernização política e econômica e sofria todos os impactos, positivos e negativos,

daí decorrentes.

O governo Kubitschek115, o primeiro eleito pelo voto após o suicídio de

Getúlio Vargas, caracterizou-se pela consolidação da industrialização brasileira, pelos

avanços no desenvolvimento nacional e por uma boa dose de negociação política para

manter o poder. O seu programa de governo tinha como estratégia o desenvolvimento e

o progresso nacionais, retratados num lema triunfalista que prometia cinqüenta anos de

progresso em cinco anos de governo. O Plano de Metas116 lançado abrangia os setores

115 O governo de Juscelino Kubitschek foi beneficiado por um aparato tecno-burocrático estatal, que veio sendo montado desde os governos anteriores, principalmente nos dois governos Vargas; isso foi fundamental para o desenvolvimento do seu governo. Assim, valeu-se do planejamento que já vinha sendo implantado na administração governamental desde os anos 30 e da estrutura técnica que o país formou e acumulou nesse período. Juntando-se o aparato herdado à grande capacidade de diálogo e negociação política do presidente, e mais uma equipe coesa, o governo soube construir a devida legitimidade política para as suas ações ao prestigiar as instituições representativas da sociedade brasileira de sua época, inclusive as instituições militares, que, desde o início da República, de uma forma ou de outra, estiveram na cena política. Especificamente em relação aos militares, Germano (1993) destaca na sua obra: Estado militar e educação no Brasil (1964-1985) que são raros os momentos da história republicana brasileira em que estes não estiveram no centro das decisões políticas, quer seja como protagonistas, casos da própria proclamação da República, primeiros governos republicanos e durante o golpe e ditadura militar ou como coadjuvante, ora dando sustentação a movimentos políticos e governos civis, ora conspirando e agindo em levantes e processos de natureza revolucionária ou golpista contra esses mesmo governos. 116 Na visão de Dreifuss (1981), o resultado das diretrizes políticas do Plano de Metas de Juscelino foi extraordinário, pois indústrias que em 1949 importavam mais da metade de seu estoque tornaram-se centros-chave de crescimento para os setores industriais. Considerando-se o crescimento entre 1949 e

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de energia, transporte, alimentação, indústria de base e educação. Era composto por uma

lista de diretrizes – trinta ao todo, se excetuada a construção da nova capital federal,

eleita como diretriz síntese – que detalhava os setores já citados e se inspirava, entre

outros, nos estudos sócio-econômicos da CEPAL – Comissão Econômica para a

América Latina117.

Ainda no plano da economia, criou-se a SUDENE118 – Superintendência de

Desenvolvimento do Nordeste - para combater o flagelo das secas nordestinas numa

área denominada de polígono das secas, que abrangia, além dos nove estados

nordestinos, parte do território do estado de Minas Gerais (norte de Minas) e o

Território de Fernando de Noronha. Por outro lado, ao eleger como meta síntese do seu

Plano de Metas a construção de Brasília, deu o passo decisivo para a integração da

região central do Brasil ao contexto nacional.

Na perspectiva da Educação, uma das prioridades do Plano de Metas, é

criado o SIRENA (Serviço Rádio-Educativo Nacional), em 1957. Assinalam-se os

congressos e encontros sobre educação, que jogaram um papel importante na discussão

e avaliação das políticas educacionais postas em prática, especialmente com os ventos

desenvolvimentistas que caracterizaram o governo Kubitscheck, em que eram travadas

discussões para o delineamento de lutas por uma política educacional que resgatasse a

dívida histórica com a cultura e a educação do povo, mas que desse conta da conjuntura

vivida e das repercussões das políticas de desenvolvimento sobre a população. Um

exemplo disso foi o IIº Congresso Nacional de Educação de Adultos, em 1958, que

buscou novas diretrizes para a educação de adultos. Lá foram discutidas questões como

1962, e lembrando-se de que a segunda metade desse período corresponde ao governo de Juscelino, o setor das indústrias químicas respondeu por 14,8% do crescimento total do período, o setor de transportes, por 14,4%, o de metais, por 11,3%, a industrialização de alimentos, por 10,8% e a indústria têxtil, por com 8,9%. A quota de crescimento total da produção das multinacionais foi estimada em 35,5%, considerando-se a expansão da indústria manufatureira e 42% do crescimento das indústrias de substituição de importações. 117 A CEPAL foi criada pela Organização das Nações Unidas em 1948 para, entre outros objetivos, analisar as diversas políticas econômicas implantadas pelos governos latino-americanos, com o intuito de obter financiamentos públicos externos junto a estabelecimentos bancários dos Estados Unidos. Mas, aos poucos, tornou-se o grande pólo de uma importante reflexão sobre as estruturas econômicas e sociais do continente. A CEPAL foi uma grande “usina” de estudos e pesquisas impulsionadoras de políticas públicas para o conjunto dos países da América Latina. 118 Além dos objetivos diretamente relacionados com o combate à seca e o desenvolvimento do Nordeste, a Sudene também acabou tendo como propósito o esvaziamento das Ligas Camponesas, um movimento não governamental que tinha como objetivos a luta pela posse da terra e a reforma agrária, numa resposta a situação de opressão vivida pelos agricultores nordestinos que trabalhavam na agricultura de subsistência e que vinham sendo expulsos da terra que, aos poucos, dava lugar às monoculturas, principalmente da cana-de-açúcar, e a pecuária para criação de gado de leite e de corte.

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a importância do ler e do escrever, mas, também, a formação técnica profissional bem

como a compreensão dos valores espirituais, políticos e morais da cultura brasileira.

Fez-se toda uma discussão sobre a necessidade de se superar um grande

preconceito que o país desenvolvia contra os analfabetos. É nessa época em que começa

o movimento em favor do voto do analfabeto e movimentos voltados para a cultura e o

saber popular e a valorização das expressões artísticas do povo. Ganha relevo o sistema

de educação concebido por Paulo Freire, desenvolvido a partir do conceito

antropológico de cultura, cuja difusão será de fundamental importância para formar uma

nova imagem do analfabeto e da sua contribuição como homem culto, produtivo e

responsável por grande parte da riqueza do país. A valorização das formas de expressão cultural do homem do povo e o estímulo ao desenvolvimento de sua capacidade de criação funcionava no MCP, como a própria condição de diálogo entre a intelectualidade e o povo; partia-se da arte para chegar à análise e à crítica da realidade social [...] tratava-se de integrar o educando à vida cultural e política do país e de apresentar a ele uma perspectiva de melhoria de vida, organizando programas de formação profissional. [...] Os meios informais de educação eram, por isso mesmo, essenciais ao trabalho do movimento. (PAIVA, 1983, p. 237-238)

Entre as iniciativas de grande peso do sistema Paulo Freire, pode-se falar do

potencial alfabetizador representado pela campanha “De pé no chão também se aprende

a ler”, grande oficina que lançou e consolidou o método Paulo Freire. Ainda na

perspectiva da cultura, é importante fazer menção ao trabalho não apenas de Paulo

Freire e dos seus círculos de cultura, que integrava e conscientizava o pobre e as

camadas populares da população, mas, e sobretudo, a um grande trabalho dos estudantes

secundaristas e universitários em torno da União Nacional dos Estudantes (UNE),

através dos Centros Populares de Cultura (os famosos CPC´s da UNE), interiorizando a

discussão e as expressões da cultura popular, através do teatro, da dança, do cinema, da

literatura, do rádio e da televisão. Esses dois movimentos tiveram o seu auge no período

conturbado do governo Jango (62-64), que caracterizou o pré e pós-imediato do Golpe

Militar, no Brasil. Os CPC´s, assim como o Movimento de Cultura Popular (MCP),

formaram um contingente muito grande de pessoas e contribuíram sobremaneira para

evolução da consciência política dos brasileiros com as suas movimentações e pela

participação ativa em todos os eventos que discutiam e avaliavam a educação e a cultura

do povo brasileiro.

O governo Kubitschek, segundo Dreifuss (1981), soube capitalizar os

recursos que o país possuía para, dentro de uma visão estadocêntrica de

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desenvolvimento, predominante na época, fazer progredirem praticamente todas as

regiões do país. Mas, pelo seu pioneirismo e arrojo e, principalmente, pelo elevado

número de frentes e contingentes populacionais que mobilizou, abriu espaço para um

contraditório processo de improvisação no nível da programação que o fez descuidar de

uma pauta estratégica que elevasse o Brasil a um patamar de desenvolvimento humano

compatível com o dinamismo e a efetividade da máquina estatal, do parque industrial e

da expansão de serviços que pretendeu empreender. O país, sob Juscelino, acumulou

avanços no seu desenvolvimento industrial e econômico inequívocos, fez, inclusive,

crescer o emprego, mas não atentou o suficiente para a injustiça social plasmada por

uma política, em cujas bases fundamentais ampliou a desigualdade ao não prever uma

política que introduzisse metas e mecanismos seguros de redistribuição da riqueza119.

O final do governo Kubitschek, segundo o mesmo autor, deixou claro o

esgotamento do modelo desenvolvimentista empregado. Colocava-se em prática uma

política de adiamento dos problemas, ou seja, deixava-se taticamente para a

administração seguinte os problemas que se acumulavam sem ser resolvidos. Dreifuss

(1981) confirma essa assertiva nas seguintes palavras: O adiamento estratégico consistia em ter conseguido uma trégua com os setores rurais reacionários enquanto permitia um crescente desequilíbrio entre os sistemas urbano-industrial e rural-agrícola, aumentando a desigualdade no resto do país. O adiamento estratégico permitia também que as instituições políticas continuassem a funcionar, principalmente através da política de clientela, obscurecendo o próprio sentido dos partidos políticos e deixando-os inoperantes e incapazes de obter uma coerência em seus programas (DREIFUSS, 1981, p. 37)

O governo seguinte, o de Jânio Quadros, herdara um país em acelerado

processo de concentração de renda e de alta da inflação, crescentes demandas

nacionalistas e reformistas pressionando o executivo, e um congresso dividido, em

parte, representando interesses regionais e locais, em contraposição a crescentes

interesses do capital multinacional instalados no parlamento, que pretendiam o controle

119 Há na obra deste autor, a reprodução de um depoimento de Roberto Campos onde ele expõe, ainda em 1955, o que seria a encruzilhada em que envolveria a base lógica do período de Juscelino Kubitschek: “optar pelo desenvolvimento implica a aceitação da idéia de que é mais importante maximizar o índice de desenvolvimento econômico do que corrigir desigualdades sociais. Se o ritmo de desenvolvimento for rápido, a desigualdade pode ser tolerada e controlada com o tempo. Se o ritmo de desenvolvimento cair em decorrência de incentivos inadequados, praticar a justiça distributiva transforma-se em participação na pobreza. Obviamente isso não quer dizer que se deva deixar sem controle os instintos predatórios que ocasionalmente se acham presentes em certos setores capitalistas. Isso significa meramente, dentro do nosso estágio de evolução cultural, que a preservação de incentivos para o crescimento da produção deve ter prioridade sobre medidas que visem a sua redistribuição” (SKIDMORE, 1967, apud DREIFUSS, 1981, p. 46).

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das ações estatais. Nessa constelação de problemas políticos e econômicos, para tentar

um equilíbrio que lhe permitisse governar, o presidente assumiu, cedendo aos interesses

internacionais e, numa manobra de tipo bonapartista civil120, adotou uma política

econômica de austeridade ditada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que

restringia o crédito e congelava os salários (DREIFUSS, 1981; JAGUARIBE, 1969).

Assim, obteve novos empréstimos internacionais e passou a tomar uma série de medidas

no plano interno e externo, todas controversas, que mais serviram de chacotas do que

tiveram efeito prático. Além do mais, a inflação não foi vencida. O conjunto de todas as

medidas tomadas desagradou e trouxe insatisfação a todos os setores da política

nacional, levando o presidente à renúncia, movido por “forças terríveis”, como escreve

em sua carta renúncia. Essa renúncia causou pronta reação de setores reacionários,

especialmente das organizações militares, que não desejavam a posse do seu vice, João

Goulart, tido como um político esquerdista121.

O governo de João Goulart foi marcado pelo confronto entre diferentes

políticas econômicas, conflitos sociais e greves urbanas e rurais. Em função da primeira

fase parlamentarista, é normalmente dividido em dois períodos: o parlamentarista, que

vai da posse em 1961 até janeiro de 1963, e o presidencialista, que vai de janeiro de

1963 ao Golpe de 1964. O período parlamentarista foi marcado pela luta do presidente

para derrubar o parlamentarismo122, visto que o regime tinha sido adotado de maneira

completamente casuística para evitar que tomasse posse com plenos poderes de

presidente.

Analisando-se do ponto de vista da economia e do planejamento, João

Goulart realizou um governo pleno de contradições e que refletiu as dificuldades de

composição política que enfrentava. Propôs um Plano Trienal de Desenvolvimento 120 Uma análise do bonapartismo janista pode ser vista em JAGUARIBE, H. – Desenvolvimento econômico e desenvolvimento político: uma abordagem teórica e um estudo do caso brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969; 121 A crise só foi contornada graças às movimentações de setores sociais e políticos que defenderam com rigor a democracia. E às negociações no congresso nacional que, via emenda constitucional, mudaram o regime de governo de presidencialista para parlamentarista, o que pelo menos preservava o jogo democrático. Considerando-se as movimentações sociais e políticas, Leonel Brisola, então governador do Rio Grande do Sul, teve um papel de destaque no episódio quando atuou nos meios de comunicação liderando o que ficou conhecido como a cadeia da legalidade, uma rede de emissoras de radio que conclamava a sociedade a se manifestar em favor da manutenção da ordem jurídica que significava a normalidade democrática e a assunção do vice-presidente João Goulart ao poder, em função da renúncia de Jânio Quadros. 122 Jango era visto pelos militares como um esquerdista perigoso. O veto militar funcionou e o parlamentarismo foi adotado. Porém, em seu primeiro discurso perante o Congresso, afirmou que iria trabalhar para o retorno do presidencialismo. Conseguiu o seu intento através de um plebiscito que restaurou o presidencialismo com aproximadamente 80% de votos que lhe deram os plenos poderes de presidente, a partir de 1963.

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Econômico e Social, elaborado pelo ministro do planejamento, Celso Furtado, que

explicitava o projeto de Goulart no poder. O Plano defendia a realização das chamadas

reformas de base. Isso incluía as reformas agrária, fiscal, educacional, bancária e

eleitoral, mas patinou praticamente durante todo o período em que Goulart permaneceu

no poder e não chegou a se efetivar, mesmo que essas reformas fossem necessárias ao

desenvolvimento do capitalismo nacional e progressista, que pretendeu empreender no

seu governo.

O anúncio dessas reformas, depois de restituído o presidencialismo,

aumentou a oposição ao governo e acentuou a polarização da sociedade brasileira. O

governo perdeu suas bases na burguesia. Diante desse fato, procurou estreitar alianças

com o movimento sindical e setores nacional-reformistas e, paralelamente, tentou

implementar uma política de estabilização baseada na contenção salarial. O Plano

Trienal, que tinha por objetivo manter as taxas de crescimento da economia e reduzir a

inflação - condições exigidas pelo FMI e que seriam indispensáveis para a obtenção de

novos empréstimos para a renegociação da dívida externa e para a elevação do nível de

investimento - fez água, dada a instabilidade das alianças conseguidas e das concessões

que o presidente terminou fazendo, colocando em conflito os seus próprios ministros,

ou seja, o seu próprio governo.

Perdendo o apoio da burguesia nacionalista e reformista e tentando evitar o

isolamento político, reforçou alianças com correntes à esquerda, lideradas por Leonel

Brizola, então deputado federal, e Miguel Arraes, governador de Pernambuco, que

também desejavam as reformas. Buscou os estudantes, através da União Nacional dos

Estudantes – UNE – que, naquele momento histórico, participavam ativamente da

política nacional e tinham uma boa capacidade de mobilização de setores populares e

médios do país, e o Partido Comunista Brasileiro que, embora na ilegalidade, mantinha

forte atuação nos movimentos popular e sindical. Mas, mesmo com todos esses apoios

e, talvez, devido a eles, teve que abandonar o seu Plano Trienal em meados de 1963,

ainda que continuasse a implementar medidas de caráter nacionalista, tais como: a

limitação da remessa de capital para o exterior, a nacionalização de empresas de

comunicação e a revisão das concessões para exploração de minérios123.

123 As alianças à esquerda e as medidas tomadas pelo governo, provocaram retaliações estrangeiras quase que imediatas. A partir delas, o governo e empresas privadas norte-americanas cortaram o crédito para o Brasil e interromperam a negociação da dívida externa que estava em andamento, fazendo naufragar os planos do governo, que dependiam em grande parte desses financiamentos.

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Considerando-se a questão da Educação, é importante fazer menção à

experiência do MEB124 (Movimento de Educação de Base), proposta pela CNBB e

executada em convênio com o governo federal já a partir de 1961, com a eleição de

Jânio Quadros. O MEB teria a função de atuar usando sistemas radiofônicos

endereçados principalmente à população rural. Foi nesse período em que se deu a

promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), depois de 13 anos de

discussões, e a organização do Plano Nacional de Educação.

É importante registrar que, após o seu primeiro ano de funcionamento, o

MEB passou a ter uma forte influência da esquerda católica, principalmente

representada pela Juventude Universitária Católica (JUC). Por esse motivo, perdeu um

pouco do seu modelo inicial mais técnico para se tornar uma estratégia político-

ideológica mais ampla. Esse se assume, portanto, como movimento de cultura popular e

adota uma metodologia que transcende a mera organização de escolas radiofônicas.

Mas a educação no governo João Goulart não pode ser discutida sem se

levar em consideração aquele que, talvez, seja a síntese de uma pedagogia/filosofia que

traz a possibilidade de libertação do homem do ser objeto da educação para transformá-

lo no ser sujeito da sua própria educação, através da tomada de consciência de que,

como homem, é criador e ao mesmo tempo criatura de/do conhecimento e, como tal,

assimilador/disseminador desse mesmo conhecimento: o educador Paulo Freire. A sua

pedagogia centrou-se especialmente na alfabetização e educação de adultos e percorreu

o Brasil e toda a América Latina para, depois, ganhar o mundo. A máxima da sua

filosofia educativa era de que todo ato educativo é, antes de tudo, um ato político e foi

justamente essa a idéia que pretendeu universalizar.

Apesar de muito se falar de um método Paulo Freire e de se alardearem os

itens que compõem esse método, o próprio educador não reconhece ter criado um

método de ensino ou de alfabetização. Reconhece que sistematizou uma filosofia da

educação que, absorvendo conteúdos de várias áreas de conhecimento, como a

comunicação, a psicologia, a antropologia e a didática, caracteriza-se por partir do

universo do educando, suas experiências e conhecimentos adquiridos na trajetória de

vida. 124 O MEB torna-se importante, particularmente para o Nordeste, para onde foi direcionado, e especialmente para a Paraíba que respondeu de forma muito afirmativa com o SIREPA (Serviço de Rádio-difusão da Paraíba), uma iniciativa do governo do estado inspirada pelo Sistema SIRENA. Este sistema funcionava com professores, supervisores, locutores e pessoal de apoio e tinha a cooperação das rádios ligadas às dioceses. Havia ainda monitores nas comunidades que acompanhavam as atividades presenciais do programa. Todo o pessoal recebia treinamento para o desempenho de suas funções.

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Por isso, sua metodologia dispensa as tradicionais cartilhas ou livros

didáticos para se transformar num exercício dialógico em que o material didático é co-

produzido na relação educador/educando, registrando o conhecimento por ambos

mobilizado. O ambiente do início da década de 1960 foi propício ao seu

desenvolvimento, e o governo Goulart, um absorvedor dessa metodologia. O golpe de

1964 levou Paulo Freire ao exílio e à proibição da reprodução da sua metodologia no

país, apesar de seus livros continuarem a ser editados e vendidos livremente.

A situação de desorganização da economia, a decretação da nacionalização

das refinarias de petróleo, que se encontrava em mãos privadas e de grupos

multinacionais, e a desapropriação, para efeito de reforma agrária, de propriedades às

margens de ferrovias, rodovias e zonas de irrigação de açudes públicos, num comício

que juntou em torno de 300 mil pessoas, no Rio de Janeiro, em apoio ao governo,

acendeu o estopim de uma crise definitiva. O país ficou dividido, e o enfrentamento

reduzido a questões ideológicas do tipo esquerda/direita ou comunistas/anticomunistas,

situação meticulosamente trabalhada pelos setores conservadores da Igreja Católica e

demais setores reacionários organizados que, a essa altura, satanizavam os setores

progressistas e nacionalistas e espalhavam o terror no meio da população, prevendo uma

suposta e iminente revolução comunista no país.

Essa movimentação produziu a Marcha da Família com Deus pela

Liberdade, manifestação que reuniu cerca de 400 mil pessoas em São Paulo e que

forneceu o apoio político necessário para a derrubada do Presidente. Tanto que, no dia

31 de março de 1964, iniciou-se o verdadeiro movimento para o golpe que, no dia

seguinte, depois de se fortalecer com o apoio dos diversos comandos militares

regionais, perpetrou o ato de deposição de João Goulart e o mergulho do país na maior

ditadura militar que já se conheceu.

Estudiosos como Lima, Fonseca e Hochman (2005) afirmam que, apesar da

hegemonia de um dado modelo sanitarista, durante as décadas de 40 e 50, que evoluiu

em face do desenvolvimentismo, havia, no final dos anos 50, uma disputa de projetos

político-sanitários bem diversos. Essa disputa foi se acirrando à medida que avançou o

período democrático, com a radicalização das lutas por reformas sociais de base. Nesse

sentido, consideram a 3ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1963, um evento

definitivo da saúde na experiência democrática e apresentam um fragmento do discurso

de João Goulart na abertura da 3ªCNS, como revelador das mudanças que se iniciavam:

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[...] a política que o Ministério da Saúde deseja implementar na orientação das atividades médico-sanitárias do País se enquadra precisamente dentro da filosofia de que a saúde da população brasileira será uma conseqüência do processo de desenvolvimento econômico nacional, mas que para ajudar nesse processo o Ministério da Saúde deve dar uma grande contribuição, incorporando os municípios do País em uma rede básica de serviços médico-sanitários (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005, p. 54).

Labra (1988), caminhando na mesma direção, confirma a posição desses

autores e acrescenta que o Plano Trienal do Governo Goulart e o XV Congresso

Brasileiro de Higiene de 1962, em que sanitaristas desenvolvimentistas conquistaram o

comando da Sociedade Brasileira de Higiene, pautaram o evento e conseguiram colocar

em discussão questões polêmicas, como as responsabilidades dos entes federativos, a

avaliação crítica da realidade sanitária do País e uma posição favorável à

municipalização de ações.

Os parágrafos acima expressam as mudanças de concepção e de estratégia

política que se iniciavam no âmbito da saúde pública, orientada pela descentralização,

pela horizontalização das ações, pela integração das ações de saúde, pela ampliação dos

serviços e pela articulação com reformas sociais. De tal forma que, nos primeiros anos

da década de sessenta, conformaram-se pelo menos dois grandes campos no âmbito da

saúde pública: um conservador modernizador e outro transformador. O Golpe de 64

silenciou este último.

Saindo do âmbito da Saúde Pública e indo para a assistência médico-

previdenciária, temos que esta experimentou, a partir dos anos quarenta, fruto da

realidade social do país, um aumento significativo da participação na economia da

Previdência Social, pela progressiva demanda por atenção médica que incidiu sobre

todos os IAP´s. Isso pode ser explicado pelo desenvolvimento industrial, pela

conseqüente aceleração da urbanização e o assalariamento de parcelas cada vez

crescentes da população, maior número de pessoas contribuindo e, conseqüentemente,

maior pressão pela assistência médica via atenção médico-previdenciária. Esse período

foi marcado pela tensão entre a manutenção de uma estrutura de privilégios e a

necessidade de extensão dos direitos sociais. Essa tensão ocorreu não apenas entre as

categorias profissionais privilegiadas – bancários, industriários, comerciários,

funcionários públicos – que apresentavam diferenças entre si, mas também entre elas e o

restante da população que estava à margem dos direitos de cidadania.

O debate em torno da necessidade ou não de se unificarem os benefícios da

previdência foi uma constante nesse período, mas os movimentos pela unificação,

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esboçados pela burocracia estatal, sempre sofreram forte resistência por parte dos

representantes da classe trabalhadora privilegiada e da própria burocracia dos IAPs, que

já se constituíra num poder paralelo com força política e eleitoral. Dessa forma, somente

em 1960 é promulgada a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), versão bastante

modificada do Projeto original apresentado em 1947, no Congresso Nacional. Essa

promulgação unificou os benefícios dos previdenciários dos IAP´s.

Segundo Santos (1998), dessa forma, a política social fica mais

explicitamente vinculada à política de acumulação, pois todo o problema governamental

consistia em conciliar uma política de acumulação que não exacerbasse as iniqüidades

sociais a ponto de torná-las ameaçadoras e uma política voltada para o ideal de eqüidade

que não comprometesse – e se possível ajudasse – o esforço de acumulação. Foi devido

a essa estratégia que, mesmo com a Lei, permaneceram desassistidos de qualquer

atenção pública os contingentes de trabalhadores rurais, de autônomos e de empregadas

domésticas, pois, além da diferenciação social e do peso no processo acumulativo de

uma categoria profissional, era necessário algum grau de mobilização social, o que não

era o caso, naquele momento, dessas categorias.

Assim, pensando o campo da saúde no seu conjunto, os movimentos pela

melhoria da qualidade de vida e saúde, nas décadas de 1940, 1950 e no início dos anos

1960, foram marcados pelo acirramento da pressão por expansão dos benefícios, em

função do crescimento da massa de assalariados urbanos e da sua organização e força

política, e pela tensão gerada em torno da isonomia de direitos dos beneficiários, as

quais não foram plenamente equalizadas pelo governo, como bem analisa o autor.

Já do ponto de vista institucional, um importante evento marcou esse

período: a criação do MS em 1953. No entanto, esse fato significativo conviveu já no

seu nascedouro com uma contradição: o sistema de saúde aprofundava-se numa política

em que prevalecia a dicotomia entre assistência médica e saúde pública, com uma

crescente inversão dos gastos em favor da primeira que, inclusive, continuaria sob os

auspícios de outro ministério.

Foi esse um período quando se começou a exigir outra postura do

profissional médico ao assimilá-lo como mão-de-obra assalariada dos Institutos ou da

Medicina de Grupo e seus planos de saúde, que emergiram de forma intensa no período

seguinte. A massificação do trabalho médico e a sua especialização serviram à extensão

de cobertura de cuidados de saúde, mas, paradoxalmente ao que se pretendia, contribuiu

para maior distanciamento da relação médico-paciente. Mas, por que isso aconteceu e

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quais as conseqüências desse movimento para a população usuária dos serviços e para

os médicos e sua prática?

A extensão da cobertura assistencial fez-se dentro de uma lógica

empresarial. Os Institutos, verdadeiras empresas estatais, organizavam os serviços

médicos dentro da lógica da oferta e da procura, dentro dos seus limites financeiros. E a

depender do momento econômico, trabalhava-se, inclusive, com repressão da demanda

de serviços e racionalização da oferta. Os mais saudáveis econômica e

administrativamente, ou seja, os mais organizados, conseguiam alguma eficiência, mas,

por outro lado, apresentavam pouca eficácia em termos da saúde dos usuários. Essa

mecânica assistencial constituiu a base do assalariamento da classe médica e trouxe

repercussões negativas para a prática médica.

O assalariamento impôs a diminuição relativa dos seus honorários ao

mesmo tempo em que passou a cobrar-lhes produtividade na forma de uma quota

mínima diária de consultas em função do aumento da demanda de pacientes125, para

quem a conseqüência foi a diminuição do tempo de consulta e a sua contração em nome

da objetividade assistencial, com evidente perda na comunicação, no registro e no

aprofundamento das queixas e na necessária troca de informações que pudessem

construir um diagnóstico mais ou menos preciso do seu padecimento. Para ambos, o ato

médico passou a ser um evento contingente, fortuito, a fazer parte de uma prática

médica centrada na produtividade e desprovida da necessária personalidade que lhe é

própria.

O profissional tornara-se um simples consultante, e o paciente, um número,

uma matrícula, alguém desprovido de identidade e de história, transformado em mera

circunstância. Nessa situação, várias contradições. O paciente tinha a garantia da

acessibilidade ao serviço e ao médico, mas não necessariamente o acesso a uma relação

médico-paciente em outros padrões que não as formas clássicas desse relacionamento.

A organização dos serviços e a contração do tempo de atendimento impossibilitavam a

abertura entre os dois, como sujeitos em relação. Não oferecia possibilidade ao paciente

para expor os seus problemas, tampouco de o médico entender melhor o seu paciente ou

mesmo fazer-se entender. Médico e paciente, ao ser constrangidos na sua possibilidade

125 Pode-se dizer que a gênese das intermináveis filas nas portas dos serviços de saúde, públicos ou privados contratados, datam exatamente deste período; quando os segurados passaram a constituir uma demanda que aos poucos crescia na medida em que os profissionais relativamente diminuíam. E com o avanço das tecnologias e dos Serviços Auxiliares de Diagnóstico e Tratamento (SADT) estas tenderam a se multiplicar.

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de diálogo, desperdiçavam a oportunidade de transformação do universo social em que

estavam inseridos.

O pré-64 era um momento de ebulição dos setores populares da sociedade

brasileira, e tudo repercutia no campo das políticas públicas, notadamente nos da

educação e da cultura. Campanhas e movimentos de educação popular despontavam em

vários pontos do país, principalmente no Nordeste, trazendo em seu cerne idéias de

conscientização política e social. Esses movimentos tiveram uma efetiva contribuição

da UNE, da ala progressista da Igreja Católica – através dos movimentos da Juventude

Agrária Católica (JAC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Universitária

Católica (JUC) e Juventude Operária Católica (JOC), de intelectuais e dos partidos de

esquerda, notadamente o Partido Comunista Brasileiro. Nesse período, é importante

fazer-se menção também às Ligas Camponesas, que intensificavam a luta pela reforma

agrária e cobravam justiça social no campo.

Perpetrado o Golpe Militar126, a Ditadura no poder usa de todos os artifícios

legais e ilegais e dos mecanismos estatais disponíveis, para despolitizar, controlar e

manobrar, à base de seus interesses, os mais diversos segmentos, instituições e

instrumentos públicos. Nessa perspectiva, amplia gradativamente os seus poderes e se

robustece diante do Legislativo e do Judiciário, que se tornam alvo de suas manobras

para consolidar o poder. São assim promulgados em seqüência, e de acordo com as

conveniências, Atos Institucionais que imprimem os mecanismos de controle social,

político e cultural do povo brasileiro127.

As políticas públicas se transformam em ferramentas de controle ideológico,

estratégico e organizativo da população. Uma nova Constituição é outorgada em 1967,

criando um Estado que violava o princípio republicano da separação dos poderes e que

tornava o Executivo quase absoluto no processo de tomada de decisões, além de

126 O Golpe de 64 representou uma solução arbitral de cunho cesarista sem César, visto que, diferente do cesarismo clássico, não tivemos uma figura heróica e carismática que, reconhecida pela maioria, assumisse todos os poderes. Nas palavras de Germano (1983) “[...] Isso significa que, entre nós, no período em apreço, esteve presente outro traço fundamental do cesarismo, que é a ausência do controle social sobre o poder político, consubstanciado na notável autonomia das Forças Armadas que exerceram o comando do Estado brasileiro entre 1964 e 1985” (GERMANO, 1993 p. 18). 127 Mas, mesmo com todo o aparato criado, havia quem acreditasse nas intenções do presidente Castelo Branco em devolver o país aos civis, o que efetivamente não aconteceu. Para Germano (1993), entre os militares havia uma ala sectária, a Linha Dura, e a supremacia interna dessa ala é que levou o regime a endurecer e mergulhar o país num regime de exceção truculento e feroz nos seus aparatos, com prisões arbitrárias, tortura e controle total sobre a vida das pessoas, fechamento dos sindicatos e organizações da sociedade e proibição de qualquer reunião que não fosse, antes, permitida pelos militares, numa total destruição das liberdades democráticas.

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conceder total autonomia às Forças Armadas. É esse o início do período mais escuro do

regime ditatorial. Prisões arbitrárias, tortura e assassinato de presos políticos, cassação

de mandatos, exílios compulsórios e perseguições políticas passam a fazer parte da cena

cotidiana da política brasileira. Cessam os direitos individuais e coletivos. É o período

em que começa a ser travada uma guerra subterrânea contra os vários grupos que, na

clandestinidade, tentam reagir à ditadura (DREIFUSS, 1981; FAUSTO, 1995;

GERMANO, 1993).

Pelo lado da economia, na visão desses mesmos autores, o corte liberal do

governo da ditadura acelera a acumulação de capital através de uma gestão da força de

trabalho que regulamenta o preço da mão de obra, disciplina sua ação e traz insegurança

ao emprego. A Justiça do Trabalho é esvaziada, as lideranças sindicais são presas, e os

sindicatos ocupados e proibidos de fazer greve. O Estado amplia sua ação empresarial,

criando cerca de duzentas e dez empresas estatais.

O Golpe de 64 teve um caráter eminentemente burguês, uma vez que tentou

conter, com relativo sucesso, as manifestações populares em favor das reformas na

estrutura da sociedade brasileira, os conflitos entre capital e trabalho, a crise de direção

política do Estado, a crise econômica manifestada na redução dos índices de

crescimento e na diminuição da entrada de capital estrangeiro, bem como a queda das

taxas de lucro, com a conseqüente elevação da inflação. Em 1974, chegou-se ao ponto

de desacelerar o crescimento devido a uma grave crise de acumulação, provocada pela

crise do Petróleo (DREIFUSS, 1981; FAUSTO 1995; GERMANO, 1993).

Entretanto, a elite empresarial não estava de todo satisfeita e sentia-se à

margem dos centros de tomada de decisões na sua luta contra os excessos estatizantes. E

isso acabou por conduzir uma parte da burguesia para a oposição conservadora ao

Regime. Demonstrando fraqueza, o governo começa a se perder em negociatas e

processos ilícitos, e o Estado é invadido por grupos privados. Há uma crescente

degeneração da administração pública regada a escândalos financeiros, corrupção

generalizada, tráfico de influência e operações fraudulentas. A pretensa rigidez do

governo militar estava minada128 (GERMANO, 1993).

128 Há que se fazer menção ainda a um forte arrocho salarial. Depois de uma década no poder, a Ditadura foi obrigada a empreender, de forma lenta, gradual e segura, uma abertura política capaz de trazer o país de volta à democracia civil, o que efetivamente só viria a ocorrer a partir de 1985.

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Na era Geisel, tem-se o lançamento do II Plano Nacional de

Desenvolvimento que, se de um lado, define um papel ainda mais destacado para as

estatais, de outro lado, concede apoio à reprodução de capitais nominais ao doar

vultosas quantias ao capital privado sob a forma de incentivos fiscais e creditícios. É

nesse período em que se cria o Fundo de Assistência Social (FAS), que permite a

acumulação privada na área da saúde. Sob a batuta de um comando monetarista, a

dívida pública (interna e externa) sofre uma súbita elevação com o chamado Choque do

Petróleo. O Estado repassa recursos para as empresas privadas com a finalidade de

salvá-las e aparece como devedor do referido setor. As estatais, nessa conjuntura,

passam a ser taxadas de ineficientes (MENDES, 1999).

Para conter a dívida e evitar a quebradeira, no início dos 80, mesmo sob

forte movimentação popular – já se vivia em plena abertura democrática – o governo

militar recorre ao FMI e, em pouco tempo, a dívida brasileira triplica, mostrando a

ineficiência e ineficácia da política econômica. Na tentativa de reverter o quadro, o

Estado define e executa um conjunto de políticas sociais com vistas a compensar as

carências provocadas pelos excessos da acumulação. Mas, pouco a pouco, os recursos

destinados à saúde, à educação e à habitação vão ficando comprometidos com o capital

privado, a título de bolsas de estudos, de compensações e de isenções fiscais

(MENDES, 1999).

A derrota das propostas transformadoras geradas no pré-64 pela corrente

sanitarista desenvolvimentista de cunho transformador – que, dentre outras coisas,

propunha o rompimento da dicotomia entre saúde pública e assistência curativa – abriu

outro capítulo no pós-64, pois confirmou a corrente conservadora e modernizadora

como estruturadora de um modelo de atenção à saúde centrado na assistência médica,

mercantilizada, e que passava pelo setor previdenciário, tendo a saúde pública como

braço auxiliar. A ênfase na medicina previdenciária, de cunho individual e assistencialista, foi acompanhada por um franco menosprezo pelas medidas de saúde coletiva tanto as tradicionalmente executadas pelo Ministério da Saúde quanto as inovações propostas pelos sanitaristas identificados com o projeto nacional desenvolvimentista que surgiu no período anterior, como uma alternativa para a política nacional de saúde. Prova mais evidente do descaso com a saúde coletiva é o decréscimo do orçamento do Ministério da Saúde neste período [...] vindo a ter um ligeiro aumento a partir de 1974 (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986, p. 207).

Até o início do regime militar, a saúde pública sempre tivera mais recursos

que a assistência médica previdenciária. Os militares, no poder, inverteram essa relação

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diminuindo muito os gastos em saúde pública. Para dar uma idéia da participação dos

gastos com saúde nos gastos totais da União, Oliveira e Teixeira (1986), citando Santos

(1979), afirmam que estes diminuíram em quase três vezes na primeira década da

ditadura, passando de 3,42%, em 1963, sob João Goulart, para 1,07%, em 1973, sob

Médici. Por outro lado, os Institutos (IAP´s) são, finalmente, unificados, passando a ser

o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), a partir de 1967, concentrando e

gerindo todas as contribuições e oferecendo benefícios de previdência e assistência

médica aos seus contribuintes. A unificação transforma o novo orçamento da

previdência num montante equivalente ao orçamento da nação129.

O caráter liberal, travestido de estatismo, da economia e das políticas

públicas da ditadura, o aceleramento da acumulação de capital e a gestão da força de

trabalho mantida sob permanente arrocho salarial, somada à ausência de políticas

sociais voltadas para a maioria da população, especialmente a mais pobre, permitiu uma

enorme deterioração das condições de vida e de saúde da população, tanto pelo aumento

da miséria nas cidades, agora inchando as suas periferias em função do êxodo rural,

quanto pela mudança de ênfase nos investimentos em saúde (BRAGA; PAULA, 1981;

OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986).

A unificação dos institutos inseriu-se numa perspectiva de modernização da

máquina estatal e concorreu para o aumento do poder regulatório sobre a sociedade.

Significou, por outra parte, um esforço de desmobilização das forças políticas

progressistas, que atuaram no sentido das reformas do período populista e a conseqüente

exclusão da classe trabalhadora organizada como força política. Para operacionalizar o

seu projeto de modernização, enquanto reprimia e desmantelava as organizações

populares, o regime militar criou uma casta tecnocrática constituída de profissionais

alçados da sociedade civil. Colocados sob a tutela do Estado, passaram a construir

políticas alinhadas com os dogmas e postulados do novo regime militar (MERHY,

1997).

Foi essa tecnoburocracia estatal que desempenhou um papel fundamental

durante o período de poder da ditadura, a partir da década de 70, marcada pela

ampliação crescente da cobertura do sistema, principalmente pela inclusão de vários

segmentos antes não beneficiários do sistema de previdência e assistência médica. Foi o 129 O governo, com o controle desses dois orçamentos e seguindo uma filosofia de governos anteriores, pôs em execução um forte programa de investimentos em grandes obras. Os recursos da previdência mais uma vez eram carreados para ajudar no financiamento dessas obras. São desse período a rodovia Transamazônica, a ponte Rio-Niterói e a Hidrelétrica Itaipu Bi-Nacional (Brasil-Paraguai).

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caso da instituição do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Pró-Rural), em

1971, e da inclusão, em 1972, dos empregados domésticos e dos autônomos que

passassem a contribuir. Da mesma forma, em 1974 é lançado o Plano de Pronta Ação

(PPA), que torna universal o direito de atendimento nas emergências dos hospitais

credenciados ao sistema de assistência médico-previdenciário.

Para Carvalho (s/d) e Merhy (1997), o regime ditatorial usou a expansão da

cobertura do sistema previdenciário, ou seja, a incorporação de novas categorias e a

extensão da oferta de serviços à população não previdenciária como um importante

legitimador do regime repressivo por ele implantado. Contudo, Costa (1998) afirma que

não se pode deixar de compreender que as mudanças na política de saúde, efetivadas

pelos militares, produziram uma incorporação maciça da população brasileira até então

fora do mercado consumidor de cuidados médicos. A conseqüência dessa incorporação

foi o rompimento com o modelo restrito do período corporativo, instituído pelo período

varguista e mantido pelos governos subseqüentes.

A política de saúde, durante as décadas em que os militares estiveram no

poder, foi impulsionada pela expansão dos serviços médico-hospitalares dentro de uma

estratégia crescente de contratação de produtores privados de serviços de saúde. Essa

contratação, concomitantemente, tendia a promover o sucateamento dos serviços

hospitalares próprios. Assim, as ações do INPS se deram de forma a assegurar o

privilegiamento da empresa privada130. A esse respeito, Braga e Paula (1981) afirmam

que a solução adotada, de expansão via setor privado, foi a solução que fez prevalecer

os interesses capitalistas em geral, assim como os particulares da saúde já bem

acomodados no setor, em função da expansão da rede hospitalar privada131, iniciada

desde a década de 50 e continuada em seguidos governos.

Seguindo um caminho contrário ao até então trilhado por governos

anteriores, as verbas para a saúde pública foram paulatinamente diminuídas, e em

conseqüência, serviços abandonados, assim como obras de saneamento. O

130 Na verdade, as ações do INPS apenas vinham apenas consolidar a opção preferencial que o próprio regime fizera pela compra de serviços médicos aos produtores privados, opção definida, inclusive, constitucionalmente nas Cartas de 67 e 69 (artigos 163 e 170 respectivamente) grafados com o mesmo teor: “Às empresas privadas compete, preferencialmente, com apoio do Estado, organizar e explorar as atividades econômicas. Parágrafo Único: Apenas em caráter suplementar da iniciativa privada o Estado organizará e explorará diretamente a atividade econômica”. 131 Mendes (1999), tratando especificamente da expansão durante o regime militar, afirma que em 1969 havia 74.543 leitos privados no País e em 1984 esse número já era quase cinco vezes maior, chegando a 348.255. Por outro lado, em se tratando da expansão em termos do número de unidades hospitalares com fins lucrativos, financiadas com recursos públicos, elas representavam 14,4% em 1960, 44% em 1971 e 45,2% em 1975 (Mendes, 1999, p. 24 e110).

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desfinanciamento estatal para a saúde passa a ser substituído pelo estímulo

governamental à iniciativa privada, que já vinha se inserindo de maneira insidiosa na

saúde. Nesse sentido, foram criadas linhas de crédito, com recursos a fundo perdido,

para quem quisesse investir no setor. Os recursos para isso eram do FAS – Fundo de

Assistência Social. Dessa forma, qualquer pessoa jurídica ou entidade passava a

concorrer a esse financiamento, bastando, para tanto, fazer aprovar o seu projeto de

construção e equipamento, principalmente de hospitais. Pronta a obra e equipado o

estabelecimento, o governo, através do INPS, credenciava o estabelecimento, e seus

profissionais ficavam aptos a atender os segurados da previdência social,

Percebe-se, portanto, que havia, além dessa expansão numérica, uma clara

hegemonia dos interesses privatistas dentro do setor, levando à realização do lucro e da

acumulação capitalista. As pressões feitas junto à gestão do sistema forçavam uma

seleção tácita baseada na especialização, cabendo aos hospitais públicos, em geral,

melhor equipados, o atendimento dos casos mais graves e de tratamento mais longo e,

conseqüentemente, mais custoso, enquanto ao setor privado eram enviados os casos

mais simples, bem mais freqüentes e de rápido atendimento. Isso aumentava a

rotatividade e a ocupação dos leitos que, por terem custo mais baixo, tornavam-se bem

mais lucrativos.

Outra característica desenvolvida por esse sistema foi a sua concentração

nos grandes centros, maiores mobilizadores de capital. Essa situação perpetrou, ao

longo do tempo, uma grande desigualdade na distribuição geográfica dos serviços de

saúde, que assim se concentravam nas regiões Sul e Sudeste, em detrimento das regiões

Norte e Nordeste e do Centro-Oeste, áreas bem menos aquinhoadas. O alcance negativo

dessa política foi tamanho que, ainda nos dias de hoje, observam-se grandes deficiências

de leitos e unidades hospitalares em vários bolsões dessas regiões, o que pode ser

creditado, em grande parte, àquela política de expansão do setor privado durante o

período ditatorial.

Mendes (1999) define esse modelo gestado na estabilidade autoritária como

uma ação conjunta que envolveu a tecnoburocracia estatal, os produtores de serviços

médico-hospitalares privados e a indústria farmacêutica e de equipamentos médico-

hospitalares. Na sua visão, foi a aliança desses atores dentro do aparelho de estado,

somada à contínua expansão da clientela previdenciária e dos serviços, que consolidou o

que se convencionou chamar modelo médico-assistencial privatista. Dessa forma, pode-

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se dizer que, após a centralização dos institutos e a exclusão dos trabalhadores do

processo decisório, foram esses interesses os definidores da política de saúde.

As principais características desse modelo, reproduzidas pelo autor a partir

da leitura de Oliveira e Teixeira (1986), são as seguintes:

a) extensão da cobertura previdenciária à quase totalidade da população;

b) inspiração flexneriana, filosofia que privilegiava a prática médica

curativa, individual, tecnificada, especializada e centrada no atendimento

hospitalar, em detrimento da saúde pública;

c) conformação de um complexo médico-industrial;

d) pagamento dos serviços contratados e conveniados por unidades de

serviços;

e) desenvolvimento de um padrão de organização da prática médica

orientada em termos de lucratividade, proporcionando a capitalização da

medicina.

O país viveu, principalmente durante a primeira década da ditadura, um

grande crescimento econômico – os anos do chamado milagre econômico brasileiro –

sem que os produtores da riqueza tivessem acesso aos frutos do seu trabalho. Ao

contrário, assistiu-se à continuidade da política de arrocho salarial e total descontrole da

saúde pública, com aumento da mortalidade infantil e de casos, ou mesmo surtos

epidêmicos de poliomielite, varíola e hanseníase, além de um grande aumento dos

acidentes de trabalho, sem que nenhuma política fosse adotada para fazer frente a esses

problemas.

A partir do início da década de setenta, a previdência social conheceu sua

maior expansão em número de leitos disponíveis, em cobertura e em massa de recursos

arrecadados. Enquanto isso, os serviços de saúde pública viviam a duras penas, e muitas

ações simplesmente deixavam de ser executadas por absoluta falta de recursos. Nessas

condições, doenças antes controladas recrudesceram, e o país passou por epidemias

como a de meningite, em São Paulo. Nesse episódio, o governo, acuado diante da

denúncia de estudiosos e de pesquisadores, através da imprensa, manipulou os dados

epidemiológicos e escondeu a realidade da população, afirmando tudo não passar de

uma campanha subversiva dos inimigos da democracia, que espalhavam boatos

alarmistas, com a finalidade de desestabilizar o regime. Porém, rendido pelas

evidências, teve que realizar uma campanha nacional de imunização contra a meningite

meningocócica.

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Em 1978, já tentando conter a crise da previdência, o governo federal cria o

SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, que passa a reunir

todos os órgãos da previdência: o INAMPS – Instituto Nacional Assistência Médica da

Previdência Social, coordenador da assistência médica previdenciária; o IAPAS –

Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social, o órgão que comanda

todo o sistema de administração dos recursos do sistema; e o INPS que, nessa reforma,

tem o seu papel redefinido, passando à coordenação das aposentadorias e pensões do

sistema previdenciário.

Nesse período, como já se viviam os ventos da distensão política, as

organizações populares, mesmo reprimidas em algumas situações, passam a multiplicar

e diversificar o seu papel de resistência ao regime ditatorial. E nessa onda, a saúde passa

a ser discutida na sociedade, através de inúmeras iniciativas que tentam retomar a

tradição dos movimentos sociais que haviam sido abafados. A aglutinação dessas

inúmeras iniciativas setoriais é que, aos poucos, foi se unificando, não sem conflitos

ideológicos, o que ficou conhecido como o Movimento Popular de Saúde (MOPS).

O Movimento Popular de Saúde constituiu-se a partir de uma articulação

nacional dos movimentos populares locais, que centravam sua luta na busca da

transformação do sistema de saúde132. Propugnava mudanças no modelo de atenção à

saúde e exigia a democratização dos serviços e a adoção de medidas legislativas que

permitissem e garantissem a participação da sociedade civil nas decisões.

Considerando-se Carvalho (1998), pode-se dizer que esse movimento expressava desejo

de institucionalização de um processo amplo de reordenamento das relações

Estado/Sociedade. Uma das suas principais reivindicações foi a criação de conselhos de

saúde, nos vários níveis do sistema de saúde, desde as unidades básicas até os centros de

saúde, que seriam instâncias consultivas e deliberativas, em cuja composição estava

prevista a representação da comunidade por meio de suas lideranças.

Ganhou visibilidade na Zona Leste de São Paulo onde, organizado, centrou

sua ação nos objetivos de: levantar as condições de vida, os problemas de saúde do

bairro e os serviços de saúde existentes; buscar as causas dos problemas encontrados, 132 Na visão do MOPS, não era mais possível admitir a situação de abandono da saúde pública e a tentativa de manipulação dos dados epidemiológicos feita pelo governo da ditadura, quando populações inteiras eram abandonadas a sua própria sorte, adquirindo doenças que deveriam estar controladas ou erradicadas. Por isso, centrava a sua luta na busca da transformação do sistema de saúde. Além dos seus próprios encontros orgânicos, como era comum aos movimentos populares da época, sempre que possível, apresentava suas formulações nos eventos estudantis e acadêmicos que marcaram a época. Dada a articulação com o movimento estudantil, os Encontros dos Estudantes de Medicina (ECEM) e as Semanas de Saúde Comunitária (SESAC) foram exemplos de palcos de expressão desse movimento.

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refletindo sobre a política social e econômica do município, estado e país; fazer

propostas para o plano de trabalho das Unidades Básicas de Saúde (UBS) – tipo de

atendimento, programas de saúde, organização dos serviços e coisas do gênero; prestar

informações aos usuários e à população, em geral, sobre a Unidade (UBS) e a saúde,

contribuindo para a formação da mesma; fazer a ligação entre a população e as UBS´s

(os serviços), incentivando o uso das mesmas; fiscalizar o atendimento de saúde,

zelando por sua qualidade; organizar e conscientizar a população, incentivando-a à

participação; levar as lutas de saúde locais específicas e outras reivindicações do bairro;

fazer a ligação com o movimento de saúde e outros movimentos populares, participando

das lutas gerais da saúde (SADER, 1988).

Outros movimentos engrossavam as lutas populares por mudanças na área

da saúde, entre eles, o movimento estudantil da área da Medicina. Desempenharam um

papel importante nessas lutas os Encontros dos Estudantes de Medicina (ECEM), no

final da década de 70. Esses fóruns anuais eram da maior importância para a formação

crítica dos estudantes de Medicina, tradicionalmente vindos de frações da classe média.

Os ECEM´s se constituíam verdadeiros encontros de diagnóstico e formação política

para aqueles estudantes. Eram precedidos e sucedidos de frutíferos seminários e ciclos

de debates internos, em que se discutiam e se encaminhavam as políticas gerais e

específicas que embalavam as lutas dentro e fora da Universidade. Todas essas

movimentações contribuíam para a transformação dos seus integrantes em verdadeiros

agentes políticos do seu tempo.

Lá se faziam análises da conjuntura política geral e específica da educação

médica e se criticavam a política e a prática médica hegemônicas, diagnosticadas como

alheias à realidade da população necessitada de cuidados de saúde e controladoras,

autoritárias e avessas ao diálogo, uma vez que não davam voz aos usuários para que

expressassem as suas reivindicações e os seus sentimentos, como destinatários das

ações. Com os encontros, aos poucos, ia-se, na base do diálogo, entendendo melhor o

país, os seus problemas e os desafios que precisavam ser enfrentados. Iam-se tecendo as

respostas individuais e coletivas e as atitudes que precisavam ser assumidas por cada

um e pelos grupos para a transformação da saúde e do próprio país.

Mas a ação estudantil não se dava apenas nesses encontros. Havia, no dia-a-

dia, o comprometimento real dos estudantes133 com ações efetivas junto à população,

133 É importante esclarecer que se está falando de uma minoria de estudantes. A maioria não tinha sensibilidade para as questões que eram discutidas ou até faziam oposição ideológica à ação do

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que se davam fora do horário escolar, geralmente à noite, nos bairros de periferia,

quando se tratava de reuniões e discussões sobre a realidade vivida, e nos finais de

semana, quando as reuniões eram substituídas por ações concretas de atenção à saúde,

que contavam com o apoio logístico das associações de moradores e das paróquias

comandadas por padres e religiosos ligados à ala progressista da Igreja católica e seus

movimentos pastorais, ou mesmo se confundia com eles134.

As Semanas de Estudos de Saúde Comunitária (SESAC), assim como os

ECEM´s, eram verdadeiros encontros de formação política e técnica. Porém, as

SESAC´s tinham a vantagem de ser encontros mais diversificados de que participavam

diferentes atores sociais e profissionais que atuavam na área da saúde. Lá se

encontravam estudantes de várias áreas, profissionais da saúde, pesquisadores e demais

pessoas envolvidas com experiências inovadoras na área da saúde, todas engrossando o

movimento de resistência à ditadura e lutando por espaços democráticos e livres de

discussão e ação135. Nesses eventos, tomava-se ciência das diversas experiências que

estavam sendo realizadas na área da saúde, em que pese a aridez do momento político, e

se tinha a confirmação de que outra organização das políticas e da prática médica era

possível.

Por seu turno, as instituições de ensino da área, eram um espaço importante

onde se reproduziam as discussões que eram travadas no cotidiano da saúde. Alguns

professores, comprometidos com a crítica e a transformação do status quo,

aproveitavam as suas disciplinas para discutir diferentes aspectos da prática médica e do

sistema de saúde. Temas como mercantilização da medicina, assalariamento dos

profissionais médicos, racionalização dos serviços médico-previdenciários, tecnificação

do ato médico e humanização da prática médica eram recorrentes nessas disciplinas e, movimento. Havia, ainda, uma parcela que, em tese, considerava justas a movimentação e as ações comunitárias, mas não se comprometia com elas. Esses eram importantes aliados circunstanciais, quando se precisava travar ou legitimar ações, principalmente dentro da Universidade. 134 Havia casos em que os próprios alunos também pertenciam, nos seus bairros ou bairros vizinhos, a esses movimentos. Parte deles participava de um consistente processo de formação e treinamento de lideranças que acontecia nessas organizações, o que os fazia verdadeiros intelectuais orgânicos no meio da massa. Nesse período, era muito difundida uma metodologia utilizada pelos integrantes da Teologia da Libertação, o método Ver, Julgar e Agir, com o qual eram acompanhadas as células das famosas CEB’s, as Comunidades Eclesiais de Base, nos locais de moradia. Também se participava de programações e tarefas de apoio aos diversos movimentos políticos, populares ou classistas. Era um período de intenso aprendizado, fundamental para direcionar a vida futura de profissionais médicos conscientes da sua função social. 135 As Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária, realizadas pela primeira vez em 1974, assim como os Encontros Científicos dos Estudantes de Medicina, em especial, os realizados entre 1976 e 1978, foram importantes nesse sentido, por serem espaços de diálogo e construção de alternativas políticas gerais e específicas, praticamente ignorados pela repressão militar, que não identificara o caráter político de suas discussões.

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depois, nos debates estudantis136, e jogavam um papel importante na construção das

formulações contra-hegemônicas.

Grande parte dessas iniciativas aglutinava, além de movimentos populares

organizados, movimentos classistas da área da saúde, como o REME137, que reunia os

médicos, e os demais movimentos reivindicatórios de outras categorias profissionais da

saúde. Havia uma entidade acadêmica do movimento da Saúde Coletiva, a

ABRASCO138, que coordenava as discussões da academia nesse campo. Mas, nenhum

desses movimentos se assemelhava a uma entidade símbolo da luta e da resistência

dessa época na área da saúde: o CEBES139 – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde

que, principalmente no Sudeste, mas não apenas nessa região, contribuiu muito para

essas lutas, inclusive mantendo um periódico, a revista Saúde em Debate, verdadeiro

órgão de divulgação das idéias do movimento sanitário140 nacional.

Todos os movimentos e segmentos que foram arrolados como atuantes na

discussão das políticas de saúde e suas práticas: tecno-burocracia governamental, 136 Nessas disciplinas e nesses debates, aos poucos, se ia tomando contato com autores como Carlos Gentile de Melo e Jaime Landman, que escreviam sobre o complexo médico-assistencial privatista, prática médica assalariada e a acumulação capitalista via introdução de novas tecnologias diagnósticas, e sucateamento e substituição da rede pública. Reinaldo Guimarães e Hésio Cordeiro, que escreviam sobre ciência e tecnologia e indústria farmacêutica, Sérgio Arouca, que escrevera sobre o dilema preventivista da prática médica, Alfredo Moffat e Franco Basaglia, que escreviam sobre a questão da saúde mental e o poder nas instituições psiquiátricas, Madel Luz, sobre o poder nas instituições médicas. Porém, há de se reconhecer que a sensibilidade para essas questões não passava apenas pela identidade estudantil, mas por uma identidade política e social, individual, que era pouco comum nas faculdades de Medicina. 137 Movimento de Renovação Médica (REME), articulado em 1976, a partir dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas que depois se espraiou pelos quatro cantos do país. Priorizava a defesa dos médicos assalariados, através de mobilizações de massa, greves e outras atividades próprias do sindicalismo. Foi também muito importante na luta pela abertura política do país, especialmente quando visava ao direcionamento das atividades médicas para as necessidades da saúde pública brasileira e o combate às políticas de saúde da ditadura militar. 138 A Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva é uma sociedade civil, de âmbito nacional, fundada em setembro de 1979. O Artigo 3º do seu estatuto reza que a mesma destina-se a atuar como mecanismo de apoio e articulação entre os centros de treinamento, ensino e pesquisa em saúde coletiva para fortalecimento mútuo das entidades-membro e para ampliação do diálogo com a comunidade técnica, científica e desta com os serviços de saúde, organizações governamentais e não governamentais e com a sociedade civil. Durante os anos finais da ditadura, atuou fortemente com as demais entidades que compunham o que ficou conhecido como o movimento sanitário nacional. 139 O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), desde sua criação em 1976, centrou o seu objetivo na luta pela Reforma Sanitária brasileira. Sempre foi um espaço democrático e suprapartidário e que luta pela democracia na saúde e na sociedade Talvez porque, desde a sua fundação, reúne pessoas que já pensavam dessa forma e realizavam projetos inovadores. Mesmo hoje, depois de 30 anos como um centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço continua assegurado como produtor de conhecimentos e como demonstração de uma prática política concreta, seja em nível dos movimentos sociais, das instituições ou do parlamento. 140 O termo movimento sanitário foi utilizado, pela primeira vez, na dissertação de Mestrado da professora Sara Escorel, em 1986, num trabalho orientado pelo Professor Antônio Sérgio da Silva Arouca. O termo definia uma ampla mobilização que se constituíra aos poucos, desde, pelo menos, uma década antes –segunda parte da década de setenta, do século passado – assumindo ares de uma ação social que lutava por democracia e saúde. O movimento sanitário se estruturou de forma consistente a partir da academia, dos movimentos sindicais e populares e do movimento estudantil, fazendo oposição à ditadura.

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movimentos sociais de cunho classista ou não, movimentos populares, academia,

associações e centros de pesquisa, de uma forma ou de outra, estavam informados pela

evolução do conhecimento geral e específico construído pelas instituições da sociedade.

3.9 A Reforma Sanitária na redemocratização do país

A década de oitenta se iniciava como um período de grandes dificuldades,

pois, além da saúde da população ir mal, havia a grave crise da previdência social. Essa

crise, porém, tinha explicação: a fraude que, insidiosa, corroia os seus recursos, o grave

momento da economia vivido pelo país e a estrutura da previdência, a mesma desde o

início dos IAP´s; ou seja, uma estrutura de seguro-saúde141. Com a crise econômica, que

significava, entre outras coisas, queda no emprego e, portanto, das contribuições, havia

menos receitas sem que isso implicasse necessariamente diminuição de gastos. Aliás,

estes só aumentavam dada a longevidade do sistema e da própria população que vinha

contribuindo com a previdência. Tinha-se uma situação sustentada de uma soma maior

de dinheiro saindo para pagar aposentadoria e serviços de saúde, do que entrando, o que

gerava o desequilíbrio de caixa, ou seja, déficit (BRAGA; PAULA, 1981; OLIVEIRA;

TEIXEIRA, 1986).

Outros problemas se articulavam fazendo com que essa crise se ampliasse

quase numa progressão geométrica, dentre eles, destacam-se: a) inflação galopante

corroendo os salários e agravando os problemas de arrecadação e financiamento de

benefícios e da assistência médica; b) aplicação em papéis e projetos do governo,

sempre deficitários, fazendo com que esse dinheiro nunca retornasse, além do que os

investimentos em projetos eram deficitários porque subsidiava as tarifas públicas; c)

custos crescentes pela privatização da rede. O governo financiara a fundo perdido os

empresários da saúde por vinte anos, e quando estes estavam agora suficientemente

capitalizados, simplesmente pediam descredenciamento da previdência, provocando

diminuição dos leitos disponíveis e, portanto, desassistência, filas, clientelismo e

corrupção. 141 O problema desse tipo de estrutura é que ela é baseada na contribuição dos trabalhadores que estão formalmente no mercado de trabalho e, portanto, dependem de uma economia constantemente aquecida. Por outro lado, cresce paulatinamente a massa de trabalhadores aposentados que deixavam de contribuir, mas não de receber os seus benefícios de aposentadoria e consumir serviços de saúde.

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À crise do sistema previdenciário se somava a crise da saúde pública,

tradicionalmente responsável pelo cuidado relativo a problemas - os quais, na sua

essência, são de caráter coletivo - mas que fora deixada de lado durante toda a ditadura

militar, em detrimento da assistência médica individual. O país passou a sofrer com o

recrudescimento de epidemias que haviam sido controladas depois das primeiras

décadas do século. Doenças antigas como a malária e a febre amarela, o dengue e o

cólera estavam agora de volta, e novas doenças, como a Síndrome da Imunodeficiência

Adquirida, a AIDS, vinham encontrar a saúde pública em situação de abandono. E o

governo continuava, sem sucesso, fazendo reformas pontuais para tentar resolver a

questão da previdência. E porque eram pontuais, não mexiam na estrutura que, na

essência, era a mesma desde a sua constituição no primeiro governo Vargas.

Diante da grave crise e caminhando o país para um processo de

redemocratização, mesmo ainda sob a ditadura, os movimentos sociais, em geral, e dos

trabalhadores da saúde, em particular, sob o fogo cruzado dos militares e dos

empresários da saúde e suas instituições, passam a produzir propostas concretas para

mudar o sistema. Essas propostas, de um modo geral, retomavam questões gestadas nas

discussões do final do período democrático da década de 60 e que, agora, eram

atualizadas pelas discussões internas do movimento sanitário. Elas estavam pautadas

nos seguintes termos: a) avaliação crítica da realidade sanitária do país; b) rediscussão

das responsabilidades dos entes federativos; c) descentralização, horizontalização e

integração das ações de saúde; d) ampliação dos serviços e articulação das políticas de

saúde com reformas sociais; e) incorporação dos municípios numa rede básica de

serviços médico-sanitários.

As propostas, até pelo viés ideológico de que estavam revestidas, eram

rechaçadas pelo governo, para depois, sob nova roupagem, reaparecer despidas do

essencial: da possibilidade de participação política da população e dos movimentos

sociais organizados, os verdadeiros destinatários das diretrizes políticas propostas no

diagnóstico e na definição das prioridades e ações a serem levadas a efeito. As

propostas do PIASS – Plano de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento –

instituído em 1976, e do PREV-Saúde – Programa Nacional de Serviços Básicos de

Saúde – proposto em 1979, são dois exemplos, da segunda parte da década de 70, que

podem aqui ser arrolados como políticas que propunham extensão de cobertura das

ações de saúde, ainda que não tenham constituído mudanças estruturais importantes

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para o setor saúde. Aliás, o PREV-Saúde, mesmo instituído em lei, não chegou a sair do

papel.

O PIASS, lançado em 1976, especialmente nos estados nordestinos142, tinha

como princípios básicos a utilização ampla de pessoal de nível auxiliar, ênfase nas

atividades preventivas, participação comunitária e previsão de integração em nível local

dos diferentes serviços de saúde sob a responsabilidade das Secretarias Estaduais.

Montado em cima de duas premissas básicas: a) máxima extensão de cobertura dos

serviços de saúde, com prioridade na atenção das zonas rurais e pequenas comunidades;

e b) regionalização da assistência, considerando as premissas da desconcentração dos

serviços, da descentralização das decisões e da hierarquização da rede de unidades, o

programa estava endereçado a municípios interioranos com população abaixo de 20.000

habitantes.

Centrado em unidades de saúde com uma tipologia que ia do Mini-Posto à

Unidade Mista, estabelecimentos com ambulatório e leitos para clínica médica,

passando por Postos de Saúde e Centros de Saúde de diferentes complexidades técnica e

tecnológica. A proposta conformava módulos assistenciais e possibilitava um sistema de

referência e de contra-referência, de modo a garantir o acesso da população aos serviços

mais especializados, hospitais locais, regionais e especializados. Porém, o programa não

conseguiu avançar, entre outros motivos, por seu caráter verticalizante e pelo confronto

entre a proposta de regionalização e a persistência da centralização típica dos programas

ministeriais, além do caráter meramente instrumentalizador e cooptador da participação

comunitária.

O PREV-SAÚDE tinha, como característica principal, ser uma estratégia de

integração de maior abrangência, envolvendo o Ministério da Saúde (MS), o Ministério

da Previdência e Assistência Social (MPAS), o Ministério do Interior (MI) e a

Secretaria de Planejamento da Presidência da República (SEPLAN). Detinha objetivos

bastante ambiciosos, como os de estender a cobertura dos serviços básicos de saúde a

toda a população, de reorganizar o setor público de saúde, articulando as várias

instituições, de reordenar a oferta dos serviços, além de promover a melhoria das

condições gerais do ambiente. A oposição criada pelas entidades privadas e instituições

públicas ligadas ao INAMPS e pelos próprios técnicos dos Ministérios levaram a 142 A partir de 1979, o PIASS expandiu-se para o Norte, Centro-Oeste, Espírito Santo e Minas Gerais, enfatizando inicialmente as zonas de maior concentração de pobreza e adaptando o modelo às características regionais, de modo a privilegiar a integração das unidades PIASS em nível federal, estadual e municipal.

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modificações substanciais do projeto original, restringindo tanto o programa, que este

acabou constituindo-se apenas em uma proposta de reordenação do setor público

prestador de serviços de saúde. (TANAKA et. all, 1992)

Simultaneamente às discussões acerca da implantação do PREV-SAÚDE,

duas questões merecem ser realçadas. Primeiro, uma forte reação ao PIASS, que toma

corpo num movimento de oposição, exigindo que se aponte para a efetiva

descentralização dos serviços, com a inclusão dos usuários na definição das políticas.

Ao mesmo tempo, exigiam-se uma posição firme de combate à mercantilização na

saúde e o fortalecimento do setor público, em função de ações de maior qualidade,

vinculadas às necessidades da população. A outra questão dizia respeito ao

posicionamento do movimento sanitário diante da crise do custeio da assistência

médico-hospitalar, a qual se agrava, corroborada pela política econômica recessiva do

Governo Federal, adotada a partir de 1980. A crise fazia com que houvesse necessidade

de medidas administrativas para que se recompusesse o equilíbrio do sistema.

O governo, tentando responder às pressões sofridas pelos desdobramentos

desse conjunto de discussões, criou em 1981 o Conselho Consultivo de Administração

de Saúde Previdenciária (CONASP), com o objetivo de estudar e propor normas mais

adequadas à prestação de assistência à saúde da população previdenciária, assim como

indicar a necessária alocação de recursos financeiros ou de qualquer outra natureza,

indispensáveis à operação da rede de serviços. O CONASP absorveu, em postos de

importância, alguns técnicos progressistas e alinhados com o movimento sanitário. Essa

absorção deu início à ruptura dos anéis burocráticos criados pela tecnocracia da ditadura

que dominou o setor nos anos 1960 e 1970 e abriu espaço para a colocação em disputa

de projetos de cunho contra-hegemônico.

Nesse contexto, é apresentado e aprovado, em 1982, o Plano de

Reorientação da Assistência à Saúde no âmbito da Previdência Social, que tinha, entre

os seus objetivos principais: a) a melhoria da qualidade da assistência à saúde; b) a

cobertura desses serviços da forma igualitária para a população rural e urbana; c) o

planejamento da assistência à saúde de acordo com parâmetros definidos; e, d) o

aumento da produtividade com a racionalização de serviços. O Plano do CONASP,

como ficou conhecido o Plano de Reorientação da Assistência à Saúde, era composto

por 17 propostas, destacando-se, no meio delas, o Programa de Ações Integradas de

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Saúde (PAIS), que preconizava a regionalização progressiva do sistema de saúde,

planejado e coordenado por comissão paritária.

Esse Programa foi transformado na estratégia Ações Integradas de Saúde

(AIS) e propunha modificações substanciais no setor por meio da otimização dos

serviços públicos de saúde, a fim de atender a uma demanda crescente por assistência

médica. As AIS tinham como objetivo integrar e racionalizar o atendimento médico,

tornando os serviços de diferentes níveis de complexidade mais acessíveis à população e

propunham como instâncias de planejamento e gestão: a Comissão Interministerial de

Planejamento (CIPLAN), as Comissões Interinstitucionais de Saúde (CIS), em nível

estadual; as Comissões Regionais Interinstitucionais de Saúde (CRIS), em nível

regional sub-estadual, e as Comissões Locais ou Municipais de Saúde (CLIS ou CIMS),

em nível dos municípios.

Segundo Mendes (1999), o plano elaborado pelo CONASP operava uma

gradual reversão do modelo médico previdenciário, através de uma série de medidas

para aumentar a produtividade e a qualidade do sistema, eliminar a capacidade ociosa

do setor público, controlar as contas médicas para combater as fraudes, hierarquizar os

equipamentos, revisar a forma de pagamento dos serviços prestados pelo setor privado,

dentre outros. O plano, em função dos seus objetivos, teve o apoio do movimento

sanitário, mas enfrentou forte resistência da Federação Brasileira de Hospitais (FBH),

assim como da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (ABRAMGE) que via, nas

medidas propostas pelo CONASP, a possibilidade de perda da sua hegemonia dentro do

sistema de saúde.

A instituição das Ações Integradas de Saúde coincidiu com o movimento de

transição democrática, iniciado com as eleições diretas para governadores, e a vitória

esmagadora de oposição em quase todos os estados (1982). Esse fato, associado à

descentralização das ações de saúde, via Ações Integradas de Saúde, favoreceu a

entrada em jogo de outro ator relevante no campo da saúde, que irá se alinhar aos

preceitos colocados pelo movimento de Reforma Sanitária. Trata-se dos grupos de

interesse subnacionais emergentes da conjuntura de transição, em especial, os

secretários municipais e estaduais de saúde.

A partir do início da década de 80, com o processo de redemocratização em

curso, o setor saúde assiste a um processo contínuo de organização dos secretários

estaduais e dos secretários municipais de saúde. Os secretários estaduais criaram, já em

1982, o seu Conselho Nacional dos Secretários de Saúde – CONASS, enquanto que os

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secretários municipais, a partir de 1981, começaram a promover periodicamente os seus

Encontros Nacionais de Secretários Municipais de Saúde para, finalmente, em 1988,

fundar a sua entidade nacional, O Conselho Nacional de Secretários Municipais de

Saúde – CONASEMS.

O advento da Nova República, em 1985, representou a derrota da solução

ortodoxa privatista para a administração da crise da previdência e o predomínio de uma

visão publicista, comprometida com a Reforma Sanitária. O comando do INAMPS foi

assumido pelo grupo progressista, que disseminou os convênios das Ações Integradas

de Saúde pelo Brasil, aprofundando seus aspectos inovadores. Estavam dadas as bases

para o aprofundamento da proposta do movimento pela Reforma Sanitária Brasileira,

que iria desembocar na criação do SUS, na Assembléia Constituinte de 1988.

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5 A REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA: UMA CONSTRUÇÃO TEÓRICO-

POLÍTICA143

A recuperação dos elementos teórico-políticos da Reforma Sanitária

brasileira, movimento que redundou na criação e implantação do Sistema Único de

Saúde – SUS – e na composição dos elementos constituintes da sua práxis sistêmica144

assim como da lógica de suas intervenções, precisa considerar a relação com os

movimentos sociais nos aspectos ideológicos, políticos e econômicos, que a

contextualizaram nas últimas décadas do século passado. Essa busca pela compreensão

teórico-prática da saúde passa pelas disputas internas do estado brasileiro a partir da

institucionalização da República.

Fazer esse exercício implica tomar a saúde e suas políticas como um objeto

concreto que compreende um campo onde se expressam necessidades geradas pelo

fenômeno saúde-doença. Um espaço específico de produção, circulação e consumo de

mercadorias, bens e serviços/ações de saúde com base técnico-material, agentes e

instituições organizadas para enfrentar e tentar satisfazer necessidades e demandas. Um

espaço de densidade ideológica e de luta pela hegemonia onde se expressam conflitos

de classe redundantes em diferentes pressões por políticas sociais, que têm a ver com a

produção social e a potência tecnológica específica que busca solucionar problemas

tanto no nível do individual quanto no coletivo (TEIXEIRA, 1989).

A Reforma Sanitária brasileira é uma construção teórico-política. Nascida

da confluência e do sinergismo entre a academia e os movimentos sociais e populares,

constituiu-se, especialmente, a partir da segunda metade da década de setenta do século

passado, numa práxis com um forte viés crítico e transformador do setor saúde no país.

Capaz de acumular forças num momento difícil da conjuntura política brasileira, esse

movimento conseguiu articular diversos segmentos, intra e extra setor saúde, e fazer

143 Segundo a biblioteca virtual Sérgio Arouca: http://bvsarouca.cict.fiocruz.br/sanitarista05.html, “o termo “Reforma Sanitária” foi usado pela primeira vez no país em função da Reforma Sanitária italiana. A expressão ficou esquecida por um tempo, até ser recuperada nos debates prévios à 8ª Conferência Nacional de Saúde, quando foi usada para se referir ao conjunto de idéias construídas em relação às mudanças e transformações necessárias na área da saúde. Essas mudanças não abarcavam apenas o sistema, mas todo o setor saúde, introduzindo uma nova idéia na qual o resultado final era entendido como a melhoria das condições de vida da população”. 144 Por práxis sistêmica do SUS, entendam-se a concepção doutrinária, os modelos de organização, as relações intra e interinstitucionais, o financiamento, a gestão da atenção, as estratégias de formação e absorção da força de trabalho e a permeabilidade do próprio SUS à participação popular.

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valerem propostas com potencial para reformar a política pública de saúde, num

processo inacabado, mas que vem cumprir várias etapas numa trajetória não linear145,

mormente pelas conjunturas e estruturas que teve de enfrentar.

5.1 A invenção do SUS: representação de interesses na ampliação do Estado

brasileiro

O movimento pela Reforma Sanitária nasceu francamente contra-

hegemônico. Evoluiu com consistência, inventou o Sistema Único de Saúde (SUS) e no

processo constituinte conseguiu transformá-lo em política pública de Estado, ou seja, a

sua força lhe permitiu, num dado momento de redefinição do poder e da superestrutura

político-jurídica do Estado brasileiro, representar interesses da maioria da sociedade. A

representação de interesses é própria das sociedades humanas e pode ser entendida no

contexto da noção de Estado Ampliado, na visão de Gramsci146.

Quando não há uma sociedade civil forte e atuante, a relação entre Estado e

sociedade se caracteriza pela representação de interesses de uma única classe. O Estado

usa a coerção para impor os interesses dessa classe ao conjunto da sociedade. Na

relação entre Estado e sociedade, numa sociedade democrática, em que há uma forte

presença da sociedade civil, e os atores são constituídos a partir de múltiplos interesses

sempre postos em discussão e em confronto, assume peso cada vez maior a busca de

relações de consenso, o qual confere legitimidade aos interesses em disputa. Talvez seja

por isso que, em Cadernos do Cárcere, Gramsci se refira à necessidade de uma base

material para o consenso, ainda que lá essa base material tenha uma conotação

ideológica. O consenso, elemento fundamental para a consecução dessa base material,

está ligado à obtenção de apoio (legitimidade) para um conjunto de normas e valores de

ação (COUTINHO, 1989). É o que parece ter acontecido em relação à Reforma

145 Sobre a questão da não linearidade da Reforma Sanitária brasileira há que se considerar, para além da conjuntura política difícil, a própria estrutura estatal que veio se conformando desde os primórdios da República. 146 “O Estado é o complexo das atividades práticas e teóricas com o qual a classe dominante não somente justifica e mantém a dominação como procura conquistar o consentimento ativo daqueles sobre os quais ela governa (...) [O] Estado inclui elementos que também são comuns na noção de sociedade civil. Neste sentido poder-se-ia dizer que Estado = sociedade política + sociedade civil, em outras palavras, hegemonia garantida pela couraça da coerção”. (GRAMSCI, 1978)

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Sanitária brasileira, que criou o SUS. Buscando uma base material para a manutenção

do consenso sobre seus interesses mais profundos, a classe dominante, através do

Estado, viu-se obrigada a fazer concessões à classe contra-hegemônica que assim obteve

conquistas, fazendo valer interesses na estrutura estatal e influência na definição das

políticas públicas de saúde. Foi a partir da pressão exercida pelos movimentos sociais e

populares que a legislação básica que suportava a política nacional de saúde foi

reformada a partir do processo constituinte, abrindo espaço para um novo ciclo de lutas

pela reforma do setor saúde.

O contexto do processo constituinte permitiu a incorporação das demandas

sanitárias por meio de um conjunto de dispositivos legais e institucionais que apontaram

para um sistema único de serviços e ações de saúde. No texto constitucional, o conteúdo

relativo à saúde encontra-se no Título VIII – Da ordem Social. Seção II – Da saúde. Ao

todo, congrega cinco artigos (do 196 ao 200), que definem, respectivamente: o direito à

saúde e o dever do estado; a relevância pública das ações e dos serviços de saúde e a

necessidade de sua regulamentação em lei, inclusive no que concerne a sua execução,

fiscalização e controle; seu caráter de ser regionalizado e hierarquizado, assim como

suas diretrizes de descentralização, de atendimento integral com prioridade para as

ações preventivas e a participação da comunidade; seu financiamento nos termos do

Art. 195, com recursos da seguridade social da União, dos Estados, do Distrito Federal e

dos municípios; a livre participação da iniciativa privada na assistência à saúde e as

competências do próprio SUS.

Logo em seguida ao processo constituinte e já no governo Collor, o

movimento manteve-se ativo e, mesmo numa conjuntura mais difícil, foi possível levar

o Congresso Nacional a fazer com que as leis 8.080 de 19/09/1990 e 8.142 de

28/12/1990, que regulamentaram o texto constitucional e o regramento básico para o

funcionamento do SUS, fossem votadas. Porém, aprovado o conjunto de leis do SUS, a

correlação de forças oscilou bastante ao longo das últimas duas décadas, não

permitindo, ainda, a consecução integral do direito universal e igualitário à saúde em

todo o território nacional.

Isso significa que os avanços legais não têm sido convertidos em avanços

sociais homogêneos. O que há são distintas cidadanias em relação ao acesso às ações e

aos serviços de saúde. Os avanços práticos confirmam que se vive num processo

democrático crescente, mas que têm ficado ao sabor da conformação das identidades

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políticas e sociais de cada região, dando ao movimento um desenvolvimento

heterogêneo do ponto de vista das diferentes esferas de poder.

Mesmo assim, pode-se afirmar que o SUS, como um processo social,

adquiriu, a partir da sua constituição, uma dimensão ética e política fundada na

democracia e no desejo do seu alargamento, da sua radicalização. Por isso permitiu,

como permite ainda hoje, que diferentes atores sociais, dentro da arena sanitária,

expressem projetos diversificados e, por vezes, contraditórios.

Para além da dimensão ético-política, o processo social que fundou o SUS e

o mantém como pauta constante se expressa por dimensões ideológicas bem marcadas,

haja vista a participação, no movimento sanitário, de um leque variado de forças. Nesse

leque, porém, três forças bem distintas e contraditórias devem ser destacadas pela sua

atuação e tentativa de autonomia frente às esferas governamentais: o movimento

popular de saúde, inspirado na perspectiva da educação popular, o movimento dos

trabalhadores da saúde, desejoso de manter e aprofundar conquistas corporativas, e o

movimento dos prestadores privados conveniados ao sistema, mobilizado e em luta

constante por mais recursos, asseguradores da realização dos lucros do seu

empreendimento. Todos, ao fim, demonstram a sua força e jogam um papel

fundamental na defesa dos seus interesses dentro do setor saúde e no âmbito do Estado

brasileiro147.

Considerando as idéias de Minayo (2001), pode-se dizer que a proposta do

Sistema Único de Saúde foi/é a resposta de um dos mais exitosos movimentos sociais

brasileiros que chegou a transformar em ordem social constituída a universalização do

direito à saúde, fazendo-o dever do Estado. O SUS é uma contra-hegemonia em relação

à dinâmica das políticas de saúde da era republicana, quando a oferta de serviços de

saúde se pautou muito mais pela lógica de acumulação de capital do que pelas

necessidades de saúde da população brasileira. Nas palavras da autora,

[...] o Sistema Único de Saúde (SUS) é, ao mesmo tempo, um fato e um sentimento, uma retórica e uma prática, uma realização e uma utopia. Esse conjunto de construções imaginárias e reais simultâneas, que passam pelas subjetividades em busca de objetivação, tem atores, tem propostas e metas, assim como representa interesses. Por isso, na dinâmica do provisório e na incompletude que separa a realidade das intenções, a implantação desse

147 Ainda em relação ao leque de forças que compõe o movimento sanitário, não se deve esquecer o papel desempenhado pela academia, talvez o grande sustentáculo desse movimento, principalmente nos seus primórdios, como se verá na seqüência deste texto. Com a sua crítica e o seu poder, a academia municiou, como de resto continua municiando hoje as distintas partes desse leque.

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sistema é um processo complexo de construção e desconstrução de práticas, de protagonistas e de um novo ethos [...] A implementação dos preceitos constitucionais de universalização da atenção à saúde, de eqüidade no acesso aos serviços e de participação da sociedade nas definições das políticas, no acompanhamento de sua implementação e na sua fiscalização do uso dos recursos, é o próprio processo em construção do SUS (MINAYO, 2001, p. 27).

Teixeira (1989) observa que a saúde tem um caráter dual, podendo ser

tomada, ao mesmo tempo, como valor universal e como núcleo subversivo na luta pela

reforma da estrutura social. É, portanto, um campo privilegiado para a construção de

alianças políticas suprapartidárias e poli-classistas. No caso da Reforma Sanitária

brasileira, mesmo que tenha sido possível, em várias situações, a construção de um arco

de alianças políticas, na luta pelo direito à saúde, com capacidade de consignar um

arcabouço jurídico legal, sua sustentação e funcionamento adequados estará na

dependência da atuação crítica e firme das diversas partes envolvidas e na redefinição

dos objetivos em cada momento.

Precisa-se ponderar que reformar a lei não significa reformar a realidade.

Portanto, o processo de Reforma Sanitária é algo muito maior e mais profundo do que a

simples – mesmo que custosa e penosa – luta por escrever nos diplomas legais que o

SUS é universal, integral, equânime e construído, inclusive, a partir do princípio da

participação popular. Portanto, a construção do SUS é um movimento contínuo, que

necessita ser alimentado e sustentado constantemente. Nesse sentido, terá sempre um

forte viés contra-hegemônico em face do Estado. A democracia é o processo de reconhecimento dos trabalhadores como sujeito político a partir de suas lutas, em um processo mútuo de auto e hetero-reconhecimento de identidades sócio-políticas entre diferentes sujeitos; [...] As perspectivas da Reforma Sanitária decorrerão da capacidade apresentada pela coalizão reformadora de imprimir mudanças efetivas e no tempo certo nas estruturas institucionais, de forma a evitar que sejam filtrados pelos Estados apenas os aspectos racionalizantes dessa proposta, minando a sua base política (TEIXEIRA, 1989, p. 38-45).

Desde o período em que o texto acima citado foi escrito, pode-se dizer

que o processo democrático brasileiro evoluiu, atingiu um patamar sem precedentes na

sua história. Mesmo assim, os prognósticos da autora, em relação à Reforma Sanitária,

continuam atuais. Aliás, o movimento sanitário tem-se deparado, quase em todo

momento, com situações em que os aspectos racionalizantes tendem a preponderar

sobre os aspectos políticos das propostas que lhe deram origem e base de sustentação.

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5.2 Os fundamentos teórico-políticos da Reforma Sanitária brasileira

Teixeira (1989) ressalta alguns elementos decisivos que estiveram e

permanecem presentes no movimento de Reforma Sanitária que formou parte da base

que corporificou os interesses representados, sobretudo, no processo constituinte. Nesse

sentido, elenca: a ampliação da consciência sanitária; a construção de um paradigma

analítico, oriundo do campo da Medicina Social ou Saúde Coletiva, organizado a partir

das noções de determinação social do processo saúde-doença e sua organização; o

desenvolvimento de uma nova ética profissional; a construção de um arco de alianças na

luta política pelo direito à saúde e a criação de instrumentos de gestão democrática e

controle social do sistema de saúde.

Decorridas quase duas décadas da pronúncia desses elementos, é possível

tecer algumas considerações sobre sua atualidade no contexto presente da Reforma

Sanitária. O primeiro deles, a ampliação da consciência sanitária, experimentou

razoável evolução, resultado do esforço teórico e metodológico da academia brasileira e

latino-americana, traduzido com sucesso para os movimentos sociais e populares. Fruto

dessa articulação, há, hoje, um paradigma oriundo do campo disciplinar da Saúde

Coletiva, organizado a partir da noção de determinação social do processo saúde-

doença que tem influído positivamente na organização de práticas de saúde próximas do

ideário da Reforma Sanitária.

A instituição do Sistema Único de Saúde foi, talvez, a maior conquista da

Reforma Sanitária, ainda que o movimento constante e dialético de criar, satisfazer e

recriar novas necessidades demonstre que, a cada passo dado na evolução desse sistema,

os horizontes ora se alargam e se aproximam ora se distanciam e se estreitam em

relação à imagem-objetivo estipulada – saúde como direito de todos e dever do

Estado148 – sempre ao sabor dos tempos e de variáveis técnicas, tecnológicas,

econômicas e políticas assim como dos fluxos e refluxos dos movimentos sociais que

funcionam como o termômetro da Reforma Sanitária.

148 Esse lema, que já embalara os movimentos sociais do período pré-64, presidiu também as lutas dos movimentos sociais e populares durante os tempos difíceis da ditadura militar. Foi decisivo para a vitória da estratégia do movimento sanitário no antes e no durante do processo constituinte. Tanto isso é verdade, que acabou por abrir a Secção II – Da Saúde, do Título VIII – Da Ordem Social, da Constituição de 1988. Lá está escrito: “Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, produção e recuperação”.

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O modelo da determinação social do processo saúde-doença resultou da

articulação entre as Ciências Sociais, a Epidemiologia e as Políticas de Saúde. Teve o

mérito de buscar a superação das orientações funcionalistas das ciências do

comportamento e das visões tecnocráticas de determinadas perspectivas de

planejamento e da administração de saúde, que olhavam para a doença como o resultado

multicausal e anistórico de fatores bio-psico-sociais (CORDEIRO, 2004). Esse modelo

ancorou-se num conjunto de categorias explicativas, entre as quais ganham relevo

processo de trabalho e classe social. Através dessas duas categorias é que tem sido

exercida a crítica às abordagens puramente biologicistas de explicação do processo

saúde-doença.

Um dos problemas das abordagens fundadas unicamente na natureza

biológica do ser é que essas categorias não distinguem a população com base na sua

heterogeneidade social, gerada pela posição de diferentes sujeitos ou grupos sociais

diante dos meios e das relações de produção que definem o lugar de cada um no

trabalho de transformar a natureza. É pela relação de trabalho, pela definição do lugar

de cada classe social no processo produtivo e pela forma como cada classe participa da

apropriação e transformação da natureza por meio de determinada forma de organização

social que o homem tem determinada a sua forma de adoecer e morrer (LAURELL,

1983; MARX, 1988; POSSAS, 1989).

A visão biológica reduz o homem à sua mais elementar condição animal,

biológica, em que sua condição de produtor, expressa pelos padrões de consumo de que

desfruta, como conseqüência de sua inserção na produção, é transferida para o meio

ambiente onde ele (homem) é decomposto em variáveis quantitativas ditadas por

critérios naturais como sexo, idade, raça, renda, grau de instrução e outros. Essa redução

naturalizadora, segundo a crítica da medicina social, confere ao modelo ecológico uma

racionalidade duplamente útil ao sistema capitalista. De um lado, esconde as profundas

diferenças de classe que resultam dessa organização produtiva e, de outro, dificulta a

atuação frente ao problema da saúde, que é visto e atacado sob um ângulo puramente

biologicista. A conseqüência dessa visão é o obscurecimento da origem social da sua

produção e a decretação de uma ruptura entre os sujeitos sociais e seus produtos

culturais, envolvidos numa manobra ideológica compatível com a dominação sutil e

tecnificada do capitalismo (BARATA, 1985, p. 23-24).

A ampliação da consciência sanitária permitiu ao movimento de Reforma

Sanitária propugnar por uma nova visão ética profissional fundada numa relação social

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em que a qualidade de humano se coloca como atributo fundamental desses seres em

relação, passando a mediar o encontro entre o profissional de saúde e o seu outro, o

destinatário de sua ação ou serviço de saúde. Nessa relação, ambos se apropriam dos

produtos da relação construída e, ao mesmo tempo, socializam-nos, constituindo, talvez,

o desafio mais difícil em se tratando da Reforma Sanitária: o florescimento de novas

atitudes que, para além de ideais e de lutas sociais, transformem o cotidiano de sujeitos

em relação.

Novas atitudes revelam e refletem conflitos no que tange ao posicionamento

ético. E, tendo em vista que a ética não se constrói apenas no plano teórico, a ética da

Reforma Sanitária se constituiu como uma ética de resistência contra outra ética

hegemônica, moldada pela economia, pela política partidária de cunho fisiológico e pela

administração, no seu sentido burocrático, que, não raro, contradiz o concreto e o

pensamento, no limite, degradando relações humanas saudáveis quando estas tentam se

constituir. Portanto, a ética de resistência da Reforma Sanitária se constrói num terreno

pantanoso de contradições, onde os grupos que sustentam o seu movimento precisam

estar atentos e vigilantes à sua crítica, para que as formulações não enveredem nem para

o refúgio de um credo de negação de tudo que está a sua volta e, tampouco, caia na

atitude hipócrita de confirmar-se apenas como retórica vazia – ainda que bem

intencionada – e plena de falsa consciência.

Quanto à questão do arco de alianças políticas pelo direito à saúde, pode-se

avaliar que foi possível avançar, mesmo dentro dos marcos da ditadura militar.

Sufocado pelo regime militar nos primeiros dez anos, manteve-se latente um

movimento, principalmente no âmbito das IFES, que não parou de pensar e refletir a

situação social e política do país e, portanto, a problemática relativa à saúde da

população. Decorrida a primeira parte dos anos setenta, a nova conjuntura política

propiciada pela distensão no interior do governo militar, que caracterizaria os dez anos

seguintes, permitiu um maior investimento na área social. Essa realidade trouxe

condições para o fortalecimento das instituições de ensino e pesquisa e, assim, o

desenvolvimento da Saúde Coletiva como um novo campo de conhecimento. Essa

mesma conjuntura provocou um afrouxamento relativo dos controles da ditadura sobre

os movimentos sociais que experimentaram um ascenso.

É justamente a partir desse momento que o movimento sanitário ganha

visibilidade, passando a se articular, ainda que controlado, à luz do dia. Primeiro, as

alianças se deram dentro do próprio campo da esquerda e da centro-esquerda, mesmo

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com diferenças ideológicas em torno da estratégia ou das táticas de enfrentamento do

Estado Militar e das transformações que deveriam ser levadas a cabo para a sua

superação. Mesmo na divergência, souberam convergir numa série de pontos relativos à

Reforma Sanitária.

Já no processo de redemocratização orientado pela Nova República, que

inclui o período do processo constituinte – quando esse arco experimentou um razoável

alargamento – até os dias atuais, o que se tem é um campo da saúde que congrega vários

partidos e correntes de pensamento no parlamento e nos movimentos sociais. Eles vão

da esquerda mais ortodoxa, ao conservadorismo, por vezes, recalcitrante. Essa

composição difícil constituiu-se arena de embates intermináveis que dão certa lentidão,

às vezes mesmo, uma sensação de paralisia ao movimento sanitário. Não raro, tem-se a

impressão de que não seria mais possível avançar com as reformas.

Quanto à criação de instrumentos de gestão democrática e controle social do

sistema de saúde, as propostas que foram gestadas, durante o primeiro momento de

maturação do movimento de Reforma Sanitária, sob a Ditadura Militar, desaguaram na

VIII Conferência Nacional de Saúde e, depois, na Comissão Nacional de Reforma

Sanitária149, em que passaram por um amplo processo de aperfeiçoamento para,

finalmente, serem confirmadas em lei, no processo constituinte, compondo o capítulo

relativo à saúde na Constituição Federal de 1988150. O capítulo da Constituição e,

depois, as Leis 8.080/90151 e 8.142/90152 definiram os instrumentos de organização,

gestão e controle social do SUS.

Por esses documentos legais, o SUS agrega, como instâncias deliberativas

das políticas de saúde, a Conferência Nacional de Saúde, as Conferências Estaduais de

Saúde e as Conferências Municipais de Saúde e, como instâncias de controle social, o

149 A Comissão Nacional da Reforma Sanitária foi deliberada na Plenária Final da VIII Conferência Nacional de Saúde. Era formada por um amplo arco de representações que envolvia praticamente todos os segmentos da sociedade brasileira, conservadores ou progressistas, através de suas entidades. Além de transformar as deliberações da VIII CNS na proposta do movimento sanitário para o capítulo da saúde na Constituição de 1988, teve a incumbência de preparar a proposta desse mesmo movimento para a Lei Orgânica da saúde (Lei 8.080/90), a partir do texto da Constituição Federal. 150 O Título VIII – Da ordem Social, Seção II – Da Saúde, a C.F. reza que os serviços de saúde são de relevância pública e integram uma rede regionalizada e hierarquizada que constitui um sistema único que é público, mas, ao mesmo tempo, é livre à assistência privada, que o compõe de forma complementar, segundo diretrizes do SUS e mediante contrato de direito público ou convênio. 151 É uma lei orgânica da saúde que regulamenta a C.F., dispondo sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dando outras providências. 152 É uma segunda lei orgânica da saúde, que dispõe sobre a participação da comunidade, na gestão do Sistema Único de Saúde, e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área de saúde, dando também outras providências.

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Conselho Nacional de Saúde, os Conselhos Estaduais de Saúde e os Conselhos

Municipais de Saúde. Todas essas instâncias funcionam com paridade de representação

entre população (50%) e gestores e prestadores de serviços de saúde (50%) e

representam, talvez, o grande avanço democrático do sistema, ainda que seja permeável

a práticas capazes de corromper os seus princípios, principalmente onde não se tenha

avançado no que diz respeito à ética pública e à cidadania.

Levcovitz (1997), tentando dar conta do movimento de Reforma Sanitária,

propõe uma esquematização para abranger as últimas décadas correspondentes às lutas

do movimento sanitário em busca da reforma do setor saúde. Na sua esquematização, o

autor vê cinco fases ou períodos e tenta captar, em cada um deles, o objetivo central da

política de saúde e os seus marcos concretos em termos político-sociais, legislativos e

administrativos. Mesmo compreendendo que a esquematização, como de resto qualquer

tentativa esquema ou modelo, é limitada, por não conseguir abarcar a dialética e a

riqueza do real, ela será tomada em alguns momentos como aproximação dos principais

movimentos que ocorreram no âmbito da Reforma Sanitária brasileira.

O primeiro período que corresponde aos anos de 1974-1979 é caracterizado

como teórico-conceitual da Reforma Sanitária, quando a investigação sobre os

determinantes econômicos, políticos e sociais da conformação do sistema de saúde e a

formulação de alternativas da reforma se sobressaem. Desse período, entre vários

trabalhos importantes, na literatura que problematizou o que viriam a ser os marcos

teóricos da Reforma Sanitária brasileira, dois merecem destaque: O dilema

preventivista153, de Sérgio Arouca, e Medicina e sociedade154, de Cecília Donnângelo,

ambos de 1975.

O dilema preventivista mescla elementos conceituais do pensamento

marxista com a formulação foucaultiana da arqueologia do saber. Utilizando-se dessa

perspectiva teórica, critica a concepção liberal e individualista que dera sustentação à

medicina preventiva brasileira, até então. Ao expor suas limitações, abre caminho para

uma nova construção teórica que elege a abordagem histórica como caminho

fundamental para se colocar o campo da saúde pública no interior dos conflitos sociais.

Medicina e sociedade é considerada fundamental, paradigmática mesmo,

para a área da saúde, porque, ao trazer a profissão médica, sua inserção no mercado e 153 AROUCA, A. S. S. – O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. Tese de Doutorado, FCM/UNICAMP, 1975, mimeo. 154 DONNANGELO, M. C.F. – Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo, Pioneira, 1975.

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seus dilemas frente às políticas públicas, para o centro do debate, contribui para

reorganizar o pensamento médico. Entretanto, o recorte de sua pesquisa, ao eleger o

médico, não perde de vista as relações travadas por esse profissional com os demais

profissionais da área. Assim, acaba por analisar as formas ideológicas apresentadas

pelos vários profissionais de saúde, no mercado de trabalho e nos seus órgãos

formadores, e suas contribuições incorporaram novas demandas sociais à saúde, à

educação médica e viabilizaram discussões teóricas e práticas no âmbito das políticas

públicas a serem implementadas.

Esses dois trabalhos são importantes porque refletem, para dentro do

ambiente de prospecção, questionamentos e novas proposições em torno da prática

médica e uma crítica tanto ao modelo médico-assistencial privatista quanto à teoria

preventivista até então hegemônica na análise teórica dos problemas de saúde. Portanto,

impulsionam a delimitação do campo teórico da saúde coletiva, onde a análise do

processo saúde-doença não teria mais como objeto o indivíduo isoladamente ou o seu

somatório, mas sim, a coletividade (classes sociais e suas frações) e a distribuição

demográfica da saúde e da doença.

Escorel (1998) analisa que a produção desses dois autores introduziu uma

nova interpretação da ciência em relação à saúde, que deixava de ser percebida como

algo neutro. Assim, a teoria que se cria a partir dela passa a ser vista como um

instrumento de luta política, ou seja, a realidade sanitária passa, ao mesmo tempo, a ser

objeto de estudo e de luta e intervenção política.

A luta e a intervenção política se davam interna e externamente ao próprio

movimento sanitário. Nesse aspecto, parece importante fazer menção a três propostas do

governo da ditadura que foram, ao mesmo tempo, apoiadas, quando se tratava da

discussão do que fazer, e duramente criticadas, quando se referia ao como fazer,

mostrando as diferenças ideológicas e práticas que estavam subsumidas nas tentativas

de influenciar e efetivar mudanças no sistema de atenção à saúde. O primeiro foi o

Programa de Pronta Ação (PPA) que, como já foi visto, buscava universalizar o

atendimento às emergências nas unidades hospitalares credenciadas ao sistema

previdenciário. Em seguida, veio o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e

Saneamento (PIASS), que tentava avançar no campo da extensão de cobertura da

atenção ambulatorial, principalmente nas cidades com menos de 20.000 habitantes, e o

PREV-Saúde, uma proposta com a pretensão de universalizar as ações básicas de saúde,

reorganizar as instituições de saúde e promover melhoras ambientais.

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Nessa primeira fase do movimento mais visível da Reforma Sanitária, ficou

como destaque o posicionamento crítico do movimento à Lei N.º 6.229 de 17 de Julho

de 1975, que instituiu o Sistema Nacional de Saúde, e o apoio e aproveitamento das

reflexões e do relatório da Conferência Mundial de Saúde de Alma-Ata, realizada em

setembro de 1978. A crítica mostra que a lei expressava um caráter ordenador de

funções para vários ministérios: Saúde, Previdência e Assistência Social, Educação e

Interior, constituindo uma política fragmentada, plena de duplicações e superposições

que, ao fim, não ofereciam um plano estratégico e integrado de ação da saúde.

A impressão deixada por essa lei é a de que a soma das partes não

compunha um todo articulado no sentido do diagnóstico, planejamento, execução e

avaliação das ações que deveriam ter como produto final a saúde da população. A

crítica mostrava a contradição da dicotomia plasmada entre as ações preventivas a cargo

do Ministério da Saúde e as ações de assistência assumidas pelo Ministério da

Previdência e Assistência Social.

A Conferência de Alma-Ata155 constituiu-se um marco histórico da saúde

mundial ao inaugurar um novo paradigma para a discussão da saúde. Foi nela que se

legitimou um amplo debate no qual o contexto social, econômico e político passou a

tomar o lugar de construções biologicistas na explicação do fenômeno saúde/doença.

Nessa ocasião, o mundo voltou-se para a questão da Atenção Primária em Saúde (APS)

e apontou a meta de Saúde para Todos no ano 2000, assumida pelas autoridades

mundiais (ministros e representantes de chefes de Estado) presentes no evento.

Desde esse fórum, entidades governamentais e não-governamentais,

profissionais de saúde, em geral, e usuários, a partir de suas organizações, vêm

desenvolvendo a idéia de que a visão clássica de atenção à saúde voltada para o

assistencial, para o processo curativo, para o atendimento individual sustentado por uma

tecnologia, quase sempre centrada no hospital e no médico, não mais se justifica por não

ser capaz de fazer frente aos reais problemas de saúde de uma população. A visão

flexneriana de atenção à saúde começava então a ser questionada com alguma

155 A Conferência de Alma-Ata foi promovida pela Organização Mundial de Saúde e realizada na antiga União Soviética, entre 06 e 12 de setembro de 1978. Independente do idealismo e otimismo quase ingênuo da sua meta, Saúde para Todos no ano 2000, que envolvia mundos tão distintos e heterogêneos como Europa, Américas, África, Ásia e Oceania, desempenhou um importante papel ao chamar a atenção para as mudanças paradigmáticas que precisavam acontecer naqueles continentes e, em particular, em diferentes áreas do conhecimento que integravam a discussão e a atuação na saúde. Isso significou uma proposta de mudança de eixo nas práticas em saúde, em particular, na prática médica. A idéia é que se deveria passar da assistência pura e simples, para a perspectiva da promoção da saúde.

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veemência. E o significativo é que isso acontecia num dos berços onde foi implantado o

modelo proposto por Flexner: o Canadá156.

Por isso, faz-se necessário precisar essa conferência mundial como uma

culminância, e não, como um início da discussão da Atenção Primária em Saúde. Seus

elementos teóricos poderão ser encontrados nos movimentos contra-hegemônicos ao

modelo de atenção à saúde prestada pelo Estado, os quais já se fortaleciam no Brasil e

em amplas partes do mundo, desde os anos 60, em alguns casos, nos anos 50. Foi nesse

período em que começaram a surgir modelos inovadores para se pensar a atenção à

saúde. Esses modelos, colados na idéia de saúde como um estado de completo bem-

estar físico, mental e social, passavam a nortear a discussão sobre a definição de

políticas para o setor.

Com essa conotação, promover saúde passou a significar promover

condições de vida digna, ou seja, direito à moradia, à educação, ao atendimento integral

em saúde e à participação e intervenção popular. Esses princípios eram divulgados pela

Organização Pan-americana de Saúde, nos anos 50 e início dos anos 60, principalmente,

e serviram de indicativos para a construção dos modelos de Medicina Comunitária e de

Medicina Preventiva no Brasil dos anos 60. Porém, esses princípios só ganharam maior

intensidade quando, na segunda parte dos anos 70, foram resgatados pelo movimento

reformista da saúde.

A idéia da promoção da saúde e da busca da qualidade de vida foi então

colocada como um fim a ser perseguido, mediante a formalização de planos, com a

participação dos mais diversos atores, numa perspectiva de largo espectro, que

articulava quase sempre questões como educação, alimentação, saneamento básico,

prevenção de endemias, assistência materno-infantil, medicamentos e demais questões

típicas do cuidado à saúde. Outro ponto importante dizia respeito ao uso de uma

tecnologia social que incluísse ação comunitária, autodeterminação e auto-

responsabilidade, significando o que depois foi designado de empoderamento social157

(BUSS, 2001; FERREIRA; BUSS, 2001).

156 A referência, no caso, é o relatório Lalonde, do qual já nos ocupamos num dos capítulos anteriores. Esse relatório alterava a visão de saúde tradicional, ao articular dimensões como: biologia humana, estilos de vida, meio ambiente e serviços de saúde. Essa visão trazia para um mesmo plano a discussão e intervenção sobre os problemas de saúde, vencendo a dicotomia: ações curativas x ações preventivas. 157 Apesar de ser um neologismo, empoderamento é um conceito já largamente empregado na língua portuguesa para traduzir o termo original do inglês empowerment, que surgiu no contexto das conferências internacionais de saúde. Designa um processo contínuo de fortalecimento da autoconfiança dos grupos populacionais desfavorecidos, capacitando-os para a articulação de seus interesses e para a

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Esse momento da discussão, em nível internacional, da saúde como política

pública, e o seu rebatimento sobre a política nacional de saúde pode ser considerado

como um divisor de águas para o que Levcovitz (1997) denomina de segunda fase da

Reforma Sanitária, caracterizando o seu momento político-ideológico (1980-1986),

correspondente à disseminação das propostas de reforma e aglutinação da coalizão

sócio-política de sustentação da própria reforma.

Favorecido pela correlação de forças no Congresso Nacional, pela eleição

de uma grande bancada de deputados ligados à oposição, o movimento sanitário

pressionou e conseguiu um importante fórum de debate para as suas idéias: o I

Simpósio sobre Política Nacional de Saúde da Câmara dos Deputados, que alargou as

bases de apoio ao movimento de reforma do setor saúde e jogou um importante papel

como subsídio para eventos seguintes, entre eles, os debates referentes à VII

Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1980158.

Esse evento foi fundamental para a constituição de uma agenda preliminar

da Reforma Sanitária, onde foram incluídos temas como: integração, unificação,

universalização, descentralização, regionalização, hierarquização e relação público-

privado. Houve todo um esforço da intelectualidade orgânica representada pela

academia, por partidos, inclusive os clandestinos, entidades sindicais e de profissionais

de saúde, além de movimentos populares, para sintetizar e unificar propostas debatidas

inicialmente naqueles segmentos. Foi nesse simpósio que o Centro Brasileiro de

Estudos em Saúde – CEBES - apresentou um documento tido como um marco

fundamental para a Reforma Sanitária, cujo título era A questão democrática na área da

saúde. Nesse documento, ficou claro o posicionamento do movimento sanitário

quanto à crítica ao sistema de saúde em execução. Essa crítica transcendia o limite

específico do setor e buscava a unificação com outras lutas gerais da sociedade, pois, no

fundo, o que estava sendo contestado, sobretudo, eram a ideologia e os métodos da

ditadura militar e a sua perspectiva de controlar a sociedade, evitando que esta se participação na comunidade. O que lhes facilita o acesso aos recursos disponíveis é o controle sobre eles, a fim de que possam exercitar a autodeterminação, a auto-responsabilidade e a participação nos processos políticos. Nesse sentido, assume importância central a modificação das instituições sociais, econômicas, jurídicas e políticas, que representam os lugares e as relações de poder. 158 Essa Conferência foi constituída quase que exclusivamente de técnicos da área da saúde – MS e secretarias estaduais – e teve como temática principal a Política de Extensão de Cobertura dos Serviços de Saúde. Durante ela, foi feita uma releitura do PIASS e proposta a sua extensão para todo o território nacional. A proposta ganhou corpo com a configuração formal da proposta do PREV-Saúde, apresentada no âmbito da discussão da VII Conferência Nacional de Saúde (1980).

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expressasse livremente sobre as questões que definiam políticas públicas, todas com um

viés empresarial e mercantilista, e, naquele momento, entregues aos círculos

burocráticos que serviam ao poder. O movimento contestava essa atitude e

responsabilizava o regime militar pelas conseqüências nefastas desse controle sobre a

política de saúde, [...] que substitui a voz da população pela sabedoria dos tecnocratas e pelas pressões dos diversos setores empresariais; política de saúde que acompanha em seu traçado as linhas gerais do posicionamento sócio-econômico do governo – privatizante, empresarial e concentrada em renda, marginalizando cerca de 70% da população dos benefícios materiais e culturais do crescimento econômico [...] Política de saúde, enfim, que esquece as necessidades reais da população e se norteia exclusivamente pelos interesses da minoria constituída e confirmada pelos donos das empresas médicas e gestores da indústria da saúde em geral (CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS EM SAÚDE, 1980, p. 47).

O posicionamento do movimento sanitário e a sua capacidade de se aliançar

com outros movimentos mais gerais da sociedade foram importantes nesse momento,

pois, de um lado, foi capaz de ir, aos poucos, minando o poder do regime militar e, de

outro, legitimando-se junto à população e aos demais movimentos sociais e populares. E

essa questão da legitimidade era importante, na medida em que, segundo Escorel

(1998), o movimento, inicialmente, não se encontrava articulado com o sujeito social a

quem se destinava, porque esse sujeito estava silenciado pelo regime autoritário. O movimento sanitário, em sua conformação, falava de uma classe operária que não aparecia no cenário político nem geral nem setorial. Por ser um movimento e não um partido, e por falar de uma classe ausente, o discurso médico-social de transformação continha esse outro ponto de tensão: sem contar com a participação direta da classe trabalhadora, o discurso e a prática do movimento sanitário era feito [sic] para ela (em direção a ela) ou por ela (no lugar dela) [...] Em sua configuração, o movimento sanitário caracterizou-se por buscar – e ainda busca – seus sujeitos sociais. Mas é um movimento coletiva e organicamente ligado às classes populares e à proposta de melhoria de suas condições de saúde (ESCOREL, 1998, p. 182).

A acumulação do movimento sanitário, na visão de Teixeira (1997),

caracterizou-se pela construção de um saber e pela expressão de uma prática que lhe

dava materialidade. Um movimento ideológico e uma prática política que tinham como

base inspiradora a realidade, a vida, o trabalho e a saúde das pessoas. O saber pode ser

representado na transformação de um produto ideológico em conhecimento teórico, a

partir de um determinado trabalho conceitual; o movimento ideológico pode ser

percebido na construção de uma consciência produzida a partir da consciência de si

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mesmo, e a prática política se expressa através da transformação das relações sociais

produzidas a partir da utilização de instrumentos políticos.

Enfim, o movimento sanitário exprimia a possibilidade de a prática médica

ser traduzida como uma práxis que buscasse o diálogo com o Estado, com os seus pares,

com a realidade social e política do país e com os usuários dos serviços de saúde.

Portanto, com os destinatários diretos e indiretos do seu quefazer.

O fato é que esse movimento foi capaz de aproveitar a confluência entre a

Academia e a práxis dos movimentos sociais e populares, produzir as devidas críticas ao

complexo médico-empresarial e exercitar propostas de descentralização,

municipalização e mudanças na relação entre os profissionais de saúde e a população,

ou seja, mudanças nas práticas de saúde, mudanças nas relações médico-sociais. Desses

exercícios é que brotaram alternativas que se traduziram em novas bases para a

discussão e construção de outro projeto para o setor. Foi particularmente importante

para este momento a recuperação de todo um conjunto de teorias do campo da

sociologia médica que, concomitante aos movimentos sociais, constituía-se nas

academias da Europa, da América do Norte e da América Latina.

A esse respeito, parece importante reproduzir aqui um depoimento do

sanitarista Sérgio Arouca, dado à RADIS159, quando perguntado sobre o sentido do

movimento de Reforma Sanitária, os avanços conseguidos por ela e a sua atualidade, ao

que ele respondeu: O movimento da Reforma Sanitária nasceu dentro da perspectiva da luta contra a ditadura, da frente democrática, de realizar trabalhos onde existiam espaços institucionais. Na área da saúde, existia a idéia clara de que não poderíamos fazer disso uma esquizofrenia, ser médico e lutar contra a ditadura. Era preciso integrar essas duas dimensões. (grifo nosso) O espaço para essa integração era o da Medicina Preventiva, movimento recém-criado no Brasil, que começou na Escola Paulista de Medicina, em Ribeirão Preto, e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A idéia era que o Sistema de Saúde não precisava mudar em nada, que se poderiam deixar as clínicas privadas e planos de saúde como estavam e que bastava mudar a mentalidade do médico. (grifo nosso) O movimento da Reforma Sanitária cria uma alternativa, que se abria para uma análise de esquerda marxista da saúde, na qual se rediscutem o conceito saúde/doença e o processo de trabalho, em vez de se tratar apenas da relação médico/paciente. Discute-se a determinação social da doença e se introduz a noção de estrutura de sistema. Começamos a fazer projetos de saúde comunitária, como clínica de família e pesquisas

159 Segundo o seu portal na internet, RADIS (Reunião, Análise e Difusão de Informações sobre Saúde) é um programa nacional de jornalismo em Saúde Pública, ligado à Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), órgão do Ministério da Saúde. Criado em 1982 na ENSP, o Programa RADIS publicou, durante vinte anos, as revistas Súmula, Tema e Dados. De 86 a 93, publicou também o jornal tablóide Proposta - Jornal da Reforma Sanitária, renomeado, em 1994, como Jornal do RADIS.

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comunitárias, e fizemos treinamento do pessoal que fazia política em todo Brasil. (grifo nosso) No PCB, havia uma dinâmica para o debate sobre saúde. Quando a Ditadura chegou ao seu esgotamento, o movimento já tinha propostas. Não só criou quadros de profissionais, mas também meios de comunicação, espaço acadêmico consolidado, movimento sindical estruturado e muitas práticas. (grifo nosso) Assim, esse movimento conseguiu se articular em um documento chamado Saúde e Democracia, que foi um grande marco, e enviá-lo para aprovação do Legislativo. Nós queríamos conquistar a democracia para então começar a mudar o sistema de saúde, porque tínhamos muito claro que ditadura e saúde são incompatíveis. (grifo nosso) Nosso primeiro movimento era, portanto, no sentido de derrubar a ditadura, e não, de melhorar a saúde. Tudo isso aconteceu antes da constituinte (AROUCA..., 2002).

As bases definitivas do movimento por um novo sistema de saúde

desaguaram com o fim do regime militar e o advento da Nova República, num evento

histórico e emblemático para o setor, a VIII Conferência Nacional de Saúde160, marco

fundamental que detonou o movimento político-institucional da Reforma Sanitária

brasileira, o terceiro momento da reforma, no esquema de análise de Levcovitz (1997).

Foi lá que, pela primeira vez, em várias décadas, pôde-se discutir, em escala nacional,

com as diversas representações da sociedade, a proposta de criação de um novo sistema

de saúde, o SUS. Foi, enfim, chancelado e fortalecido por essa importante conferência

que novas lutas puderam ser travadas no interior dos diversos setores da sociedade e do

Estado brasileiro.

Essas lutas, influenciando o processo constituinte, inscreveram na Carta

Magna as diretrizes mais gerais do Sistema Único de Saúde161. O SUS pretendeu, na sua

essência, promover a descentralização, a democratização e a participação popular,

premissas entendidas como básicas para uma nova prática, para uma nova visão do fazer

e do promover saúde.

160 A VIII CNS reuniu cerca de cinco mil pessoas. Dessas, mil e quinhentos eram delegados qualificados, para discutir e votar a reforma sanitária a ser implantada na Nova República: mudança político-institucional que colocou o país de volta nos trilhos da democracia. Importantes setores da sociedade civil, antes marginalizados e excluídos da tomada de decisão sobre as questões relativas à saúde e às demais políticas públicas, completaram o público que constituiu esse evento. Sindicatos e organizações populares e comunitárias participaram em massa da VIII CNS, exercendo com a sua voz ou com a voz e o voto de seus representantes, qualificados como delegados, o direito de afirmar os seus projetos específicos para a saúde.161 As diretrizes gerais do SUS estão definidas no Artigo 198 da Constituição Federal e dizem respeito: I) à descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II) ao atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e, III) à participação da comunidade (Brasil, 1988, C.F. Art. 198).

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5.3 A municipalização das ações de saúde: avanços, contradições

A Reforma Sanitária, ao longo dos últimos trinta anos, pretendeu ser um

processo de transformação da norma legal e do aparelho institucional na

regulamentação e responsabilização do Estado, no que tange à proteção e à saúde dos

cidadãos. A expressão material dessa regulamentação se concretizou na adoção do

direito universal à saúde e na criação de um sistema único de serviços, sob a égide do

Estado. A esse movimento, correspondeu o deslocamento do poder político em direção

às camadas populares, via processo de desconcentração financeira e descentralização

política da gestão, da atenção e do controle social do sistema, processo que pode ser

sintetizado no que ficou conhecido como municipalização da saúde.

O SUS, na teoria, apresenta-se como um sistema centrado no município,

território real onde as coisas efetivamente acontecem. Mas, ao mesmo tempo, incentiva

a solidariedade e o compartilhamento da sua gestão com as demais esferas de governo.

Por isso a sua construção caminhou para a municipalização, resultado de um processo

político que permitiu a gradual descentralização da política de saúde. Essa

descentralização definiu o papel das três esferas de governo na gestão do SUS, um

avanço que deve ser creditado à consolidação do processo democrático e à confirmação

de princípios republicanos de base federativa, em última instância, sustentadora do

Estado brasileiro.

Mesmo sendo, nas atuais condições, quase que irreversível, a

municipalização não tem sido um processo tranqüilo e linear. A transferência

progressiva de responsabilidades, atribuições e recursos do nível federal para estados e

municípios tem se dado à custa de mecanismos de negociação e relacionamento entre

gestores, na maioria das vezes, dificultosos. As dificuldades parecem residir no

funcionamento do modelo federativo trino. Em cada esfera, existe autonomia de poder,

ainda que relativa, competências concorrentes e mecanismos de cooperação,

coordenação e regulamentação, frágeis. Em decorrência dessas dificuldades, há

conflitos acentuados e competitividade nas relações entre os gestores nos diversos

níveis: federal-estadual, federal-municipal, estadual-estadual, estadual-municipal e

municipal-municipal.

Vários elementos, entre eles, a desigualdade social e econômica e a

heterogeneidade territorial, plasma uma tendência à fragmentação do sistema de saúde.

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Um dado importante é que mais de dois terços dos municípios brasileiros têm menos de

20.000 habitantes. Isso confere dificuldades técnicas e tecnológicas para que cumpram a

sua responsabilidade sanitária frente à população, principalmente no que tange à

integralidade da atenção. Por conta do perfil sócio-econômico, tornam-se dependentes

das transferências federais, via Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e dos

mecanismos de pactuação entre esferas governamentais (Bipartites e Tripartites),

criadas e fortalecidas no SUS.

Percebe-se que há uma relação paradoxal entre as unidades federadas. A

autonomia federativa coexiste com práticas político-administrativas centralizadoras.

Isso enfraquece os pactos de gestão que, muitas vezes, transformam-se em meros

instrumentos burocráticos, ao invés de assumirem o seu valor jurídico-legal. Um

agravante dessa realidade de enfraquecimento é o de que esses pactos, mesmo se

realizando entre os gestores do sistema, são pouco permeáveis ao controle social, o que

faculta a desresponsabilização com o cumprimento das metas pactuadas, que findam

tendo um caráter apenas formal.

Entretanto, pode-se dizer que, com o processo de municipalização e a

conseqüente desconcentração e expansão da oferta de serviços, o sistema público de

saúde fortaleceu a sua capacidade de gestão e organização. Nesse particular, foi

favorecido por movimentos pela adequação da oferta às necessidades da população.

Essa adequação teve como fim a hierarquização e regionalização dos serviços e

provocou uma expansão efetiva desses serviços para áreas até então desassistidas.

Assim, a rede de serviços básicos de saúde, capitaneada pela Estratégia de Saúde da

Família, desempenhou um papel fundamental.

A expansão da rede de serviços básicos propiciou o aumento da necessidade

de serviços especializados e o incremento tecnológico conseqüente, gerando gargalos e

fragilidades assistenciais. Mas também propiciou o aumento da capacidade assistencial

e gestora e a adoção de experiências inovadoras de gestão e organização da rede em

diversos estados e municípios162. Porém não se pode deixar de ressaltar a

heterogeneidade estrutural reinante entre os diversos entes federados, o que termina

influindo nessa capacidade gestora, fazendo persistirem distorções, superposições e

162 Os consórcios de saúde são um dos exemplos de experiência inovadora. Várias modalidades de consórcios intermunicipais, e até mesmo interestaduais, surgiram em vários estados e regiões da federação. Eles tentam responder às demandas assistenciais e de gestão do sistema. A importância dessas iniciativas foi um impulso para que o governo fizesse aprovar no Congresso Nacional uma lei regulamentando os consórcios de saúde. (Ver Lei N.º 11.107 de 06/04/2005).

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excessos de oferta de algumas ações, insuficiência de outras e uma baixa integração

entre os serviços, coisas que guardam relação com a filosofia e com a memória da

atenção médico-previdenciária do sistema anterior.

Analisando-se a municipalização por outro prisma, o da sua força de

trabalho, é possível afirmar que houve investimentos na constituição de quadros

técnicos municipais, tanto na gestão quanto na assistência. Há uma distribuição mais

eqüitativa de profissionais de saúde em todo o país e tem-se um aumento concreto da

capacidade técnica, acompanhando a evolução da atenção e da gestão. Do ponto de vista

da formação e capacitação dessa força de trabalho, frente às necessidades e definições

relativas ao modelo de atenção e de gestão, vem se dando uma evolução. Isso se deveu a

iniciativas governamentais, num primeiro momento, durante os governos FHC, que

incrementaram a relação do MS com as SES e as Universidades, financiando, no

interior destas últimas, iniciativas como a do GERUS/UBS – Projeto de

Desenvolvimento Gerencial de Unidades Básicas de Saúde, uma cooperação técnica

entre o MS e a OPAS voltada para a formação de gestores locais de saúde, objetivando

torná-los capazes de compreender o novo momento institucional da política de saúde

para produzir nela os necessários ajustes.

Os Pólos de Capacitação, Formação e Educação Permanente em Saúde da

Família constituíram-se outra iniciativa porque trouxeram a alternativa da formação em

serviço. Através deles, foram montados e executados Cursos Introdutórios ao PSF,

Módulos Clínicos, capacitações em Sistemas de Informação em Saúde (SIS), Vigilância

em Saúde e capacitações pedagógicas. Os pólos ainda passaram a operar na área da pós-

graduação latu sensu, assegurando especializações em Saúde da Família e em

Planejamento e Gestão de Sistemas de Saúde, além de Residências em Saúde da

Família. Além disso, produziram pesquisas e montaram avaliações da Atenção à Saúde.

A partir de 2003, com o governo Lula, as iniciativas relativas à formação e

capacitação de pessoal para o SUS foram reorientadas do ponto de vista filosófico,

teórico metodológico e técnico. O MS passou a contar com uma secretaria específica

para tratar da questão: a SGETS163 – Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na

163 A SGETS/MS é composta por dois departamentos: o Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde - DEGERTS - e o Departamento de Gestão da Educação na Saúde – DEGES. O DEGERTS é responsável pela proposição de incentivo, acompanhamento e elaboração de políticas de gestão e planejamento e regulação do trabalho em saúde, em todo o território nacional. Cabe-lhe a negociação do trabalho em saúde junto aos segmentos do governo e dos trabalhadores, no que se refere à gestão, à regulação e à regulamentação do trabalho. Objetiva estruturar a política de gestão do trabalho nas esferas federal, estadual e municipal. Envolve os setores público e privado do SUS e contribui para a

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Saúde. Essa decisão proporcionou maior investimento, diversificação e abrangência das

ações e ainda potencializou a articulação interna e externa ao sistema e ao próprio

Ministério. Porém, por mais que se tenha avançado na formação e na capacitação da

força de trabalho do SUS, esta ainda constitui um problema dos mais críticos. Há,

também, dificuldades na constituição de equipes técnicas das secretarias de saúde,

situação agravada pela dificuldade de contratação de profissionais, numa conjuntura em

que a pressão para a redução de gastos com pessoal já se tornou uma constante.

Tendo ainda em perspectiva a municipalização das ações de saúde, uma

questão importante precisa ser trazida para o debate: a participação do controle social,

via conselhos de saúde ou mesmo de movimentos comunitários mais localizados. Essa

participação é chave tanto no momento da formulação política quanto do

acompanhamento da execução e apreciação dos resultados da atenção e da gestão da

política. A instituição dos conselhos de saúde representou um dos avanços fundamentais

na política de saúde que instituiu o SUS. No entanto, a realidade demonstra que, mesmo

estando criados em praticamente todos os municípios brasileiros, o seu modus operandi

tem assumido um caráter meramente cartorial, visto que, em muitos casos, esses

conselhos ou não cumprem o seu papel ou estão hegemonizados pelo poder executivo

municipal.

A burocratização e a manipulação têm dominado as práticas de controle

social, especialmente, no nível local164. Os conselhos deixam de ser conseqüência da

atuação de movimentos comunitários genuínos para, cooptados, descolarem-se das suas

bases. Há uma verdadeira crise de representação. São legais, mas nem sempre têm a

necessária legitimidade junto aos seus representados. Com isso, entra em crise o

potencial deliberativo e fiscalizador – idéia que presidiu a sua criação e regulamentação

em lei – dos 50% de usuários que entram na composição dos conselhos.

Mas, todos esses problemas do processo de municipalização, longe de

significar retrocessos da política de saúde, revelam apenas as contradições da

melhoria e humanização do atendimento de seus usuários. O DEGES é responsável pela proposição e formulação das políticas relativas à formação, ao desenvolvimento profissional e à educação permanente dos trabalhadores da saúde nos níveis técnico e superior. Suas atividades englobam a capacitação de profissionais da área da saúde e a busca da integração dos setores da saúde e da educação para o fortalecimento das instituições formadoras, no interesse do SUS, e para a adequação da formação profissional às necessidades da saúde. 164 A realidade tem mostrado que, nos pequenos municípios, maioria em todos os estados brasileiros, há grande dificuldade de se obterem conselhos de saúde que se imponham diante do poder executivo municipal. A educação política, os índices de instrução e informação, as práticas autoritárias arraigadas e a tradição conservadora são o maior entrave para que perdure essa situação.

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implementação de qualquer processo político. Nesse sentido, pode-se dizer que o direito

à saúde, rezado na Constituição Federal como algo a ser garantido mediante políticas

sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, e o

acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e

recuperação, de alguma forma, foi assimilado e encontra-se introjetado no inconsciente

popular. Assim, o conceito ampliado de saúde, reconhecido como um direito subsumido

no conjunto dos direitos constitucionais que definem as condições e a qualidade de uma

vida saudável, continua atual e reverberante.

Associados a esse conceito, evoluem os princípios da integralidade e da

eqüidade na sua organização, e da participação popular na discussão dos rumos da

operação de ações e serviços. A busca da concretização desses princípios, ao longo da

última década, tem servido de terreno fértil para iniciativas que, mesmo longe de

significar uma adoção plena do modelo constitucional, trazem para a arena das

discussões a reflexão sobre as práticas em saúde orientadas pelo SUS, com relevo para a

prática médica na atenção básica executada pela Estratégia Saúde da Família. Há a

indicação de que se vive um processo de transição para um modelo que, para além da

assistência pura e simples, poderá chegar num novo patamar: o da atenção e do cuidado

com as pessoas165.

Considerando-se essa evolução, cabe perguntar: Para onde aponta a prática

médica na Estratégia Saúde da Família? Que elementos passam a ser nela incorporados,

na perspectiva de transformá-la numa práxis médica?

165 É justo ressaltar o papel importante de várias iniciativas acadêmicas e não acadêmicas que vêm sustentando uma discussão interessada na mudança da formação dos profissionais de saúde e na consolidação de um sistema de saúde integral, eqüitativo e eficaz, com forte participação social. E nesse aspecto não se pode deixar de citar o trabalho desenvolvido pela REDE UNIDA. No caso, aqui se faz referência a um texto que trata das mudanças curriculares necessárias aos cursos de graduação da área da saúde. REDE UNIDA – Contribuição para as novas diretrizes curriculares dos cursos de graduação da área da saúde. OLHO MÁGICO . Ano 5. Número especial, novembro de 1999. Já do ponto de vista oficial, deve ser ressaltado o trabalho do Ministério da Saúde, através da SGETS e de toda a rede de relações que são tecidas com o MEC, as Universidades e as escolas e estruturas que tratam da formação, capacitação e educação permanente em saúde. Desde 2004, vêm sendo colocadas em prática ações que visam à reorientação dos cursos da área da saúde. Disso resultou, no final de 2005, a emissão de três portarias interministeriais, envolvendo o MS e o MEC (as 2.011/2005; 2.017/2005 e 2.018/2005) e que, respectivamente, instituíram o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – PRÓ-SAÚDE – para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia; a Residência Multiprofissional em Saúde, no âmbito dos Ministérios da Saúde e da Educação; e uma parceria entre os dois ministérios, para cooperação técnica na formação e no desenvolvimento de recursos humanos na área da saúde.

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6 A ATENÇÃO BÁSICA E A SAÚDE DA FAMÍLIA: UM ESBOÇO DA

PRÁTICA À PRÁXIS MÉDICA

Apresentados os antecedentes teórico-metodológicos e histórico-políticos

que dão conta da evolução do conceito de processo saúde-doença, da medicina e da

prática médica, bem como do desenrolar das políticas de saúde do contexto brasileiro do

último século, segue a questão central deste trabalho: a possibilidade de a prática

médica ser elevada à categoria de práxis, no âmbito da Estratégia Saúde da Família.

Tratar dessa questão significa considerar um conjunto de mudanças que

vieram ocorrendo, dentro e fora do Brasil, desde a década de 70, impulsionadas pela

evolução das discussões e teorias sobre organização de sistemas de saúde, comandadas

pela Organização Mundial de Saúde. Aqui a atuação exitosa do movimento de Reforma

Sanitária foi o fator mais importante para a abertura de perspectivas de mudanças no

sistema de saúde. O fato é que se constatava que o modelo tradicional de medicina não

mais se justificava por não ser capaz de fazer frente aos reais problemas de saúde da

população.

Um impulso importante em direção a um novo modelo de atenção deu-se

com a divulgação feita pela OMS de relatórios dando conta do que se observara em

missões realizadas junto à China. Aquele país vinha desenvolvendo, desde 1965, um

conjunto de processos relativos ao cuidado com a saúde que, em muito, extrapolavam a

tradicional abordagem acerca da saúde. Isso reforçava a idéia de que outras práticas em

saúde eram possíveis e podiam ser mais amplas e totalizadoras166.

As idéias colhidas da realidade chinesa formaram parte de uma base na qual

os países que compunham a Organização Mundial de Saúde puderam discutir e aprovar

a Declaração de Alma-Ata, cujo tema central: Saúde para todos no ano 2000 instituiu 166 As atividades em questão eram desenvolvidas pelos Comitês Comunais, que envolviam, num clima de autoconfiança, os mais distintos segmentos da população: jubilados, soldados, jovens escolarizados e pessoas da comunidade. Esses Comitês abrangem, ainda, ativistas da saúde, associações de mulheres e demais movimentos, todos sob a coordenação dos barefoot doctors, os médicos de pés descalços. A abordagem chinesa comportava: a) organização da comunidade; b) atenção aos anciãos, mais além do Estado; c) promoção do desenvolvimento de indústrias caseiras; d) ajuda às escolas e serviços em geral; e) organização do povo para cuidar da saúde ambiental; f) realização de cuidados preventivos e tratamentos, incluindo o uso de ervas medicinais; g) apoio à manutenção da ordem social no tráfego, policiamento e nos incêndios; h) promoção de campanhas em todos os níveis, a fim de substituir velhos costumes e mobilizar a comunidade para: movimentos de massa contra as quatro pestes, limpeza das casas, quintais e ruas, orientação de hábitos higiênicos, manutenção e uso da água potável, construção de unidades rurais de saúde, preparação de insumos simples (utensílios, pílulas, poções) e controle da limpeza de locais públicos (FERREIRA; BUSS, 2001, p. 255-56).

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um novo paradigma - o da Atenção Primária em Saúde. O documento final da

conferência oferece os elementos fundamentais desse novo paradigma de atenção, a

saber: I – A conquista do mais alto grau de saúde exige intervenção de muitos outros setores sociais e econômicos além do setor saúde; [...] III – A promoção e proteção da saúde da população são indispensáveis para o desenvolvimento econômico e social sustentado e contribui para melhorar a qualidade de vida e alcançar a paz mundial; IV – A população tem o direito e o dever de participar individual e coletivamente na planificação e na aplicação das ações de saúde; [...] VII.1 – A atenção primária de saúde é, ao mesmo tempo, um reflexo e uma conseqüência das condições econômicas e das características socioculturais e políticas do país e de suas comunidades; [...] VII.3 – Compreende, pelo menos, as seguintes áreas: educação sobre os principais problemas de saúde e sobre os métodos de prevenção e de luta correspondentes; a promoção do aportamento de alimentos e de uma nutrição apropriada; um abastecimento adequado de água potável e saneamento básico; assistência materno-infantil, com inclusão da planificação familiar; a imunização contra as principais enfermidades infecciosas; a prevenção e luta contra enfermidades endêmicas locais; o tratamento apropriado das enfermidades e traumatismos comuns; e a disponibilidade de medicamentos essenciais; VII.4 – Inclui a participação, ademais do setor saúde, de todos os setores e campos de atividade conexos do desenvolvimento nacional e comunitário, em particular o agropecuário, a alimentação, a indústria, a educação, a habitação, as obras públicas, as comunicações e outras, exigindo os esforços coordenados de todos estes setores; VII.5 – Exige e fomenta, em grau máximo, a auto-responsabilidade e a participação da comunidade e do indivíduo na planificação, organização, funcionamento e controle da atenção primária de saúde (FERREIRA; BUSS, 2001, p. 257).

Os consensos produzidos pelos países-membros da Organização Mundial de

Saúde em Alma-Ata e nas demais conferências internacionais167 que se sucederam –

mesmo sendo eles majoritariamente capitalistas – apontaram para um novo modelo de

atenção que se constituísse como alternativa para o paradigma dominante. Vislumbrava-

se a possibilidade de mudar a face das políticas setoriais em saúde, transformando o

exercício da medicina e da prática médica, a partir da Atenção Primária em Saúde.

É preciso, no entanto, convir que as declarações dessas conferências, apesar

de assinadas por todos, sustentavam uma filosofia de atenção que contrastava com as

práticas de saúde em vigor. Não faziam parte da cultura, do universo científico, político

e econômico dos países capitalistas e da sua perspectiva de atenção à saúde que, no

mundo ocidental, não era trabalhada como uma conquista social e econômica da

humanidade. Era exercitada na sua dimensão individual e concebida como o oposto de

167 À Conferência de Alma-Ata, sucederam-se várias outras nas últimas duas décadas – Ottawa (1986); Adelaide (1988); Sundsvall (1991); Jakarta (1997) e México (1999), que tiveram abrangência intercontinental; e Bogotá (1992); Port of Spain (1993), subcontinental.

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doença. A atenção, vista como assistência pura e simples, não estava voltada para a

promoção da saúde, mas, para o enfrentamento da doença.

Mesmo assim, os grandes fóruns internacionais seguiram trabalhando

parametrados por Alma-Ata e mobilizando temas como: capacitação da comunidade

para melhoria da qualidade de vida; participação decisória; políticas saudáveis;

abordagem intersetorial; ambientes favoráveis e habilidades pessoais. A reconversão

dos sistemas de saúde, com ênfase na eqüidade, na atenção sobre os determinantes do

processo saúde-doença e na expansão da promoção e da prevenção, como alternativas

para a diminuição da necessidade de tratamento e reabilitação, foram também temas

recorrentes, assim como a questão da sustentabilidade social com base em macro-

funções sociais de trabalho e renda, infra-estrutura, desenvolvimento social, saúde e

nutrição (FERREIRA; BUSS, 2001).

Todos esses aportes, desenvolvidos nas últimas décadas e colocados em

prática em muitas realidades do país, suscitaram mudanças qualitativas na organização

dos serviços, nas práticas profissionais em saúde, na gestão dos serviços de saúde e dos

sistemas municipais e nos indicadores de saúde. Porém, não se pode afirmar que o

impacto deles seja sentido ou medido, a ponto de ser possível dizer que houve

transformação da realidade. Mudanças ocorreram, mas não com a densidade e

generalização necessárias. Para que isso acontecesse, uma série de outras mudanças

estruturais seria necessária. Uma delas seria o impacto na educação das massas; outra,

na educação dos profissionais de saúde, em especial, dos médicos que, socialmente,

desde muito tempo, ocuparam, devido à sua prática e legitimidade conseguida, uma

posição central no setor e na sociedade.

6.1 A organização da Atenção Básica no Brasil: caminhos para a práxis médica

Enquanto se desenvolviam as discussões acerca da Atenção Primária de

Saúde, o Brasil, mesmo enfrentando todo um quadro de conflitos ideológicos internos,

crises e contradições na trajetória política geral e setorial, por conta do regime militar e

do processo de redemocratização, seguiu a trilha das discussões internacionais168. Tanto

168 Enquanto esteve sob o regime militar, o Brasil participava, formalmente, dos eventos internacionais, mesmo que, na volta, esvaziasse todo o conteúdo político das discussões e realçasse apenas os seus

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que o país pôde comemorar, especialmente nas duas últimas décadas, avanços na sua

política de saúde. Esses avanços estão representados na construção e consolidação de

um grande movimento social, que conseguiu aglutinar força e poder capazes de instituir

o Sistema Único de Saúde. Fundado em quatro princípios doutrinários: universalidade,

integralidade, eqüidade e participação popular, além de três premissas básicas: saúde

como direito; reorganização do modelo assistencial e financiamento público solidário, o

SUS vem se consolidando como a política pública de saúde brasileira.

Porém, apesar de todos os avanços teóricos e práticos desse período, a

organização da Atenção Básica no país foi lenta e caracterizou-se como um processo

assimétrico, mesmo que tenha tendido à multiplicação e à generalização que, motivadas

por experiências, saberes e práticas que se desenvolveram em determinados lugares do

país169, produziram diagnósticos e formularam ações que reinventaram as práticas de

atenção à saúde.

As experiências vividas pelos programas de saúde comunitária e de

medicina preventiva, ligados a algumas escolas de medicina, o fortalecimento das

estruturas estaduais, com o processo de desconcentração de recursos, e o retorno

paulatino à democracia, ensejaram para que essas experiências, aos poucos, pudessem

ser, de alguma forma, absorvidas pelas estruturas estaduais e municipais. Assim,

fortaleceu-se um jeito novo de se organizarem serviços e ações de saúde, com

rebatimentos positivos para a própria prática médica.

Do ponto de vista sistêmico, o fator fundamental talvez tenha sido mesmo o

grande ascenso dos movimentos sociais, aliado ao compromisso de setores profissionais

e acadêmicos. A pressão de ambos (profissionais/acadêmicos e movimentos sociais)

pela construção do Sistema Único de Saúde funcionou, na lei170 e na prática, avançando

na descentralização e na redefinição dos papéis dos estados e municípios na organização

e execução das políticas de saúde. aspectos técnicos, numa manobra ideológica reducionista. O papel de politização dessas discussões ficava sempre a cargo de parte da academia e dos movimentos profissionais e populares. Estes participavam ou contavam com pessoas ligadas a organizações de esquerda, partidárias ou não, que, mesmo vivendo na clandestinidade, desempenhavam esse papel tanto antes como depois quando, com a distensão política, os movimentos passaram a ser “tolerados”. 169 Muitas experiências interessantes se desenvolveram em inúmeros municípios por todo o país. Ficaram conhecidas aquelas que tiveram o apoio incisivo ora das Secretarias Estaduais de Saúde, ora das Universidades e seus programas de treinamento. Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Paraná, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte são exemplos de estados que ficaram conhecidos por terem municípios com experiências pioneiras na organização da atenção básica. 170 Do ponto de vista legal, o Título VIII – Da Ordem Social – Seção II – Da Saúde, da Constituição Federal, e as Leis Orgânicas da Saúde (8.080/90 e 8.142/90), aprovadas pelo Congresso Nacional, bem como a legislação infra-ordinária, deram as bases formais para o funcionamento do sistema.

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Um exemplo dessa transformação foi a criação, pelo Ministério da Saúde,

do Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS), em 1991, a partir da absorção de

um conjunto de experiências que se expressavam em vários recantos do país171. O PACS

foi a primeiro esboço oficial de um programa de atenção básica no país. Desenvolvia

suas atividades por meio de visitas domiciliares e reuniões educativas, supervisionadas

por um profissional enfermeiro (instrutor/supervisor).

Uma das diretrizes operacionais do Programa era o estímulo à participação

social. O ACS era considerado o principal elo entre os serviços de saúde e a

comunidade. Residia na área onde trabalhava. Era, portanto, um membro da

comunidade e envolvido com ela. Em cada equipe, havia até 30 agentes comunitários

sob a coordenação do profissional enfermeiro, que organizava o trabalho desses

profissionais a partir de uma UBS e dos problemas da comunidade. A referência era a

UBS, mas o trabalho se dava, majoritariamente, nos domicílios e nos equipamentos

sociais que formavam a comunidade e onde se encontravam as famílias ou os seus

membros.

Assumindo essa configuração, o PACS teve um papel importante na atenção

materno-infantil, notadamente no que se refere ao enfrentamento dos graves índices de

morbi-mortalidade materna e infantil na Região Nordeste. Já na Região Norte, foi de

grande valia no combate à epidemia do Cólera. Os resultados positivos dessas

experiências iniciais foram fundamentais para a sua generalização por um conjunto

expressivo de estados de outras regiões, provocando um avanço importante na atenção

básica.

Paralelamente, outro modelo de atenção também vinha se gestando, fruto de

administrações democráticas em vários municípios. Essas experiências incorporavam

profissionais de nível superior e centravam a sua atenção no aspecto assistencial, sem,

no entanto, descuidar-se do aspecto educativo, tanto dos profissionais quanto da

população assistida. Não eram homogêneas, mas tinham uma característica básica:

voltavam-se para a comunidade e, mais especificamente, para a família. Essa

característica chamou a atenção de um grupo em situação estratégica no Ministério da

Saúde, naquele momento, e deu o ponto de partida para a instituição do Programa de

Saúde da Família, a partir de 1994.

171 Entre as experiências consideradas pelo Ministério da Saúde, a mais expressiva e consolidada e, portanto, que mais concorreu para o desenho do programa oficial, foi a do estado do Ceará, iniciada ainda na década de 80 com o apoio do UNICEF.

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Silva (2003) relata as primeiras reuniões acontecidas no Ministério da

Saúde, no final de 1993, envolvendo secretarias estaduais e municipais e órgãos como a

OPAS e a UNICEF, no sentido de se tentar assimilar experiências vividas em Niterói e

Porto Alegre172 que, àquela altura, já haviam implantado programas de atenção básica

centrados nas dimensões comunidade e família. [do] produto final dessas reuniões, emergiu a proposta do Programa de Saúde da Família, calcada nos princípios de territorialização, vinculação com a população, garantia de integralidade na atenção, trabalho em equipe com enfoque interdisciplinar, ênfase na promoção da saúde com fortalecimento das ações intersetoriais e de estímulo à participação da comunidade. [...] o PSF seria a porta de entrada do sistema local de saúde com a função de desenvolver ações básicas no primeiro nível de atenção de forma integral, resolutiva e de boa qualidade, buscando, além de extensão de cobertura e ampliação do acesso, numa lógica de substituição das práticas tradicionais, provocar uma reestruturação do sistema como um todo (SILVA, 2003, p. 12-13).

O Programa de Saúde da Família (PSF) era, portanto, a primeira proposta

mais abrangente de atenção básica e vinha preencher um vazio assistencial que, na

prática, até então, o SUS não preenchera. É preciso, entretanto, admitir que não se

organizou, ainda, uma rede de serviços ambulatoriais e mesmo hospitalares suficiente

para a assistência materno-infantil, de adultos, em geral, e dos trabalhadores, em

particular, compatível com as necessidades de saúde. Porém, em parte, vai-se vencendo

a negligência em relação à prevenção contra as endemias, à imunização contra as

enfermidades infecto-contagiosas e ao provisionamento de medicamentos para os

adoecimentos mais freqüentes da maioria da população. Ainda se está longe do que

pode ser considerado ideal, mas há uma alternativa em processo de que, antes, a atenção

era caótica ou mesmo inexistente.

A atenção básica do PSF, ao dar ênfase à promoção da saúde e ao

fortalecimento das ações intersetoriais e de estímulo à participação da comunidade,

começa por vencer a inércia e partir para uma ação que antes sequer era defendida ou 172 Considerando-se Silva e Souza (2001), a experiência de Niterói (RJ) era inspirada no modelo cubano do Médico de Família, cuja característica era a centralização do serviço na figura do médico. As equipes, compostas por médico, auxiliares de enfermagem e supervisores clínicos, por áreas - clínica médica, pediatria, ginecologia/obstetrícia, cirurgia geral, saúde mental, epidemiologia, enfermagem e serviço social - compunham uma estrutura paralela à rede municipal. Cada equipe se responsabilizava por duzentos e cinqüenta famílias e trabalhava em horário integral. A experiência gaúcha, situada no município de Porto Alegre, vinha do Grupo Hospitalar Conceição e se configurava como um serviço dentro dos moldes da Medicina Geral Comunitária. Tinha uma perspectiva assistencial, mas também um, programa de educação continuada para profissionais de saúde da área de medicina geral, medicina interna, psicologia, serviço social, odontologia, técnico de higiene dental e agente comunitário de saúde; e era organizado para o treinamento e desenvolvimento de práticas clínicas ambulatoriais, hospitalares e domiciliares. No programa, existia uma área geográfica delimitada, porém não havia número de famílias por equipe ou obrigatoriedade de moradia no bairro para os trabalhadores do projeto.

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divulgada. A saúde não era considerada pelos formuladores de políticas e,

principalmente, pela prática médica como algo que representasse um direito e uma

responsabilidade individual e coletiva com a qualidade de vida de todos e do próprio

país. Não havia um pensamento e, principalmente, ações que combinassem a abordagem

clínica com uma percepção de que a atenção à saúde guarda relação de conseqüência,

ou é reflexo das condições sociais e econômicas em que vive uma população.

Considere-se, porém, que, no início da década de noventa, os sistemas de

serviços de saúde passavam por uma crise, em escala mundial, manifestada em quatro

dimensões principais: iniqüidade, ineficiência, ineficácia e insatisfação dos cidadãos.

Havia, ainda, divergência sobre como explicar ou o que fazer para superar esse

momento difícil. Assim, a perspectiva de se buscarem novas opções para a atenção à

saúde, que pudessem ser generalizadas, produzindo uma reorientação do modelo

assistencial e, portanto, das práticas profissionais, era necessário. E uma proposta com

as características da do PSF que surgia, trazia alento e esperança na medida em que

prometia preencher o vazio assistencial dos primeiros anos pós a criação do SUS

(MENDES, 1996). Todavia, se a proposta era correta e necessária, revelava-se também

heterodoxa, se olhada do ponto de vista da configuração do Estado e do governo

brasileiro, devido à contradição do momento político e econômico mundial, com

reflexos cruéis para o povo brasileiro. Pode-se dizer que havia uma série de outras

motivações que estavam no cerne da ação governamental, que não apenas as meramente

assistenciais buscadas pela extensão de cobertura serviços de saúde e de acesso da

população a esses serviços.

Como se vivia o período pós impedimento do presidente Collor, promessas

eram renovadas, e as expectativas por políticas mais abrangentes que, de alguma forma,

fossem descoladas da política de Estado mínimo, decorrente do receituário do Consenso

de Washington173, colocado em prática no país sob o governo Collor, eram esperadas174.

173 O economista John Williamson, do International Institute for Economy, foi o responsável pela criação da expressão "Consenso de Washington", em 1990, originalmente, para significar: "o mínimo denominador comum de recomendações de políticas econômicas que estavam sendo cogitadas pelas instituições financeiras baseadas em Washington e que deveriam ser aplicadas nos países da América Latina, tais como eram suas economias em 1989." (tradução livre do texto original em inglês a partir do site http://www.cid.havard.edu/cidtrade/issues/wsahington.html). Porém, o termo extrapolou o sentido dado por seu criador e passou a representar um conjunto de medidas - dez regras básicas - para justificar políticas neoliberais, com as quais nem mesmo Williamson concorda: "Claro que eu nunca tive a intenção que meu termo fosse usado para justificar liberalizações de contas de capital externo [...) monetarismo, supply side economics, ou minarquia (que tira do Estado a função de prover bem-estar e distribuição de renda), que entendo serem a quintessência do pensamento neoliberal". (idem). A popularização dessas políticas econômicas criadas (ou "ressuscitadas") em 1990 foi muito facilitada pelo

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Mas o presidente Itamar Franco não conseguiu se desvencilhar do fato concreto de ser

um governo de continuidade e, portanto, zelador dos compromissos já assumidos com o

capitalismo internacional, no seu e em governos anteriores.

Havia, é verdade, toda uma discussão sobre a questão da pobreza, da

desigualdade e da exclusão social, principalmente porque o IPEA acabara de publicar

mais uma atualização do Mapa da Fome no Brasil175, onde era destacado que o país

possuía, naquele momento, algo como trinta e dois milhões de pessoas sem renda

suficiente para prover o seu sustento em termos mesmo de alimentação. Essas pessoas,

antes de qualquer coisa, precisavam de atenção, cuidado e políticas sociais que

estivessem focadas na redenção desse quadro desalentador.

Contraditoriamente, no entanto, o que imperava era uma política de ajuste

econômico com contenção dos gastos públicos ditada pelos controles dos organismos

internacionais capitaneados pelo FMI. Isso pesava sobre o orçamento de políticas

públicas como a de saúde, contrariando a construção política do SUS e dos seus

princípios, especialmente no que tange à universalidade e à equidade. Mas pesava,

principalmente, como um dificultador da implantação do novo processo de atenção e

sua generalização como política de governo.

Mesmo nessa conjuntura, o Ministério da Saúde explicitava, no primeiro

documento do PSF176, que desejava contribuir para a organização do Sistema Local de

Saúde. O PSF era assim apresentado como “parte de uma estratégia desenvolvida para

promover mudanças no atual modelo de assistência à saúde do país, que dá mais

atenção à cura do que à prevenção das doenças” (BRASIL, 1994, p. 5).

E nesse diapasão, foi absorvido, no curto período de Itamar Franco e nos

primeiros dois anos do primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, entusiasmo que gerou a queda do muro de Berlim. No que foi ajudada pela decadência do socialismo soviético, numa época de Glasnost e Perestroika, em que os países que seguiam o planejamento central passaram por reformas (PEREIRA, 2006, p. 47). As dez regras do receituário neoliberal do Consenso de Washington são: disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tributária; juros de mercado; câmbio de mercado; abertura comercial; investimento estrangeiro direto com eliminação de restrições; privatização das estatais; desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas) e direito à propriedade. 174 Goulart (2002) dá conta de que, no período de governo do presidente Collor, foi operada uma redução do gasto médio com saúde até um patamar mínimo de US$ 40 per capita (em 1992) contra um gasto de US$ 80 em 1987. 175 O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mantém uma tradição de estudar questões como exclusão social, desigualdade, fome e pobreza. No caso específico, a referencia é: PELIANO, A. M. T. M. (coord.) – O Mapa da fome: indicadores sobre a indigência no Brasil (classificação absoluta e relativa por municípios). Documento de política, 17. Brasília: IPEA, 1993. 176 Esse documento foi divulgado formalmente em setembro de 1994, com o intuito de orientar os municípios que pretendiam implantá-lo. Denomina-se Programa de Saúde da Família: saúde dentro de casa.

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190

com uma formulação teórica que apontava para uma estratégia, mas com uma atitude de

definição que o confinava a um programa177, dadas as restrições financeiras que a ele

eram impostas, as quais denunciavam a falta de um objetivo político-estratégico com a

definição concreta da atenção básica como política de governo. A política,

principalmente a econômica, viabilizadora, em grande parte, de um projeto nacional,

estava carimbada com a tinta dos compromissos internacionais assumidos e com o signo

do descompromisso com as mudanças que precisavam ser operadas na atenção à saúde e

na prática médica.

A despeito da utilização do PACS/PSF, como programa vertical implantado

mediante um convênio governo federal/governo municipal, o que plasmava um bypass

da instância estadual, Silva (2003) reconhece que, no início, havia a consciência de

dificuldades para a implantação do programa, entre elas: insuficiência de recursos

humanos com perfil adequado para o modelo proposto; resistência, nos diversos níveis

de gestão do SUS, à proposta de mudança do modelo assistencial voltado para a atenção

primária em saúde; indecisão da Secretaria de Assistência à Saúde – SAS/MS, em

relação à revisão financeira dos procedimentos relativos ao PACS e ao PSF; e

insuficiência qualitativa e quantitativa da própria equipe da COSAC/MS. Porém, expõe

um aspecto que dá conta do posicionamento tático e estratégico da equipe nacional para

poder lograr a evolução do PSF dentro do Ministério da Saúde.

A autora afirma, ainda, que, apesar do reconhecimento dessas dificuldades,

o grupo assumiu a luta pela proposta no interior da institucionalidade do SUS, interna e

externamente ao Ministério da Saúde, no sentido de torná-la viável. Nessa perspectiva

de construção, foram buscadas alianças no movimento dos Secretários Municipais de

Saúde e nas comissões intergestores tripartites (nacional) e bipartites (estaduais). A luta 177 Para confirmar o que é afirmado, segue-se uma rápida cronologia do Programa entre o final do período Itamar Franco e o final do primeiro governo FHC: 1994 – Formalizado enquanto proposta institucional situada na Coordenação de Saúde da Comunidade (COSAC) da Fundação Nacional de Saúde. Definido como parte de uma estratégia para promover mudança no modelo de atenção. Meta definida: 2.500 equipes, com prioridade para as áreas consideradas de risco pelo Mapa da Fome do IPEA. 1995 – Entra no Plano de Ação do Ministério da Saúde-1995/1999 e é relacionado entre as demais ações desenvolvidas pela Fundação Nacional de Saúde, para implementar o SUS, sem articulação com outras áreas do ministério. Já dentro do governo FHC, é identificado como programa que deve compor a Agenda Básica do Programa Comunidade Solidária para ser prioritariamente implantado nos 1.369 municípios selecionados. Com a criação do PRMI – Projeto de Redução da Mortalidade na Infância - em consonância com o Projeto Comunidade Solidária, é inserido prioritariamente nos municípios participantes desse projeto. 1996 – Inserido no Plano Plurianual do Ministério da Saúde 1996/1999, o PSF e o PACS são colocados como instrumentos imprescindíveis à transformação do modelo de atenção à saúde, considerando-se a prática da integralidade das ações exercitadas por esses programas. Uma das diretrizes centrais do plano propugnava por um Novo modelo de assistência. Meta: 5 mil equipes e 50 mil ACS. A COSAC é transformada em Coordenação de Atenção Básica, dentro da Secretaria de Assistência à Saúde. O PSF inicia sua trajetória de fortalecimento institucional (SILVA, 2003).

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191

contou, num segundo momento, com o apoio crescente do próprio Ministério da

Saúde178 e de boa parte dos secretários estaduais de saúde que a ela foi se juntando na

medida do seu crescimento179.

A estratégia começou a produzir frutos a partir de 1996, com a publicação

dos Cadernos de Saúde da Família: construindo novos caminhos. A divulgação das

experiências municipais era uma oportunidade de se contarem e confrontarem os

desafios enfrentados e os resultados obtidos onde o Programa era implantado e

implementado. Essa divulgação atendia, ainda, à necessidade da expansão da discussão

e do diálogo sobre a atenção básica e da divulgação do PSF como um instrumento que

necessitava de aperfeiçoamento para cumprir o seu desiderato.

O Prêmio Saúde Brasil: o retrato da Saúde na Família, realizado pelo

Ministério da Saúde no segundo semestre de 1999, foi um evento formal de divulgação

das experiências exitosas da Estratégia Saúde da Família, até aquele momento. Dez

municípios brasileiros foram premiados pelos seus progressos na estratégia: cinco na

categoria Excelência-destaque, e cinco na categoria Excelência. Abaixo, os dois

quadros demonstrativos dos avanços conseguidos por esses municípios.

Município População/cobertura

com a estratégia PSF

Destaques da

experiência

Alguns resultados

Camaragibe

(PE)

118. 968 hab. (70%)

Participação do movimento popular e da representação dos trabalhadores em saúde no processo de reorientação do modelo

Redução acentuada do índice de mortalidade infantil. Queda drástica da

mortalidade infantil por diarréia;

178 É preciso compreender o Ministério da Saúde como uma mega-estrutura complexa, lenta e plena de labirintos que conformam uma rede de micro-poderes, de ilhas de incomunicabilidade que tendem a agir individualmente, autonomamente. Essa fragmentação induz disputas, conflitos e jogos de poder que, em muitos casos, mais atrapalham que ajudam a conformação e a execução de políticas de saúde. 179 Para ilustrar o que está sendo afirmado, pode-se oferecer o exemplo do Estado da Paraíba. Seus municípios aderiram, desde a primeira hora, ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde e às primeiras equipes de Saúde da Família, ainda em 1994, em Campina Grande. Como esses programas não dependiam da estrutura estadual, visto que representavam convênios diretos do gestor federal do SUS (Ministério da Saúde), via Fundação Nacional de Saúde, com os municípios, estes puderam progredir mesmo numa conjuntura adversa no Estado, onde o Secretário de Saúde de então se recusava a implementar o Sistema Único de Saúde. A mudança de governo e de secretário estadual reverteu o processo, e a Paraíba transformou-se, rapidamente, num dos estados de linha de frente na implementação da atenção básica, no período 1996-2002, quando alcançou 100% dos municípios com cobertura (mesmo que esta não fosse integral) com PACS e 94% dos municípios com ESF implantadas (pelo menos uma equipe). Ao mesmo tempo, o Estado evoluiu consideravelmente em relação à efetivação do modelo de atenção básica, a ponto de municípios como Campina Grande, Esperança e Pedras de Fogo serem alçados à condição de vitrines nacionais da Estratégia Saúde da Família, recebendo, inclusive, prêmios e reconhecimento.

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assistencial; Assistência integral à

saúde da criança; Equipes, gerentes e

técnicos comprometidos com o SUS;

Cobertura Pré-natal de 92%. 59% de aleitamento

materno exclusivo entre as crianças menores de quatro meses;

Sobral (CE)

146.005 hab. (87%)

Universalização do acesso aos serviços de saúde; Participação da

população na gestão dos serviços de saúde, com a formação de 22 Conselhos locais em todas as áreas descentralizadas de saúde; Capacitação

continuada das equipes; Implantação da

Central de Marcação de Consultas;

Excelente cobertura

vacinal; 100% de cobertura do

Pré-natal;

Ibiá (MG)

21.216 hab. (100%)

Atuação das ESFs em função de um planejamento de ações e avaliação sistemática; Reestruturação da

rede, com a organização do sistema de referência e contra-referência; Garantia de

atendimento ao paciente nos diversos níveis de complexidade;

Acesso da população ao sistema de saúde, com atendimento resolutivo, humanizado e comprometido. Satisfação da

população coma a atuação do PSF. Integração das equipes

do PSF à comunidade; Cobertura vacinal de

95% em menos de um ano; Cobertura vacinal de

adolescentes grávidas em 80%; Acompanhamento de

87% dos diabéticos do município, 80% dos hipertensos e 100% dos portadores de Tuberculose e Hanseníase (independente da classe social); 90% de cobertura do

Pré-natal;

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Mauá (SP)

375.055 hab. (20%)

Participação de representações populares na definição das primeiras áreas cobertas pelo Programa; Implantação do PSF

com o suporte de ações específicas de saneamento básico, transporte e educação; Identificação e

acompanhamento dos grupos de risco de gestantes, crianças menores de um ano, diabéticos, hipertensos, DST e AIDS, tuberculosos, outros; Saúde bucal para o

bebê.

Redução de 40% da taxa de mortalidade infantil; 54% de crianças de até

um ano recebendo aleitamento materno; 44% dos bebês com

orientação em Saúde bucal; Cobertura vacinal de

100%; Redução do número de

pacientes encaminhados a hospitais e especialidades.

Mandaguari

(PR)

29.009 hab. (31,6%)

Rede hierarquizada de serviços de saúde dentro do município e consórcio intermunicipal na macrorregião de Maringá, para atendimento; Trabalho com a

educação, a cultura, o esporte, os clubes de serviço e as pastorais na busca do resgate da cidadania; Planejamento das

ações a partir da discussão e avaliação dos dados do Sistema de Informação da Atenção Básica pelas equipes do PSF, a Secretaria de Saúde e o Conselho Municipal de Saúde; Qualificação dos

Recursos Humanos, através da oferta e do estímulo à participação

Solução de mais de

80% dos problemas de saúde encontrados na comunidade; Redução da

mortalidade infantil; de 30,3 em 1996, para 11,9, em 1998; Co-responsabilidade

das famílias com a saúde e o amadurecimento do conceito de saúde pela população; Humanização do

atendimento à saúde.

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em cursos de formação; Implantação de

recursos de apoio diagnóstico (laboratório de análises clínicas, aparelhos de raio-X).

Quadro 1 – Categoria: Experiência-destaque Fonte: Prêmio Saúde Brasil – O RETRATO DA SAÚDE DA FAMÍLIA (Encarte MS, 1999)

Município População/cobertura

com a estratégia PSF

Destaques da

experiência

Alguns resultados

Aracaju

445.555 hab. (9,3%)

Participação acentuada da comunidade na implantação de ações; Contratação dos

profissionais de Saúde da família através de ONG, com o cumprimento de todas as exigências da legislação trabalhista e composição do salário estabelecido por decreto municipal; Saúde mental

comunitária sistêmica como modelo complementar de assistência nos bairros Lamarão e Veneza; Formação de equipes

de multiplicadores adolescentes em prevenção e promoção à saúde para atuação junto aos seus pares; Parcerias com

organizações governamentais e não- governamentais; Abordagem

multiprofissional do paciente hipertenso;

Impacto na gestão, refletindo o deslocamento do poder decisivo do nível central para o local: as equipes identificam problemas, definem prioridades e sua forma de enfrentamento. Cria-se uma demanda para as áreas de gerenciamento intermediária e central, e as respostas chegam mais rápido; Cobertura vacinal de

93%; Incremento do

aleitamento materno exclusivo em 30%; Redução de gestação

em adolescentes na área de Mosqueiro, de 29,6% para 13,6%;

Reversão no quadro

de desigualdade no acesso e na qualidade da

100% de cobertura a pacientes acamados; Recuperação de 53%

das crianças com desnutrição grave;

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Criciúma

(SC)

167.661 hab. (35%)

assistência à saúde oferecida à população; Implantação de

unidade de referência para os problemas de saúde da mulher; Formação de equipe

multidisciplinar para o apoio à Saúde da Família, composta de psicólogo, epidemiologista e técnico de vigilância sanitária.

Trabalho com 151 grupos de hipertensos e 51 grupos de diabéticos; Mudanças

significativas no perfil epidemiológico do município, com redução da morbidade hospitalar por doenças virais, infecciosas, do aparelho circulatório, de câncer de colo uterino e de mama, dos aparelhos respiratório e geniturinário; Redução da

mortalidade materna em 95,8%; Redução da

mortalidade em < de 5 anos em 48%;

Curitiba

(PR)

1.584.232 (21%)

Articulação de parcerias e grande investimento em capacitação de recursos humanos; Valorização da

intersetorialidade como estratégia de promoção da melhoria da qualidade de vida da comunidade; Estímulo ao controle

social, através de parceria com a associação de moradores e os conselhos locais de saúde; Aperfeiçoamento

técnico-científico continuado das equipes de PSF; Trabalho diferenciado

no atendimento à saúde da mulher;

Solução na atenção

clínica; Alto nível de

satisfação da equipe e de usuários; Legitimidade da

USF pela comunidade;

Gestão mais participativa, com

Redução da mortalidade infantil de

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C. Grande

(PB)

352.497 (12%)

descentralização das ações de planejamento e avaliação, garantindo a adequação das ações à realidade local. Democratização da

gestão administrativa, com rodízio dos profissionais, proporcionando a todos a oportunidade de experimentar a função de gerente da UBSF; Boletim da Saúde da

Família como veículo de divulgação e fortalecimento do modelo; Identificação dos

principais problemas da comunidade; Grupos organizados

de gestantes, idosos e saúde mental e formação de grupos sócio-educativos, em função das características epidemiológicas e demográficas;

69,5, em 1995, para 26,0, em 1998. Acesso às

informações e aos insumos de planejamento familiar; Cobertura de pré-

natal com mais de três consultas de 89%; Coeficiente de

mortalidade materna 0 (zero); Aumento do

percentual de gestantes imunizadas contra o tétano neonatal de 43,4%, em 1995, para 95%, em 1999;

Três Arroios

(RS)

3.203 hab. (100%)

Atuação decisiva da população junto ao Poder Legislativo, para implantação do PACS/PSF; Empenho e

comprometimento de todos os profissionais envolvidos, tanto pela história de liderança dos agentes em suas comunidades quanto pelo fato de os profissionais manterem vínculo empregatício estável com o serviço público. Isso vem conferindo maior segurança à continuidade das

Cobertura vacinal de

100% das crianças de 0 a 05 anos; Índice de 90% de

resolução dos

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atividades, mesmo com troca de gestores; A população busca e

recebe um atendimento diferenciado e com qualidade; Introdução de

psicóloga na equipe de Saúde da Família.

problemas de saúde no município.

Quadro 2 – Categoria - Excelência Fonte: Prêmio Saúde Brasil – O RETRATO DA SAÚDE DA FAMÍLIA (Encarte MS, 1999)

Os quadros mostram o quanto a Estratégia contribuiu para a melhoria do

desempenho da saúde nos municípios em que já houvera sido implantada. Os avanços

foram significativos em termos da melhoria dos indicadores epidemiológicos, mas não

se limitaram a esse aspecto. Destacam que: a) aumentou a participação popular na

organização e nas definições das ações; b) a relação entre equipes de saúde/população

se estreitou, favorecendo o diálogo; c) as equipes melhoraram, do ponto de vista da

qualificação técnica e humana, fruto do investimento das gestões municipais; d) houve

melhoria na gestão das ações, tanto por conta do trabalho interdisciplinar quanto pelo

avanços das relações interprofissionais e comunitárias. Houve avanços quanto ao

trabalho intersetorial, indicador importante para se avaliar o grau de prioridade e de

convergência democrática das equipes dos governos municipais. Todas essas mudanças

vieram em favor de uma prática médica mais próxima da doutrina da Estratégia,

indicando uma caminhada que coloca, no centro da sua preocupação, o diálogo e a

educação popular.

Mas, muito em função dos seus dois primeiros anos de implantação da

conjuntura política e econômica, e mesmo pelo formato de programa verticalizado que

pontificou no PACS, o PSF inquietava diversos pesquisadores e militantes da Reforma

Sanitária. Um deles, Paim (2002), registrava sua preocupação com a possibilidade de

esse programa, enquanto continuação do PACS, expressar políticas de focalização

propostas pelo Banco Mundial, caracterizando pacotes básicos de atenção médica para

pobres, o que seria uma contradição em relação aos princípios do SUS, especialmente

em relação à universalidade. Inquietações nesse mesmo sentido podem ser encontradas,

ainda, em autores como: CONILL (2002); MARQUES; MENDES (2002); MERHY

(1999, 2001).

Não se pode dizer que as preocupações desses vários pesquisadores não se

justificavam, dado que a formulação e a implantação do Programa de Saúde da Família

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aconteciam num período em que era meta prioritária da política do governo federal a

contenção do gasto público. Essa meta era monitorada pela área econômica nas demais

instâncias de governo, sob pressão de organismos econômicos internacionais. Até

porque o trabalho com a atenção básica é por demais complexo e exige uma quantidade

de recursos técnicos e financeiros bastante razoáveis, o que, naquele momento, era

impensável, tanto por conta dos compromissos internacionais, quanto pela estrutura de

gastos já estabelecida no setor, quase que totalmente orientada para a medicina

hospitalar, a maior parte dela privada.

A interpretação da Atenção Primária à Saúde como programa e, portanto,

com objetivos restritos voltados especificamente à satisfação de necessidades mínimas

de grupos populacionais em situação de extrema pobreza ou marginalizados, rompia a

universalidade como princípio ético básico, pois se deixava de garantir a todos os

cidadãos, independentemente de gênero, etnia, nível de renda, vinculação de trabalho ou

nível de risco, os direitos sociais fundamentais, em quantidade e qualidade compatíveis

com o grau de desenvolvimento da sociedade.

A universalização não é contrária ao estabelecimento de critérios de

seletividade ou focalização, desde que a seletividade ou a focalização estejam

subordinadas a uma política geral de universalização. Em outras palavras, a seletividade

pode ser utilizada como um instrumento de política social, desde que não se converta na

própria política social, neste caso, de fundo compensatório (MENDES, 1996).

Ainda sobre essa mesma questão, Viana e Dal Poz têm posição semelhante e

afirmam: [...] Essas experiências de focalização dentro do universalismo evidenciam que se podem ter práticas focalizadas dentro de uma política universal e não há necessariamente conflito entre focalização e universalização, isto é, os dois conceitos não precisam ser excludentes (VIANA; DAL POZ, 2005, p. 238-39).

Souza (2000) também manifestava discordância em relação à estratégia de

reorganização de assistência pelo fato de ela se restringir, no geral, aos pequenos

municípios180. A questão aí dizia respeito à sua abrangência, em termos populacionais,

diante da magnitude da desassistência. Os grandes contingentes populacionais, aqueles

que representam os grandes bolsões de miséria, estão incrustados nos grandes centros, e

nestes, as coberturas eram insignificantes. Havia ainda o agravante de se instituírem 180 Ainda que o desenvolvimento da Estratégia Saúde da Família nos pequenos municípios, em especial quando sua implantação rapidamente chegava aos 100% de cobertura, tenha sido fundamental para demonstrar o salto de qualidade na atenção que era conseguido. Isso estimulava cada vez mais os defensores desse modelo, a reforçarem a pressão para a sua generalização nos centros maiores.

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nesses municípios dois modelos, tendo o PSF uma cobertura baixa. E essa seria uma

postura antipedagógica, pois concorria para gerar confusão na população e no meio

profissional e ainda enfraquecia a proposta de mudança das práticas profissionais.

Argumentações desse tipo foram fundamentais para que o DAB/SAS revisse a sua

estratégia de implantação da Estratégia nos grandes municípios. Isso foi feito através da

instituição do Programa de Expansão da Saúde da Família (PROESF) para os grandes

centros urbanos e áreas metropolitanas.

Outro aspecto importante no processo de crítica da Estratégia e de sua

implantação dizia respeito à reorganização da atenção básica, entendida não apenas

como o nível primário de atenção, mas na sua complexidade e na sua articulação com os

outros níveis de atenção, sob a forma de uma rede integrada que garantisse a

substituição do modelo tradicional pela lógica do PSF (SOUSA, 2002). Era importante

que se evoluísse para um processo de transformação que levasse o setor saúde a vencer

o modelo hegemônico centrado na organização hospitalar, na tecnologia de ponta e na

cultura da subespecialidade (ALVES SOBRINHO, et al., 2002).

O exercício da crítica foi um ponto relevante no processo de implantação e

implementação do PACS e do PSF. Ela concorreu para a firmeza do propósito de se

montar a Estratégia Saúde da Família, fazendo-a evoluir e se firmar não apenas do

ponto de vista assistencial, confirmando e consolidando o SUS, mas, também, do ponto

de vista conceitual. A leitura de Gil (2006)181 evidencia a análise do confronto de três

conceitos: atenção primária, atenção básica e saúde da família. Esses conceitos ora

convergem, ora se excluem, demonstrando a singularidade da produção teórico-prática

brasileira no campo da atenção à saúde e da busca de consolidação do Sistema Único de

Saúde.

Considerando-se o campo teórico, as divergências dizem respeito ao

significado da atenção primária e se explicam pela trajetória histórica de como esse

conceito foi gerado e de como evoluiu por conta da ambigüidade de definições que

ficaram estabelecidas nos fóruns internacionais em relação aos fins da Atenção

Primária. As dissensões se referem, principalmente, à conotação que esse conceito

assumiu em países considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Essas interpretações variam de: (1) Atenção Primária à Saúde como estratégia de reordenamento do setor saúde; (2) Atenção Primária à Saúde

181 GIL, C. R. R. – Atenção primária, atenção básica e saúde da família: sinergias e singularidades do contexto brasileiro. Cadernos de Saúde Pública., Rio de Janeiro, v. 22, n. 6, 1171-1181, 2006.

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como estratégia de organização do primeiro nível de atenção do sistema de saúde e (3) Atenção Primária à Saúde como programa com objetivos restritos e voltados especificamente à satisfação de algumas necessidades mínimas de grupos populacionais em situação de extrema pobreza e marginalidade. Nos países do terceiro mundo, predomina a interpretação da Atenção Primária à Saúde como um programa específico para os marginalizados e excluídos e materializada na proposta político-ideológica da atenção primária seletiva destinada às populações pobres (GIL, 2006, p. 1.177).

Fruto das distorções e interpretações acerca do que seria a Atenção Primária

em Saúde, várias opiniões orientaram o debate em torno do processo de implantação e

implementação desse tipo de atenção no Brasil. Até o início da década de noventa, as

referências eram mais homogêneas e diziam respeito à atenção primária, ainda que esta

já fosse identificada com uma conotação de programas diferenciados em se tratando de

países com situações internas de exclusão social e desigualdade sócio-econômica. E, como

essas questões estavam na ordem do dia, tencionando as agendas de ajuste econômico dos

países latino-americanos, o que incluía o Brasil, o governo federal era instado a dar

respostas aos seus problemas na forma de políticas sociais. O PACS/PSF, então, fora

direcionado prioritariamente para os grupos sociais mais vulneráveis, com o “compromisso

imediato de superar as iniqüidades” (SOUSA, 2001), promovendo acesso à saúde para os

setores excluídos.

Havia um desencontro entre os objetivos práticos do governo central do país e

os objetivos estratégicos dos que faziam o movimento sanitário e mesmo de parte do grupo

gestor das políticas de saúde do Ministério da Saúde, ou seja, aqueles voltados para o

processo de descentralização da saúde, para as tecnologias de gestão do sistema, a

organização da rede de serviços e as transformações no processo de trabalho dos

profissionais envolvidos especialmente com a atenção às pessoas.

O desencontro ficava patente nos documentos oficiais e na bibliografia sobre o

assunto. Gil (2006) percebe essa realidade quando afirma: O diálogo proporcionado pela leitura e análise desses documentos e artigos permitiu identificar que, no contexto brasileiro, a Atenção Primária à Saúde traz consigo as seqüelas do debate travado nos anos 70, decorrentes do caráter racionalizador defendido por alguns atores das agências financeiras que preconizavam a redução do financiamento e gastos em saúde, em detrimento das reais necessidades de saúde das populações dos países periféricos. Mesmo não tendo sido essa a racionalidade de muitos dos formuladores das políticas de saúde da época, que defendiam, inclusive, o aumento de recursos para o setor, a Atenção Primária à Saúde, por ter sido implementada num contexto no qual a expansão da cobertura veio acompanhada das propostas de contenção do financiamento, teve seus pressupostos estruturantes de um novo modelo (universal, equânime, inclusivo, integral) obscurecidos pelo ideário neoliberal racionalizador (focalização, baixo custo, pacote básico, excludente). Mesmo assim, esse debate tem sido salutar por manter alertas e vigilantes os diferentes

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segmentos sociais da reforma sanitária brasileira em relação aos rumos da política de saúde, do próprio SUS e da concepção de política setorial que se quer imprimir no país (GIL, 2006, p. 1.179).

Talvez por isso é que se registre nos documentos oficiais do Ministério da

Saúde, a partir de meados da década de noventa, o conceito de atenção básica significando

ora estratégia de reordenamento do setor saúde ora estratégia de organização do

primeiro nível de atenção do sistema de saúde, sinônimos de duas das interpretações

possíveis da polissemia em que se transformou a utilização do conceito de atenção

primária. Os elementos contidos no debate dessas diferentes interpretações têm dado as

condições essenciais para que se prospere na transformação da atenção à saúde no país.

6.2 Os documentos oficiais: a organização da Estratégia Saúde da Família

Um marco importante para a perspectiva da atenção básica e o

fortalecimento do conceito representado pelas iniciativas PACS e PSF, sustentados

como programas especiais do Ministério da Saúde, na segunda metade da década de

noventa, foi o realce obtido por ela na Norma Operacional Básica do Sistema Único de

Saúde – NOB/SUS 01/96182 – publicada com base na Portaria GM nº 2.203/96. Essa

norma, conforme reza no seu item 2, teve por finalidade primordial: [...] promover e consolidar o pleno exercício, por parte do poder público municipal e do Distrito Federal, da função de gestor da atenção à saúde dos seus munícipes (Artigo 30, incisos V e VII, e Artigo 32, parágrafo 1º, da Constituição Federal), com a conseqüente redefinição das responsabilidades

182As Normas Operacionais Básicas representaram uma tradição da primeira década de implementação do SUS e se constituíram instrumentos de regulação do processo de descentralização. Discutidas e negociadas entre os gestores das três esferas do SUS, para depois serem formalmente transformadas em portarias do Ministro da Saúde, tiveram o condão de reforçar a regulamentação da direção nacional do SUS. Como a própria denominação já indica, tratavam de operacionalizar os aspectos relativos aos fundamentos do sistema de saúde, a divisão das responsabilidades e as relações entre gestores e os critérios de transferência de recursos federais para estados e municípios. Na prática, essas normas tiveram um caráter transitório, ao todo foram três (91, 93 e 96), visto que manifestavam o ritmo processual da descentralização, permitindo a atualização das regras nos diferentes estágios da implementação do SUS. Foi através da NOB/SUS 01/96 que se instituíram as condições para a gestão do SUS pelos sistemas municipal, estadual e federal. Nesse aspecto, especificamente em relação aos municípios, foram instituídas duas condições de gestão: a Gestão Plena da Atenção Básica e a Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde. Para assumir qualquer uma das duas condições de gestão, os municípios deveriam habilitar-se com bases no preenchimento de requisitos que definiam as suas respectivas responsabilidades. Essa norma, apesar de publicada em 1996, só veio ser colocada em prática, produzir efeitos na gestão do SUS e alterar a perspectiva do modelo de atenção e de prática médica por volta de 1998.

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dos Estados, do Distrito Federal e da União, avançando na consolidação dos princípios do SUS (BRASIL, 2001, p. 40).

A prescrição sobre o que seriam essas responsabilidades municipais e do

Distrito Federal, no que diz respeito à Atenção à Saúde, por sua vez, ficava definida no

item 3, Campos da Atenção à Saúde – que considerava três campos específicos, a saber: a) o da assistência em que as atividades são dirigidas às pessoas, individual ou coletivamente, e que é prestada nos âmbitos ambulatorial e hospitalar, bem como em outros espaços, especialmente no domiciliar; b) o das intervenções ambientais, no seu sentido mais amplo, incluindo as relações e as condições sanitárias nos ambientes de vida e de trabalho, o controle de vetores e hospedeiros e a operação de sistemas de saneamento ambiental (mediante pacto de interesses, as normalizações as fiscalizações e outros); e c) o das políticas externas ao setor saúde, que interferem nos determinantes sociais do processo saúde-doença das coletividades, de que são partes importantes questões relativas às políticas macroeconômicas, ao emprego, à habitação, à educação, ao lazer e à disponibilidade e qualidade dos alimentos (BRASIL, 2001, p. 42).

Como é possível notar, tanto na formulação do Programa de Saúde da

Família como na definição dos campos da atenção à saúde definidos pela NOB 01/96

estão inteiramente parametrizados pelas definições derivadas da Declaração de Alma-

Ata, o que, por si, já define a linha de atenção e de prática de saúde que se desejava para

os profissionais médicos e para a população, enquanto sujeitos diretamente implicados

na produção da saúde, como seus sujeitos concretos.

As ações estavam endereçadas às pessoas e à comunidade, nos seus diversos

âmbitos, e poderiam ser proporcionadas em qualquer desses âmbitos (unidade de saúde,

trabalho, domicílio). Havia a preocupação com os vários ambientes de vida e trabalho

da população, assim como com as demais políticas que representam o cuidado com os

problemas que determinam e condicionam o processo saúde-doença (economia,

emprego, renda, habitação, educação, lazer e alimento).

Entretanto, é preciso ter presente que, se a NOB/SUS 01/96 representava um

avanço na operacionalização dos princípios do SUS e dava um norte político para a

organização da atenção à saúde e para a organização do Ministério da Saúde, do Distrito

Federal, dos estados e municípios – as estruturas gestoras do SUS – na prática, também

gerava novas contradições a serem enfrentadas. Essas estruturas de gestão continuavam,

majoritariamente, voltadas para uma visão tradicional de atenção à saúde, baseada na

assistência pura e simples e com um forte viés financeiro. Tinha-se um único ministério

para gerir a saúde, mas persistia a velha dicotomia entre ações assistências curativas e

ações de saúde pública.

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E não por acaso, iniciativas como PACS e PSF encontravam-se dentro da

estrutura da Fundação Nacional de Saúde que, sendo uma instituição vinculada ao

Ministério da Saúde, representava as ações de saúde pública que eram, na sua maioria,

executadas através de programas e convênios. Por seu turno, essa forma de implantação

dos programas e ações do Ministério da Saúde reforçava a surrada estratégia da indução

financeira sempre tão presente nos programas verticais, prática que acabava por

desvirtuar a sua implantação como política municipal. Ou seja, como tudo se reduzia a

uma relação convenial, os aspectos burocráticos e cartoriais eram os mais ressaltados,

ficando de lado os aspectos fundamentais da política, sua ética, sua pedagogia e o seu

conteúdo educativo e filosófico, com possibilidade de transformar a prática médica,

movendo-a para o campo de uma práxis educativa e popular fincada no diálogo e na

construção da autonomia, da cidadania e da emancipação dos atores nela implicados.

Considerando-se, no entanto, a escalada institucional do Programa de Saúde

da Família, a perspectiva de transformação do programa, numa estratégia concreta,

continuou o seu curso. Tanto que o ano de 1997 foi particularmente importante por

quatro aspectos. Primeiro, por ser considerado o PSF uma das ações prioritárias dentro

do documento que sintetizava o plano ministerial para aquele ano183. Lá se propunha

uma meta ousada de 3.500 equipes, porém sem definir orçamento. Mesmo com esse

fato esdrúxulo, era importante a afirmação do programa perante o governo e o próprio

Ministério da Saúde. O segundo aspecto ficou por conta da publicação do segundo

documento oficial do PSF – Programa de Saúde da Família: uma estratégia para

reorientação do modelo assistencial184. O documento continha as diretrizes

operacionais, as etapas de implantação e as responsabilidades dos três níveis de governo

em relação ao programa, destacando sua inserção no plano de ações e metas prioritárias

do Ministério da Saúde para aquele ano.

O terceiro aspecto importante foi a constituição dos Pólos de Capacitação,

Formação e Educação Continuada para o pessoal do Programa de Saúde da Família. E

aqui se pode perceber uma inflexão importante do programa rumo a sua adoção como

estratégia de estruturação de política capaz de desafiar a promoção de mudanças no

183 O documento denominava-se 1997 – O ano da saúde no Brasil – ações e metas prioritárias. E prometia a implementação de medidas consideradas vitais para a consolidação do Sistema Único de Saúde e para o desenvolvimento social do país. 184 A referência completa é: BRASIL, Ministério da Saúde. – Programa de Saúde da Família: uma estratégia para reorientação do modelo assistencial. Brasília, 1996.

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perfil dos profissionais do PSF. Inicialmente, foram criados 10 pólos185 que, depois,

foram expandidos para todos os estados.

O quarto aspecto diz respeito à regulamentação do PSF através da Portaria

Ministerial, MS/GM nº 1.886 (DOU 22/12/1997). Por meio desse instrumento

normativo, o PSF é dado como importante estratégia para contribuir com o

aprimoramento do SUS. São aprovadas suas normas e diretrizes e definidas as

responsabilidades para as três esferas de governo. Essa regulamentação foi

particularmente importante porque colocou o PSF na agenda dos governos estaduais. Já

nos anos de 1997 e 1998, as estatísticas do programa dobraram, e o número de

municípios com equipes passou de 567 para 1.134; as equipes implantadas evoluíram de

1.600 para 3.100; a população coberta, de 5,6 para 10,6 milhões de pessoas, e o número

de ACS, fundamentais para o funcionamento do programa, passou de 54.900 para

79.700 agentes de saúde186. A evolução no número de ACS é relativamente menor, visto

que grande parte foi simplesmente absorvida pelas ESFs.

Algo importante em 1998 foi emblemático para se poder aquilatar a pujança

do movimento que estava por trás do compromisso de fazer a saúde da Família se

transformar numa estratégia de reorientação do modelo de atenção e de práticas

profissionais em saúde orientadas para uma idéia de práxis. Foi a realização, em junho

de 1998, do I Seminário de Experiências Internacionais em Saúde da Família187, evento

que se prestou para troca de experiências e reflexão sobre os desafios do modelo

brasileiro. Programado para algo em torno de setecentas pessoas, superou os mil

participantes, devido ao entusiasmo e ao interesse que provocou no movimento sanitário

brasileiro.

185 O Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Paraíba, por sua tradição e reconhecimento do trabalho que vinha executando, principalmente na discussão e formação de recursos humanos voltados para as áreas de Planejamento e Gestão, Epidemiologia, Saúde do Trabalhador e Educação em Saúde, conteúdos fundamentais para o desenvolvimento dos Sistemas Locais de Saúde e para a Atenção Básica, fez parte da primeira leva de Pólos de Capacitação. Um aspecto interessante que vale a pena ser ressaltado é que, nos primeiros anos de implantação do PSF, a UFPB, através do NESC/CCS, foi um grande exportador de profissionais para outros estados, especialmente para o Ceará, estado nordestino que rapidamente avançou na Estratégia de Saúde da Família. Isso ocorria, naquele momento, devido ao fato já afirmado de que, até 1996, a SES-PB, enquanto gestora do SUS no estado, deixava muito a desejar no que tange à implementação do SUS e da atenção básica. 186 Na secção de anexos deste trabalho, o leitor poderá acompanhar, através de mapas e gráficos, toda a evolução da Estratégia Saúde da família em termos de municípios cobertos, número de agentes de saúde implantados, número de ESF e ESB, total de recursos invertidos, percentual de população coberta e percentual por porte municipal. 187 O evento contou com a participação do Brasil, Reino Unido, de Cuba, do Canadá, dos Estados Unidos, da Colômbia e do Equador, todos expondo a sua experiência em relação ao desenvolvimento de ações tangentes à Atenção Primária em Saúde. O evento contou com o apoio da Organização Pan-Americana de Saúde, do Projeto Comunidade Solidária e da Casa Civil da Presidência da República.

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Por sua importância, pelo potencial revelador do movimento em prol da

sustentabilidade da Estratégia Saúde da Família, no Brasil, pela paciência e obstinação

desse movimento em lograr conseguir a mudança de enfoque de programa vertical para

estratégia estruturante de uma atenção à saúde, com potência para transformar a prática

médica, mesmo dentro de um governo de perspectiva neoliberal, como se apresentava o

governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, vale a pena aqui reproduzir as falas

da mesa de abertura desse seminário internacional.

A primeira intervenção, a da Coordenadora de Atenção Básica do Ministério

da Saúde, Heloíza Machado, tenta traduzir a contradição intrínseca existente dentro do

processo de implantação da atenção básica no país e, ao mesmo tempo, celebrar a

tenacidade e o compromisso quase obsessivos dos que vinham fazendo o movimento de

Reforma Sanitária no país – que, naquele momento, tinha como uma de suas lutas a

implantação e implementação da Atenção Básica como forma de reorientar o modelo de

atenção à saúde e as práticas sanitárias em busca da sua práxis – fazendo uma reflexão e

uma síntese em torno da gnosiologia dos filósofos gregos Platão e Aristóteles. Além de serem dois filósofos maiores, são [a] expressão de dois modos de ser, de duas filosofias de vida, o realismo e o idealismo. Platão aponta, com uma das mãos, para cima, para o ideal, para o céu. Com a outra, segura o livro Timeu, onde expõe a primazia das idéias sobre a realidade sensível. É o homem do mundo ideal, da essência perfeita de cada ser, da utopia, dos grandes sonhos, da abertura infinita do ser humano. Aristóteles, ao contrário, aponta para baixo, para a realidade empírica, para a terra. Segura o livro Ética, no qual apresenta os princípios orientadores para a prática humana, rumo à felicidade. É o homem do realismo, dos projetos visíveis, do caminho bem definido, da prática concreta. Ambos têm sua razão de ser. Somente integrados, Platão e Aristóteles, céu e terra, real e ideal, a vida poderá caminhar com os dois pés. Um no chão, e o outro elevado, como quem anda para a frente, na direção certa (BRASIL, 1999, p. 5).

Nessas primeiras palavras da alegoria filosófica da coordenadora, ficavam

patentes a tensão e a contradição que caracterizavam a construção do novo modelo de

atenção, em termos da sua concepção platônica voltada para o ideal de ser de uma

estratégia de atenção, à elevação do humano no sentido de uma práxis. E, ao mesmo

tempo, a sua prática aristotélica, fundada na realidade sensível, concreta e palpável sob

o ponto de vista empírico. A chamada para uma nova síntese, que fosse capaz de unir

dialeticamente essas duas perspectivas, era o desejo. Por isso completa: E esse tem sido o princípio que conduz esse projeto no Ministério da Saúde, com o pé no chão, mas olhando para frente, entendendo que nenhum processo de transformação precede de várias etapas de mudanças. Essas mudanças exigem assumir, fundamentalmente, as estratégias de acumulação, de confiança e legitimidade. E nessa perspectiva, ao longo desses anos, essa

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equipe aqui representada, nos mais diferentes recantos desse imenso país, tem caminhado na direção de assumir firmemente o sentido dessas mudanças. Sentido esse traduzido na reconstrução do modelo de assistência à saúde, na valorização, num engajamento a um movimento que já tem história, porque, ao longo dessas últimas décadas, possibilitou pelo compromisso de muita gente no processo de construção do SUS, acumulação de saberes e de práticas inovadoras, que agora represento o referencial, para implantação de estratégia de saúde da família no Brasil (BRASIL, 1999, p. 5-6).

Essa personagem tinha a consciência de que o SUS, o PSF e a prática

médica estavam inseridos num complexo jogo pleno de nuanças, cuja solução estaria

nas disputas que deveriam se travar nas arenas armadas nas diversas pontas do sistema -

aqui entendidas como o próprio Ministério, as estruturas estaduais, as municipais - mas,

principalmente, nas UBSF e nas estratégias de formação, dentro e fora da Universidade,

e dos aparelhos formadores. Naquelas que fossem capazes de refletir as múltiplas

facetas da realidade em que os distintos atores estão inseridos, e o processo de

consciência que cada um é capaz de produzir para confrontar, colocar em disputa, em

diálogo, para conceber uma pedagogia geradora de autonomia e compartilhamento: uma

práxis educativa e popular.

A segunda intervenção, a da então secretária-executiva do Programa

Comunidade Solidária, Anna Peliano, ressalta as qualidades do PSF como eixo de

reestruturação da atenção primária de saúde e exalta os avanços que significavam a

adoção da metodologia e o processo de trabalho interdisciplinar da Estratégia, que

incorporava a vigilância à saúde, a intersetorialidade e a educação para a qualidade de

vida, bem como o compromisso ético representado pela práxis dos diversos

profissionais de cada equipe e a solidariedade e parceria entre as três esferas de

governo. Realçava, ainda, a prioridade que vinha sendo dada pelo Ministério da Saúde

àquele Programa. O Programa de Saúde da Família hoje representa um eixo de reestruturação da atenção primária de saúde, a partir da reestruturação do modelo de assistência. Ele muda o enfoque da atenção, que passa a ser a família e o meio em que ela vive. Ele se propõe a trabalhar com o princípio da vigilância da saúde, apresentando uma característica do trabalho inter e multi-setorial. A questão da intersetorialidade, que é difícil de trabalhar, cada vez se torna mais importante, cada vez temos mais consciência de que a educação não se resolve dentro da sala de aula, que saúde não se resolve apenas dentro do posto de saúde, que a questão da renda, ocupação e qualidade de vida tem implicações muito mais amplas e que todas essas áreas estão intrinsecamente inter-relacionadas e que quem quer trabalhar saúde tem que trabalhar qualidade de vida, tem que estar trabalhando com a questão da intersetorialidade (BRASIL, 1999, p. 6-7).

Essa locução dava a noção do completo entendimento do PSF como

estratégia de atenção, inclusive avançando na perspectiva da vigilância da saúde, ou

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seja, do trabalho centrado na comunidade, no território e nas suas dimensões laboral,

econômica, geográfica, ambiental, política, epidemiológica, enfim, intersetorial e

educativa. Mas, por outro lado, também deixava de revelar uma realidade que ficava

oculta, encoberta. Os fins do Projeto Comunidade Solidária entravam em conflito com a

estratégia que estava sendo exaltada, quando esta era entendida como uma prioridade

apenas para algumas áreas que representavam bolsões de miséria. Caía-se na

contradição de confirmar a Saúde da Família como uma medicina para pobres,

miseráveis e desvalidos, como uma política social compensatória.

E a representante da Presidência da República continuou: Uma segunda grande ênfase que o Programa de Saúde da Família vem dando é o envolvimento ou o comprometimento dos agentes da saúde, tanto os médicos, os enfermeiros, como os agentes comunitários, ou seja, os prestadores de serviço com as próprias comunidades. Eles deixam de cumprir apenas o seu dever de trabalho, o seu dever de ofício, mas passam a trabalhar com o comprometimento ético com as comunidades. Esse compromisso ético, que podemos chamar de solidariedade, é uma terceira ênfase que o Programa vem dando e envolve parceria entre governos federal, estaduais, municipais e sociedade civil (grifos nossos). Hoje temos certeza de que, isoladamente, o governo federal ou nenhuma instância de governo pode equacionar os problemas sociais, de qualidade de vida, e os problemas de saúde da população. É preciso estarmos juntos, é preciso darmos a mão e em todos os princípios, na própria lógica do Programa de Saúde da Família está implícita essa ampla parceria. E é por todos esses princípios, por toda essa lógica que vem regendo o Programa de Saúde da Família, que nós da Comunidade Solidária temos dado uma grande prioridade ao Programa. Estamos acompanhando o Programa de Agentes Comunitários de Saúde, que foi o embrião do Programa de Saúde da Família, e temos observado que os agentes da saúde, hoje, são muito mais do que apenas agentes de saúde, são agentes de desenvolvimento, são agentes que estão construindo comunidades mais solidárias, e que tem dado mais esse grande número de exemplos para todos os profissionais, não só da área de saúde, mas para todos os profissionais, para todos os servidores públicos de um modo geral (BRASIL, 1999, p. 6-7).

Importante se faz, no reconhecimento da representante da Comunidade

Solidária, o envolvimento e o comprometimento dos médicos e dos demais profissionais

de saúde atuantes no PSF. A compreensão da prática médica, como uma ética da

solidariedade, confirma o reconhecimento do diferencial do modelo de atenção à saúde,

em termos da sua preocupação com o equacionamento de problemas sociais e com a

qualidade de vida das populações adscritas. Uma perspectiva que põe a Estratégia Saúde

da Família como caminho e como lócus de expressão de uma prática médica convertida

numa práxis.

Na última intervenção, em nome do Ministro da Saúde, o secretário de

Assistência à Saúde, Renilson Rehém, destacou que o evento representava o

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reconhecimento e um desafio, no sentido de consolidar a proposta de Saúde da Família.

Esse reconhecimento dizia respeito à luta incansável da COSAC, mesmo diante das

dificuldades que eram enfrentadas dentro do próprio ministério, no governo, como um

todo, e na sociedade. Quanto ao desafio, apontava para a necessidade de se vencer a

questão nevrálgica da formação de recursos humanos compatíveis com a proposta,

aprofundando as parcerias com a Universidade. Afirmava, finalmente, o compromisso

do Ministério da Saúde de levar adiante a tarefa de transformação da proposta com a sua

efetivação enquanto Estratégia Saúde da Família. É preciso que se diga que isso [a Estratégia Saúde da Família] é um grande desafio, particularmente no que diz respeito a recursos humanos, e esse é um desafio que temos [e] só poderemos vencer se conseguirmos aprofundar as parcerias que temos conseguido desenvolver, ao longo desses anos, com os governos estaduais e municipais, mas particularmente com os pólos universitários, que têm [...] uma grande tarefa de responder a essa demanda e viabilizar que consigamos vencer esse desafio. Não cabe, nesse momento, colocar o que significa essa estratégia, que tenho feito questão de colocar como estratégia mais do que um programa, porque o programa sempre passa uma idéia de provisoriedade, de início, meio e fim, mas na verdade, esta é uma estratégia de reconstrução, de revisão, de reordenamento do modelo assistencial vigente no país. Então, não há necessidade [...] de falar de toda [a] importância e [de] como isso vai nos levar a reordenar, a reorganizar o modelo assistencial no Brasil. [...] já disse antes, mais do que um programa, se trata de uma estratégia plenamente adotada pelo Ministério da Saúde e que temos certeza irá contribuir para uma radical transformação nas difíceis condições que temos hoje, no funcionamento do sistema de saúde (BRASIL, 1999, p. 7-8).

Considerando-se o discurso oficial do Ministério da Saúde, pode-se

confirmar uma série de iniciativas práticas que demonstravam o interesse em torná-lo

realidade, notadamente no contexto do segundo governo do presidente Fernando

Henrique Cardoso. O Ministério da Saúde, agora sob a direção do então senador José

Serra, declarava que o Programa de Saúde da Família era uma estratégia para o Brasil

inteiro, não devendo ser visto como atividade tipicamente rural ou voltado para a

pobreza. Afirmava que, por não se tratar de uma proposta paralela ao sistema, ele seria o

próprio sistema. E o novo discurso vinha acompanhado de uma meta de implantação

ousada que anunciava 20 mil equipes até 2002.

Nesse sentido, aqui são citadas algumas iniciativas da Coordenação de

Atenção Básica do Ministério da Saúde, a partir da leitura de Silva (2003), dos

documentos oficiais e do acompanhamento do dia-a-dia da execução do próprio PSF, no

momento em que compunha a equipe gestora do SUS-PB, postado no órgão de

planejamento da SES-PB:

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a) Implantação do Piso de Atenção Básica – PAB (fixo) e dos incentivos

para os Programas de Agentes comunitários e Saúde da Família (PAB

variável);

b) Publicação do Plano de Ações Estratégicas da COSAC para o período

1999/2002;

c) Definição, pela primeira vez, de um orçamento próprio para a Saúde da

Família;

d) Sistematização de todas as ações que já estavam sendo desenvolvidas pela

gerência nacional do PSF para dar visibilidade interna e externa ao

Ministério da Saúde;

e) Realização da I Mostra de Produção em Saúde da Família e o Prêmio

Saúde Brasil. O evento contou com mais de três mil participantes,

considerando-se gestores, representantes de instituições de ensino,

profissionais e estudantes da área da saúde. Iniciativa fundamental para o

intercâmbio de experiências e reflexões sobre a Saúde da Família e para

o aumento da visibilidade da estratégia;

f) Criação do Departamento de Atenção Básica (DAB) na estrutura da

Secretaria de Políticas de Saúde do Ministério da Saúde. Nessa nova

conformação institucional, o PSF é fortalecido na medida em que passa a

ser a estratégia prioritária para organizar a atenção básica188;

g) Campanha de divulgação do PSF e da atenção básica: Abra as portas para

Dona Saúde entrar;

h) Sensibilização dos gestores estaduais189 e municipais para a implantação

da Estratégia Saúde da Família. Distribuição para os prefeitos do país de

um kit (fita de vídeo, cartilha explicativa e encarte com indicadores de

saúde), apresentando os avanços alcançados pelos municípios que

estavam implementando o PSF;

i) Ampliação do apoio financeiro aos municípios, a partir do estabelecimento

do critério de cobertura populacional para definição do valor de incentivo

188 O novo Departamento de Atenção Básica se organiza em coordenações e grupos de trabalho e gerenciamento. Ampliado na sua missão e na organização das ações específicas, chega a contar com um quadro de aproximadamente 100 técnicos. 189 O estado da Paraíba foi um dos que atenderam ao processo de sensibilização, colocando como meta a efetivação da Estratégia no seu território. Na prática, evoluiu de um quadro de 178 municípios cobertos com o PACS (3.674 ACS) e 21 municípios com PSF (39 equipes) para 223 municípios (100%) com PACS (5.960 ACS) e 210 (94%), com PSF (777 ESF) em 2002.

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ao PSF além do repasse de R$ 10.000 (dez mil reais) por cada nova

equipe implantada.

j) Publicação do Manual para a Organização da Atenção Básica. O PSF é

destacado como a estratégia prioritária do Ministério da Saúde para a

organização da atenção básica;

k) Publicação da Revista Brasileira Saúde da Família190 (números de 1 a 7 ).

As publicações divulgam a estratégia e o PSF, a partir de relato de

experiências, artigos e entrevistas com formadores de opinião;

l) Regulamentação do Pacto de Indicadores da Atenção Básica. O pacto teria

o objetivo de acompanhar e avaliar os resultados e o impacto da atenção

básica.

Num primeiro momento, a condução do pacto de indicadores da atenção

básica ficou sob a responsabilidade do Centro Nacional de Epidemiologia,

CENEPI/FUNASA/MS, sendo que, a partir de 2000, passou a ser coordenado pelo

Departamento de Atenção Básica. Segundo Silva (2003), sob a coordenação do

Departamento de Atenção Básica, o Pacto possibilitou agregar, em torno de um mesmo

objetivo, as práticas e percepções das diferentes áreas técnicas do Ministério da Saúde e

das secretarias estaduais e municipais de saúde.

Considerando ainda a autora, o Departamento de Atenção Básica

desenvolveu todo um conjunto de pesquisas que permitiram vários diagnósticos no

sentido de identificar avanços e limitações da estratégia em execução. Entre elas,

destacam-se: a) a avaliação da implantação e do funcionamento do PSF; b) o

diagnóstico da força de trabalho do PSF, envolvendo médicos e enfermeiros de todas as

equipes implantadas no momento da pesquisa; c) a pesquisa de avaliação dos Pólos de

Capacitação; d) a criação da Comissão de Acompanhamento e Avaliação dos Cursos de

Especialização e Residência Multiprofissional em Saúde da Família; e) a realização do

monitoramento da implantação e do funcionamento das equipes Saúde da Família; e f) o

desenvolvimento do PROESF – Projeto de Expansão do Programa de Saúde da Família.

Tem-se, em dados do Ministério da Saúde, o crescimento da Estratégia

Saúde da Família no período de 1998-2002. Quase quadruplicou o número de

municípios, passando de 1.134, em 1998, para 4.161 municípios, implantando o PSF

190 O número 06 da Revista (junho/2002) constituiu-se uma edição especial comemorativa da marca dos 50 milhões de pessoas acompanhadas pelo Programa de Saúde da Família.

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como estratégia de organização da atenção básica em 2002. O número de ESF foi

multiplicado em mais de cinco vezes no mesmo período, numa evolução de 3.100 para

16.700 equipes. A implantação de ACS evoluiu de 79.700 agentes, em 1998, para

175.500, em 2002, ou seja, praticamente duplicou. A partir de 2001, o Ministério da

Saúde instituiu a odontologia na atenção básica, com Equipes de Saúde Bucal (ESB).

Foram implantadas, até o final de 2002, 4.261 ESBs. Finalmente, em termos de

cobertura total da população com a estratégia, houve uma evolução de 10,6 milhões de

habitantes, para 54,9 milhões, aproximadamente um terço de toda a população

brasileira191.

Todos os avanços enumerados tiveram, no entanto, uma relação muito

próxima com um fato que, por conta da sua relevância política, deve ser considerado:

foi a instituição do Manual da Atenção Básica. Esse documento legal foi o passo

decisivo do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso e da administração José

Serra, no sentido de uma virada para a adoção de uma política estratégica192 voltada

para a implementação dos princípios do Sistema Único de Saúde. Com essa norma, o

governo tentava vencer a perspectiva de uma formulação focal para responder a

problemas que já haviam sido, de muito, diagnosticados como universais.

Logo, na apresentação do Manual, está escrito: A prioridade dada à Atenção Básica representa um grande esforço para que o sistema de saúde torne-se mais eficiente, consolide vínculos entre os serviços e a população e contribua para a universalização do acesso e a garantia da integralidade da assistência (BRASIL, 2001, p. 86).

Por outro lado, a introdução do mesmo documento expressava a

contribuição dada no sentido de regular, no âmbito do SUS, com a participação dos

vários setores do Ministério da Saúde, do CONASS e do CONASEMS, a atenção 191 Vejam-se os gráficos e mapas detalhando a evolução das coberturas com a Estratégia Saúde da Família na secção de anexos deste trabalho. 192 Como os caminhos que conduzem a implementação das políticas setoriais não estão dissociados dos caminhos da formulação política mais geral, de cunho partidário e de preservação ou acumulação de poder político, Goulart (2002) interpreta o grande avanço da Estratégia Saúde da Família, no segundo governo Fernando Henrique, também como uma política estratégica para tentar fazer de José Serra Presidente da República, dando seqüência ao projeto de poder do PSDB. Assim se expressa o autor: “[...] esse talvez tenha sido o fator mais notável para ascensão do PACS e do PSF. Ao que se diz, Serra já tinha pretensões próprias e incentivo do presidente para ser o candidato à sucessão de 2002 e procurou pautar a sua ação de modo a conferir visibilidade ao ministério e a sua pessoa. Sem impedimento de outros projetos desenvolvidos, pode-se dizer que o PSF caiu como uma luva para os desejos de Serra” (GOULART, 2002, p. 105). Aqueles que foram testemunhas e atores privilegiados em todos esses acontecimentos da história recente da saúde brasileira e que representaram as tentativas de levar a cabo a consolidação do Sistema Único de Saúde e da Estratégia Saúde da Família e mesmo as parcelas significativas da população brasileira sintonizada com os movimentos políticos da República brasileira tendem a compartilhar com a opinião desse autor.

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básica, espelhando-se na NOB/01/96. Nesse sentido, o documento apresentava: a) o

conceito de atenção básica; b) as responsabilidades dos municípios como gestores desse

tipo de atenção; c) um elenco de ações, atividades, resultados e impactos esperados, que

traduziam as responsabilidades descritas; e d) as orientações sobre os repasses,

aplicações e mecanismos de acompanhamento e controle dos recursos financeiros que

compõem o Piso da Atenção Básica (PAB).

E deixava explícito o seu conceito de atenção básica como: [...] um conjunto de ações, de caráter individual ou coletivo, situadas no primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação. [...] A ampliação desse conceito se torna necessária para avançar na direção de um sistema de saúde centrado na qualidade de vida das pessoas e de seu meio ambiente (BRASIL, 2001, p. 87-88).

Acentuava, ainda, que a organização da atenção básica, sustentada no

conceito exposto, combinava-se com a Lei 8.080/90, cujo fundamento são os princípios

do SUS, e se baseia na saúde como direito, na integralidade da assistência, na

universalidade, na eqüidade, na resolutividade, na intersetorialidade, na humanização do

atendimento e na participação popular.

6.3 A Atenção Básica como política nacional

Fruto de progressos anteriores, em outros governos, o primeiro governo

Lula foi marcado pela consolidação da atenção básica como política nacional. A

Estratégia Saúde da Família já está presente em 91% dos municípios brasileiros.

Considerando-se apenas o PACS, já atingiu 95%, cobrindo uma população de

aproximadamente 60%193. Já se chegou a vinte sete mil ESF e a quinze mil ESB. Pode-

se dizer que, do ponto de vista de metas físicas, a Estratégia encontra-se consolidada.

Mas os principais avanços desse período não são as metas físicas

enumeradas. O significativo, realmente, é o avanço legal que conforma uma política

global de atenção à saúde e à estrutura ministerial que foi organizada para dar suporte

aos avanços normativos. No caso, a referência é à Portaria Ministerial MS/GM N.º 648,

193 A discrepância entre a alta cobertura de municípios e a cobertura populacional se dá pelo fato de a adoção da Estratégia ser parcial em boa parte dos municípios, especialmente nos maiores.

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de 28 de Março de 2006, que aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB),

estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica

para o Programa de Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de

Saúde (PACS). Essa legislação é resultante de uma ampla pactuação entre as três esferas

de governo em nível da Comissão Intergestores Tripartite194. A portaria GM 648/2006

unifica, revisa e revoga um conjunto de 28 portarias que tratavam de aspectos vários da

atenção básica (Ver, na íntegra, esse documento, na secção de anexos deste trabalho).

Considerando-se o Anexo dessa portaria, no seu Capítulo I – Da Atenção

Básica – item 1, que trata dos princípios gerais dessa modalidade de atenção, temos que A Atenção Básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de saúde de maior freqüência e relevância em seu território. É o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde. Orienta-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da eqüidade e da participação social (BRASIL, 2006, p. 3. Grifos nossos).

O fragmento do item em destaque apresenta-se como algo paradigmático,

como uma ruptura com a prática médica tradicional, pois, além de caracterizar a

Atenção Básica como algo que abrange os domínios individual e coletivo com ações de

promoção, prevenção e reabilitação, o que amplia o escopo da atenção em relação à

medicina tradicional, elucida que essas práticas (gerenciais ou sanitárias) se

desenvolverão com base num exercício democrático e participativo. A ruptura se

aprofunda, ainda mais, quando prescreve o trabalho em equipe e estipula que esse

trabalho em equipe, portanto solidário, dá-se num território bem delimitado e dinâmico,

pelo qual a equipe assume a devida responsabilidade sanitária. Essa perspectiva

chancela o encaminhamento da prática médica no sentido de uma práxis médica.

194 A ampla pactuação aqui referida diz respeito aos princípios e às diretrizes propostos nos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão, entre as esferas de governo na consolidação do SUS que, entre outras coisas, inclui a desfragmentação do financiamento da Atenção Básica.

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Percebe-se, então, que há um novo modelo de ação/intervenção em

andamento195, que exige relações horizontais, formação de novas competências196 e nova

compreensão do fazer saúde; uma perspectiva problematizadora e participativa; um

fazer e um saber fazer que não desconsideram a alteridade; um modelo que ajuda a

descortinar a complexa rede de relações e de informações que compõem a vida e a

saúde dos cidadãos usuários das ações e dos serviços de saúde; há uma perspectiva de

ação dialógica, no sentido freireano197, nas ações da Atenção Básica proporcionada pelo

PSF; há a vontade de um agir comunicativo, no sentido habermasiano198 da locução, nas

prescrições da Estratégia199; um conjunto de atitudes para uma assimilação dos sentidos

contidos nos princípios doutrinários e organizativos do SUS200 e na visão inovadora da

vigilância à saúde201, na sua prática cotidiana da atenção à saúde. Uma caminhada de

renovação da prática médica, apontando para outras bases praxiológicas.

É necessário, porém, ter-se em mente que, se os princípios doutrinários do

SUS e a visão inovadora da vigilância à saúde oferecem elementos importantes para a

195 Um modelo de atenção que “faz referência não apenas a programas específicos, mas ao modo como se constrói a gestão de processos políticos, organizacionais e de trabalho que estejam comprometidos com a produção dos atos de cuidar: do individual, do coletivo, do social, dos meios, das coisas e dos lugares, na promessa de construir a saúde. O que será sempre, e, ao mesmo tempo, tarefa tecnológica, isto é, um certo modo técnico de produzir o cuidar enquanto ato de saúde, comprometida com um jogo social implicado com certas formas de se produzirem as necessidades de saúde, enquanto valores de uso, utilidades para indivíduos e grupos” (MERHY, 2003, p. 16). 196 A temática das competências muito em voga, no momento, é extremamente complexa, vasta, abrangente e polêmica e vem sendo trabalhada por diferentes autores em diferentes sentidos e campos. Deseja-se aqui fazer referência a uma pedagogia das competências que discute a integração, a interdisciplinaridade e a globalização do conhecimento. Essa abordagem se encontra-se em: RAMOS, M. N. – A Pedagogia das Competências: autonomia ou adaptação? São Paulo, Cortez Editora, 2001, particularmente no capítulo 5, que trata da noção de competências como ordenadoras das relações educativas. Considerando-se a obra, como um todo, a autora faz uma verdadeira exegese da polissemia que esse conceito encerra. 197 A dialogicidade, termo forjado pelo próprio autor, para além de um neologismo, constitui-se uma atitude metodológica que perpassa toda a obra de Freire, que a define como a essência da educação enquanto prática da liberdade. Na dialogicidade, ação e reflexão são indissociáveis. 198 O agir comunicativo proposto por Habermas se dá na comunicação cotidiana através de interações, lingüisticamente mediatizadas, entre sujeitos. A obra do autor que trata dessa problemática é: HABERMAS, J. – Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989. 199 A estratégia Saúde da Família, por ser um projeto estruturante, deve provocar uma transformação interna do sistema, com vistas à reorganização das ações e dos serviços de saúde. Essa mudança implica ruptura da dicotomia entre as ações de saúde pública e a atenção médica individual, assim como, entre as práticas educacionais e assistenciais (SOUSA, 2000, p. 26).200 A Constituição Federal e a Lei Orgânica da Saúde (8.080/90) definem que o SUS funcionará com um comando único por esfera de governo, tendo como princípios doutrinários: a universalidade, a integralidade e a eqüidade; e como princípios organizativos: a descentralização, a regionalização, a hierarquização e a participação popular; 201 Teixeira, Paim e Vilasbôas (1999) resumem a Vigilância à Saúde em sete características básicas: intervenção sobre problemas de saúde (danos, riscos e/ou determinantes); ênfase em problemas que requerem acompanhamentos contínuos; operacionalização do conceito de risco; articulação de ações promocionais, preventivas e curativas; atuação intersetorial; ações sobre o território e intervenção sob forma de operações.

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possibilidade de eficácia política e social da Estratégia Saúde da Família, também

apontam para a necessidade de criação de novas competências profissionais, sociais e

éticas. Os princípios, por si sós, não respondem, em que pese todos os avanços

conseguidos, à questão de como construí-las na prática, enfrentando os limites, as

tensões e contradições da própria prática médica, resultantes de um modelo de

sociedade baseado cada vez mais no individualismo, na competição, na desigualdade e

na exclusão das maiorias.

A prescrição ministerial é fruto de avanços teóricos e práticos do próprio

SUS e da Estratégia Saúde da Família. Porém o crescimento exponencial, em termos de

equipes e de profissionais absorvidos, dá-se ainda num contexto em que a escola - a

escola médica, em particular - ainda continua pedagogicamente autoritária,

comprometida com a transmissão do conhecimento, condicionadora, controladora e

acrítica em termos do seu papel social e, por isso mesmo, descomprometida com a

transformação da realidade social onde atuam/atuarão os seus educandos. Ressalte-se,

entretanto, que as demais políticas sociais não estão distantes desse perfil. Não faz uma

leitura correta das necessidades reais da população. E, na medida em que a leitura é

incorreta, as medidas tomadas não são capazes de enfrentar essas necessidades.

Percebe-se que as políticas, em geral, não têm apostado no desenvolvimento da

comunidade e na construção de sujeitos autônomos e emancipados202.

Outra questão importante para a Estratégia Saúde da Família é a necessidade

de se utilizar uma tecnologia de complexidade alta e de baixa densidade. Isso significa

uma atenção e atuação que considere os diversos ângulos do problema que está sendo

enfrentado e a possibilidade de ser resolvido no próprio nível em que se dá e onde se

encontra o usuário do serviço, o que não quer dizer que não deva estar atenta (a atenção

202 O Bolsa Família, o maior e mais ambicioso programa de transferência de renda da história do Brasil, uma política social emblemática do atual governo, serve bem como exemplo para o que se quer afirmar. Foi criado para enfrentar o maior desafio da sociedade brasileira, que é combater a fome e a miséria para, a partir disso, promover a emancipação das famílias mais pobres do país. É um programa que associa a transferência do benefício financeiro ao acesso a direitos sociais básicos – saúde, alimentação, educação e assistência social. Um programa com essa envergadura pressupõe a ação de todas as esferas de governo articuladas com a sociedade e as famílias beneficiárias, e esse, talvez, seja o maior dos seus óbices. Pouco adianta o setor saúde tentar efetivar o compromisso de garantir as ações básicas de saúde em conjunto com as famílias, porquanto outras condicionalidades precisam ser cumpridas. É verdade que melhorou a capacidade de consumo de milhões de famílias, mas ainda não se avançou, de forma concisa, no sentido do combate à desigualdade, o verdadeiro problema da sociedade brasileira.

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básica) para a necessidade e possibilidade do seu uso, de forma mais densa, num nível

de atenção hierarquicamente superior do sistema203.

O princípio geral dessa modalidade de atenção está centrado nas

necessidades decorrentes do processo saúde-doença de cada comunidade. A unidade de

saúde e o domicílio são considerados como o lócus de contato preferencial dos usuários

com o sistema de saúde. Essa posição é, pois, de rompimento com o modelo flexneriano

que coloca o hospital como centro irradiador da atenção à saúde. Depois, orienta-se

ainda pela universalidade, acessibilidade e pela coordenação do cuidado, da

continuidade da integralidade, da responsabilização, da humanização, da eqüidade e da

participação social, o que a distancia, de forma cabal, do modelo tradicional já

caracterizado.

Quando se faz referência às necessidades geradas pelo fenômeno saúde-

doença, quer-se falar, na verdade, de um conjunto de atributos mais ou menos objetivos

que, presentes na vida das pessoas e das coletividades ou ausentes dela, influenciam

direta e indiretamente no seu estado de saúde. Nessa perspectiva, as necessidades de

saúde dependem, primeiramente, das condições de vida das pessoas ou das

coletividades para quem são produzidas ou estão endereçadas as políticas de saúde,

depois, do acesso destas às tecnologias que melhoram ou prolongam a vida, do vínculo

afetivo efetivo existente entre os usuários de ações e de serviços e as equipes ou

profissionais de saúde, executores diretos das políticas e, finalmente, do grau de

autonomia construído pela população no seu modo de conduzir a vida204.

Quando se faz referência às condições de vida, deseja-se argumentar que

essas condições podem ser, e normalmente o são, muito diversas. Essa diversidade gera

distintos modos de vida que, por sua vez, traduzem-se em diferentes necessidades de

saúde. Isso tem rebatimento, por exemplo, sobre a necessidade de acesso a serviços e

ações de saúde e, assim, às tecnologias que melhoram a saúde e prolongam a vida. 203 Essa distinção é importante para que não se caia no erro que já se caiu no passado - de achar que a atenção básica ou atenção primária significa uma medicina de segunda categoria ou pouco resolutivo. Ao contrário, nessa concepção, fica descartada qualquer possibilidade de se interpretar a atenção básica como algo simples ou simplificado, como medicina para pobre ou para pessoas que devam ser encaradas segundo sua capacidade de consumo. A Atenção Básica não é uma modalidade de atenção com carimbo sócio-econômico. Ela é a porta de entrada do usuário do SUS no sistema de atenção à saúde e, portanto, deve ser universal, integral, equânime e resolutiva. Deve, ainda, ser permeável, o tempo todo, à participação popular e ao controle social. 204 Esses elementos todos, que compõem a equação da atenção à saúde, estão definidos em CECÍLIO L.C.O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqüidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA (organizadores). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ABRASCO; 2001. p. 113-26.

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Nesse caso, é importante reconhecer que o valor de uso de cada tecnologia é

determinado pela necessidade de cada pessoa, em cada momento.

As tecnologias aqui referidas podem ser tanto as duras, ou seja, as que se

baseiam nos processos técnicos específicos das ciências físicas e naturais – que

produzem máquinas e equipamentos que são utilizados na assistência direta a quem

delas necessitar em algum momento ou lugar do sistema de saúde – quanto as

tecnologias ditas leves, aquelas produzidas através dos processos sociais protagonizados

por expressões das ciências humanas (CECÍLIO, 2001).

Convém enfatizar que o vínculo afetivo efetivo é aquele que se baseia

sempre na relação contínua, pessoal e calorosa entre os atores que se encontram na cena

própria dos cuidados em saúde, na convivência e na sensibilidade que, juntas, são

capazes de construir relações críticas construídas através do diálogo que gera

solidariedade, partilha e construção de conhecimento, atitudes éticas e fraternas entre os

homens e compromisso com a esperança e a emancipação.

Quanto à questão da autonomia no modo de fazer andar a vida, é muito

importante considerar o papel da informação e da educação para a vida das pessoas, mas

é igualmente imperioso reconhecer que educação e informação são condições

necessárias, mas não suficientes para a construção da autonomia. A autonomia efetiva

vai além desses dois atributos e não se realiza apenas por seu intermédio. Ela se

configura na liberdade e na efetivação do direito de fazer-se sujeito, de escolher

caminhos próprios e exercer em plenitude a sua integridade física e moral. Dito de outra

forma, de exercer a sua cidadania, única condição em que as necessidades de saúde

podem se converter em demandas efetivas pela melhoria da saúde.

6.4 A Política Nacional de Atenção Básica: seus fundamentos, sua organização

A Atenção Básica tem, na Saúde da Família, sua estratégia prioritária de

organização, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde. Considera o

sujeito em sua singularidade, complexidade, integralidade e inserção sócio-cultural, para

buscar a promoção de sua saúde, a prevenção e o tratamento de doenças e a redução de

danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo

saudável. Assumindo essa atitude, aproxima-se de uma atenção horizontal, educativa e

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popular, posto que abre espaço para que se volte às maiorias, ao diálogo e a uma

perspectiva de práxis.

Nesse diapasão, a Atenção Básica define como seus fundamentos: I - Possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade e resolutivos, caracterizados como a porta de entrada preferencial do sistema de saúde, com território adscrito de forma a permitir o planejamento e a programação descentralizada e em consonância com o princípio da eqüidade; II efetivar a integralidade em seus vários aspectos, a saber: integração de ações programáticas e demanda espontânea; articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde, tratamento e reabilitação, trabalho de forma interdisciplinar e em equipe e coordenação do cuidado na rede de serviços; III - desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a população adscrita, garantindo a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado; IV - valorizar os profissionais de saúde por meio do estímulo e do acompanhamento constante de sua formação e capacitação; V - realizar avaliação e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados, como parte do processo de planejamento e programação; e VI - estimular a participação popular e o controle social” (BRASIL, 2006, p. 3-4).

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), no item 02 do mesmo

anexo, define também as responsabilidades de cada esfera de governo, disciplinando as

competências de cada uma delas no cumprimento dos princípios da Atenção Básica, na

organização e execução das ações, assim como na avaliação dos seus resultados em todo

o território nacional. Define, ainda, no item 03, a infra-estrutura mínima e os recursos

necessários à realização das ações de atenção básica nos municípios e no distrito

federal. Nessa estrutura, é imprescindível:

a) a Unidade Básica de Saúde (UBS) com ou sem Saúde da Família inscrita

no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da

Saúde, de acordo com as normas sanitárias vigentes;

b) UBS com ou sem Saúde da Família, contando com equipe

multiprofissional composta por médico, enfermeiro, cirurgião-dentista,

auxiliar de consultório dentário ou técnico em higiene dental, auxiliar de

enfermagem ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde,

entre outros, de acordo com o desenvolvimento de suas ações,

disponibilizadas;

c) consultório médico, consultório odontológico e consultório de

enfermagem para os profissionais da Atenção Básica;

d) área de recepção, local para arquivos e registros, uma sala de cuidados

básicos de enfermagem, uma sala de vacina e sanitários, por unidade;

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e) equipamentos e materiais adequados ao elenco de ações propostas, de

forma a garantir a resolutividade da Atenção Básica;

f) garantia dos fluxos de referência e contra-referência aos serviços

especializados, de apoio diagnóstico e terapêutico, ambulatorial e

hospitalar; e

g) existência e manutenção regular de estoque dos insumos necessários para

o funcionamento das unidades básicas de saúde, incluindo dispensação

de medicamentos pactuados nacionalmente.

Para Unidade Básica de Saúde (UBS) sem Saúde da Família em grandes

centros urbanos, recomenda-se o parâmetro de uma UBS para até 30 mil habitantes,

localizada dentro do território pelo qual tem responsabilidade sanitária, garantindo os

princípios da Atenção Básica. Em cada UBS, conforme o item 04 do anexo da mesma

Portaria N.º 648, deverá existir um cadastro junto ao Ministério da Saúde para poder

funcionar. Sendo que o cadastramento será feito pelos gestores municipais e do Distrito

Federal em consonância com as normas do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de

Saúde.

É importante enfatizar que é de grande relevância, na prescrição dessa

política, a definição do processo de trabalho das equipes de Atenção Básica, item 06 do

capítulo I do anexo da PNAB, sendo características fundamentais: I - Definição do território de atuação das UBS; II - programação e implementação das atividades, com a priorização de solução dos problemas de saúde mais freqüentes, considerando a responsabilidade da assistência resolutiva à demanda espontânea; III - desenvolvimento de ações educativas que possam interferir no processo de saúde-doença da população e ampliar o controle social na defesa da qualidade de vida;IV - desenvolvimento de ações focalizadas sobre os grupos de risco e fatores de risco comportamentais, alimentares e/ou ambientais, com a finalidade de prevenir o aparecimento ou a manutenção de doenças e danos evitáveis; V - assistência básica integral e contínua, organizada à população adscrita, com garantia de acesso ao apoio diagnóstico e laboratorial; VI - implementação das diretrizes da Política Nacional de Humanização, incluindo o acolhimento; VII - realização de primeiro atendimento às urgências médicas e odontológicas; VIII - participação das equipes no planejamento e na avaliação das ações; IX - desenvolvimento de ações intersetoriais, integrando projetos sociais e setores afins, voltados para a promoção da saúde; e X - apoio a estratégias de fortalecimento da gestão local e do controle social (BRASIL, 2006, p. 7-8. Grifos nossos).

Dentre esses aspectos orientadoras do processo de trabalho das equipes de

atenção básica, todos fundamentais para um trabalho eficiente e eficaz na atenção à

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saúde, três são particularmente importantes para o processo de trabalho do médico e

merecem aqui ser ressaltados, até mesmo em função do foco da nossa pesquisa. São as

que envolvem: a) ações educativas com o fito de ampliar a atuação da população na

defesa da sua qualidade de vida; b) as que dizem respeito ao acolhimento e ao trabalho

humanizado; e c) a participação no planejamento e avaliação das ações de saúde. Elas

exigem, antes de tudo, que a atuação desse profissional esteja pautada numa perspectiva

e numa atitude dialógica.

A ação educativa do médico, capaz de interferir no processo de saúde-

doença da população e de ampliar a possibilidade de participação dela no controle social

e na defesa da qualidade de vida, não acontecerá na ausência do diálogo. Presente, o

diálogo será uma ferramenta fundamental, capaz de promover a elevação da eficácia da

ação de saúde, e de valor inestimável para a participação do próprio médico, no interior

das equipes ou fora delas (no território), no planejamento e na avaliação das ações em

que está inserido, como ator social de destaque. Mas a dialogicidade que se quer

presente na práxis médica talvez atinja o seu ápice no processo de acolhimento e

humanização das ações de saúde.

Há uma ética da responsabilidade nas políticas de saúde, nas políticas

sociais em geral, que exige a participação e a democracia, fios condutores da

implementação das políticas sociais e que, quando exercitadas em conjunto,

proporcionam a partilha das decisões. Do contrário, quando ausentes, poderão levar a

uma compreensão errônea de que essas políticas são dádivas dos administradores ou dos

governantes do momento. Nesse sentido, o diálogo é essencial. É ele que aproxima os

seres humanos e abre caminho para a partilha das decisões, capaz de propiciar a

autonomia dos indivíduos e da coletividade. Ele se torna fundamental e dá sentido à

política do próprio Ministério da Saúde que, nos seus documentos, tem trabalhado a

humanização como uma política transversal tradutora dos princípios do SUS,

construtora de trocas solidárias e comprometidas com a dupla tarefa de produção de

saúde e produção de sujeitos, articuladora das práticas em saúde, destacando o aspecto

subjetivo nelas presente205.

205 Nas suas publicações formais, explicitadoras da Política Nacional de Humanização – PNH, o MS assume que visa valorizar os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores; fomentar a autonomia e o protagonismo desses sujeitos; aumentar o grau de co-responsabilidade na produção de saúde e dos sujeitos, estabelecendo vínculos solidários e de participação coletiva no processo de gestão. Também promete identificar as necessidades sociais de saúde, mudar os modelos de atenção e gestão dos processos de trabalho, tendo como foco as necessidades dos cidadãos e a produção de saúde.

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O sentido da humanização desejada pelo Ministério da Saúde para as ações

do SUS pode ser encontrado em Fortes e Martins (2000), que concebem o ato de

humanizar como ação concreta, como explicitação prática do reconhecimento das

pessoas, aquelas que buscam os serviços de saúde para a resolução de suas necessidades

de saúde, como sujeitos de direitos. Essa ação humanizadora ganha maior relevância na

Estratégia Saúde da Família, montada dentro de uma perspectiva acolhedora de cada

pessoa e de cada família na sua singularidade, nas suas necessidades específicas, com

seus valores, crenças e desejos, ampliando as possibilidades para que possam exercer

sua autonomia.

A PNABS preceitua, ainda, no seu item 6 (p.8), as atribuições dos membros

das equipes de Atenção Básica, sendo que as atribuições específicas dos profissionais

que trabalham nesse programa deverão constar de normatização do município e do

Distrito Federal, de acordo com as prioridades definidas pela respectiva gestão e as

prioridades nacionais e estaduais pactuadas. No item 7 (idem), o processo de educação

permanente das equipes é de responsabilidade conjunta das SMS e das SES, nos

estados, e da Secretaria de Saúde do Distrito Federal.

De acordo com a política, os conteúdos mínimos da Educação Permanente

devem priorizar as áreas estratégicas da Atenção Básica, acordadas na CIT, acrescidos

das prioridades estaduais, municipais e do Distrito Federal. Devem compor o

financiamento da Educação Permanente recursos das três esferas de governo acordados

na CIT e nas CIBs. Os serviços de Atenção Básica deverão adequar-se à integração

ensino-aprendizagem de acordo com processos acordados na CIT e nas CIBs.

A implementação da Atenção Básica é, pois, uma experiência que, aos

poucos, vai se sedimentando na medida em que se desvincula da visão clássica de

atenção à saúde voltada para o puramente assistencial/curativo, sustentado por uma

tecnologia quase sempre centrada no hospital. Quando funcionam adequadamente,

dentro do modelo da Saúde da Família, as unidades básicas de saúde (UBS) têm

mostrado que são capazes de resolver boa parte dos problemas de saúde de uma

comunidade, prestando um atendimento de bom nível, prevenindo doenças, evitando

internações desnecessárias e melhorando a qualidade de vida da população.

As equipes da Estratégia Saúde da Família incorporam e reafirmam os

princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS) – universalidade,

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integralidade, eqüidade e participação da comunidade – e estão estruturadas a partir da

Unidade Básica de Saúde da Família. E quando organizadas a partir do conceito de

equipe mínima, proposto pela Estratégia, incluem profissionais de nível superior – casos

do médico e do enfermeiro – e um profissional de nível médio, o auxiliar de

enfermagem. Incorporam, ainda, nas áreas onde ele já esteja implantado, uma equipe de

quatro a seis agentes comunitários de saúde (ACS) – lideranças selecionadas a partir de

indicação das próprias comunidades assistidas, que passam a desenvolver o importante

trabalho de elo permanente entre a comunidade e a equipe de saúde206 (BRASIL, 2001).

Desde a sua implantação, a partir de 1994, com a implementação das

primeiras equipes de saúde, a Estratégia Saúde da Família tem se firmado como uma

iniciativa para reorganizar as práticas de atenção primária em saúde. Substitui o modelo

tradicional de atenção, onde este exista, por um novo modelo que, chegando mais perto

da família, pode ajudar a melhorar a sua qualidade de vida. Entretanto, como a rede de

serviços de atenção básica tem um histórico caótico, pode-se dizer que a Estratégia, na

verdade, tem funcionado como impulsionadora de uma universalização que herda a

maioria dos problemas relativos à implementação das políticas de saúde e da prática

médica no país.

Esse é um processo recente e ainda em construção. O novo modelo de

atenção que a Estratégia Saúde da Família está universalizando ainda está em processo,

em gestação. E, em se tratando da prática médica, as quase vinte e sete mil ESFs ainda

não são a expressão do novo, enquanto um exercício consolidado de transformação da

prática médica. Os profissionais descentralizados representam, majoritariamente, ainda,

o modelo tradicional de natureza disciplinar, biomédica; de comportamento individual

coercitivo (não dialógico), centrado na recuperação da saúde. Um conjunto ainda preso

a uma tecnologia de intervenção assistencial formatada num modelo de atenção que

privilegia o curativo que vem da estrutura organizacional de tendência centrípeta –

voltada para o serviço de saúde, para o profissional médico e ainda pouco permeável à

206 As equipes também podem ser formadas a partir de outros desenhos alternativos à equipe mínima inicial. No município de João Pessoa, considerando-se a atual administração, todas as equipes são formadas com a inclusão do odontólogo e do auxiliar de consultório dentário (ACD). Há ainda a possibilidade, a depender do modelo assistencial empregado, de se absorver o técnico de higiene dental (THD). Porém, há uma recomendação (não há obrigação) do Ministério da Saúde de que essas equipes já nasçam incorporando o profissional dentista e o auxiliar de consultório dentário (ACD). Há liberdade, também, para os municípios organizarem as suas equipes da melhor forma que lhes aprouver, desde que respeitem o módulo mínimo para composição das equipes. Ainda se tratando da Paraíba, Campina Grande incorporou o assistente social em boa parte das suas equipes. Cabedelo, por seu turno, incorporou o profissional nutricionista.

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participação popular. Porém, espera-se que esse conjunto de equipes em atividade se

junte às que ainda virão e sejam os parteiros do novo modelo de atenção que se quer

consolidar.

A Estratégia Saúde da Família, implantada e implementada em conjunto

com estados e municípios, tem a finalidade de promover um amplo processo de

reorganização da atenção à saúde no país. Por isso encara os seus integrantes não apenas

como profissionais que se responsabilizam pela promoção, prevenção e recuperação da

saúde dos usuários dos serviços e ações de saúde, mas também como educadores que

devem compartilhar e discutir com eles e com a população em geral os problemas do

cotidiano do seu território e a interferência desses problemas no seu estado de saúde

(BRASIL, 2001).

Convém destacar, também, a importância, nessa concepção de atenção à

saúde, do processo de hierarquização dos problemas e a sua classificação como

passíveis ou não de resolução no próprio território, através de uma atuação conjunta da

equipe de saúde com a comunidade, na busca de possíveis pistas e estratégias de

atuação que visem à superação dos problemas, mesmo quando estes estejam, em

princípio, fora de sua governabilidade.

A Estratégia Saúde da Família, na medida em que se consolida por dentro

do Sistema Único de Saúde, provoca um conjunto de rupturas que, de certa forma, põem

em cheque os modelos anteriores de formação e de prática médica. A referência aqui é

à visão de saúde-doença e de prática médica que, historicamente, preponderou no

modelo médico clássico, agora colocado frente a frente com as concepções que vêm

sendo construídas nas últimas décadas e que são assumidas pelo PSF enquanto visão e

perfil profissional a serem exigidos das equipes de saúde que compõem seu modelo de

atenção.

Segundo Paim (2000), a idéia de que saúde da família representa uma

possibilidade de reestruturar práticas em saúde ou, quem sabe, o próprio sistema, foi

construída não só a partir de uma sistematização de concepções que estavam na

literatura mas, sobretudo, com o trabalho militante que se faz no cotidiano dos serviços

de saúde. Por mais que se explicite, no nível do discurso, o que é a Saúde da Família ou

o que não deve ser a Saúde da Família, ela será aquilo que os sujeitos sociais, nos seus

espaços de trabalho, nos seus espaços de vida, conseguem produzir, ao se confrontarem

com projetos distintos, que disputam um mesmo espaço político-social. Não basta

declarar que a proposta de Saúde da Família é uma estratégia capaz de reestruturar as

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224

práticas e o sistema de saúde porque, ao mesmo tempo, diferentes atores constroem um

projeto de Saúde da Família muito mais vinculado, por exemplo, a uma idéia de serviço

especial ou de um programa especial. A idéia da estratégia tem a ver com a

possibilidade de, com base em uma determinada direcionalidade, dar determinados

passos à frente, dar uma segurada estratégica ou mesmo dar passos para trás (PAIM,

2000, p. 31).

As ESFs organizam o seu processo de trabalho a partir da realidade das

famílias pelas quais é responsável. Entre as suas tarefas primordiais, estão as de: a) Manter atualizado o cadastramento das famílias e dos indivíduos e utilizar, de forma sistemática, os dados para a análise da situação de saúde, considerando as características sociais, econômicas, culturais, demográficas e epidemiológicas do território; b) Definir precisamente o território de atuação, mapeamento e reconhecimento da área adstrita, que compreenda o segmento populacional determinado, com atualização contínua; c) Diagnosticar, programar e implementar as atividades, segundo critérios de risco à saúde, priorizando a solução dos problemas de saúde mais freqüentes; d) Praticar o cuidado familiar ampliado, efetivado por meio do conhecimento da estrutura e da funcionalidade das famílias que visa propor intervenções que influenciem os processos de saúde-doença dos indivíduos, das famílias e da própria comunidade; e) Realizar trabalho interdisciplinar e em equipe, integrando áreas técnicas e profissionais de diferentes formações; f) Promover e desenvolver ações intersetoriais, buscando parcerias e integrando projetos sociais e setores afins, voltados para a promoção da saúde, de acordo com prioridades e sob a coordenação da gestão municipal; g) Valorizar os diversos saberes e práticas na perspectiva de uma abordagem integral e resolutiva, possibilitando a criação de vínculos de confiança com ética, compromisso e respeito; h) Promover e estimular a participação da comunidade no controle social, no planejamento, na execução e na avaliação das ações; e i) Acompanhar e avaliar sistematicamente as ações implementadas, visando à readequação do processo de trabalho (BRASIL, 2006, p. 11-12. grifos nossos).

Essas tarefas definem a própria essência da Saúde da Família, em que a

questão do cuidado é central, pois a família é, antes de tudo, uma estrutura complexa. E

entender essa complexidade é tarefa do médico assim como de toda a equipe. O segredo

disso está em tentar compreender cada pessoa no seio do seu núcleo familiar e cada

família no contexto mesmo em que está inserida. Essa é uma chave importante e de

grande ajuda na perspectiva do cuidado ampliado.

Devido às condições econômicas e financeiras das últimas décadas, a

família contemporânea tornou-se diferente da de outrora e passou a agregar várias

gerações. Ou seja, é cada vez mais comum a existência de domicílios que agregam ao

seu núcleo (pais e filhos) os idosos de um ou até dos dois lados do casal. Da mesma

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225

forma, também pode ocorrer que filhos adultos constituam sua própria família,

continuando sobre o teto dos pais. O conhecimento e, mais que isso, o reconhecimento

dessas novas possibilidades de estrutura familiar é um fator a mais a ser considerado

dentro do cuidado ampliado às famílias.

A visão de processo de produção da saúde e o cuidado com o adoecimento

ganharam outra complexidade com a convivência de vários ciclos de vida sob um

mesmo teto. Ganha relevo, então, o trabalho interdisciplinar e em equipe, integrando

áreas técnicas e profissionais de diferentes formações. Mas sempre caberão ao médico e

à equipe a proposição e execução de intervenções que influenciem positivamente o

processo de saúde-doença dos indivíduos, das famílias e, por extensão, da própria

comunidade.

O olhar e o agir exigem de cada profissional das equipes interdisciplinares a

valorização dos diversos saberes e práticas que estão incrustados na tradição das

famílias e da comunidade. Isso observado, amplia-se a perspectiva de uma abordagem

integral e resolutiva que possibilite a criação de vínculos de confiança capazes de

propiciar uma relação fundada na ética do diálogo, do compromisso e do respeito

mútuos. Essa atitude abre espaço para que a promoção e o desenvolvimento de ações

intersetoriais possam ser pensados e executados dentro do próprio território de adscrição

de uma equipe.

Poe essa razão, é importante a produção de parcerias que integrem projetos

sociais e iniciativas já existentes ou que possam reunir setores afins voltados para a

promoção da saúde, ali mesmo onde as necessidades são geradas. Tudo isso,

respeitando-se as prioridades definidas no planejamento integrado equipe/comunidade,

coordenado de forma democrática pelas instâncias gestoras criadas e sob a coordenação

da gestão municipal.

Considerando-se ainda a Portaria GM/Nº. 648 de 23/03/2006, que aprovou a

Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e de normas

para a organização da Atenção Básica para o Programa de Saúde da Família (PSF) e o

Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS), são atribuições comuns a todos os

profissionais ( incluindo-se o médico): a) Participar do processo de territorialização e mapeamento da área de atuação da equipe, identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos, inclusive aqueles relativos ao trabalho, e da atualização contínua dessas informações, priorizando as situações a serem acompanhadas no planejamento local;

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b) Realizar o cuidado em saúde da população adscrita, prioritariamente no âmbito da unidade de saúde, no domicílio e nos demais espaços comunitários (escolas, associações, entre outros), quando necessário; c) Realizar ações de atenção integral conforme a necessidade de saúde da população local, bem como as previstas nas prioridades e protocolos da gestão local; d) Garantir a integralidade da atenção por meio da realização de ações de promoção da saúde, prevenção de agravos e curativas e da garantia de atendimento da demanda espontânea, da realização das ações programáticas e de vigilância à saúde; e) Realizar busca ativa e notificação de doenças e agravos de notificação compulsória e de outros agravos e situações de importância local; f) Realizar a escuta qualificada das necessidades dos usuários em todas as ações, proporcionando atendimento humanizado e viabilizando o estabelecimento do vínculo; g) Responsabilizar-se pela população adscrita, mantendo a coordenação do cuidado mesmo quando esta necessita de atenção em outros serviços do sistema de saúde; h) Participar das atividades de planejamento e avaliação das ações da equipe, a partir da utilização dos dados disponíveis; i) Promover a mobilização e a participação da comunidade, buscando efetivar o controle social; j) Identificar parceiros e recursos na comunidade, que possam potencializar ações intersetoriais com a equipe, sob coordenação da SMS; k) Garantir a qualidade do registro das atividades nos sistemas nacionais de informação na Atenção Básica; l) Participar das atividades de educação permanente; e m) Realizar outras ações e atividades a serem definidas de acordo com as prioridades locais (BRASIL, 2001 p. 21).

Todas as atribuições descritas acima exigem dos profissionais que se

coloquem numa atitude de horizontalidade e diálogo. Que estejam atentos para que o

encontro que promovem com o seu outro seja, antes de tudo, um encontro de saberes e

culturas que podem ser diversas, mas sempre voltadas para a criação e a transformação

do espaço (território) que, juntos, conhecem e compartilham e que, ao mesmo tempo,

querem diverso, voltado para a produção da saúde e para a qualidade de vida. E como

chegar a esse ponto sem o conhecimento mútuo que o diálogo e o vínculo afetivo

efetivo propiciam? Como chegar ao nível do cuidado, senão pela entrega e pela troca de

saberes que só a relação de confiança proporciona e que o vínculo efetiva? Essa é uma

troca de saberes que só se faz pela pronúncia das palavras que dizem do horizonte onde

cada um se encontra e de onde cada um lê o mundo, suas possibilidades e

circunstâncias. Troca de saberes que só se faz pela escuta, que revela o sentido e a

perspectiva do outro, uma perspectiva que poderá estar abrindo o espaço que produz ou

define os elementos para as atividades de educação permanente de ambos - profissionais

e população.

Talvez, seja essa perspectiva que ofereça o substrato para as atividades

específicas definidas para o profissional médico, quais sejam:

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a) Realizar assistência integral (promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) aos indivíduos e famílias em todas as fases do desenvolvimento humano: infância, adolescência, idade adulta e terceira idade; b) Realizar consultas clínicas e procedimentos na USF e, quando indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos demais espaços comunitários (escolas, associações etc); c) Realizar atividades de demanda espontânea e programada em clínica médica, pediatria, gineco-obstetrícia, cirurgias ambulatoriais, pequenas urgências clínico-cirúrgicas e procedimentos para fins de diagnósticos; d) Encaminhar, quando necessário, usuários a serviços de média e alta complexidade, respeitando fluxos de referência e contra-referência locais, mantendo sua responsabilidade pelo acompanhamento do plano terapêutico do usuário, proposto pela referência; e) Indicar a necessidade de internação hospitalar ou domiciliar, mantendo a responsabilização pelo acompanhamento do usuário; f) Contribuir e participar das atividades de Educação Permanente dos ACS, Auxiliares de Enfermagem, ACD e THD; e g) Participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da USF (BRASIL, 2001, p. 23).

Como se pode ver, o conceito de assistência do PSF se amplia no horizonte

de uma atenção à saúde, que extrapola a UBS e se estende à comunidade, ao domicílio e

ao acompanhamento do atendimento nos serviços de referência ambulatorial ou

hospitalar. O desenvolvimento de ações educativas e intersetoriais se coloca como uma

estratégia de eleição para enfrentar os problemas de saúde identificados. O médico não

está sozinho, mas apoiado por uma equipe de profissionais e auxiliares que, como ele, é

co-responsável pela ação no território. O diálogo, então, torna-se ferramenta

fundamental no processo, pois expande, dá sentido e materialidade a sua práxis

profissional, que é um dos pontos nevrálgicos da Estratégia.

Pode-se dizer que, depois de pouco mais de uma década de experiência da

Estratégia, desde a implantação das primeiras equipes até o momento atual em que elas

estão espalhadas por todo o território nacional, seguindo a tendência observada em

diferentes países207 e continentes, foram experimentadas importantes conquistas tanto no

plano teórico-metodológico quanto no campo prático-político da saúde208. Isso, de tal

forma que se torna fácil o reconhecimento da evolução da saúde no país, especialmente 207 Cuba, Canadá, Inglaterra e países escandinavos como Suécia, são bons exemplos de reformas sanitárias positivas que serviram de base para a montagem da estratégia de reorganização da atenção primária de saúde e do Programa de Saúde da Família. Para aprofundar o assunto, ver, VIANA, A.L.D. & DALPOZ, M.R. – A Reforma do Sistema de Saúde no Brasil e o Programa de Saúde da Família. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 8(2): 11-48. 1998; 208 Esses avanços se devem, em grande medida, às propostas e reflexões consubstanciadas em trabalhos de diversos e importantes autores latino-americanos, entre eles, vários brasileiros. Não podemos deixar de citar: Juan César Garcia, Vicente Navarro, Asa Cristina Laurell, Jaime Breilh, Carlos Gentile de Melo, Cecília Donnângelo, Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro, David Capistrano, Anamaria Tambellini, Jairnilson Paim, Gastão Wagner de Sousa Campos, Emerson Merhy, Lílian Schraiber, Victor Vicent Valla e Cecília Minayo, entre tantos.

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a relativa à atenção básica. Essa evolução se deu – é preciso que seja reafirmado sempre

– fruto de uma intervenção eficiente e eficaz de um amplo movimento pró-Reforma

Sanitária que, malgrado os tempos difíceis, soube unificar, mesmo na diversidade de

propostas, os diversos movimentos, partidários ou não, que faziam oposição política e

ideológica à ditadura militar; e que, depois, com a volta da normalidade institucional e

da democracia, soube galvanizar na sociedade um movimento ainda maior que logrou

transformar em políticas e conquistas o que antes era apenas sonho. Um sonho que

ainda não acabou.

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229

7 A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA: CONTRADIÇÕES, CONFLITOS EM

RELAÇÃO À PRÁTICA MÉDICA – UMA VIVÊNCIA

A implementação da Estratégia Saúde da Família (PSF), como forma

viabilizadora da inversão e transformação do modelo tradicional de atenção, insere-se

no contexto de um movimento maior de fortalecimento do Sistema Único de Saúde

(SUS), sua estrutura e resultados. Esse processo depende, dentre outras coisas: a) do

aprofundamento da descentralização das ações e dos serviços de saúde; b) do

investimento na qualificação dos recursos humanos e das gestões locais; c) da

reorganização da prática médica e das práticas de saúde dos demais profissionais das

equipes; d) do aprimoramento dos mecanismos de negociação entre as diversas esferas

do sistema e de seus governos; e e) do alargamento da participação popular e da

organização dos usuários, via mecanismos de controle social do Sistema de Saúde.

A grande expansão da Estratégia Saúde da Família se deu, no país inteiro, a

partir de 1998, com a implementação da Norma Operacional Básica do Sistema Único

de Saúde – NOB-SUS 01/96, cuja implementação institucionalizou a autonomia da

gestão da saúde no nível municipal, alavancou o processo de descentralização da gestão

e fomentou a atenção básica à saúde, além de contribuir para a democratização das

relações entre as três esferas de governo, aí incluída a relação com os usuários do

sistema de saúde. No entanto, é inevitável reconhecer que essa expansão, apesar de

muito importante e relativamente homogênea em termos dos estados brasileiros209, faz-

se, ainda, à custa de problemas e contradições.

Deve ser considerado, aqui, todo o processo de indução, principalmente

financeira, que presidiu o esforço ministerial para tornar atrativa a adoção da política. E

esse elemento, não há como negar, precipitou distorções em relação ao modelo

prescrito. Frente aos dados concretos de implantação da Estratégia e, principalmente,

por esta se tratar de uma mudança radical na concepção e implementação da ação de

209 Para se ter uma idéia dos dados dessa grande expansão, considere-se que o número de municípios adotando a estratégia com ESF, entre 1998 e 2006, pulou de 1.134 para 5.106 (20,6% para 91,8 dos municípios brasileiros). A distribuição de equipes evoluiu de 3.062 para 26.729 equipes de saúde, já tendo ultrapassado a barreira das vinte e sete mil em 2007. A população total coberta com a Estratégia, passou de aproximadamente 10,5 milhões (6,6%) para 86,0 milhões (46,2%) da população brasileira. O cotejamento dos dados oficiais poderá ser feito nos gráficos e tabelas constantes dos anexos deste texto. Capturados do portal do Ministério da Saúde na internet. (www.saude.gov.br)

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saúde, é fundamental que se faça uma distinção entre implantar equipes de saúde,

consoante a política, e implementá-la na sua plenitude.

Apesar de todos os avanços, tanto na assistência quanto na gestão, há um

descompasso entre a aspiração do movimento sanitário nacional e dos gestores de

saúde, impressos na legislação do SUS, e a realidade do modelo de atenção. Uma

adequada formação social, técnica e humana dos profissionais e um processo de

promoção social da população, para que se contemple minimamente ou se possibilite a

colocação em prática da Estratégia Saúde da Família, ainda está por ser oferecido à

maioria das realidades locais, ainda que se reconheça que esforços estão sendo feitos

nesse sentido.

A maioria das equipes descentralizadas ainda é montada com profissionais

formados dentro de uma tradição que pouco tem a ver com a filosofia da Saúde da

Família. E aí reside a contradição primordial dessa política e da prática médica nela

inserida. A interiorização dos profissionais de saúde nas comunidades - e eles chegam

mesmo aos domicílios - universalizou a assistência à saúde. Porém reproduzem-se em

escala nacional todos os problemas já levantados em relação à prática médica. A

descentralização da Atenção Básica, via Saúde da Família, faz-se sem que os

municípios e os atores que neles atuam estejam efetivamente preparados e voltados para

a nova realidade de atenção.

7.1 A Estratégia Saúde da Família na Paraíba

Apesar de ter começado a implementar o Programa de Agentes

Comunitários de Saúde (PACS) desde o seu início, em 1991, o Estado da Paraíba teve

uma trajetória de implantação e implementação sui generis, em relação ao Programa

Saúde da Família (PSF), que só veio a ser adotado, na prática, por volta de 1998,

quando virou estratégia de reorganização da Atenção Básica nacional. A partir daí, num

pequeno período, até 2001, conseguiram-se implantar aproximadamente setecentas

ESFs no Estado210.

210 A concepção da reorganização da Atenção Básica, conduzida pela gestão estadual de saúde, firmava-se em três diretrizes: o fortalecimento e a universalização do PACS, a implantação da Estratégia Saúde da Família (PACS+PSF) e a divulgação e realização do Pacto dos Indicadores da Atenção Básica e sua

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231

Mas a história da implantação do PSF, na Paraíba, não começou em 1998. O

município de Campina Grande foi pioneiro com a montagem de cinco equipes em

1994/1995. Compôs, junto com outras municipalidades, o quadro das primeiras

experiências brasileiras, tendo em vista a Saúde da Família as quais, como já foi

descrito, foram engendradas em municípios isolados, e tinham em comum o

desenvolvimento de uma visão crítica em relação à forma de organização da atenção

primária de saúde no país. Inspirava-se em programas de saúde de administrações

progressistas e democráticas, nacionais, e mesmo em experiências internacionais. Tanto

é que os primeiros passos do município se deram de forma autônoma, através do

intercâmbio e da ajuda de experiências como a de Cuba e a de Niterói (RJ). Só depois é

que houve todo um trabalho de parceria com o Ministério da Saúde211.

O início da trajetória do PSF, em Campina Grande, associou duas

qualidades fundamentais dos seres humanos: razão e sensibilidade. Razão, o município

teve ao reunir, na proposta para Atenção Básica, a decisão política, baseada num

razoável exercício do conhecimento e do planejamento da realidade transformada. A

sensibilidade também foi impressa no processo, na forma de seleção de um grupo de

profissionais que aliava ao seu perfil técnico e humano um profundo compromisso

social, como requeria a proposta. Desejava-se a construção do novo, ao se objetivar a

mudança na qualidade de vida da população.

A maioria dos profissionais das primeiras equipes eram egressos da

Residência em Medicina Preventiva e Social (RMPS/UFPB) e tinham uma visão crítica

do modelo de atenção até então vigente no país. Cheios de incertezas, mas com o

entusiasmo dos que ansiavam pela oportunidade de fazer algo que fosse diferente do

instituído, participavam de uma proposta de trabalho montada a partir de premissas que

denotavam um investimento na dimensão política do PSF. Entre essas premissas,

podem-se destacar: a) forte relação com a comunidade; b) a valorização da promoção da

saúde com a adoção radical do seu conceito ampliado; c) uma relação democrática entre

coordenação e trabalhadores do programa; e d) a prática da reflexão sobre o processo de

trabalho. utilização enquanto instrumento de avaliação (FRANÇA; ARAÚJO; CARVALHO, 2000; VERAS, 2007). Considerando-se Veras et al. (2000), os critérios para essa reorganização se resumiram em ações que se caracterizaram por um período de divulgação e sensibilização dos gestores municipais de saúde, pela intensificação da assessoria aos municípios e pelo estabelecimento de parcerias entre as diferentes instâncias do SUS e as instituições formadoras, iniciadas em 1998. 211 A iniciativa ministerial de reunir as várias experiências de Saúde da Família criou um núcleo conceitual que constituiu o então Programa Saúde da Família, o mesmo que, mais tarde, fazendo uma intersecção com o PACS, transformar-se-ia numa estratégia de atenção do próprio MS.

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232

Ao observar o município de Campina Grande, dentro do contexto dos

demais municípios paraibanos212, vê-se com nitidez que a ação do PSF, nessa cidade,

exprimia outra ética, outra atitude, humana, política e mesmo técnica. Os envolvidos

não só buscavam dominar o saber sobre as coisas que precisavam ser feitas como

também corporificavam essas mesmas coisas, tão necessárias ao enfrentamento do novo

na sua prática diária, nas suas relações interprofissionais e comunitárias. Via-se que

estavam dispostos a fundar outras experiências, outros aprendizados; a contribuir com a

mudança da situação de vida e de saúde das populações encampadas pelo projeto.

Havia, nessa iniciativa, outro sentido de prática médica. Esse outro sentido se baseava

na avaliação da realidade, num posicionamento crítico frente a essa realidade, na

perspectiva de sua transformação213. Enfim, numa práxis médica.

Em razão do ineditismo da proposta, havia dificuldades que revelavam, aqui

e ali, despreparo técnico e político dos profissionais, da coordenação e da administração

municipal. Não existiam referências teóricas e práticas consistentes que

consubstanciassem uma proposta concreta de organização. Mesmo assim, não havia

desânimo entre eles. Em lugar deste, pulsava o desafio à criatividade e à inovação. Algo

que se construía no aprendizado do trabalho em equipe, no convívio com a própria

população e na percepção de que ela (a população) também era dona de um saber.

(MENDONÇA; SOUSA, 2004, p. 38). Um saber retirado da vida, dos seus sofrimentos,

mas, um saber. Trabalhava-se na desconstução de relações interprofissionais e

comunitárias hierarquizadas e sua transformação em novas relações mais horizontais,

com a gestão, com os usuários e a comunidade como um todo. Relações presididas pelo

diálogo, pelo respeito, pelo acolhimento e cuidado com o outro. Pela humanização da

prática médica.

Essa postura revelou resultados positivos provenientes da identificação

conjunta (população, profissionais e técnicos) dos principais problemas da comunidade;

da descentralização das ações de planejamento e avaliação, garantindo uma gestão

participativa, e adequação das ações à realidade local; da democratização da gestão

administrativa local, com rodízio dos profissionais na gerência das UBSFs. Todos

212 O fato de o autor deste trabalho ter estado na gestão estadual no momento específico em que o PSF tentava se consolidar no município, abria-lhe a possibilidade de uma visão crítica em relação ao conjunto dos municípios paraibanos. Essa visão privilegiada era proporcionada pela vivência direta com todos os municípios paraibanos. 213 A experiência desse município, assim como dos demais pioneiros e daqueles que vieram na esteira deles, foi fundamental para balizar a composição e afirmação dos elementos que deveriam fazer parte, mais tarde, do modelo de Atenção Básica a ser adotado no país.

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233

tinham a oportunidade de experimentar a função de gerente. Esses avanços

proporcionaram, ainda, a criação e veiculação do Boletim da Saúde da Família, que

favorecia a divulgação e o fortalecimento do modelo. Também se organizaram grupos

de gestantes e idosos e grupos sócio-educativos, em função de características

epidemiológicas e demográficas de cada área de abrangência, inclusive com a criação

de grupos comunitários terapêuticos para pessoas com sofrimento mental. Houve, ainda,

uma melhora considerável dos principais indicadores de saúde-doença do município214.

Nem tudo, no entanto, foi conjuntura favorável o tempo todo. Vencidos os

primeiros anos da experiência, sobreveio uma mudança na administração municipal. A

nova gestão da saúde, não demonstrando a mesma sensibilidade em relação ao projeto

da Saúde da Família, tirou-lhe o apoio político e técnico. Foi nesse momento, em meio à

dificuldade, que o PSF de Campina Grande demonstrou sua força, sua inserção, seu

vínculo e enraizamento nas comunidades em que atuava. Fora do escopo da

administração municipal, mas com apoio da sociedade civil e acadêmica de Campina

Grande, além de outros apoios externos, transformou-se numa organização não-

governamental (ONG), com a finalidade de defender o modelo de atenção e sua

continuidade215.

Com todas as adversidades em relação ao projeto ou, quem sabe, motivado

exatamente por elas, o trabalho prosseguiu e tornou-se ainda mais radical e apurado, do

ponto de vista social e humano, a ponto de uma das equipes, a do Mutirão, obter, em

1998, o reconhecimento nacional através de um prêmio da Fundação Getúlio Vargas,

que destacou o trabalho como uma das dez melhores experiências nacionais de combate

à pobreza e à exclusão. O prêmio revelava a contradição vivida naquele instante nas

relações PSF/gestão municipal de Campina Grande.

Isso ficaria mais nítido nos anos seguintes. O que ocorria eram divergências

e resistências de lado a lado quanto à dimensão que queriam conferir à Saúde da Família

214 Os resultados dos primeiros anos da implementação da Saúde da Família, em Campina Grande, já foram relatados, em parte, no capítulo anterior, quando se fez referência às experiências exitosas da Estratégia Saúde da Família classificadas pelo Prêmio Saúde Brasil: o retrato da Saúde na Família, realizado pelo Ministério da Saúde no segundo semestre de 1999. 215 Ana Fábia da Mota Rocha Farias, que viria a ser, dois anos depois, a partir de 1999, coordenadora do PSF campinense, num depoimento em Mendonça e Sousa (2004), retrata o quadro vivido: “Houve choro, desesperança, indignação, que só fizeram nos levar mais para cima e para frente. O que mais nos sustentava eram as inúmeras histórias que afirmavam o valor do que estávamos construindo. Inúmeras histórias como a de dona Maria José, de Lindalva, de dona Luzia, acometidas de câncer e que, sem o PSF, teriam morrido isoladas no hospital ou de forma indigna com dor e fome em casa. Casos como o de Lindomar e tantas outras que escaparam da violência dos hospitais psiquiátricos graças ao trabalho corajoso de profissionais e ao potencial do modelo” (MENDONÇA; SOUSA, 2004, p. 39).

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e ao seu processo de institucionalização. A gestão municipal, na sua visão fragmentária

da ação de saúde, desejava apenas uma ampliação normativa e assistencial da atenção

básica. Um modelo que não vislumbrava promover o desenvolvimento social e humano

das pessoas assistidas, algo que era o carro-chefe da visão dos profissionais e da

coordenação do PSF local.

Aliás, um dos fatores que não propiciou a evolução do PSF, num período

anterior a 1998, na Paraíba, foi a visão retrógrada das administrações estadual e

municipais. Devido às características da nossa federação e sua memória centralizadora e

autoritária, especialmente do ponto de vista administrativo e financeiro, os municípios

sempre tenderam a ficar a reboque de políticas centrais (estaduais ou federais),

exercendo, apenas quando lhes convinha, a autonomia política e administrativa

garantida na Constituição Federal. No plano da saúde, mesmo que, a partir de meados

de 1996, a saúde contasse com uma administração progressista e antenada com os

princípios do SUS e da Saúde da Família, os resultados da sua ação técnica e política só

geraram frutos concretos com os efeitos financeiros da NOB-SUS 96, a partir de 1998.

7.2 A Saúde da Família como práxis: ecos de uma experiência exitosa

As possibilidades de uma práxis médica na Estratégia Saúde da Família

podem ser ilustradas com experiências concretas. São exemplos que mostram o quanto a

filosofia e a relação teoria/prática constituíram-se um amálgama nos corações e nas

mentes de profissionais de saúde e comunidade a tal ponto que os próprios profissionais

passaram a expressar com todas as letras a sua vivência216.

Sensível à carência, ao abandono, às relações sociais discriminatórias que

transformam seres humanos em seres da desigualdade, o PSF do Pedregal217, a partir de

uma negociação da Coordenação Municipal com um dos Shopping Centers da cidade,

proporcionou uma espécie de presente de natal para 103 crianças da sua área de 216 Os relatos que seguem nesta secção resultaram de pesquisa documental realizada nos arquivos da médica Ana Fábia da Mota Rocha Farias, uma das pioneiras nas ESFs de Campina Grande que, no período 1999-2004, foi coordenadora municipal do PSF. Uma seleção desses relatos até foi reunida pela própria coordenação e publicada em forma de cartilha pela Secretaria Municipal de Saúde em duas pequenas publicações: Saúde da Família em contos (2002) e Saúde da Família em contos e poesias (2004). 217 Bairro periférico de Campina Grande (PB), onde se instalou uma das equipes pioneiras do PSF municipal.

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abrangência. Dezenas de crianças, muitas das quais talvez nunca tivessem ganhado um

presente de natal, de repente se viram, numa manhã inteira, em meio a jogos eletrônicos,

brinquedos, sorteios e lanches, recebendo um afeto do qual eram merecedoras, mas que,

ao mesmo tempo, era escasso ou mesmo inexistente para elas. A médica Lucieuda

Rodrigues, que os acompanhou, junto com a sua equipe, relata a experiência: [...] O brilho no olhar destas crianças é indescritível e, com certeza, este dia será inesquecível tanto para elas, tão desprovidas de lazer, quanto para nós, profissionais da Saúde da Família, que tivemos a oportunidade de pôr em prática um pouco do conceito mais amplo de saúde como qualidade de vida. E para aqueles que não entenderam o que é que médicos, enfermeiros, assistente social e agentes comunitários de saúde faziam na bela manhã de domingo do penúltimo natal do milênio, afirmamos: estávamos cumprindo o nosso dever, PROMOVENDO SAÚDE [sic] porque acreditamos que esta só se faz com compromisso, sensibilidade e parcerias [...] (CAMPINA GRANDE, 2004, p. 41).

Essa mesma postura é perceptível noutro relato da mesma médica, ao dar

conta da atenção dispensada a uma mulher com surto psicótico e que, consciente e ao

mesmo tempo aterrorizada com o tratamento que a família e a sociedade dispensam às

pessoas com esse tipo de padecimento, propunha-lhe um pacto: não mandá-la para um

hospital psiquiátrico. Alegava que já havia acertado com a mãe para construir um

quartinho nos fundos da casa, onde seria enclausurada nos períodos de crise e tratada

pela sua doutora, pois o que queria era não voltar para aquele lugar. [...] Fiquei perplexa com a história de vida, seu sofrimento psíquico e seu apelo, a ponto de minha despreparação [sic] nesta especialidade e minha responsabilidade não serem suficientes para eu não tentar. Evidentemente que não fiz um pacto incondicional, mas disse-lhe que íamos tentar e vi que, naquele momento, um vínculo terapêutico havia se estabelecido. [...] Lindomar, como pioneira, é hoje uma das mulheres mais atuantes do grupo de Saúde Mental que reunimos semanalmente. Tornou-se uma liderança, despertou aptidões surpreendentes em trabalhos manuais, participa de passeios, organiza festas, dança, vive. E se vocês pudessem ver, através dos meus olhos, veriam um belo processo de resgate da auto-estima e de construção de cidadania, enfim, uma bela lição de vida. E o melhor de tudo é que não construímos um quarto, mas abrimos as portas para o mundo. Mundo este ainda muito restrito pelas desigualdades sociais, mas que permite enxergarmos um horizonte imenso (CAMPINA GRANDE, 2004, p. 42).

O vínculo profissional/população usuária é uma das pedras de toque da

Estratégia Saúde da Família, porquanto não se constrói automaticamente. Para que ele

exista, é necessária uma relação afetiva efetiva, algo que só se explicita num processo

de confiança mútua, de reconhecimento recíproco da importância do outro na nossa

vida; na entrega, no carinho e na amorosidade de quem cuida ou se sente cuidado pelo

outro. A confirmação prática da existência do vínculo profissional/usuário, como foi o

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caso daquela senhora com sua médica, às vezes se dá também de forma singela e

inusitada, como foi a experiência aqui relatada, reconhecida por uma vendedora de

amendoins, sua usuária, numa grande festa da cidade, ou seja, longe da área de

abrangência, onde as duas normalmente se encontravam. [...] Era nossa usuária, dona Júlia, uma senhora de cabelos grisalhos que, feliz da vida, exibia um largo sorriso e acenava efusivamente gritando: ‘minha dotôra, minha dotôra’, com o entusiasmo inerente às pessoas que estão diante de alguém muito querido. Percebi que estava embutido em tão feliz gesto muito carinho e orgulho. [...] senti uma satisfação ímpar, pois estava ali diante de mim [...] o reconhecimento de um trabalho e a confirmação da importância do saber cuidar, redobrando em mim a responsabilidade de cuidar de quem a vida tem descuidado tanto. Voltei pra casa relembrando a história desta vendedora de amendoins, que não é mais uma simples vendedora, mas uma mulher com nome e identidade e quem, apesar de não ter certeza de vender todos os seus amendoins, tinha certeza de ter ‘sua dotôra’ (CAMPINA GRANDE, 2004, p. 35).

A interação da Estratégia Saúde da Família com a comunidade e a correta

apreensão do sentido da prática profissional dela decorrente, aparece ainda noutro relato

da médica da área do Pedregal. Como se poderá entender, o trabalho da equipe era

absorvido de forma tão natural pelos usuários mais atentos que, durante uma das

reuniões do Conselho Comunitário de Saúde do bairro, numa oportunidade em que se

discutia a evolução dos indicadores de morbimortalidade infantil e de cobertura de pré-

natal, resultantes do trabalho do PSF, o presidente da Associação de Moradores e

fundador do bairro expressou uma análise assim captada pela médica: Há alguns anos atrás, a Associação havia conseguido importante aquisição para o bairro: uma carreta mortuária. Era uma imagem corriqueira o transitar da carreta, ladeira acima e ladeira abaixo transportando os mortos, em sua grande maioria crianças, os chamados anjinhos. Porém, nos últimos anos, com a implantação do PSF no bairro, a carreta estava ficando enferrujada pelo desuso e tomara, dizia ele, que ela se aposente de vez, principalmente de anjinhos e de vítimas de mortes evitáveis (CAMPINA GRANDE, 2004, p. 28).

A avaliação do líder comunitário pode ser tomada como uma autêntica

versão popular de uma análise epidemiológica sem números. Isso é a expressão de que a

população está sempre atenta para o que acontece ao seu redor e é capaz de produzir

inferências muito precisas sobre a realidade em que vive, razão pela qual é importante

se ter, sempre, junto aos serviços de saúde e das práticas sanitárias, a avaliação dos

destinatários dessas ações e desses serviços. Mas os testemunhos da assertividade da

Estratégia Saúde da Família e do conteúdo transformador da sua prática também são

capazes de aparecer em relatos escritos de outros profissionais da Saúde da Família,

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como é o caso da ACS Maria Lúcia, também do Pedregal, calejada e formada, na sua

sabedoria, pela vida e pelo sofrimento de quem, já na infância, acompanhando a sua

família, enfrentou a polícia para poder ver garantido um pedaço de chão e dele fazer sua

moradia. Seu relato é límpido, pois expressa que as virtudes que adquiriu e que fizeram

dela uma ACS foram apreendidas, forjadas, nas lutas da comunidade onde ela mesma

reconhece que foi crescendo, nos vários sentidos, e onde as pessoas, apesar das

dificuldades, ajudam-se umas às outras e são solidárias.

Sobre o seu trabalho, fala com orgulho de uma criança de nove meses,

encontrada numa rede, com desnutrição profunda. O trabalho dela e da equipe de saúde,

junto à mãe, conseguira salvar essa criança que recobrou a vida, quase perdida, para

hoje, nem de longe, lembrar o bebê que foi. Quando fala do seu trabalho, quase sempre

arremata, afirmando a importância da formação da consciência, do sensibilizar-se e do

partilhar conhecimento, na perspectiva da solução de problemas coletivos. Trabalhar diretamente com o povo, para mim, é muito importante e um trabalho gratificante. Porque vemos cara a cara a realidade de um povo tão sofrido, que quase não tem direito e só conhece deveres. E o mais gratificante de ser ACS é ter o nosso trabalho reconhecido pela população. [...] Ser ACS é dar o melhor de si e poder partilhar os nossos conhecimentos com a população e se conscientizar e sensibilizar com os problemas da comunidade. É mais que isso, é ajudar as pessoas na educação e prevenção na saúde (CAMPINA GRANDE, 2004, p. 31).

Outro relato que mostra a importância do trabalho conjunto de uma equipe

de Saúde da Família, numa área paupérrima e totalmente desprovida de infra-estrutura,

onde pessoas vivem em condições desumanas, é feito pela enfermeira Maria Núbia, de

uma equipe incrustada numa área alagada do bairro do Catolé. Tudo se deu, segundo o

seu relato, numa invernada que destruiu praticamente todos os barracos em que viviam

aproximadamente 600 famílias. A descrição do infortúnio é dramática: [...] chovia torrencialmente. Eu acabara de chegar à unidade quando Dona Guia, uma usuária, entrou na minha sala com seus dois filhos chorando e disse: Doutora, meu barraco caiu. Me ajude pelo amor de Deus! Quando saí à porta da unidade, vi inúmeras famílias que acabavam de ficar desabrigadas pedindo ajuda. Nos dirigimos [sic] à lagoa e nos deparamos com uma cena triste: barracos sendo levados pela chuva, gestantes, crianças, idosos e homens desesperados tentando proteger seus móveis, seus pertences pessoais e suas vidas. No semblante dessas pessoas, pairava o medo, a angústia, a aflição e a tristeza. Prantos, gritos e apelos se faziam mais alto que a chuva. [...] A situação era chocante, eu estava ali no meio do temporal com aquelas famílias, compartilhando da sua dor, que também era minha. Abrimos as portas da unidade e abrigamos as pessoas (CAMPINA GRANDE, 2004, p. 38).

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Diante de toda aquela situação, a equipe, através da coordenação municipal,

mobilizou várias secretarias municipais, instituições e a Defesa Civil. Foi localizado um

grande galpão que, depois de limpo e dotado, de emergência, com água, energia,

colchões, cobertores, alimentação e segurança, pôde receber todos os desabrigados. Só

deixaram a área depois da meia noite, quando as 132 famílias atingidas pela catástrofe

estavam abrigadas, alimentadas e aquecidas.

Conclui Maria Núbia: Nunca tinha vivido situação semelhante. Senti uma angústia profunda e uma sensação de perda e de impotência. [...] Ao chegar em casa me invadiu um sentimento de dever cumprido. Sei que fiz minha parte, cumpri meu papel de profissional de saúde da família e me senti vitoriosa [...] Essas famílias não estavam sós, elas eram uma parte importante do meu trabalho e da minha vida. Através de um trabalho de intersetorialidade, conseguimos contribuir para a melhoria das condições de vida e saúde da nossa população (CAMPINA GRANDE, 2004, p. 38).

A atuação da enfermeira e de sua equipe não seria possível num modelo

tradicional de práticas de saúde, naquele que se limita à assistência a casos de doença

manifesta. É uma outra prática em saúde, que se expressa na Estratégia Saúde da

Família, aproximando-se do que se quer como uma práxis médica educativa, popular e

comprometida com a transformação da qualidade de vida e da saúde da população.

7.3 A Paraíba na atenção à saúde do PSF/PITS

O grande esforço da Coordenação de Atenção Básica do Ministério da

Saúde, seguido pela maioria das coordenações estaduais, não foi capaz, com honrosas

exceções, de traduzir o gigantismo dos dados da implantação do PSF em mudança

efetiva do modelo, com a qualificação da Atenção à Saúde. A maioria dos municípios

implantou administrativamente o PSF, mas não procedeu à transmutação desejada do

assistencial para um efetivo modelo de atenção que fosse capaz de mudar as práticas,

transformando-se num fator estruturante dos outros níveis no trabalho com a saúde.

A emergência da Saúde da Família colocou, na ordem do dia, e alvoroçou,

no sentido mercadológico, as profissões e os profissionais que compõem a equipe básica

do PSF. E um desses profissionais, o médico, passou a ser buscado em especial.

Contudo essa busca não se fez, necessariamente, em favor ou pelo fervor da

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implementação da Estratégia Saúde da Família tal e qual. A implementação da Atenção

Básica e a sua definição como estruturante da atenção, como um todo, trazia à baila o

debate da responsabilidade sanitária dos gestores e a necessidade de preencherem os

requisitos globais da sua competência na atenção à saúde.

Se, de um lado, essa nova situação da política de saúde apontava a

possibilidade da extensão da cobertura populacional, de outro, fazia aflorarem vícios já

cristalizados em relação à compreensão do papel do médico na sociedade e nas práticas

de saúde. Assim, em muitos casos, esse profissional era contratado para a ESF, mas,

dentro de um cálculo financeiro e de atribuições que desvirtuavam a sua integração à

equipe. Havia quase sempre um plantão hospitalar no mesmo município ou num

município próximo ou, ainda, a contratação do profissional com um número de horas

inferior ao resto da equipe. De sorte que o médico era absorvido dentro da filosofia

tradicional, o que corrompia a Estratégia218, ainda que o município estivesse estendendo

a cobertura de atenção à saúde em relação à sua população.

Além disso, constatou-se a existência de um conjunto de municípios

refratários à incorporação de equipes, quer pelas dificuldades do seu próprio sistema

municipal, quer pela dificuldade de interiorizar, por motivos diversos, profissionais de

nível superior, ou mesmo pela incapacidade ou a falta de vontade política dos seus

gestores. Um elemento que piorava, ainda mais, o quadro dessas dificuldades, é que,

não por acaso, esses municípios eram tidos como aqueles que apresentavam os piores

indicadores de saúde e os problemas mais acentuados em relação à gestão municipal - aí

incluída a gestão da saúde.

Vislumbrando essa realidade e, consoante a sua diretriz de descentralizar o

sistema de saúde reforçando e reorientando a Atenção Básica, o Ministério da Saúde

(MS) propôs o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde219 (PSF/PITS), que

oferecia aos municípios profissionais de nível superior – médicos e enfermeiros – da 218 As modalidades corrupção da Estratégia não se restringiam aos médicos - ainda que esses profissionais respondessem por algo em torno de 90% dos abusos relativos à força de trabalho - nem apenas à contratação e ao processo de trabalho dos profissionais das equipes. Muitas das irregularidades diziam respeito às unidades de saúde inadequadas, equipes sem unidade, ausência dos equipamentos e insumos indispensáveis e coisas do gênero. Ciente dessas e de outras distorções e para auxiliar e tentar corrigir rumos, o Ministério da Saúde, em conjunto com as Coordenações Estaduais de Atenção Básica, procedeu a uma avaliação nacional da Estratégia entre 2000 e 2001. Na Paraíba, constatou-se um número tão alto de irregularidades em relação às suas equipes que aproximadamente 10% das equipes então implantadas foram desqualificadas. 219 O Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS) foi instituído pelo Decreto Presidencial nº 3.745 de 05/02/2001 e regulamentado pela Portaria Ministerial 227 GM/MS de 16/02/2001 e tinha por finalidade a interiorização de médicos e enfermeiros para a atuação na Atenção Básica à Saúde, por dentro da Estratégia Saúde da Família.

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equipe mínima do PSF, e exigia, em contrapartida, que os municípios

complementassem a equipe com os agentes comunitários de saúde (ACS) e o auxiliar de

enfermagem, além da instalação física dessa equipe numa Unidade Básica de Saúde da

Família (UBSF). O MS apoiaria, ainda, com uma cesta de medicamentos básicos e

financiamento para a compra de equipamentos mínimos necessários à implantação da

UBSF. A idéia era apresentar a esses municípios as vantagens do PSF, estimulando-os a

implantá-lo e mantê-lo nos seus sistemas municipais de saúde220.

A invenção do PSF/PITS trouxe novas possibilidades para a Atenção Básica

no Estado. A SES-PB usou mais essa possibilidade para incentivar os municípios que se

adequavam às suas normas. Com isso, vislumbrava constituir o PSF/PITS num reforço

importante para a Estratégia Saúde da Família, com a perspectiva de consolidar e

transformar o modelo de atenção e de gestão das ações e dos serviços de saúde,

também, nesses municípios221.

Inserido na estratégia nacional de implantação do PSF/PITS, o Estado da

Paraíba instalou, nos anos de 2001 e 2002, nada menos que 28 equipes do programa em

15 municípios que, nesse período, habilitaram-se a recebê-las. Nessa empreitada, contou

com o apoio do MS e com a parceria do Ministério da Educação, via Universidade

Federal da Paraíba, que organizou e ofereceu o Curso de Especialização em Saúde da

Família para os Profissionais do PSF/PITS, e do Ministério da Ciência e Tecnologia

que, através do CNPq, financiou o curso, a infra-estrutura de informática e os recursos

para o pagamento das bolsas/salário dos profissionais. O CNPq financiou, ainda, bolsas

de pesquisa para a contratação do sistema de tutoria do Programa que, no caso da

Paraíba, representou a seleção e a contratação de quatro tutores222.

Do ponto de vista da sua força de trabalho, o PSF/PITS revelou-se um

variegado, um mosaico, um caleidoscópio. A equipe selecionada pode ser dividida em

dois grandes grupos, com bifurcações. A maior parte dos profissionais do primeiro

grupo já era experiente em Saúde da Família. Alguns destes, devido à sua boa formação

técnica e humana, estavam fugindo de administrações municipais em que não havia

220 Àquela altura, o autor desta pesquisa se encontrava, ainda, na Coordenação da Unidade Setorial de Planejamento da SES-PB e participou, junto com a Coordenação Estadual da Atenção Básica, do processo de organização dos primeiros movimentos para instalação desse Programa no Estado. 221 Os municípios que acabaram adotando o PSF/PITS foram: Caldas Brandão, Cacimba de Dentro, Carrapateira, Casserengue, Curral Velho, Diamante, Juarez Távora, Monte Horebe, Nazarezinho, Tavares, Santa Inês, São José de Princesa, Manaíra, São Domingos do Cariri e Coxixola. 222 A equipe de tutores do PSF/PITS/PB foi composta, nos primeiros dois anos, pelos médicos Lindemberg Medeiros de Araújo e Maria de Fátima Ávila Paz Castelo Branco, e pelas enfermeiras Edilene de Araújo Monteiro e Tânia Maria Ribeiro de Figueiredo.

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sensibilidade para a filosofia da atenção básica, mesmo que tivessem aceitado a indução

do MS ou das SES dos seus estados. Buscavam um processo de trabalho e um campo de

práticas onde pudessem, com apoio adequado, desenvolver suas potencialidades. Outros

componentes desse grupo, apesar de já terem trabalhado no projeto Saúde da Família,

mantinham um perfil profissional tradicional e fugiam da sua experiência anterior em

busca de uma situação talvez mais confortável e estável financeiramente.

Havia um segundo grupo, igualmente bifurcado, que era formado, de um

lado, por profissionais mais jovens, recém-formados, que buscavam na Saúde da

Família a sua primeira oportunidade de trabalho ou um trabalho com a perspectiva de

ser menos rotativo. A outra parte compunha-se de profissionais mais maduros, sem

experiência nesse programa, no qual ingressaram em busca de uma aventura

profissional.

Os dois grupos e suas variações convergiam para um mesmo objetivo em

relação a um ponto: a formação especialista em Saúde da Família. A possibilidade de

entrar, de forma tranqüila, numa especialização, que lhes abria novas chances

profissionais, parece ter sido um forte atrativo para os que concorreram a uma vaga no

PITS. Aqueles cujo perfil se adequava ao Saúde da Família viam no Programa e no

curso um atalho importante para o aperfeiçoamento da sua formação como profissional

do PSF. Afinal, não se sentiam suficientemente preparados para um desempenho

aceitável, considerando-se a política de Atenção Básica centrada na Saúde da Família.

Depois, a exigência de tempo integral praticamente inviabilizava ou, pelo menos,

dificultava bastante o acesso a uma especialização nessa área específica, ainda mais

quando o curso em questão se acoplava a um sistema de acompanhamento e tutoria.

7.4 A relação gestões municipais x atenção à saúde na vigência do PSF/PITS

Os municípios paraibanos que se enquadraram nos critérios do Programa e

se habilitaram a receber as equipes do PSF/PITS estavam na faixa populacional de

pequenos municípios. Apenas em três deles havia mais de dez mil habitantes. Cinco

municípios ficavam entre os cinco e os dez mil, e os sete restantes ficavam abaixo dos

cinco mil habitantes, sendo que quatro deles não chegavam aos três mil. Excetuando-se

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os três maiores, isso os caracterizava como municípios de baixa infra-estrutura e de

pouquíssima capacidade técnica e tecnológica.

Excetuando-se nos maiores, esse perfil ensejava outra característica: a falta

de assistência regular à saúde. Na maioria deles, quando muito, contratava-se um

médico, que atendia uma vez por semana à demanda municipal. Num desses

municípios, o atendimento era mensal, e nas ocasiões de atendimento, não era incomum

que o profissional produzisse, num turno de seis horas de trabalho, às vezes, até menos,

em torno de 100 consultas.

Como se pode ver, o atendimento dispensado à demanda não permitia a

cada paciente mais que três ou quatro minutos com o médico, o que, em termos de um

atendimento minimamente humano e conseqüente, é inadmissível. Constatava-se, nesse

caso, um flagrante desrespeito ao direito à saúde dessas populações. Os pacientes se

acotovelavam na frente dos serviços de saúde – alguns improvisados – para, no

máximo, receber uma receita de medicamentos. Não existiam prontuários clínicos, pois

não havia organização formal de uma Unidade de Saúde. Outro aspecto negativo era

que não se registrava a história clínica dos pacientes, que servisse de referência para um

próximo atendimento de retorno ou segmento. A atenção se resumia a uma rápida

entrevista com o médico e à emissão de uma receita de remédios sintomáticos ou

mesmo uma solicitação de exames223.

A precariedade do atendimento, na maior parte dos casos, trazia novos

problemas para as pessoas atendidas, pois elas não tinham a garantia dos medicamentos

prescritos. E quando eram solicitados exames complementares, sua realização não era

garantida. Quanto aos medicamentos, o que lhes restava, quando não havia condições de

custeá-los, era o constrangimento da tentativa de aviamento da receita na conta do

município, em uma farmácia da localidade ou de um município vizinho. Mesmo assim,

essa era uma situação que não abrangia a todos, visto que o aviamento estava preso a

um critério político-partidário do poder municipal.

Em relação aos exames, ocorria algo parecido, pois ficavam também na

dependência de um favor do governante ou de seus prepostos. Nesse caso, com bem

menos chance de ser atendido, dado o custo financeiro ou o cálculo político da

autoridade, o que poderia humilhar ainda mais a quem dele necessitava. Portanto, a

223 Esta situação que está sendo descrita não deve ser tomada como exceção, pois, era relativamente comum, pelo menos nos municípios menores e menos populosos. A adoção da Estratégia Saúde da Família veio minimizar esta situação, limitando-a aos municípios mais resistentes e menos organizados.

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atenção à saúde se transformava em favor do governante local ou de seus

correligionários, vereadores e cabos eleitorais. Ou seja, o paciente precisava ser uma

pessoa reconhecidamente eleitora ou potencialmente eleitora dos Poderes Legislativo e

Executivo para receber como favor ou benesse aquilo que, por direito, era-lhe

assegurado.

A instalação das equipes do PSF/PITS nos municípios habilitados

representou um avanço substancial para os moradores daquelas localidades. Eles

passavam a ter assegurado o direito ao atendimento médico e de enfermagem, regular e

diário. Era o início de uma nova etapa na saúde dos municípios que revelava, por sua

vez, novos problemas e justificava o diagnóstico inicial que informava os critérios de

eleição para o PSF/PITS. Aqueles municípios não estavam minimamente preparados, no

que concerne à sua administração e ao seu planejamento setorial, para receber o

Programa.

As novas condições oferecidas evidenciaram, na maior parte dos

municípios, os mais diversos problemas em relação à contrapartida que deveria ser

disponibilizada. Dois terços deles (10 municípios) tiveram, durante todo o período em

que se estendeu o Programa224, dificuldades em garantir exames de rotina para os

pacientes atendidos225. Essas dificuldades revelavam o estorvo administrativo interno de

cada município, mas também evidenciavam outras dificuldades de natureza política,

entre elas, a de se fazer valer a própria pactuação intermunicipal existente para

atendimento a exames, consultas especializadas e internação hospitalar.

Depois, como o Programa fora pensado para abranger a totalidade dos

moradores do território municipal, outro problema implicava, ainda, pelo menos dois

terços dos municípios: a incapacidade do órgão de saúde municipal de prover transporte

para as atividades de saúde a serem prestadas na zona rural. Muitas vezes, a

programação da equipe envolvendo o médico e a enfermeira, um deles, ou mesmo o

pessoal auxiliar, era descumprida, ensejando descrédito para o Programa junto à

224 O Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde foi mantido nacionalmente até Julho de 2004, tendo funcionado na Paraíba desde o seu início, em Julho de 2001. 225 Os exames de rotina da Atenção Básica, geralmente, incluem: parasitológico de fezes; sumário de urina; hemograma completo; bioquímica básica do sangue (dosagem da glicemia de jejum, colesterol total e frações e triglicérides); rotina pré-natal e raio x simples. No caso dos municípios menores, sem infra-estrutura laboratorial, a indicação da Secretaria Estadual de Saúde (SES-PB) era de que esses exames fossem realizados no município vizinho mais próximo, a partir da Programação Pactuada e Integrada (PPI) por ela realizada, em conjunto com os municípios de cada Região de Saúde.

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população226, ou mesmo repercussões negativas para o perfil patológico e o padrão

epidemiológico dos adoecimentos.

Outro problema se apresentou, ainda, em dez municípios integrantes da

experiência: a ingerência político-partidária nas questões relativas ao funcionamento do

programa e os vários aspectos da sua atenção, inclusive a prática profissional. Essa

ingerência, de acordo com o grau de intolerância da administração, manifestava-se ora

de forma explícita, pela tentativa de interferência nas normas de organização e decisões

do Programa e proibição do desenvolvimento da atenção para populações inteiras, ora

como uma tentativa de forçar veniaga no sentido do privilegiamento de grupos ou

pessoas227.

Na linha da interferência direta, talvez o caso mais agudo de ingerência

tenha sido o veto à participação, no Programa, de um médico, por incompatibilidade

política. O profissional era filho da terra e já vinha exercendo o seu ofício no próprio

município e em municípios vizinhos, sendo profissional bem conceituado junto à

população. Mas o fato é que, mesmo selecionado nacionalmente pelo programa, foi

recusado pela administração municipal por ser irmão do ex-prefeito da cidade. A

situação tornava-se mais grave pelo fato de que o administrador em questão havia sido

cassado recentemente e lutava na justiça para retornar ao cargo. Nesse caso, até pelo

grau de beligerância explícita, o bom senso indicou a permuta de profissionais como a

escolha mais adequada.

Na maioria dos casos, entretanto, a ingerência não era exercida diretamente,

mas, percebida através de atitudes ardilosas, dissimuladas ou mitigadas por explicações

ou argumentos de natureza econômica, geográfica ou outra alegação qualquer que se

desviava do verdadeiro foco ou objetivo do governante. Para caracterizar essa

interferência danosa, pode-se fazer referência à realidade concreta de um dos

226 Essa programação tanto dizia respeito às atividades assistenciais propriamente ditas, quanto a outras de cunho educativo com grupos específicos – gestantes, crianças e adolescentes ou idosos, por exemplo – ou preventivas, como era o caso das aplicações de vacinas de rotina, fundamentais para o enfrentamento das viroses comuns da infância e suas repercussões em comunidades mais vulneráveis social e economicamente. 227 A ingerência política é um traço marcante da cultura política brasileira, quiçá universal. Aqui, ela se dá principalmente nos interiores do país, onde, infelizmente, ainda prevalecem o autoritarismo, o culto à personalidade governante e a aceitação do poder exercido com arrogância e prepotência, coisas próprias das oligarquias. Essa ingerência, como não poderia deixar de ser, dado o contexto antidemocrático onde prosperam as oligarquias, materializa-se, quase que naturalmente, nas políticas públicas. E a experiência tem demonstrado que, nessas situações políticas, a escolha do médico do PSF, principalmente este, e a sua manutenção nos municípios, obedece a esse tipo de código político. Essa situação se constitui, ainda, em mais um obstáculo ao exercício da prática médica livre e desimpedida.

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municípios que tinha um distrito com aproximadamente quatrocentas famílias, que era

território de influência de um vereador oposicionista. No caso, houve toda uma tentativa

de se evitar que o determinado distrito entrasse na programação da Atenção.

Houve também outra realidade em que um Distrito era mais desenvolvido

que a própria sede da municipalidade, sendo, inclusive, mais populoso e bem localizado

do ponto de vista estratégico. A própria sede da Prefeitura era lá instalada. Nesse caso, o

prefeito tentou boicotar, de várias maneiras, o desenvolvimento do atendimento da

UBSF da sede municipal que, por causa do seu ostracismo, era de maioria oposicionista.

Em outras situações, a ingerência também acontecia pelo fato de o próprio prefeito,

vereadores ou prepostos insistirem em ter o monopólio da farmácia como forma de

controlar o aviamento de receitas.

Nessas circunstâncias, a ingerência tornava-se até mais grave, pois essas

autoridades desrespeitavam a prescrição médica, fracionando-a, modificando-a ou

mesmo prescrevendo e distribuindo medicamentos, ao arrepio da lei, para seus

apaniguados. O confronto partidário era outro elemento que contribuía para que o

controle da farmácia funcionasse como exclusão ou afugentamento de possíveis

desafetos políticos, que tinham o seu direito ao recebimento de medicamentos

obstruído.

Havia um conjunto razoável de municípios, algo em torno de cinqüenta por

cento deles, que apresentava situação crítica em relação à infra-estrutura física e de

insumos para o atendimento à população, mesmo que houvesse a liberação de

incentivos financeiros das esferas federal e estadual para a montagem e o

funcionamento das UBS. Eram Unidades que não ofereciam condições adequadas de

trabalho para os profissionais, tampouco acomodações confortáveis para os usuários do

serviço de saúde.

É importante lembrar que cada prefeitura é responsável pela infra-estrutura

de serviços do seu município. No caso da saúde, além do percentual que cada município

é obrigado, por lei, a dispensar para as ações setoriais, ainda contavam com o Piso de

Atenção Básica (PAB) que, na época, correspondia a um per capita mínimo de doze

reais por habitante/ano, que poderia chegar a dezoito reais228. Havia, ainda, outros

228 O Piso da Atenção Básica (PAB) foi definido em R$ 12,00 por habitante/ano, pela Comissão Intergestores tripartite (CIT/MS/SUS), depois de longas discussões, considerando-se cálculos sobre as séries históricas do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS), sistema a partir do qual o Ministério da Saúde remunerava os municípios por serviços prestados, no âmbito da Atenção Básica.

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incentivos federais para os quais os municípios poderiam se habilitar. Por fim, quando

da implantação da equipe, um incentivo especial de dez mil reais, em parcela única, era

disponibilizado a cada município para a montagem da UBS/PSF/PITS.

Além da precariedade das Unidades, ainda não eram disponibilizados os

medicamentos básicos e os insumos necessários ao ato médico e aos procedimentos de

enfermagem. Quanto aos medicamentos, não é demais lembrar o benefício da Farmácia

Básica229 oferecido pelo Ministério da Saúde às ESFs, o que incluía as equipes do

PSF/PITS. Além disso, havia uma política de medicamentos que, junto com as três

esferas de governo, poderia financiar a compra de medicamentos básicos para aquele

nível de atenção230. A política consistia num per capita de dois reais por habitante/ano,

dividida em duodécimos, em que o governo federal entrava com cinqüenta por cento, e

os estados e os municípios dividiam, em igual parcela, os outros cinqüenta por cento. O

que ocorria é que os municípios a que aqui se faz referência ou não depositavam sua

parte, inviabilizando a obtenção dos insumos para o Programa, ou o faziam, mas

desviavam os medicamentos para uso político, quando lhes aprouvesse231.

Outro problema que revelava o estorvo das gestões municipais era a sua

dificuldade de lidar com a informação para a saúde, mesmo que o MS sustentasse um

conjunto razoável de sistemas de informação em saúde (SIS) e cobrasse o

preenchimento desses sistemas como contrapartida para a disponibilização de incentivos

e repasses financeiros. O fato é que esses sistemas, quando isso era realmente uma

preocupação para a gestão, eram considerados apenas do ponto de vista administrativo-

financeiro e entregues a empresas de serviço que os preenchiam em nome do município,

para que respondessem aos requisitos formais do Ministério da Saúde. Nesse tipo de

Como esse sistema era utilizado quase que exclusivamente para pagamento, tinha um percentual alto de distorção e fraude. Mesmo assim, na ausência de outra referência contábil, foi mantido com o limite mínimo de R$ 12,00, que correspondia ao PAB fixo e máximo de R$ 18,00, referente ao PAB fixo + um conjunto dos incentivos que caracterizavam as ações da Atenção Básica como um todo (ações assistenciais e ações de prevenção/promoção). 229 A Farmácia Básica é uma cesta de medicamentos que cobre os procedimentos considerados de responsabilidade da Atenção Básica. É dispensada a cada ESF a partir da sua implantação num município. A cesta de medicamentos é enviada trimestralmente para os municípios. 230 A política referida era a Assistência Farmacêutica Básica, uma modalidade de gestão e financiamento da Atenção Básica em Saúde instituída pela Secretaria de Políticas de Saúde – SPS/MS, através da Portaria n.º 176/GM/MS de 08/03/1999. Regulamentada pela Comissão Intergestores Tripartite (esfera federal) e pelas Comissões Intergestores Bipartites (esfera estadual), visava assegurar à esfera municipal de gestão do SUS a devida assistência farmacêutica. Na Paraíba, a regulamentação se deu através da Resolução No 044/2000, de 16/10/2000, da Comissão Intergestores Bipartite (CIB-PB). 231 Essa era uma prática que não se circunscrevia apenas aos municípios do PSF/PITS, mas também a uma quantidade razoável de municípios com ou sem a implantação da estratégia Saúde da Família.

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operação é que se plasmavam a esperteza e a astúcia que geravam a distorção da

informação, tornando-a inverossímil.

O que se quer ressaltar, no entanto, em relação a essa situação, para além do

fato de a informação não ser reconhecida e tratada como um insumo estratégico para a

gestão da saúde das pessoas, é que sequer havia, da parte desses municípios, a

preocupação com o cumprimento da formalidade que poderia trazer outros recursos para

o custeio de novas ações. Ou seja, perdiam-se, por absoluto desconhecimento ou mesmo

descaso com as condições de vida e saúde da população, recursos que poderiam estar

sendo investidos na saúde municipal.

Por último, não em ordem de importância, aparecia o problema da ausência

ou da falência do sistema de referência e contra-referência intermunicipal. Os gestores

municipais, apesar de presentes nas reuniões da Programação Pactuada e Integrada

(PPI) e estabelecerem formalmente os seus pactos de atenção, no caso, para a atenção

secundária e terciária, não estavam realmente sensibilizados com a necessidade de se

cumprirem os princípios doutrinários e organizativos do SUS, inseridos no PSF/PITS e

na Atenção Básica, de maneira geral. A universalidade e a integralidade, assim como a

descentralização político-administrativa que regionalizava e hierarquizava as ações e os

procedimentos de média e alta complexidade não eram respeitadas. Mais uma vez,

sofria a população que tinha o seu direito à saúde constrangido e vilipendiado.

Todas essas situações, como se pode perceber, têm um rebatimento direto

sobre as práticas em saúde, notadamente sobre a prática médica. Ressalte-se, ainda,

nesse caso, que é difícil para qualquer profissional exercer livremente a sua ação quando

as condições básicas para assegurar o seu ato não estão dadas ou ficam embaraçadas por

ingerências externas. Assim, na perspectiva de implantar a Estratégia Saúde da Família,

como motivar profissionais a exercerem boas práticas em condições tão áridas? Como

garantir que outras necessidades humanas, que não apenas as profissionais, não

interfiram no sentido da acomodação, do desânimo, da frustração e do desgaste,

sobretudo quando a força de trabalho médica se transformou – devido às condições de

assalariamento direto propiciadas pela lógica neoliberal - em mais uma mercadoria a ser

consumida dentro da girândola da produção capitalista?

A implementação do PSF/PITS/PB também ensejou a que se pudesse

observar o posicionamento ético dos diversos atores envolvidos no processo. Os

prefeitos, nas suas intervenções públicas e nas reuniões, reconheciam em uníssono a

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importância do Programa para os municípios que administravam, porém, no dia-a-dia e

em conversas informais, não conseguiam disfarçar certo incômodo com situações que

colocavam em xeque procedimentos arraigados e que exprimiam vícios administrativos

ou formas particulares de relação entre o poder municipal e a população, nas questões

relativas à saúde.

Antes da implantação das equipes, os municípios - quando eram solicitados

pela população - por não terem serviços organizados, enviavam os seus doentes para

outros com serviços estruturados. Os próprios pacientes e suas famílias, nesse caso,

tinham uma relativa liberdade ou poder de escolha de e para onde se encaminhar,

ficando como tarefa da prefeitura o transporte e as despesas com medicamentos e

exames. A responsabilidade sobre o resultado do tratamento era, então, transferida aos

próprios pacientes e aos serviços para onde eram encaminhados. Pelo lado da

população, as viagens, além de significar a busca pela saúde, momentaneamente

comprometida, também significavam a saída da rotina daquele lugar ou mesmo a

oportunidade para a solução de outros problemas e interesses. Ou seja, o

assistencialismo da prefeitura cumpria, também, com outras funções sociais.

Tentando analisar o que estava por trás dessas relações, pode-se dizer que se

engendrava um jogo por meio do qual se modelava uma relação de certo parasitismo

político combinado em que todos - população e políticos - tentavam auferir vantagens,

mesmo que, no caso da população, isso se desse à custa da sua própria condição de

adoecimento. Portanto, saúde funcionava como moeda de troca e estratégia de

sobrevivência. Para uns, sobrevivência política; para outros, sobrevivência no seu

sentido estrito. O fato é que dessa relação promíscua se valiam todos, acumulando poder

aqueles que mais possibilidades mobilizavam no jogo social.

A implantação do PSF/PITS ensejou uma tendência de diminuir a

dependência dos habitantes em relação aos seus governantes e representantes ou, pelo

menos, que esta tivesse que ser reciclada. Esses atores, temendo a diminuição ou

mesmo a perda de poder, consciente ou inconscientemente, passaram a desenvolver

certas resistências ou mecanismos de defesa no sentido de se manterem influentes e

próximos à população. Disso decorria que se punham atentos aos movimentos das

equipes e, assim, prontos para, em nome da população, mas não necessariamente com o

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mandato dela, fazer críticas ao desempenho das equipes e, notadamente, aos

profissionais médicos232.

O modelo de atenção baseado na atenção primária na UBS ou no domicílio

– no caso de acamados, pessoas idosas ou com alguma deficiência impeditiva de

deslocamento até o serviço de saúde dentro do horário estipulado – pelo menos no

início, não foi entendido corretamente, e a população, tentando usufruir, ao máximo, da

nova situação e, ao mesmo tempo, insegura da sua continuidade, passou a ir buscar

atendimento na própria residência da equipe, nos seus horários de repouso. Isso, mesmo

quando se tratava de queixas que pudessem ser aguardadas para o dia seguinte no

horário normal de atendimento da UBSF. Até que todos se acostumassem e se

acomodassem à nova lógica de atenção, muitas reclamações foram registradas

diretamente à administração, que as trazia nos momentos de supervisão da tutoria do

Programa. Com a continuidade do Programa, o Poder Legislativo municipal pareceu o

mais sensível à mudança, talvez por ser o que mais agenciava serviços médicos para

fora do município, tentando assistir os seus eleitores e correligionários, com o auxílio ou

sob os auspícios da edilidade. Por essa razão, em vários municípios, a insatisfação dos

vereadores com o que, para eles, representava o atendimento da Equipe do PSF/PITS,

revelava-se, talvez, num cálculo mais político do que econômico – mesmo que o

econômico fosse o que estrategicamente aparecesse – discutível e inadequado.

Não era incomum, portanto, reclamações do tipo: a) “a comunidade está

insatisfeita com (o) a médico (a)”; b) “está havendo um aumento exagerado nas

despesas com medicação”; c) “há falta de bom senso dos profissionais quando passam

muitos remédios”; d) “depois que a equipe chegou, dobrou as despesas com transporte,

para levar pessoas para atendimento médico em outros municípios – no caso para

municípios pólo, a fim de fazerem consultas especializadas ou mesmo exames”; e) “o

Programa não está resolvendo os problemas de saúde da comunidade”.

Queixavam-se, ainda, da perda de poder ou de constrangimento em relação

aos profissionais da equipe, especialmente os médicos, que tentavam coibir a entrega de

232 As manifestações da população, talvez por influência do tipo de tratamento que tradicionalmente recebera, mostravam-se contraditórias. Manifestavam satisfação por nunca terem tido sistema de saúde organizado no município, como agora; mas, por outro lado, diziam-se insatisfeitos com o modelo de atenção em implantação. Alguns até justificavam que não estavam acostumados com um modelo que privilegiava ações preventivas e a educação em saúde. Posição nem tão surpreendente, em se pensando o fundamento pedagógico dentro do qual sempre foram tratados, que sustentava o modelo clássico, curativo, medicalizador, controlador, pontual e centrado no médico.

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medicamentos fora do horário de atendimento e sem receita médica. Alguns até eram de

posição que o prefeito devia optar pela desistência do Programa, voltando ao sistema de

contratação de médicos para o atendimento pontual no município, mesmo que, com as

novas necessidades geradas, a freqüência fosse aumentada para, por exemplo, duas

vezes por semana. Em alguns municípios, foram sugeridas até mesmo a extinção do

Programa e a contratação dos próprios médicos que neles atuavam.

Tratando a problemática do ponto de vista das relações de poder que se

expressam no jogo social, pode-se dizer, relembrando Foucault (1985), que a introdução

do PSF/PITS, nos sistemas locais de saúde, e a chegada das equipes mexeram com as

redes de micro-poderes de cada município. Havia um poder que estava arraigado em

cada um deles e que se exercia de formas variadas, sem maiores questionamentos ou

dentro de certa homeóstase.

A chegada das equipes impôs uma recomposição dessa rede de micro-

poderes na base de um saber/poder médico que, legitimado pela academia e pela prática

social, passou a ser exercido. Esse exercício provocou reações e disputas internas nos

municípios233. Nesse ponto, e com esse quadro de problemas, parece importante o

retorno a uma discussão aberta no capítulo introdutório, quando se fez menção às

categorias estrutura e sujeito e suas implicações práticas nos processos sociais e,

portanto, na atenção à saúde.

Lá se chegou à conclusão de que as estruturas são criações do homem,

independente do fato de que depois elas tendam a regular e condicionar suas ações e

atitudes que nem são espontâneas nem automáticas, mas resultantes do desenvolvimento

da consciência na relação com os outros homens. Nesse jogo social, quando os homens

se fazem sujeitos, as questões do ser humano, da liberdade, da alienação, das classes e

da subjetividade podem entrar em confronto pelo domínio dos processos sociais,

geralmente baseados em estruturas sociais. Caso isso não aconteça no processo, aquele

que está no domínio da estrutura, por não ser questionado, acaba por interferir nas

decisões e vontades dos outros, entrando em conflito com a possibilidade de sua

liberdade e autonomia.

233 Em uma das experiências municipais, um dos vereadores, habituado a interferir nas questões administrativas municipais, entrou em conflito com a enfermeira da equipe, que proibira a distribuição de cafezinho para a comunidade, na sala de espera da Unidade de Saúde. A cortesia estaria interferindo no funcionamento da Unidade, pois a sala de espera que, na UBS, é uma área para o desenvolvimento de ações de educação em saúde, transformava-se num salão de bate-papo, que desviava o curso dos objetivos programados. O mesmo vereador também tentou interferir em outras situações da organização da UBSF.

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7.5 O comportamento ético: a prática médica nas equipes do PSF/PITS

Como o PSF/PITS foi uma experiência relativamente controlada, em face do

seu acompanhamento por uma equipe de tutoria e pelo oferecimento de um curso de

especialização, numa modalidade que comportava momentos de concentração e de

dispersão, essas duas formas de controle e acompanhamento, de per si, já garantiram

certa densidade ao modelo de atenção. Favoreceram o desenvolvimento de um processo

de trabalho que induzia um comportamento ético e uma prática profissional crítica em

relação ao modelo tradicional. Nessa linha, a experiência teve o objetivo pedagógico de

aproximar conhecimento e prática no exercício profissional, com a perspectiva de

implementar a Estratégia Saúde da Família.

No campo da prática, o primeiro diferencial. Os profissionais se envolveram

com o esquadrinhamento do território, com vistas à apropriação das suas várias

dimensões. Isso foi fundamental para a compreensão e organização da Atenção à Saúde

que deviam promover, com base no atendimento clínico individual e numa abordagem

coletiva que considerasse o contexto familiar e comunitário. A organização da Atenção

considerou o princípio da vigilância à saúde e centrou a sua ação na descoberta das

doenças prevalentes em cada segmento da população, distribuída em cada uma das fases

do ciclo de vida: criança, adolescente, adulto (jovem e maduro) e idoso. Essa

organização e divisão tinham o fito de ampliar e distinguir as perspectivas de cuidado e

possibilitar uma abordagem aos problemas prevalentes em cada segmento da população.

Esse primeiro movimento, de saída, já criava um novo arcabouço para a

discussão e a compreensão do processo saúde-doença da população e representava um

salto de qualidade na implementação da estratégia e organização do cuidado. Abria

espaço para o diálogo interprofissional e definia o papel individual e coletivo da equipe.

Mas isso não que dizer que o objetivo foi sempre alcançado, posto que as experiências

das equipes, além de vicejarem em terreno inóspito, como já ficou caracterizado na

secção anterior, nem sempre contaram com o adequado preparo dos profissionais.

Porém, as equipes formadas por profissionais que já mantinham uma ligação mais

estreita e orgânica com a proposta Saúde da Família, quando das discussões em espaços

coletivos, protagonizavam experiências práticas as mais profícuas.

Especificamente em relação ao comportamento ético, a maioria dos

profissionais mostrou uma interação saudável com a comunidade. E isso deve ser

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realçado, principalmente, considerando-se o contexto inóspito, contraditório e

dificultoso para uma prática médica educativa e dialógica. A comunicação e a

informação com a comunidade, intra-equipe e mesmo com as gestões municipais,

apesar de tudo, fluíram. Ficaram demonstradas a entrega e a vontade de interferir na

realidade de saúde das populações cobertas com o programa, enfrentando-se, em muitos

casos, as resistências das administrações e da própria população, já desgastada com

outros tipos de conduta, que faziam dela objeto de uma ação de saúde descontínua e

inadequada. Foi necessário um trabalho adicional e relativamente longo, para que se

possibilitassem a troca e a confiança entre as equipe e a comunidade; para que ficassem

entendidos o sentido fraterno e a honestidade de propósitos234 da equipe de saúde que ali

organizava a sua atenção.

A interação saudável com a comunidade, a prática dialógica, o sentido

fraterno, a preocupação, o cuidado e, principalmente, a perspectiva de transformação da

realidade de vida e saúde da população ficavam claros em muitas das ações dos

profissionais das equipes. Para exemplificar o que está sendo afirmado, seguem alguns

exemplos que dão conta do posicionamento dos profissionais, com realce para a prática

médica.

O primeiro é um caso ocorrido numa das equipes de saúde de um dos

municípios mais problemáticos, do ponto de vista administrativo e da estrutura social,

econômica e sanitária. Ele dá conta de uma realidade cruel de abandono e de maus

tratos de uma mãe, alcoólatra e desocupada, em relação a sua filha recém-nascida.

Devido a sua condição social, a mulher em questão perambulava pelas ruas, ora com a

criança nos braços, expondo-a às mais vexatórias situações, ora sem ela, que ficava

abandonada, em casa, à própria sorte (ou ao azar), uma atitude de afronta aos direitos da

criança e do adolescente.

Essa situação só ficou exposta por causa da presença, da proximidade, da

sintonia e da confiança que existiu na relação equipe de saúde/comunidade. A situação,

ao ser captada pela sensibilidade da médica e enfrentada, com cuidado, pela equipe, foi

levada de volta para reverberar na comunidade, abrindo espaço para que se discutissem

as diversas situações de abandono, voluntário ou involuntário, que acontecem no dia-a-

234 Na grande maioria dos casos, principalmente naquelas comunidades em que antes não se contava com serviços regulares de saúde, sentiu-se a população ressabiada, desconfiada da investida de atenção do PSF/PITS. Aos poucos, à medida que se abriam o diálogo e a troca é que ela se convencia de que aquele novo serviço na comunidade era estável e duradouro e não apenas mais uma investida político-eleitoreira do poder municipal.

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dia das famílias, principalmente as de baixa renda e sem acesso à informação e à

educação adequada.

A grande surpresa é que se descobriu que outras situações, de certa forma,

parecidas ou equivalentes, mesmo que mitigadas, ocorriam na comunidade. Dessa

mobilização, várias questões foram apreendidas e debatidas, proporcionando à equipe

de saúde e à população a abordagem da questão do abandono e da falta de cuidado

materno ou familiar com as suas crianças. A questão propiciou uma pesquisa, na própria

comunidade, cujos dados coletados revelaram uma realidade velada: a do trauma

infantil domiciliar235.

Outra situação recolhida da prática médica de outras equipes demonstrou o

cuidado e o respeito com o idoso. As transformações sociais, econômicas, sanitárias e

demográficas têm modificado o perfil da família brasileira236. Cada vez mais, tem-se

tornado comum a co-existência de várias gerações numa mesma família/domicílio. Isso

tem inspirado um trabalho profissional específico, a partir da abordagem da vigilância à

saúde do idoso. O trabalho consiste no levantamento dos dados relativos aos

padecimentos do sistema circulatório (cardiopatias e hipertensão), do sistema ósteo-

locomotor (artroses, osteoporose e artrites) e distúrbios endócrinos, como obesidade e

diabetes, e o tratamento dessas questões para além do tratamento usual medicamentoso.

Numa das equipes em que essa situação transcendeu o atendimento usual,

foi formado um grupo de idosos que se organizou, do ponto de vista da discussão e do

tratamento coletivo das suas patologias, como também do ponto de vista da convivência

comunitária. Do diálogo equipe/comunidade, resultou um grupo de caminhada

sistemática, que evoluiu, com a melhora dos problemas clínicos da maioria, e, ao

mesmo tempo, a organização de estratégias comunitárias de sociabilidade. Festas,

comemorações, passeios e outras iniciativas passaram a ser programadas, reeducando o

235 TARGINO, R. A.; BARROS, M. A. A. – A face oculta do trauma: avaliação dos acidentes domésticos na infância na comunidade de Vila Nova – Cajá (PB). Monografia apresentada ao I CESF/PSF/PITS. Orientador: Prof. Severino Ramos de Lima. João Pessoa, 2002. 236 É importante ressaltar esses aspectos, pois eles estão diretamente interligados entre si, em termos de condicionamento. Do ponto de vista econômico, têm-se cada vez mais, com a evolução e extensão da previdência social, de um lado, a carestia e o aviltamento dos salários; de outro, a importância dos idosos no financiamento da família. Isso só tem sido possível graças às mudanças demográficas, com o aumento da expectativa de vida da população, que traz como conseqüência as mudanças na estrutura familiar e a necessidade da inclusão de cuidados de saúde, específicos para essa população.

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modo de vida dessas pessoas e oferecendo-lhes outras possibilidades e novos sentidos

de vida social e familiar237.

A problemática ambiental, numa área de abrangência urbano-rural, foi mais

uma situação que demonstrou o trabalho diferenciado da equipe e a participação

decisiva da profissional médica. Nesse caso, a questão foi induzida tendo em vista o

destino dado ao lixo, que acabava sendo jogado numa área próxima à UBSF,

ocasionando a proliferação de insetos, roedores e a contaminação do ambiente (ar e

solo). Diante da realidade desagradável, a médica da equipe, auxiliada pela enfermeira,

levou o problema à discussão em reuniões na comunidade. Decidiu-se que o caminho

era o fortalecimento da capacidade de gestão ambiental da comunidade, através do

conhecimento da problemática da produção e destinação dos resíduos sólidos

domésticos.

O trabalho concentrou-se na observação direta e conjunta da realidade; no

mapeamento das zonas negras de descarte de lixo a céu aberto; no levantamento de

dados e informações do adoecimento da população local, decorrente da má gestão dos

resíduos domésticos, e na aplicação de um questionário com a finalidade de recolher a

opinião da população a respeito da problemática do lixo doméstico.

Questões a respeito do lixo produzido em cada domicílio, o incômodo que

este causava para cada um, nos vizinhos e na comunidade em geral; a relação entre lixo

e doença; os tipos de lixo doméstico produzido bem como as suas possibilidades de

destino final foram amplamente discutidos. Dessa pedagógica movimentação, resultou

um conjunto de definições que, analisadas em conjunto com a comunidade,

transformaram-se em propostas alternativas para o correto manejo do lixo domiciliar e

puderam ser colocadas em prática, no sentido de se melhorar o ambiente e,

conseqüentemente, a vida dos moradores da localidade. Outras propostas mais

abrangentes também foram produzidas e oferecidas à gestão municipal como sugestão

para um tratamento mais adequado da questão dos rejeitos humanos em escala

municipal, especialmente no que tange à coleta e ao destino final desses resíduos238.

A mudança no perfil da prática médica também foi capaz de modificar

comportamentos preconceituosos ou mesmo quebrar tabus arraigados no seio da 237 SILVA, E. G.; PEREIRA, J. A. – Atividade física: avaliação de seus benefícios para um grupo de idosos. Monografia apresentada ao I CESF/PSF/PITS. Orientadora: Profª. Maria das Graças Melo Fernandes. João Pessoa, 2002. 238 MONTEIRO, M. G.; COELHO, A. A. – Proposta para o manejo de resíduos sólidos na área rural de Barreiros, município de Cacimba de Dentro/PB. Monografia apresentada ao I CESF/PSF/PITS. Orientador: Prof. Lindemberg Medeiros de Araújo. João Pessoa, 2002.

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255

população masculina, um deles relativo a um dos problemas médicos que mais

acometem os homens a partir da meia idade: os problemas genito-urinários. Essa

discussão, ao ser introduzida em uma comunidade rural, num dos municípios, trouxe à

baila os problemas relativos à próstata, possibilitando o diagnóstico e o tratamento de

um grupo de homens que já apresentavam, de forma silenciosa, problemas nessa área.

A discussão aberta e sincera, a troca de informações e o aconselhamento

médico adequado foram o ponto de entrada para uma aproximação maior dos homens

do serviço de saúde, abrindo espaço para o rompimento de uma série de dificuldades no

trato de questões da saúde do homem. A população não afetada e mesmo esta pode

evoluir na sua educação sanitária e assim modificarem hábitos em favor da sua

integridade física e moral239.

O mais importante é que, com essas experiências, podem-se constatar

exemplos múltiplos de médicos dialogantes tanto no aspecto individual, durante a

consulta na UBSF, quanto no atendimento domiciliar/familiar ou mesmo na

comunidade, nos momentos de ações que envolviam as populações das micro-áreas.

Essa atitude ética dos médicos e das médicas do PSF/PITS e de centenas e milhares de

outros distribuídos por inúmeras equipes da Estratégia Saúde da Família, pelo país

afora, abre uma nova tendência e possibilidades de uma práxis médica educativa e

popular.

Esses avanços justificam a aposta do SUS, no redirecionamento da Atenção

Básica, via Estratégia Saúde da Família. Avanços que animam os que acreditam e

lutam, na perspectiva de transformar os problemas encontrados, em reflexão, novas

práticas, estudos, pesquisas ou algo que contribua com maior riqueza para o processo de

organização do cuidado e da consolidação de iniciativas que concorram para a

humanização do sistema de saúde brasileiro.

Mas o PSF/PITS não revelou apenas boas práticas profissionais e

dificuldades em relação às administrações. Outras situações também demonstraram um

relacionamento difícil dos médicos com a gestão, com os colegas de trabalho e,

principalmente, com a comunidade. Alguns casos, de tão graves, redundaram no

desligamento de profissionais do programa, dado o constrangimento imposto por eles

aos demais atores sociais em cena nos municípios. Várias queixas se referiam ao

239 SILVA FILHO, A. R. – Fatores de risco e prevenção do câncer de próstata: conhecimento de um grupo de homens. Monografia apresentada ao I CESF/PSF/PITS. Orientador: Prof. Severino Ramos de Lima. João Pessoa, 2002.

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256

comportamento ético inadequado, intolerante e antidialogal dos profissionais, mesmo

que os queixosos deixassem claro que nada tinham a reparar à conduta técnica240 dos

profissionais.

A conduta inadequada aparecia durante as reuniões, as discussões, na

convivência durante o curso de especialização e, principalmente, no campo de práticas

das equipes. Via-se que faltava aos profissionais em questão uma atitude ética relativa a

valores próprios do humano, tão necessários ao modelo da Estratégia Saúde da Família.

Ou seja, uma conduta voltada para o diálogo, para o respeito ao outro, aos

procedimentos democráticos, à cooperação, à solidariedade, à tolerância e à convivência

coletiva pacífica, ainda que crítica e questionadora.

Num dado município, o secretário de saúde, em face de dificuldades

relativas ao deslocamento de uma equipe para atendimento na área rural, por conta de

uma invernada, e para que a população adscrita àquela equipe não ficasse sem

atendimento, solicitou que outra equipe que atuava numa área urbana relativamente

próxima passasse a atender, emergencialmente, à população da unidade com problema,

enquanto perdurasse o impedimento de deslocamento.

O médico da equipe solicitada não interpôs objeção e, apenas, para não se

sentir sobrecarregado com o fluxo dos novos usuários para a sua UBSF, negociou com a

gestão que a equipe com problema de deslocamento dividisse o atendimento. A

enfermeira, prontamente, atendeu à solicitação, enquanto a médica se negou a cooperar,

alegando que isso quebrava o princípio da adscrição de clientela e que não atenderia

fora da Unidade para a qual estava designada e onde a dita população estava adscrita.

Aqui chama a atenção a falta de compreensão da profissional que, escudada numa

avaliação equivocada e numa visão inflexível de um item da filosofia de atenção da

Estratégia Saúde da Família, não entendia que certas situações caracterizavam o

emergencial de qualquer sistema de saúde que quer proteger o destinatário da atenção.

Por outro lado, ficou evidente o desencontro, em termos do posicionamento

ético e afetivo, entre enfermeira e médica que, aliás, desenvolviam um histórico de

desentendimentos desde o processo de implantação da equipe. Isso motivara 240 Essa atitude acrítica, em relação à competência técnica dos profissionais, compreensível tanto pela representação social do médico na sociedade quanto pelo desconhecimento sobre o que fazer do trabalho médico deve ser relativizada. O acompanhamento das equipes demonstrou deficiência técnica em alguns deles, especialmente daqueles que, logo cedo, na sua carreira, haviam optado por uma especialização e agora eram exigidos enquanto médicos generalistas. A formação especialista em Saúde da Família, nesse caso, foi o recurso disponível para tentar fazer um nivelamento técnico dos profissionais, já que tratava dos conteúdos clínicos fundamentais necessários à atenção básica, além dos princípios, valores, da filosofia e das competências necessárias à Estratégia Saúde da Família.

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257

intervenções da tutoria para tentar amenizar o desgaste no relacionamento da equipe.

Tentava-se argumentar, inclusive, que esse tipo de problema não só repercutia mal na

qualidade de assistência à comunidade e no desenvolvimento das demais atividades

profissionais como era prejudicial à relação com a comunidade, por caracterizar um

comportamento antipedagógico.

Havia ainda situações em que ficavam demonstradas a arrogância, a

grosseria e a falta de sensibilidade humana e social para o exercício profissional, como

no caso de uma profissional que, atendendo numa comunidade rural e estando a UBS

superlotada de usuários e sem lugar para as pessoas se sentarem, tratou grosseiramente e

de forma desrespeitosa uma usuária idosa que, por dificuldade de espaço, postara-se de

pé à porta do consultório. Ao invés de compreender a dificuldade física da UBS e até

mesmo da usuária, por tratar-se de uma anciã, a profissional preferiu inferir um

julgamento malicioso à atitude da usuária.

Ainda na linha da falta de sensibilidade social e humana, nessa mesma

unidade, foi relatado que a mesma médica, em outra oportunidade, discutiu com o

auxiliar de enfermagem da UBS e recusou-se a continuar atendendo à demanda de

usuários, pois já completara a cota de dezesseis atendimentos do turno, numa alusão a

uma antiga portaria do extinto INAMPS, que disciplinava o tempo médio de quinze

minutos para cada consulta, o que perfazia realmente dezesseis consultas num turno de

quatro horas de trabalho.

Ela não entendia que esse era apenas um parâmetro para que se garantisse

um atendimento minimante decente, humano, eficiente e eficaz. Nesse dia, com a

unidade lotada, várias pessoas ficaram sem atendimento e tiveram que voltar para as

suas localidades. Algumas haviam se deslocado de logradouros relativamente distantes

da UBSF.

O procedimento descrito é injustificável, do ponto de vista ético e humano,

mas há de se compreender que, numa comunidade, quando se tem alta repressão de

demanda, não há solução fora de uma triagem para consultas médicas e atendimentos de

enfermagem colocados em ordem de magnitude e transcendência. O estabelecimento de

um agendamento para consultas e atendimentos eletivos seria a conduta mais adequada.

Há que se considerar que, quando isso não acontece, uma natural pressão sobre o

profissional sobrevém. E quando ele não tem o devido preparo psicológico, social e

humano, para o enfrentamento dessas situações, chega a cometer despautérios.

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O despreparo profissional, em outros momentos, aparecia pela falta de

compreensão social do processo saúde-doença e pela visão puramente biológica do

significado do adoecer. Numa consulta de puericultura (verificação do crescimento e

desenvolvimento infantil), o médico diagnosticou, corretamente, a desnutrição de uma

criança. Porém, imputou à mãe a causa do estado nutricional do infante. Ou seja, não foi

capaz de compreender as razões sociais e econômicas que estão implicadas na

incidência e prevalência da desnutrição. A culpabilização da vítima, nesses casos, é

típica da visão biologicista do adoecer e da falta de sensibilidade para investigar as

demais razões, além das puramente biológicas, que entram no adoecimento.

Um último caso pode ilustrar a crueza, a insensibilidade, o desprezo pelo

outro, a indiferença e o caráter desumano que pode assumir a prática médica,

principalmente quando exercida como uma atividade puramente disciplinar e fria. Uma

usuária, grávida de sete meses, moradora da zona rural e adscrita a uma unidade

âncora241 de uma das áreas de abrangência do Programa, agendada no atendimento pré-

natal, enganou-se em relação ao dia de seu atendimento e, após andar nove quilômetros

da sua casa até a referida UBSF, foi recusada para atendimento sob a alegação da

profissional médica de que aquele dia estava destinado ao atendimento pediátrico.

O mais cruel dessa situação é que a usuária partira de casa ao raiar do dia,

em jejum. E se não tivesse tido o cuidado de outros profissionais da equipe, que

procuraram saber se houvera se alimentado antes de sair, teria voltado na mesma

condição. O fato é que, depois de alimentada por auxiliares da UBSF, foi aconselhada a

retornar para a sua residência com a indicação de voltar dois dias depois, quando, no

planejamento da UBSF, estava previsto atividades de acompanhamento médico de

gestantes. Esse caso, retirado da realidade vivenciada junto a uma equipe do PSF/PITS,

não é único, pois se repete em circunstâncias parecidas em muitas equipes e municípios

com usuários de diversos ciclos de vida, dentro ou fora do âmbito da Atenção Básica.

Ele é a representação exata da execução intransigente e inflexível de um planejamento

normativo que, prepotente e arrogante, só consegue se enxergar como um fim em si

mesmo, incapaz, portanto, de dialogar com a realidade circundante.

241 O termo unidade-âncora designa um local, um prédio, não necessariamente uma unidade de saúde, onde se organiza a atenção à saúde fora da UBSF de uma área de abrangência. Num sistema de saúde organizado e equipado, corresponde a uma unidade que dá suporte à atenção de uma micro-área distante, geralmente na zona rural. As unidades-âncora, normalmente desenvolvem ações de assistência que são sistemáticas, mesmo que não diárias.

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259

O acompanhamento de atividades de equipes e profissionais do PSF/PITS,

na Paraíba, apresentou-se como uma experiência espinhosa, difícil, desgastante e

conflituosa242, mesmo que extremamente rica e cheia de significados e aprendizados.

Implementar o PSF/PITS e enfrentar os casos aqui relatados foi um desafio constante,

uma provocação, no sentido de se vencer a inação, a resistência à mudança, a ignorância

da realidade, o poder exercido com arrogância, prepotência, truculência, indiferença e

intolerância. Foi uma aposta para se tentar construir o SUS e o seu modelo de atenção

em municípios que, pelas suas características geopolíticas e administrativas, parecia

uma tarefa irrealizável.

A elaboração deste trabalho representa um exercício pedagógico, com todas

as conotações e sentidos que possam advir do termo e da prática pedagógica. Seguir em

frente, continuar foi, em muitos momentos, um ato de rebeldia, de obstinação,

resistência mesmo, pois era preciso caminhar, continuar acreditando que é possível

mudar concepções, inventar novas práticas. Por isso é impossível esconder as

frustrações de muitos momentos em função de posicionamentos equivocados e de

posições incongruentes, ora dos gestores municipais, com sua cruel crise de

competência administrativa, na sua falta de compromisso social e de cuidado com a

coisa pública, ora dos profissionais, devido à inconsistência da sua formação técnica e

humana ou à clara escolha profissional, segundo um viés financeiro e mercantilista243;

ora com as inconsistências e dissonâncias do próprio PITS e sua forma vertical244 de

tratar coisas que deveriam ser horizontais em face da doutrina legislativa do SUS.

242 A experiência tornou-se espinhosa, difícil, desgastante e conflituosa porque, em alguns casos, foi necessário se recorrer ao desligamento de profissionais ou mesmo de municípios, dada a impossibilidade momentânea de superação das contradições. E a cada momento em que isso se tornou necessário, do ponto de vista da implementação de uma atenção à saúde pautada no respeito aos princípios éticos acabava gerando novas contradições e problemas. O mais complicado deles: Como superar o dilema de desligar um município, quando os únicos profissionais de saúde em ação eram os do PSF/PITS e a retirada do Programa significava abandonar a população à própria sorte, vez que os gestores não cumpriam com a sua responsabilidade sanitária? Por outro lado, como manter esse mesmo programa que não garantia a mínima estrutura para que ele pudesse funcionar sem aviltar profissionais e população? 243 Necessário se faz reconhecer a fragilidade das relações de trabalho e os baixos salários que caracterizam a contratação dos recursos humanos, para a saúde, pelo setor público. O PSF não se exclui dessa condição. Não tendo vínculo empregatício formal e estável, o profissional é enredado numa situação de alta rotatividade, que acaba por transformá-lo num nômade, condicionado que fica por um viés puramente econômico que o restringe à escolha do empregador pelo critério de quem lhe paga mais, mesmo que a relação contratual seja precária. O PSF/PITS mostrou claramente esse viés quando muitos profissionais de equipes de PSF abandonaram seus municípios pelo canto da sereia da bolsa/salário oferecida pelo CNPq, que era mais sedutora que grande parte dos salários oferecidos pelos gestores municipais. 244 Apesar do lado positivo da preocupação do Ministério da Saúde em abranger, com a Estratégia Saúde da Família, algumas centenas de municípios recalcitrantes, estimulando-os do ponto de vista financeiro, de recursos humanos de nível superior e de assessoria na gestão, com o PSF/PITS, não há como não se

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260

Mas, quando se afirma que a experiência foi um exercício pedagógico, com

todas as conotações e sentidos que possam advir do termo e da prática pedagógica,

quer-se dizer, também, que todos - tutores, profissionais, gestores e população -

aprenderam muito com a experiência prática. Foi com ela que se firmou a convicção de

que, num certo sentido, é preciso insistir muito mais na educação dos profissionais e dos

gestores do que na dos usuários. A educação, aqui, não deve ser entendida só e

necessariamente no seu sentido da formação regular, formal e técnica, sustentada em

cursos ou algo do gênero, mas, como capacitação social para o enfrentamento dos

problemas de saúde que, em geral, advêm da própria realidade em que estão inseridas as

famílias e a população.

Educação como uma reflexão coletiva e profunda sobre o sentido de uma

atenção primária que supere a sua organização puramente assistencial, o seu caráter

marcadamente curativo, algo que vem da prática de saúde tradicional. Educação

enquanto Fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituído de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais, permeados por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientados por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade.245

Foi esse sentido de educação que ficou patente nas inúmeras experiências

vividas ou nos relatos colhidos dos médicos e dos demais profissionais da Saúde da

Família, que revelaram sua competência técnica e humana; sua sensibilidade social e

disponibilidade para o diálogo; humildade, tolerância e generosidade; comprometimento

com o outro; consciência do seu inacabamento. Esses são elementos que, antes de tudo,

criticarem incongruências e vícios de origem da proposta, como a sua forma de recrutamento, seleção e gestão de profissionais. Muitos dos seus profissionais eram experientes, alguns até aposentados, com muitos vícios ou pouco compromisso e movidos pelo simples interesse econômico. Outro aspecto era que o processo de capacitação retirava constantemente os profissionais dos municípios, quando o mais lógico seria se organizarem propostas de treinamento em serviço, como residências multiprofissionais ou algo parecido. Outro aspecto a enfatizar era a coordenação (nacional, estadual, municipal) com superposições, confusões e embaraços, além de perda de agilidade e inadequação de algumas decisões. A descentralização da estratégia, com maior autonomia da coordenação estadual junto aos municípios, poderia ter gerado maior eficiência e eficácia da proposta de inversão do modelo de atenção. 245 Aproximação conceitual construída pelas turmas Teoria em Educação Popular, História e Filosofia da Educação Popular, do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB e durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro. As disciplinas foram coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos, tendo sido desenvolvidas durante o primeiro semestre letivo do ano de 2003.

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revelaram sua humanidade e a reiteração de que a prática médica pode elevar-se à

categoria de uma práxis, na Estratégia Saúde da Família.

Leidson Oliveira Adelino de Lima, médico do PSF da Cachoeira, uma das

áreas mais desassistidas e de maior miserabilidade em Campina Grande (PB), apresenta,

por meio de sua poesia, as contradições da sociedade, a condição humana, sua

consciência de mundo, a consciência reproduzida nas equipes de PSF e nos territórios

onde elas estão incrustadas, constituindo-se o combustível fundamental para a virada

paradigmática da prática médica da Saúde da Família numa práxis médica: Falar de saúde da família é andar além, sem parar. Sair da nau e, de mar em mar, de lua em lua, mudar de idade e da banal linearidade, sem saudade, sem farsa. Essa dualidade de ser fã e mirar além da simples saúde. E saber de Maria, de Bia, de Ana, de Lia, de Laura, de Déa, de Amanda, de Lula, de Bira, pai de Eudes, de Raí, de Duda e Bem mais. Dá pra lembrar de Deus e de sua imensa família. Para uns, pães e ruas limpas. Ali, a menina sem pais e pães. A fama, a lira, anéis, mesas e bebidas. A lama, a lida, a ira. Ruas fúrias, de bares, de balas, de malas e adeuses. Ruas de miasmas, sem ar, sem ida e nem saída. Sei das meninas mães, meninas pílulas, saem de lar em lar arruinadas, esfaimadas, desprezadas. Ninfas, deusas, nem param e nem pensam, apenas, saem de seus lares. Riem e nem sabem, esperam seus bebês e nem falam. Meninas nenéns mamam em suas mamães meninas. Aí a fama das fêmeas é serem da ala de Maria. Mães da surdina, das mamas plenas de mel. Deusas ilibadas da lida diária. Li das fadas mal amadas, amarradas, insanas, presas de seus Pares. Bebem fel, parem e, ainda assim, amam sem nada esperar. Bebês falam nas salas surdas, mudas, sem brisa. Almas pálidas desfilam em ladeiras áridas. Findam seus dias sem abrirem-se para seu País. A miséria impera em derribada de idéias e ideais. Dia a dia massas desesperadas rumam em pluralidade de barreiras sem fim. Mas, nada dura para sempre. Fala-se de sinais de um SUS a mirar além. Ramas de uma fase ímpar em saúde, a saúde da família, premissa base para nadar pelas marés da lida, sanar males, mas, vê-se bem mais além da íris. É sair a semear, surdir sempre.

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262

8 SABERES PARA A MEDICINA, PARA A PRÁTICA MÉDICA

Procurou-se mostrar que é possível a prática médica transformar-se em

práxis médica na Estratégia Saúde da Família. Médicos dialogantes, que têm

consciência da sua ação no mundo e que acreditam que é possível transformar a

realidade com base numa postura aberta e democrática foram encontrados. Mas a

resposta afirmativa para a questão proposta na tese não encerra a discussão inicial. Ela

desvela novos problemas, novas interrogações, abrindo perspectivas para novos

desdobramentos.

O acompanhamento da prática médica no interior da Estratégia Saúde da

Família, em municípios da Paraíba, revelou suas virtudes doutrinárias e suas

possibilidades práticas e desnudou dificuldades e conflitos quando foi preciso transpor

os seus aspectos doutrinários para a prática, num objetivo de massificação do modelo de

atenção. A concretização da Saúde da Família demanda profissionais capazes de

trabalhar outro conceito de saúde-doença, de atenção à saúde e de práticas profissionais,

com competência para trabalhar a saúde como conquista social, e não, simplesmente,

como enfrentamento da doença, no plano individual ou mesmo familiar. Por isso, nem

sempre se encontrou, na prática, um profissional cujo perfil seja adequado ao contexto

exigido para atuar no Programa Estratégia Saúde da Família.

Por outro lado, não se pode perder de vista que a teoria da Saúde da Família

surgiu da própria prática médica, da experiência reflexiva de médicos e de outros

profissionais que, com suas experiências particulares, foram capazes de, pouco a pouco,

projetar outra modalidade de atenção, que quebrava a verticalidade e a frieza da relação

com o outro e se dispunha a trabalhar de forma parceira com os colegas da sua equipe

de saúde, com outros profissionais, com a gestão e com a população. A seqüência e a

sistematização dessas experiências é que permitiu que elas pudessem ir conformando o

modelo que se tornou estratégia de atenção básica no Brasil.

As virtudes, tanto quanto as dificuldades e os conflitos que permeiam o

processo de desenvolvimento do Programa Saúde da Família e a prática médica nela

inserida, trazem à tona novas e velhas questões que precisam ser analisadas,

problematizadas, respondidas. É preciso investigar mais profundamente por que a Saúde

da Família vinga em uns municípios e, em outros, não avança; por que logra êxito no

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trabalho de algumas equipes e não obtém o mesmo resultado em outras, dentro de um

mesmo município.

Com base nessas considerações, surgem mais outras perguntas: Por que, em

certas equipes, a prática médica se eleva a uma práxis médica e, em outras, ela acontece,

ainda, nos moldes tradicionais? Seria possível se pensar num alargamento do horizonte

da práxis médica? É possível generalizar essa práxis para a atenção especializada, assim

como para a atenção hospitalar, abrangendo todo o SUS? Que obstáculos precisam ser

removidos para que a práxis médica possa prosperar produzindo saúde? Como fazer

para se deixar de lado o modelo tradicional de prática médica, que se propõe apenas a

confrontar a doença? Como enfrentar o complexo médico-industrial todo direcionado

para manter o status quo, este que apenas se recicla em face de propostas inovadoras

para manter-se e até ampliar os seus objetivos?

As respostas para essas e tantas outras inquietações possíveis em torno dessa

temática não poderão aqui ser respondidas, posto que exigem um esforço teórico e de

pesquisa que está fora do escopo deste trabalho. Entretanto, contribuir com algumas

pistas ou reflexões sobre algumas das questões levantadas ainda é possível, mesmo no

ocaso do esforço desta pesquisa.

A experiência tem mostrado que a estratégia de massificação da Saúde da

Família logrou êxito no aspecto quantitativo, garantindo a universalização do PSF para

praticamente todos os municípios brasileiros. Mas, não garantiu ainda a qualificação e a

efetivação do modelo. A debilidade das gestões municipais, o arraigado conceito de

saúde como contrário de doença e a crença de que a saúde da população pode ser

conseguida simplesmente com médicos e medicamentos aparecem implicados nesta

equação. Isso, entretanto, carece ser melhor estudado para que se possam interpor

enfrentamentos eficientes e eficazes. Outra questão que precisa ser aprofundada é a

representação mítica do médico e da medicina na sociedade, conferindo-lhes um poder

quase irrefutável. Vale, enfim, perguntar como tudo isso tem se coadunado com a

Estratégia Saúde da Família.

Por mais que o conhecimento tenha avançado, e o conceito de saúde-doença

se alargado, as novas visões desse conhecimento não parecem disseminadas o

suficiente, principalmente entre as camadas mais ameaçadas da população, aquelas que

menos acesso têm ao processo educativo. Mesmo que, mais recentemente,

experimentem-se, aqui e ali, movimentos no sentido de se refletir sobre a questão da

educação e que comece a existir algum esforço de investimento oficial para apoiar essas

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iniciativas, a educação, numa perspectiva popular, é quase que completamente marginal.

Há, ainda, um longo caminho a ser trilhado e um descompasso gritante nas escolas

médicas. O conhecimento social da medicina, fundamental para encorpar a educação

médica, embora tenha avançado muito nas últimas décadas246, é marginalizado nos

currículos escolares, em detrimento do cientismo da biologia e da tecnologia, que tudo

pode, no diagnóstico e no tratamento das doenças, embora se torne cada vez mais

distante da maioria que dela necessita.

A necessidade de uma medicina compromissada com a educação popular

ainda está aquém da pedagogia assumida pelas escolas médicas. Não se trabalha a

capacitação do médico na perspectiva de ser um educador e aprendiz, num processo

dialético de educação popular. A falta de reflexão e de criticidade sobre o conhecimento

da medicina e sobre o papel da prática médica acaba por fazer sinergismo com o senso

comum que reina nas relações população/gestão/profissionais de saúde/escolas médicas,

fiadoras do continuísmo da prática médica tradicional. E nesse diapasão, fica uma

lacuna no que concerne à concretização da Atenção Básica à Saúde.

Todavia, o contrário também aparece, mesmo de forma minoritária. Onde há

a consciência da força e da necessidade da educação popular, no processo de trabalho

em saúde, quando os dois pólos principais (gestão municipais e profissionais médicos)

se tornam conscientes do seu papel educativo, tende a haver um ambiente mais

favorável à implementação da Saúde da Família, abrindo-se a possibilidade de uma

atenção à saúde baseada na práxis médica. E, em havendo consciência da práxis e

transitividade dessa práxis com a população, poder-se-á entrar no círculo virtuoso da

produção da saúde e da educação popular na saúde.

É importante, todavia, enfatizar que o papel indutor da Saúde da Família,

enquanto prática concreta, não é e não pode ser apenas algo que acontece devido ao

encontro fortuito e à reciprocidade de consciências da gestão e dos profissionais de

saúde que se descubram sensíveis o suficiente para buscar e envolver a população como

sujeito do processo. Um profissional deve ser capaz, também, de iniciar um movimento

que redunde num ato educativo popular que reverbere e sensibilize a própria equipe,

atingindo a comunidade sob sua responsabilidade, chegando até a gestão municipal e, 246 Alguns frutos desse esforço já começam a ser colhidos. Já existem cursos de medicina em vários locais do país que desde o seu início foram formatados dentro de uma pedagogia problematizadora e onde os estudantes começam a sua vida acadêmica de graduação na prática comunitária, aprendendo e atuando em face dos problemas de saúde da população. Começam também a se concretizarem reformas curriculares que melhoram a perspectiva para uma discussão crítica sobre os saberes necessários à medicina e à prática médica, no interior das Universidades.

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quem sabe, à sociedade e à educação médica. Apesar de ser essa uma tarefa difícil, não

é impossível de se realizar. É esse movimento que pode explicar porque algumas

equipes mudam a si próprias e, concomitantemente, a realidade a sua volta, enquanto

outras permanecem na prática médica tradicional, dentro de um mesmo município.

Quais seriam, então, os elementos que, presentes na prática médica,

poderiam ser capazes de promover a transformação da prática em práxis, ou que, por

estarem ausentes, favoreceriam a reprodução do status quo? Um conjunto de raciocínios

pode ser desenvolvido para servirem de linha de apoio e condução de uma especulação.

8.1 O exercício da medicina exige humildade, consciência de inacabamento

A medicina exercida por médicos dispostos a uma convivência horizontal

com seus pares, na sua área, ou mesmo em áreas indiretamente ligadas à saúde; por

médicos docentes, com experiências de ensino/aprendizagem mais abrangentes, aí

incluídas experiências de extensão universitária, numa perspectiva de educação popular,

tem influenciado na formação de profissionais críticos em relação a sua prática. O

acompanhamento de profissionais inseridos em equipes de saúde, inclusive em equipes

de Saúde da Família, o acúmulo e a troca de conhecimento da medicina na sua relação

com a filosofia, com a sociologia, com a educação e com os movimentos sociais

populares, têm apontado para uma certa direção e sugerem uma conclusão: a filosofia e

a pedagogia freireanas podem ser fontes de inspiração para a transformação da prática

médica em práxis médica.

Em sendo assim, parece plausível que todos aqueles que estão envolvidos

ou pretendem se envolver com a medicina, querendo extrair dela uma prática que se

justifique como escolha ética, em favor do humano e da hominização, tenham

oportunidade de conhecer os ensinamentos presentes na pedagogia legada por Paulo

Freire. Os que já o fizeram estão tendo a chance de descobrir, nas entrelinhas desses

ensinamentos, que a medicina encerra uma pedagogia e que o médico é, antes de tudo,

um educador. Isso, porém, não elimina que os que não leram não tenham a chance da

mesma descoberta. Afinal, nem a educação é uma invenção freireana nem se é educador

apenas pelo fato de ter lido Freire.

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E por que seria importante para o médico e para os envolvidos na medicina

conhecerem a filosofia e a pedagogia freireana? Qual o sentido dessa pedagogia e a sua

utilidade para a medicina e para os médicos? O principal é a distinção entre educação

bancária e educação libertadora. Essa distinção, e mais que isso, o exercício profissional

com base nela, pode constituir-se um divisor de águas para se compreender a medicina

como um saber, como uma prática e como uma política. Quando compreende que o ser

humano não é um recipiente vazio, destituído de qualquer conhecimento, alguém que

precisa ser preenchido pelo conhecimento de outrem, o médico poderá se descobrir um

educador, no sentido freireano. Não seria, portanto, possível uma medicina libertadora?

E em se assumindo um educador freireano, o médico descobriria que a

consciência humana é uma construção e, assim sendo, teria a chance de direcionar,

redirecionar e transformar a sua prática em práxis médica, práxis em saúde. Poderia

possibilitar novos sentidos a todo o cabedal de conhecimentos técnicos adquiridos. Com

esse redirecionamento, compreenderia que a medicina e a prática médica são formas de

intervenção no mundo, que se dá pela integração de conhecimentos. Que toda

intervenção no mundo se dá dentro de um conjunto de relações derivadas de

fundamentos ou princípios nem sempre explícitos ou especificados, mas aprendidos ao

sabor da experiência feita, curiosa, reflexiva, epistemológica. A educação de Freire

conduz ao quefazer da medicina como práxis, que pode propiciar um processo

educacional horizontal fraterno, pleno, livre e autônomo.

O diálogo talvez tenha sido o principal desses fundamentos. Nada mais

significativo e oportuno à prática médica, já que o exercício da medicina exige do

médico que saiba escutar. Saber escutar, exercitar uma escuta qualificada, carregada de

sentimentos próprios do humano e de sua humanidade pode ser um caminho que

confirme e concretize a disponibilidade para o diálogo. Diálogo não apenas como

ferramenta ou estratégia de trabalho da prática médica, mas como o próprio objetivo da

educação para a práxis, posto que a experiência educativa é, ela própria, diálogo.

Diálogo como essência mesma das trocas humanas no sentido de compreender e

integrar conhecimentos.

A partilha é outro fundamento. As trocas que na relação pedagógica mais

localizada do médico se dêem pelo diálogo – pensem-se as relações interpessoais, as

relações médico/usuário ou as relações interprofissionais – quando possibilitadoras de

novas aprendizagens para aqueles seres humanos em relação dialógica, podem ter um

potencial disseminador dessas aprendizagens em novos diálogos e novas partilhas,

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267

universalizando saberes em situações mais macro. A universalização das trocas geraria

o processo educativo, dada a identidade antropológica que existe entre as culturas

humanas.

O exercício desse fundamento valorizaria e produziria o reconhecimento

recíproco dos seres humanos em relação educativa, posto que tenderia a rejeitar

qualquer forma de discriminação e a respeitar plenamente os saberes que estão sendo

trocados e legitimados. E à medida que a educação se conforma como um processo

político e dialógico, o seu exercício tende a se tornar participativo, aberto, democrático.

A participação é outro fundamento da pedagogia freireana com capacidade

para influir na educação das relações dialógicas da medicina e da prática médica. Na

medida em que a participação seja tomada como princípio ético de conduta nas relações

dialógicas da medicina e dos médicos com os demais seres humanos, gerando processos

educativos, abrir-se-á espaço para engajamento e produção de mudanças. E como toda

participação implica um encontro de culturas, pelo diálogo e pela partilha, no

desenvolvimento da Estratégia Saúde da Família – para ficarmos circunscritos ao fulcro

desta tese – o processo de participação poderia colocar a cultura popular no centro do

processo de educação para a transformação, problematizando-a, valorizando-a. Essa

atitude seria fundamental, posto que, numa sociedade baseada em uma ética informada

pelo elitismo, pela prepotência, pelo autoritarismo, pela segregação e pela opressão das

maiorias dos padrões sociais que, em muitos casos, contaminam a formação médica, a

cultura popular é desprezada, relegada à periferia, aniquilada.

A confluência e a operação conjunta desses fundamentos concorrem para a

libertação, que surgiria como resultado do processo educativo recíproco, fundado na

tomada de consciência de mundo, no diálogo, na partilha do que há de comum a partir

das diferenças existentes entre os seres humanos em educação, na participação para a

transformação da realidade dos que estão em situação desfavorável. A prática desses

fundamentos promoveria a afirmação dos sujeitos em educação como sujeitos de direito,

como cidadãos. Embora isso seja o avesso do que se tem na contemporaneidade como

prática médica, a internalização, e mais que isso, as interações da medicina e dos

médicos, com base nesses fundamentos, imprimiriam outro sentido aos seus

conhecimentos e a sua ação educativa no mundo.

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8.2 O exercício da medicina exige conhecimento, competência profissional, atitude

ética

O ser humano é a fonte da atividade direta ou indireta de qualquer profissão

ou profissional. Na medicina e na prática médica, pela intimidade com que as relações

precisam se dar, o humano e as relações humanas precisam ser percebidos e caminhar

sempre no sentido da preservação da inteireza física e moral. O agir, tendo por base a

elevação do humano, demanda, portanto, conhecimento do humano. Não qualquer

conhecimento, mas um que leve em conta os aspectos biológicos – somáticos e mentais,

salubres ou patológicos – e suas várias complexidades anatômicas, fisiológicas,

fisiopatológicas e epidemiológicas. Mas esse conhecimento não pode se limitar ao

biológico.

O médico carece entender aquele ser humano, são ou enfermo, no seu

contexto social. Precisa conhecer particularidades dele, penetrar no seu mundo, na sua

individualidade e na singularidade de suas queixas. Essas queixas, no mais das vezes,

remete-os (médico e usuário) a outras dimensões do adoecer humano, as quais em muito

transcende a esfera do biológico. O médico precisa conhecer bem para poder

esquadrinhar, perscrutar, indagar e responder com escrúpulo, perquirir o usuário da sua

ação.

Por isso, além de conhecimento médico específico, o profissional da

medicina precisará demonstrar outras competências que não apenas as que aliam as

questões do usuário dos seus serviços com o conhecimento próprio da medicina. Uma

medicina por vezes desencarnada do mundo. Para cuidar de alguém que a procura ou

que necessita dos seus cuidados, a competência médica não pode ser apenas aquela

faculdade concedida por lei ou por uma graduação acadêmica que assevera capacidade,

habilidade, aptidão, idoneidade para apreciar, julgar e resolver questões relativas à

doença, em si, ou sua prevenção.

A competência médica precisa fazer-se, antes, competência de uma

medicina encarnada no mundo, capaz de entender os aspectos humanos e ético-sociais

do sofrimento físico e mental de um corpo que é biológico e social a um só tempo. Por

isso, tanto quanto ou até mais que qualquer outra profissão, a medicina exige, além de

conhecimento e competência, um comportamento ético daqueles que abraçam o seu

quefazer. Uma ética não apenas como um código de postura e de proteção corporativa,

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irretorquível, irrecusável, incontestável. A ética que se busca e que se quer encontrar no

médico é algo que declare a sua conduta humana, esta sim, irrepreensível, humilde,

amorosa, aberta, democrática e, por isso mesmo, suscetível de avaliação e qualificação,

submetida aos valores próprios do humano e guiada pela solidariedade, pela

fraternidade e pelo compromisso inquebrantável com a liberdade e a autonomia dos

seres humanos.

8.3 O exercício da medicina exige apreensão da realidade, convicção de que mudar

é possível

A prática médica se faz como intervenção num mundo que, quase sempre, é

inóspito para o médico e para a população que depende de sua intervenção. Por isso o

médico que conheça uma perspectiva freireana sentirá sempre necessidade de trocar

conhecimentos com os sujeitos da sua relação, sejam eles a equipe de saúde que integra,

as instâncias tecno-burocráticas ou gestoras que prescrevem ou controlam o seu

trabalho, os usuários das suas ações, ou a comunidade em que atua. Juntos, precisam

construir a consciência coletiva do mundo em que estão inseridos e da realidade que

precisam enfrentar/transformar. É provável que nem sempre isso seja possível in totum,

o que não deverá ser impedimento suficiente para que esmoreça, desista ou se entregue

à inércia do sistema de saúde que critica e que, em muitos casos, oprime-o.

O início de qualquer construção relativa à sua práxis, na medida em que

comece da análise da situação de saúde-doença que enfrenta com os seus parceiros, no

território de trabalho e convivência, estará direcionado para o acerto. A situação de

saúde-doença bem analisada e o território devidamente mapeado ajudam a explicar a

maior parte dos adoecimentos ou estranhamentos do dia-a-dia. Mais isso só não basta.

Ao penetrar na realidade da sua prática, o médico que comunga com os preceitos

freireanos tenderá a fazê-lo colocando a sua consciência ética em relação, em diálogo

com os seus parceiros imediatos: os demais profissionais da equipe de saúde e a

população usuária. São esses que, em primeira instância, com ele estarão juntos,

construindo a consciência dos limites e das possibilidades da sua atuação.

Nessa relação respeitosa, amorosa, fraterna e recíproca, a postura do médico

com perspectiva freireana, em nenhum momento, será de transferência de

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responsabilidades individuais, as que lhes são próprias, na realidade que divide, para

outrem. O médico continuará responsável pelo acolhimento, pelo cuidado e pela busca

de solução dos problemas colocados ou reconhecidos no diálogo com o usuário da sua

ação ou com a comunidade, ainda que tenha ciência dos limites que porventura se

interponham no caminho do seu desiderato. E nesse caso, tenderá a ser límpido e

sincero na apuração e solução dos seus limites pessoais, tanto quanto na separação, na

discussão e na análise dos limites que deverá levar para negociação nas instâncias

interprofissionais, nas comunitárias e nas demais que se fizerem necessárias, em busca

das possíveis soluções.

Essas instâncias se necessitam mutuamente. O médico, assim como os

sujeitos da sua relação, faz parte de uma cena social que está condicionada pelas

estruturas criadas pelos homens. Elas (as estruturas) produzem situações favoráveis e

desfavoráveis e é em face delas que precisam intervir. Portanto, precisarão estar sempre

vigilantes e dispostos a enfrentar com as armas que lhes forem possíveis – em alguns

momentos é possível que tenham que construí-las, encontrá-las na luta cotidiana – os

obstáculos que se interponham ao exercício da medicina e do direito de estendê-la aos

que dela necessitem. A atitude humana do médico, na medida em que se dê dentro de

uma ética que reforce os valores de humanidade, honestidade, liberdade e autonomia

individual e grupal, poderá ser a chave para um vínculo de confiança estável com os

seus semelhantes.

8.4 O exercício da medicina exige criticidade e reflexão sobre a prática

Pense-se em um médico situado numa equipe de Saúde da Família de um

bairro de periferia, com centenas de famílias sob sua responsabilidade. Essas famílias

vivendo de salário mínimo e, portanto, em situação de pobreza. Pense-se que, além de

pobres, não tiveram o devido acesso à educação escolar, ainda que hoje, com esforço,

tentem manter os filhos na escola, pois muitos reconhecem o que não tiveram ou o que

perderam. Padecem de várias doenças e estão submetidos às mais diversas situações que

põem em xeque a sua condição de cidadãos de direito, principalmente no que tange à

infra-estrutura da área em que vivem. Enfim, um quadro que se multiplica por inúmeros

recantos do país.

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Pense-se numa UBSF que dispõe de uma estrutura física precária, beirando

a insuficiência para uma abordagem mínima à população adscrita. Onde as pessoas da

comunidade que procuram o serviço e os profissionais que nela atuam se acotovelam

pelos pequenos e apertados corredores e salas da Unidade. Há medicamentos básicos

para as principais patologias que se distribuem na população, mas, de vez em quando,

também há falhas no estoque. Nessa situação, usuários que dependem de medicamentos,

alguns de uso contínuo, ficam a descoberto.

Há possibilidade de prescrição de exames e encaminhamentos para

especialistas dentro de cotas que nem sempre cobrem, no tempo que seria necessário, as

necessidades da atenção ao usuário. Não há vagas suficientes nos hospitais, quando

alguém da comunidade necessita de internação. A população reclama, mostra a sua

indignação, e alguns até agridem verbal e moralmente a equipe de saúde, que naquela

situação é a cara mais próxima do sistema de saúde. Pense-se agora que essa situação se

repete em boa parte das UBSF dos municípios, da Paraíba e do Brasil afora.

O que esperar dos médicos e dos demais profissionais de saúde numa

situação dessas? Dois tipos de postura, pelo menos, podem predominar e emergir dessa

realidade, a depender da compreensão e da ação desenvolvida pelas equipes e por seus

profissionais. Equipes compostas por profissionais acríticos, conformados e atuando

conforme a tradição tenderão a considerar esse cenário um retrato da sociedade em que

se vive. Uma sociedade desigual, com uma minoria rica – da qual gostariam de

participar – uma parte maior que a anterior, formada por pessoas que levam uma vida

economicamente estável, remediada; e uma imensa maioria de pobres, da qual a

população adscrita à unidade em que trabalham é uma representação, tão somente.

Diante dos reclames da população, essas equipes assumem uma atitude

reativa, no sentido de se desculpar, colocando que não depende delas aquela situação e

que, na medida do possível, serão feitas demandas aos setores tecno-burocráticos, na

tentativa de sanar o problema. E a depender do calor das discussões, poderão até revidar

algumas agressões verbais que lhes forem feitas. É possível, porém, internamente, que

essas equipes até tenham interesse na demanda da população e pressionem os setores

que tratam da gestão dos insumos para as unidades de saúde, afinal, são pessoas muito

necessitadas. Mas é possível também que não tenham muita esperança de que a situação

se reverta integralmente.

As equipes formadas por profissionais críticos, atentos e inconformados

reconhecem a condição de pobreza e de iniqüidade que grassa na população e a relação

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dessa situação com o tipo de políticas sociais que, no geral, são emanadas do Estado.

Consideram a Saúde da Família, mesmo com as falhas relatadas, uma oportunidade para

se montar um serviço solidário e justo socialmente junto à população. Apostam numa

perspectiva educativa que enseje a passagem do compromisso social que tentam assumir

em conjunto com a população, à consciência política da condição social em que se vive.

A desigualdade social, assim, transforma-se num tema gerador de

discussões da condição humana, numa postura educativa, dialógica de aproximação

contínua com a comunidade e de formação de consciência coletiva. O cenário daquele

momento, representado pelas falhas em relação aos insumos assistenciais, é o exemplo

de uma situação que precisa ser transformada para que se continue caminhando rumo ao

aperfeiçoamento do sistema de saúde, elemento importante para a construção de uma

sociedade que se quer igualitária, ainda que isso seja, por enquanto, uma quimera, uma

utopia.

Em nenhum momento a equipe, junto com a sua população, abrirá mão de

reconhecer que parte da solução, mesmo a das falhas de estoque da farmácia, de

exames, de especialistas e de vagas para internação, está sob sua responsabilidade. Que

a organização do território e o processo de educação que sustenta equipe e população

serão capazes de atenuar muitos dos problemas da comunidade, diminuindo mesmo o

consumo de fármacos, de exames, de especialistas e de internações. Até porque o

exercício da medicina, baseado no cientismo, não o exime do respeito à autonomia do

ser humano em relação à própria medicina. A população, independente ou apesar da

medicina, tem os seus saberes de cura. E há uma série de saberes populares que, sendo

aproveitados e legitimados como tratamentos alternativos, poderão amenizar, retardar

ou até evitar as repercussões das possíveis panes do sistema municipal, na equipe e na

comunidade.

Os diversos problemas que surgirem poderão ser tratados conjuntamente

como demanda direta da população organizada. E a busca da gestão, cobrando-lhe as

soluções devidas, significará a demonstração da consciência de que a integridade física

e moral dos usuários, daqueles que necessitam dessa ou daquela atenção, fora ou dentro

da sua área de abrangência, não pode ser negligenciada, pois são cidadãos de direito, e o

direito à saúde não lhes pode ser negado parcial ou integralmente.

A situação apresentada e as diferentes posturas diante dela demonstram

diferentes pensares sobre a ação do médico e da medicina. A primeira, tendo ou não a

necessária consciência de si própria, reforça a medicina tradicional, aquela que continua

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sustentada no conhecimento científico acumulado ao longo do tempo. Um

conhecimento que é repassado para os currículos e para as formações da área médica,

cada vez mais baseadas em tecnologias próprias do complexo médico-industrial. Essas

tecnologias, por vezes sofisticadas, são produzidas numa visão de sociedade e de

atuação profissional, incapaz de ver que essa medicina e sua prática, por estarem

condicionadas pelos humores e definições do mercado, da economia, da estrutura social

e dos sistemas de saúde, ficam cada vez mais distantes de quem dela mais necessita.

A segunda postura tem consciência do que foi afirmado no parágrafo

anterior e confirma que o aprendizado e a formação do médico nem sempre consideram

as desigualdades sociais, as contradições e as especificidades do mundo que se abre

como campo para sua prática. Que as escolas médicas não preparam adequadamente o

médico para a maioria das situações que ele virá a enfrentar e que ele só descobrirá

quando se atirar às suas experiências concretas e nelas conseguir agir criticamente.

E é exatamente nesse ponto que o médico que trabalha com os pressupostos

teóricos de Paulo Freire demonstra sensibilidade, preparo, competência e atitude ética

com base no humano e na sua integridade física e moral. Poderá exercitar o diálogo, a

partilha, o discernimento e a capacidade crítica em relação a sua prática para poder

compatibilizar as exigências sociais da sua profissão com as necessidades daqueles que

buscam os seus serviços. Ao exercer tal criticidade, descobrirá que as dimensões do

adoecer humano e o seu compromisso solene de promover a saúde dos seus semelhantes

estão, quase sempre, em desarmonia, desafiando-o peremptoriamente.

Por isso, sua tendência é empregar, com o maior rigor possível, os

conhecimentos adquiridos na academia, renovando-os e atualizando-os constantemente.

E, ao mesmo tempo, abrir-se-á na partilha para ensinar o que aprendeu e que pode ser

utilizado por todos a sua volta, sejam eles agentes de saúde, auxiliares de nível médio,

colegas de trabalho ou a população, mesmo leiga, tem faculdade para aprender e

transformar sua situação pessoal e contribuir para a transformação geral.

O médico com perspectiva freireana tenderá a desenvolver a consciência

que o exercício da medicina exige: querer bem ao ser humano, ser amoroso, solidário,

esperançoso, comprometido com a luta pela saúde e pelo direito à saúde de todos. Que a

sua intervenção profissional e a sua educação crítica, liberadora, libertadora,

conscientizadora, cria um caminho alternativo para a transformação social.

Transformação que é síntese de uma participação popular protagônica e confirmação de

uma prática médica dialógica elevada à categoria de práxis médica.

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9 CONSIDERAÇÕES

A filosofia da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família está talhada

num conjunto de princípios que pregam uma organização que, além de

multiprofissional, seja interdisciplinar e dialógica. Algo que exige novas práticas

profissionais, comunitárias e administrativas, tanto setoriais quanto gerais. Por isso,

como se constatou ao longo desta pesquisa, esse é um objetivo ainda a ser alcançado de

forma plena. A Estratégia Saúde da Família só tirará proveito da sua empreitada quando

as gestões municipais entenderem o seu verdadeiro papel, e profissionais e população se

dispuserem a trocar saberes aprendendo a aprender uns com os outros e refletindo,

continuamente, os objetivos e os resultados das suas práticas.

E um dos passos que poderá aproximar a Saúde da Família do seu

desiderato é o desenvolvimento do raciocínio de que a atenção à saúde necessita de uma

ação/intervenção intersetorial, baseada em critérios definidos pela biologia, pelo

ambiente, pela infra-estrutura, pela economia mas, também, pela educação e pela

cultura - pela educação popular. Outro passo importante diz respeito ao

desenvolvimento, por parte dos profissionais – este trabalho pontuou a prática médica –

de um comportamento ao mesmo tempo coletivo e individual, frente à população e à

família, aqui entendida pelo espectro dos seus vários problemas de vida e saúde, um

comportamento dialógico, centrado em políticas saudáveis e em estratégias que

problematizem a situação de saúde e definam ações que considerem a informação e a

educação para o autocuidado. A educação, enquanto uma reflexão coletiva e profunda

sobre o sentido de uma atenção básica que supere a sua organização puramente

assistencial e o seu caráter marcadamente curativo, que vem da prática de saúde

tradicional.

Esse comportamento deve ser assumido dentro de um modelo de atenção

que, para além da recuperação e da prevenção, esteja compromissado com a promoção

da saúde, com a integralidade das ações, com a discriminação positiva representada pela

prática da eqüidade e da descentralização do poder, através de uma soberana e

pedagógica participação popular, traduzida na incorporação dos usuários como atores

sociais envolvidos no processo e, portanto, com responsabilidades políticas e sanitárias

em relação ao que está ao seu redor.

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Apesar da constatação de ilhas de excelência nessa perspectiva, na Paraíba,

não foi esse o sentido que presidiu a maioria das equipes, acompanhadas direta ou

indiretamente. Mas isso não invalida a tese de que a prática médica pode se transformar

numa práxis médica.

A afirmação de que seguir em frente, continuar, em muitos momentos,

significou um ato de rebeldia, de resistência, de acreditar mesmo que é preciso

caminhar, continuar tecendo a esperança de que é possível mudar concepções,

reinventar práticas a partir de um diálogo aberto e sincero com o nosso outro, e pode ser

reiterada no ensinamento de Paulo Freire: “O sujeito que se abre ao mundo e aos outros

inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e

curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história” (FREIRE, 1996,

p. 136).

A propósito da idéia de diálogo, será necessário superar as muitas

frustrações dos usuários dos serviços de saúde devido aos posicionamentos inadequados

e incongruentes tanto dos profissionais de saúde quanto das gestões municipais.

Especificamente em relação aos primeiros, a experiência confirma aquilo já explicitado

nos documentos oficiais do próprio PSF e da atenção básica em saúde. Ou seja, que, [...] para lidar com a dinâmica da vida social das famílias assistidas e da própria comunidade, além de procedimentos tecnológicos específicos da área da saúde, a valorização dos diversos saberes e práticas contribui para uma abordagem mais integral e resolutiva (BRASIL. 2001).

Do ponto de vista técnico, é mister reconhecer que os cursos universitários

não formam profissionais com um perfil adequado ou que respondam às necessidades

da atenção primária e da equipe mínima da Saúde da Família. Continuam com um

modelo de formação que aliena os formandos, evitando que enxerguem os problemas da

população. Privilegiam o enfoque assistencial curativo centrado no hospital, na

especialização precoce e na alta tecnologia como um recurso diagnóstico ou terapêutico.

Com isso, deixam de lado uma série de questões que poderiam ser problematizadas

durante o processo de capacitação profissional, alargando a visão dos futuros

profissionais na direção dos condicionantes do processo saúde/doença.

Nada de contrário em relação à tecnologia. Esta será sempre bem vinda e

deve ser utilizada em todos os níveis de atenção. Mas não se pode esquecer de que seu

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uso abusivo247, como se tem comprovado na realidade brasileira e na internacional,

encarece cada vez mais o ato médico, tornando-o inacessível para a maioria da

população, especialmente a mais carente, que utiliza apenas o setor público que, como é

sabido, pelos mais variados motivos248, não disponibiliza essa tecnologia na proporção

das necessidades dos usuários dos serviços, forçando artificialmente que esses serviços

sejam consumidos na rede privada.

A grande expansão da Estratégia Saúde da Família tem proporcionado

importantes benefícios para parcelas significativas da população. Grosso modo, há

significativa extensão de cobertura para grandes contingentes populacionais,

especialmente os mais ameaçados, sob o ponto de vista sanitário, em função da

realidade econômico-social e educacional. Há uma tendência de aumento da

resolutividade da atenção à saúde, em função da diversidade de ações individuais e

coletivas. E mesmo que haja problemas na qualidade do preenchimento e da

alimentação do Sistema de Informação Hospitalar (SIH/SUS), no que tange às

internações e à morbidade hospitalar, é possível perceber que começa a mudar o perfil

desses eventos, especialmente onde os sistemas de informação em saúde (SIS) são

preenchidos de forma mais cuidadosa. A clientela tem demonstrado satisfação e impacto

positivo nos indicadores de saúde. Porém, isso não quer dizer que a implementação da

Estratégia esteja isenta de críticas, e que muitos desafios ainda tenham que ser

enfrentados e vencidos para que funcione na perspectiva da reversão do modelo

tradicional de assistência à saúde.

Para que se possa caracterizar um processo de trabalho e uma prática médica

sintonizados ou parametrizados pela Saúde da Família, ainda é necessário que a família

seja tomada, no seu espaço social, como núcleo básico da abordagem, evitando-se o

tratamento que é dado aos indivíduos como se fossem seres isolados. Igualmente, o

reconhecimento prático da Estratégia tem que se dar pela expressão de uma atenção que

envolva assistência integral, resolutiva, contínua e de boa qualidade e uma intervenção

247 O processo de globalização e a situação da nossa economia no concerto do neoliberalismo só aprofundam esse problema e trazem novas contradições e conflitos para o interior da prática médica, dado que as pressões se tornam-se, insuportáveis mesmo, no sentido do consumo tecnológico, muitas vezes, em detrimento da inteligência clínica e do próprio estatuto científico. 248 É importante arrolar as iniciativas “racionalizadoras” baseadas num raciocínio puramente econômico e financeiro, e não, no custo/benefício social. Por outro lado, são indisfarçáveis, até por razões históricas, o corte privatista e a promiscuidade de relações administrativas que permitem, ao arrepio da lei, que dirigentes e gestores do setor público sejam tirados, em muitas situações, do próprio setor privado, num claro conflito de interesses que só traz prejuízos para o setor público e benesses para o setor privado. Não podemos esquecer, também, o processo de corrupção, de fraudes e de desvio de verbas que fazem parte da história no setor e minam os recursos, já exíguos, que caracterizam os orçamentos reais do setor saúde.

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interdisciplinar e intersetorial que garanta à população proteção contra fatores de risco e

exposição de natureza biológica, econômica ou social. Isso exige democratização do

conhecimento sobre o processo saúde-doença, reconhecimento da população como

sujeito de direito à saúde e organização de serviços que estejam voltados para a sua

produção. Para isso, é pertinente a organização da comunidade, no sentido do efetivo

exercício do controle social, observando-se a humanização das práticas de saúde, cuja

avaliação poderá se dar pelo grau de interação e respeito ao humano e sua cultura, pela

criação de vínculos que plasmem compromissos e de co-responsabilidades entre

profissionais de saúde e comunidade e, ainda, pelo desenvolvimento de ações

intersetoriais através de parcerias internas e externas ao setor público.

A experiência vivida previamente à confecção deste trabalho, no

acompanhamento de ESF e na gestão das coisas da saúde, nas três esferas de governo,

tem demonstrado, na maioria dos casos, que os médicos e suas equipes simplesmente

cumprem de forma burocrática as normatizações da Estratégia Saúde da Família, sem

que isso signifique necessariamente maior aproximação e diálogo com a família.

Procedimentos são executados com os diversos integrantes da família, como se eles

fossem pessoas isoladas e não integrantes de um núcleo familiar que está constituído

por indivíduos em ciclos de vida distintos e com histórias de vida particulares, mesmo

no âmbito familiar.

A expansão quantitativa não tem gerado a necessária mudança de qualidade

das ações e da abordagem. Há, ainda, uma tendência, como assinala Vasconcelos

(1999), a se passar a denominar de Saúde da Família práticas tradicionais de abordagem

individual ou de grupos comunitários. Nessa circunstância, qualquer tipo de intervenção

da ESF é considerada de cunho familiar, quando, nem sempre, está devidamente

caracterizada como tal. É preciso também esclarecer um problema, abrindo, talvez, um

campo inteiro de pesquisa: a invasão de privacidade e a violação de garantias

individuais ou coletivas.

A Saúde da Família provoca uma intimidade sem precedentes com pessoas e

núcleos familiares e poderá, em certas circunstâncias, criar ou permitir que se criem

intervenções nefastas sobre a população e visões de mundo diferentes e diferenciadas,

favorecendo práticas de disciplinamento, de dominação ou de constrangimento para fins

outros, que não o da melhoria da saúde e da qualidade de vida dos abrangidos. A tarefa

da Saúde da Família é acolher, interagir, construir algo em comum, descobrir e

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descobrir-se na humanidade mais profunda da relação fraterna com os outros e com o

mundo.

Nesse particular, será necessário compreender o verdadeiro sentido da ação

de acolhimento. Acolher é encontrar formas de lidar com as diferenças. Mas não se

trata de simplesmente respeitar as diferenças visto que isso pode se transformar em

indiferença. Também não se trata de suportá-las, porquanto, não raras vezes, esse ato se

transforma em arrogância e preconceito. O contato e a lida com o diferente dão a

possibilidade de se aprender algo novo, é a possibilidade real de se expandirem mundos,

o que, mais que respeitar, tolerar, suportar, leva a valorizá-lo (SÃO PAULO, 2002).

Conseguido esse intento, a organização da atenção poderá ser assumida de

forma integral, colaborando para que a prática de um profissional se reconstrua na do

outro, transformando ambas no contexto em que está inserida, como almeja a teoria que

encerra a Estratégia Saúde da Família. Igualmente se faz necessário que as gestões

municipais compreendam e colaborem para que esse processo se dê da melhor maneira

possível. Isso assegurado, parece ser possível pensar num processo semelhante e

simultâneo em relação à população usuária, até então encarada apenas como objeto da

prática do Programa.

A atitude dialogal, que define a prática médica educativa e popular, provoca

uma mudança qualitativa na relação médico/paciente. Quando assumida, transforma o

ser profissional e, nesse compasso, gera conseqüências que vão do nível interpessoal, ao

comunitário, definindo uma nova sociabilidade interprofissional.

A reflexão que aqui se produziu esteve referenciada no conceito de práxis

representada na tensa relação entre estrutura e sujeito. A tradução dessa tensão na práxis

médica da atenção básica, promovida pela Estratégia Saúde da Família, representa um

grande salto de qualidade para a compreensão da prática do médico, sujeito importante

desse processo, e para a estrutura dos serviços de saúde, na medida em que novos

espaços são abertos para a transformação das relações interprofissionais e comunitárias,

contraídas por cada equipe interdisciplinar no seu território de atuação.

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ANEXO A – Saúde da Família: uma estratégia de organização dos serviços de saúde – Documento Preliminar – Março/1996

MINISTÉRIO DA SAÚDE

SECRETARIA DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE DEPARTAMENTO DE ASSISTÊNCIA E PROMOÇÃO À SAÚDE

COORDENAÇÃO DE SAÚDE DA COMUNIDADE

SAÚDE DA FAMÍLIA: UMA ESTRATÉGIA DE ORGANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE

DOCUMENTO PRELIMINAR MARÇO/96

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1- A crise do modelo de assistência à Saúde

A crise do setor Saúde não é uma condição particular do Brasil, mas uma situação que perpassa hoje sistemas de Saúde de todo o mundo. Essa crise pode ser compreendida a partir de vários elementos, sobretudo aqueles relativos à ineficiência do setor, traduzidos em insatisfação da população e desqualificação profissional. Mas, tomada na sua dimensão social, além da prestação de serviços, a crise se aprofunda e deixa marcas de iniqüidade em um setor que tem, como vocação o sentido de existir, a diminuição das desigualdades e a busca de melhoria de condições de vida.

Mesmo sendo constituída por causas comuns, afinal trata-se de uma crise mais ampla, as explicações precisam ser relacionadas com as condições sócio-históricas de cada país. No caso do Brasil, ela se relaciona diretamente com a definição do modelo de assistência à saúde inaugurado no início deste século. Mesmo com uma constituição relativamente recente, este modelo já se configura hoje bastante sedimentado: ele tem sua forma de atuação marcada pelo serviço de natureza hospitalar, focalizado nos atendimentos médicos e tem uma visão biologicista do processo saúde-doença, voltando-se prioritariamente para ações curativas. Completa este modelo a consideração dos problemas de saúde (mais propriamente dos problemas de doença) sob uma ótica individual ou mesmo subindividual, transformando o corpo em um objeto divisível, segmentado em partes cada vez menores, passíveis de intervenção também progressivamente mais especializadas e minudentes. A conseqüência disso é o abuso da especialização, o uso cada vez maior de procedimentos de alta densidade tecnológica e o correspondente encarecimento da função de prover saúde a toda a população.

A hegemonia de um modelo como esse não se deu no vazio social. Concorreram para esse processo forças relacionadas com o mercado, com a organização dos interesses da corporações envolvidas, com a ação da sociedade civil, entre outras. Por isso, compreender o modelo hoje em crise é exercitar o debate com todos esses setores, em busca de novos consensos, que respondam de forma mais adequada às necessidades de saúde da população brasileira.

Em países como o Brasil, estes elementos que compõem o modelo de assistência à saúde tornam-se, eles mesmos, instrumentos de ineficácia, de exclusão e de iniqüidade. Sentida hoje pela população usuária dos serviços, profissionais de saúde, instituições prestadoras e governo como uma unanimidade, a crise do setor, ancorada no modelo inadequado de atenção à saúde, se configura como um imperativo para mudanças.

Mesmo essa percepção comum de crise abriga no seu interior as divergências que fazem com que seja esse, e não outro, o modelo assistencial ainda hegemônico no país. As tentativas de alteração também têm sua história, seus campos de atuação, desde as definições legais até a realidade do dia-a-dia dos serviços. 2- Caminhos para a superação da crise no Brasil

Na história recente das reforma setorial, a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, é um marco que traz de forma mais sistematizada as diretrizes e o ideário do novo sistema de saúde: um sistema único, embaçado nos princípios de universalidade, integralidade, eqüidade, descentralização, hierarquização e participação popular.

Mais fundamentalmente, ampliava-se o conceito de saúde e se revestia este conceito de relevância pública.

Estes princípios foram depois reafirmados na Constituição Federal de 1988 e nas leis 8.080 e 8.142. Estava dado o substrato de legitimidade e legalidade do modelo, mas não estavam estabelecidas na prática as condições para as transformações necessárias.

Duas ordens de fatores contribuem para essa situação paradoxal, ou seja, para o fato de se possuir uma legislação considerada avançada e caudatária de um processo de construção social que levou muitos anos para ser efetivado, ao lado de um sistemático descumprimento das normas dela emanadas. Em primeiro lugar, o fato de continuar existindo um significativo grupo de forças que não quer modificações no modelo assistencial, uma vez que, apesar dos efeitos danosos visíveis, este modelo lhes atende em seus interesses políticos, ideológicos e de mercado. Soma-se a isso, como uma segunda causa do

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descompasso entre a legislação e a realidade, que é a grande inércia que acompanha uma proposta que exige uma completa reorganização das práticas e da própria racionalidade de todo o sistema de saúde.

Uma primeira transformação inerente ao novo modelo assistencial que se busca implementar, está na noção de responsabilidade e autoridade sanitária: a saúde, em toda a sua dimensão ampliada, passa a ter um comando definido. Isso significa tanto a organização política do setor, como a responsabilização por formas de atenção à saúde e mesmo de grupos populacionais, ainda não cobertos de forma adequada pelos serviços de saúde. O setor, ao mesmo tempo em que define internamente do ponto de vista político e administrativo, aponta para o alargamento de seu campo de atuação e, conseqüentemente, para novas atribuições que passa a assumir.

A segunda grande mudança que este novo entendimento traz para o setor saúde é o rompimento com as práticas que fundamentavam as antigas organizações, quais sejam, o gigantismo e a centralização. Em vez de megaestruturas com planejamento e um suposto controle centralizados, o novo modelo elege o espaço estratégico do domicílio/comunidade. Com isso são valorizadas várias dimensões que se perdiam na centralização, como os horizontes históricos e geográficos dos diversos grupos, a cultura e tudo aquilo que torna significativa uma relação social.

Na relação direta com o contexto sanitário, esta re-visão do espaço pode significar uma apropriação pelos vários atores que nele interagem - profissionais de saúde, dirigentes, lideranças-, dos verdadeiros condicionantes e determinantes do processo saúde-doença. A saúde pode ser concebida, nesta visão, como um retrato das condições de vida e de trabalho das diversas populações. 3- Programa de Saúde da Família (PSF): uma medida operacional para a construção de um novo modelo

Em primeiro lugar, é preciso distinguir o PSF dos antigos programas tradicionais do setor saúde. Estes, quase sempre se constituíram em ações paralelas, muitas vezes competindo com a lógica mais geral do sistema de saúde. No caso do PSF, por suas características estratégicas de reestruturação do modelo assistencial dominante, ele é parte integrante do Sistema de Saúde Local. Ou seja, ele se constitui como uma unidade prestadora de serviços atuando numa lógica de transformação das práticas de saúde.

Por isso a compreensão do PSF só é possível em contraposição ao modelo atual, o qual busca transformar e superar, através da mudança do objeto de atenção, da forma de atuação e da organização geral dos serviços. Este quadro configura o que se chama de um novo modelo estruturante, porque organiza sua prática em novas bases e critérios.

A família passa a ser o objeto de atuação e é entendida a partir do espaço em que vive, chamado de espaço/domicílio. É importante salientar que o caráter de objeto de atuação não significa uma reificação da família, pelo contrário, sendo o foco de atuação da política de saúde, a família traz a dimensão mais presente do contexto social e histórico. O indivíduo, no contexto de sua integração à família e à comunidade pode, desta forma, assumir a posição efetiva de sujeito do processo. Mais do que uma delimitação de lugares geográficos, este espaço deve ser entendido como espaço-âncora, ou seja, onde se constroem as relações intra e extra-familiares, onde se dá a luta pela sobrevivência, pela reprodução e pela melhoria das condições de vida. Em resumo, um espaço vital.

Este espaço comporta também , de forma destacada, os fatos relativos ao processo de saúde e doença, como os conflitos, a renda, o saneamento, as instalações físicas e outras. Mas ele não se fecha sobre si mesmo, pelo contrário, esse espaço se expande, ampliando-se sobre novos cenários. Como círculos concêntricos, atinge âmbitos cada vez mais ampliados, e torna a compreensão do processo de saúde-doença também alargada pela entrada de novos fatores determinantes, como o acesso a serviços, o sistema viário, o lazer e outros.

Além desses elementos concretos, o espaço/domicílio se abre às relações sociais, que acontecem nos clubes, escolas, igrejas e bares, compondo o tecido de sociabilidade que repercute na vida das pessoas como comportamento de tensão, felicidade, expectativa, etc. Estes são também elementos que compõem o quadro, cada vez mais complexo, do que se chama de processo saúde/doença.

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Um espaço que se abre, se desdobra, se complexifica. Uma compreensão do processo saúde/doença que se amplia e permite intervenções de maior significação social.

A ação sobre esse espaço é um desafio a um olhar técnico e político mais ousado, que abandona a área delimitada pelos muros dos serviços de saúde, enraizando-se na vida social a partir do espaço/domicílio.

A exigência de um novo modelo se faz também pela necessidade de impacto sobre a saúde da população. O PSF tem este objetivo e elege como estratégia, além da já referida ampliação de horizonte de compreensão dos vários elementos relacionados ao processo saúde/doença, o aprofundamento dos laços de compromisso e co-responsabilidade entre instituições, profissionais de saúde e população.

O modelo do PSF se direciona para a promoção da eqüidade, ou seja, da diminuição das injustiças. Por isso, através de uma operação de discriminação positiva, são eleitos públicos e formas de atuação. Mas é importante destacar que não se fere, neste processo, a idéia da integralidade, preservada na idéia de racionalização de recursos, mas sem abrir mão, quando necessário e justificável, da utilização de tecnologia de última geração.

Não se constituindo, portanto, em um modelo simplificado, de pobre para pobre, o PSF também não recorta a população em fatias (mulher e criança), nem a atenção em níveis (primário). Integralidade significa também articulação, integração e planejamento unificado de atuação intersetorial. Estas idéias subsidiam o modelo do PSF.

Como se vê, as diferenças entre o modelo atual e o preconizado pelo PSF são marcantes. O quadro a seguir compara os dois modelos, a partir de alguns aspectos centrais. A comparação deixa claro que a mudança de um modelo para outro significa, na maioria das vezes, um processo de transformação cultural das práticas sanitárias, o que releva o caráter de construção que deve estar presente nessa transição.

A análise do atual modelo assistencial deixa claro que, apesar de sua eficiência em responder alguns aspectos relativos à área curativa individual, existem limites estruturais e sociais na sua forma de intervenção. Trata-se de um modelo que aponta para um incremento continuado de gastos relativos à incorporação de tecnologias cada vez mais caras, da concentração de atendimentos no aparelho também mais oneroso, o hospital, e, principalmente, o baixo impacto dessas ações na melhoria das condições de vida da população como um todo. Os indicadores epidemiológicos e econômicos se juntam no diagnóstico de esgotamento do modelo. A eles se somam outros indicativos sensíveis de insatisfação do usuário, penalizado por atendimentos cada vez mais desumanos e impessoais.

Desta forma, a proposta de modelo de atenção voltado para a família pressupõe:

• o reconhecimento da saúde como um direito de cidadania e que expressa a qualidade de vida;

• a eleição da família e de seu espaço social como núcleo básico de abordagem no atendimento à saúde;

• a democratização do conhecimento do processo saúde/doença, da organização dos serviços e da produção da saúde;

• a intervenção sobre os fatores de risco aos quais a população está exposta;

Modelo Atual Saúde da Família Centra a atenção na doença Centra a atenção na saúde Atua exclusivamente sobre a demanda espontânea

Responde à demanda espontânea de forma contínua e racionalizada

Ênfase na medicina curativa Ênfase na integralidade da assistência Trata o indivíduo como objeto de ação Trata o indivíduo como sujeito integrado à

família, ao domicílio à comunidade Baixa capacidade de resolver os problemas de saúde

Otimização da capacidade de resolver os problemas de saúde

Saber e poder centrado no médico Saber e poder centrado na equipe Geralmente limitada à ação setorial Promove a ação intersetorial Desvinculação dos profissionais e serviços com a comunidade

Vinculação dos profissionais e serviços com a comunidade

Relação custo-benefício desvantajosa Relação custo-benefício otimizada

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• a prestação de atenção integral, contínua e de boa qualidade nas especialidades básicas de saúde à população adstrita, no domicílio, ambulatório e hospital;

• a humanização das práticas de saúde e a busca da satisfação do usuário através do estreito relacionamento da equipe de saúde com a comunidade;

• o estímulo à organização da comunidade para o efetivo exercício do controle social; • o estabelecimento de parcerias buscando desenvolver ações intersetoriais. 4- Diretrizes operacionais do PSF 4.1- Adscrição da clientela

A equipe de saúde deve se responsabilizar por uma área geográfica onde habitam cerca de 600 a 1.000 famílias.

Este critério geral deve ser flexibilizado de modo a atender os fatores regionais, a diversidade sócio-política, as características econômicas, a densidade populacional , a acessibilidade aos serviços e outros aspectos relevantes, definidos localmente.

A definição do universo a ser atendido, a partir destes critérios, permite uma programação mais realista em termos quantitativos e de qualidade e especificidade da atenção à saúde. É o serviço que deve se adequar às necessidades da clientela, e não o contrário. 4.2- Reorganização das práticas de trabalho 4.2.1- Planejamento local

Para planejar localmente é preciso considerar tanto quem planeja, como para que e para quem se planeja. Em primeiro lugar, é preciso se conhecer as necessidades da população, identificadas a partir da análise da situação de saúde local e de seus determinantes.

O pressuposto do PSF é o de que quem planeja deve estar imerso na realidade sobre a qual se planeja. Além disso, o processo de planejamento deve ser pensado como um todo, sem momentos isolados dos demais. O planejamento deve estar voltado para os problemas de saúde de um determinado grupo populacional bem especificado e ser realizado de forma contínua e dinâmica.

Esta forma de planejamento se contrapõe ao planejamento centralizado, habitual na administração clássica, por várias razões, como: • a abertura à democratização; • a concentração em problemas; • o dinamismo; • e por aproximar os objetivos do planejamento da vida das pessoas. 4.2.2- Abordagem multiprofissional

O atendimento no PSF deve sempre ser feito por uma equipe multiprofissional. A constituição da equipe deve ser planejada levando-se em consideração alguns princípios básicos: • o enfrentamento dos determinantes do processo de saúde doença; • a integralidade da atenção; • a ênfase na prevenção, sem descuidar do atendimento curativo; • o atendimento nas clínicas básicas de pediatria, ginecologia-obstetrícia, clínica médica e

clínica cirúrgica; • a parceria com a comunidade; • as possibilidades locais.

Propõe-se que a equipe básica seja composta por um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde. Os integrantes da equipe devem residir no município onde atuam, trabalhando em período integral (oito horas

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diárias). O agente comunitário de saúde deve residir na comunidade sob a sua responsabilidade.

Além da capacidade técnica profissional específica de sua área de atuação, os participantes das equipes do PSF precisam estar identificados com uma proposta de trabalho que, muitas vezes, exige criatividade, iniciativa e vocação para trabalhos comunitários e em grupo.

Os profissionais da equipe devem ser objeto de uma política salarial diferenciada, compatível com o as especificidades do PSF e com o digno exercício profissional. 4.2.3- Estímulo à ação intersetorial

A busca de uma mobilização mais integrada dos vários setores da administração pública pode ser um elemento importante no trabalho das equipes do Saúde da Família. Como uma conseqüência de sua análise ampliada do processo de saúde/doença, os profissionais do PSF deverão atuar como catalisadores de várias políticas setoriais, buscando uma ação sinérgica. Saneamento, educação, habitação e segurança são algumas das áreas que devem estar integradas às ações do PSF, sempre que possível.

A parceria e a ação tecnicamente integrada com os diversos órgãos do poder público que atuam no âmbito das políticas sociais é um objetivo a ser perseguido. Não se resolve a questão social apenas pelo esforço setorial isolado da saúde. Tampouco se interfere na própria situação sanitária, sem que haja a interligação com os vários responsáveis pelas políticas sociais. 4.2.4- Complementaridade

A Unidade de Saúde da Família deve ser a porta de entrada do sistema local de saúde. A mudança no modelo tradicional exige a integração entre os vários níveis de atenção e, neste sentido, o PSF é um dos componentes de uma política de complementaridade, não devendo se isolar do sistema local.

Como um projeto estruturante, o Saúde da Família deve provocar internamente ao próprio sistema, uma transformação no sentido da reorganização das ações e serviços de saúde. Esta mudança implica na colaboração entre as áreas de promoção e assistência à saúde, rompendo com a dicotomia entre as ações de saúde pública e a atenção médica individual.

O papel da Unidade de Saúde da Família é fundamental. Estruturada a partir das necessidades identificadas no planejamento local, a unidade é o núcleo de suporte do trabalho das equipes, além de responder pela necessidade específica de serviços, próprias do sistema local de saúde. Mesmo com uma configuração diferenciada dos centros e postos de saúde habituais, a unidade é parte integrante do sistema local e deve estar integrada a ele. A atuação do PSF na comunidade, com atividades e atendimentos extra-muros, não desvaloriza o papel da unidade, mas dá a ela um novo papel. Este papel é, inclusive, mais ampliado, já que responde às demandas colocadas pela realidade sanitária, além de incorporar as novas atribuições inauguradas pela ação dos profissionais do PSF. 4.2.5- Educação continuada

A equipe do PSF precisa ser acompanhada de um processo de formação e informação que seja contínuo, atendendo a necessidade que o dinamismo dos problemas traz até a equipe. Além de possibilitar o aperfeiçoamento profissional, a educação continuada é um mecanismo importante no desenvolvimento da própria concepção de equipe, que fundamenta todo o trabalho do Saúde da Família.

Da mesma forma que o planejamento local das ações de saúde responde ao princípio de participação ampliada, o planejamento das ações educativas deve ser baseado nessa percepção. Ou seja, adequação às peculiaridades locais e regionais, utilização dos recursos técnicos disponíveis e integração com as universidades e instituições de ensino e capacitação de recursos humanos.

A formação em serviço deve ser priorizada, uma vez que ela permite a melhor adequação entre os requisitos da formação e as necessidades de saúde da população atendida pela equipe. A educação permanente deve se iniciar desde o treinamento introdutório da equipe, e atuar através de todos os meios pedagógicos e comunicacionais disponíveis, de

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acordo com as realidades de cada contexto. A educação à distância deve ser incluída entre estas alternativas. 4.3- Controle Social

O controle social do sistema de saúde é um princípio e uma garantia constitucional, regulamentada na Lei Orgânica de Saúde.

As ações desenvolvidas pelo Saúde da Família devem, portanto, seguir estritamente as diretrizes estabelecidas pela legislação, no que se refere à participação popular. Mas muito mais do que apenas seguí-las, o PSF tem uma profunda identidade de propósitos com a defesa da participação popular em saúde, no que se refere a aproximação das ações de saúde da necessidade e da vigilância da população.

A lei 8.142 definiu alguns fóruns próprios para o exercício do controle social, as conferências e os conselhos de saúde, a serem efetivados nas três esferas de governo. Mas a participação da população não se restringe apenas a eles. Através de outras instâncias formais (como Câmaras de vereadores e de deputados) e informais, a população deve buscar exercer o seu direito de participar da definição, execução, acompanhamento e fiscalização das políticas públicas.

O Saúde da Família, por suas características de incentivo à intersetorialidade tem no controle social um elemento importante de sua ação social. 5- Etapas de implantação do PSF

A implantação do PSF é operacionalizada no município, com a co-participação dos níveis federal e estadual. O processo consta de várias etapas, não necessariamente seqüenciais, ou seja, podem ser realizadas de forma simultânea, de acordo com as diferentes realidades dos sistemas municipais de saúde. Estas etapas serão descritas separadamente a seguir, para uma melhor compreensão dos vários passos que envolvem a implantação do Saúde da Família nos municípios. 5.1- Sensibilização/ Divulgação

A primeira etapa compreende a “venda da idéia”. Ou seja, a preocupação em ser o mais claro possível em todos os instrumentos de divulgação da verdadeira proposta do PSF. Este trabalho de divulgação envolve a clareza na definição do público a ser atingido e da mensagem a ser veiculada. Além disso, é preciso programar a divulgação/sensibilização em abrangência local, regional e estadual, já que se trata de constituir, desde este momento, as alianças e as articulações que serão necessárias para o desenvolvimento da proposta.

Alguns aspectos podem ser salientados nesse trabalho de divulgação: • a ênfase na missão do PSF enquanto uma proposta de reorganização do modelo

assistencial, e não como mais uma programa imposto pelos níveis centrais; • a utilização de diferentes canais de informação e mobilização, como associações de

prefeitos, de secretários municipais e estaduais de saúde, entidades da sociedade civil, escolas, sindicatos, associações comunitárias, etc. Ou seja, identificação de possíveis aliados tanto para a implantação, quanto para a operacionalização do PSF.

• envolvimento dos aparelhos formadores. O Saúde da Família significa a criação de um novo mercado de trabalho, que precisa se afinar com as oportunidades de formação e, quando necessário, com a reordenação das escolas, para o atendimento desse mercado potencial.

• uso dos meios de comunicação de massa, atento as características próprias desses canais. Comunicação através da mídia é um processo caro e que precisa ser bem planejado e realizado. Definida sua utilização, a mensagem deve ser inequívoca, objetiva e centrada nas propostas basilares do PSF. Atentar para o uso de espaços editoriais, através de informações de interesse público, com o uso de matérias jornalísticas e entrevistas aos meios de comunicação de abrangência à área de implantação do PSF.

• ênfase na divulgação junto aos profissionais do sistema local de saúde. É preciso estabelecer estratégias de envolvimento e esclarecimento junto a esses profissionais, com

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relação a complementaridade da proposta e de sua inserção nos princípios do Sistema Único de Saúde. Os trabalhadores da saúde é um público diferenciado, com informações e avaliações técnicas que precisam ser consideradas ao se programar a divulgação.

5.2- Adesão Município

O município interessado elabora projeto para implantação da(s) equipe(s) nas unidades básicas de saúde, observando sempre os elementos fundamentais do modelo de Saúde da Família e submete-o à apreciação do Conselho Municipal de Saúde para aprovação.

Após a aprovação, pelo CMS, o município anexa ao projeto a documentação exigida e o encaminha para a Secretaria de Estado da Saúde, que confere a documentação, analisa o projeto e emite parecer em reunião da Comissão Intergestores Bipartite Estadual (CIBE).

Considerado apto nessas fases, o município faz o cadastramento das Unidades de Saúde da Família no Sistema de Informações Ambulatórias- SIA-SUS. Estado

A Secretaria de Estado da Saúde submete à apreciação da CIBE o seu projeto de Saúde da Família, para análise e estudo de viabilidade na programação do teto financeiro do Estado.

Cabe à Secretaria de Estado da Saúde assumir a co-responsabilidade com a implantação do PSF, através de assessorias às atividades de planejamento, capacitação, educação continuada, acompanhamento e avaliação das unidades de saúde da família. 5.3- Recrutamento, seleção e contratação de recursos humanos

O município deve planejar, a partir da definição da composição de suas equipes, e executar o processo de recrutamento e seleção dos profissionais, contando com a assessoria da Secretaria de Estado e do Ministério da Saúde. Como todo processo seletivo, deve ser dada atenção a identificação do perfil profissional, não apenas em termos de exigências legais, mas de proximidade com o campo de atuação específico do PSF. Os critérios para identificação dessas habilidades devem ser, na medida do possível justos, comunicáveis e compreensíveis pelos candidatos.

Existem várias formas de seleção que podem ser utilizadas, isoladamente ou associadas, entre elas: • prova escrita ou de múltipla escolha, contemplando o aspecto de assistência integral à

família (do recém-nascido ao idoso), com enfoque epidemiológico; • prova prática de atendimento integral à saúde familiar e comunitária; • prova teórico-prática de descrição do atendimento a uma situação simulada; • entrevista, com caráter classificatório, atendendo a necessidade de selecionar profissionais

com perfil adequado; • análise de currículo, sobretudo referente as atividades afins às propostas pelo PSF, também

com o intuito de avaliar experiência e perfil para a função.

Especial atenção deve ser dada a composição das bancas, que devem estar afinadas com os princípios éticos da função de selecionar profissionais e para os objetivos e concepção que animam o PSF.

A situação local irá definir o melhor critério de seleção, que seja ao mesmo tempo viável e competente. A assessoria externa (Secretaria e Ministério da Saúde) pode ajudar a dirimir conflitos de interesses locais. Alternativas para contratação de equipes com processos diferenciados devem ser considerados, levando-se em conta a peculiaridade do trabalho das equipes e a características locais.

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5.4 -Treinamento introdutório

O período introdutório deve ser programado para que ocorra a integração das equipes. Neste programa devem ser trabalhados os aspectos gerais das atividades que serão desenvolvidas pelas equipes, em seus aspectos assistências, gerências e administrativos. É um primeiro contato com o trabalho. É também uma fase importante de sensibilização da equipe.

O conteúdo do treinamento introdutório deve estar adaptado às necessidades locais, tanto dos serviços quanto da característica de formação dos profissionais de uma determinada região. O grupo responsável pela organização do treinamento introdutório deve ter a capacidade de compatibilizar as necessidades locais, as características dos profissionais e o perfil epidemiológico da região.

O conhecimento prévio da realidade sobre a qual irão atuar os profissionais é imprescindível na definição de métodos e conteúdos destes treinamentos. É importante estar consciente do caráter introdutório deste programa, sem a preocupação de esgotamento de todas as carências já na primeira capacitação. A metodologia de treinamento em serviço deve ser considerada a melhor alternativa. Estima-se que um período de duas semanas seria suficiente para este trabalho.

Outro aspecto a ser considerado é a inauguração do processo de educação continuada que o treinamento introdutório traz, já que será o primeiro momento de sondagem das necessidades de informação e formação da equipe, identificados de forma mais sistemática. 5.5- Diagnóstico da saúde da comunidade

Para planejar e organizar as ações de saúde, a equipe deve proceder o cadastramento das famílias da área de abrangência, levantando indicadores epidemiológicos e sócio-econômicos. Deverão ser utilizadas diversas fontes de informação, sobretudo as oficiais, como o IBGE, cartórios e secretarias de saúde, que permitem melhor acompanhamento e controle. Fontes qualitativas não devem ser desprezadas. 5.6- Referência e contra-referência

O atendimento no PSF, seguindo o princípio da integralidade vai, em situações específicas, indicar o encaminhamento do paciente para as referências ambulatoriais e hospitalares estabelecidas no município. Estes encaminhamentos não se constituem numa exceção, mas em uma continuidade previsível e que deve ser seguida também com critérios bem conhecidos por toda a equipe do PSF e das outras áreas do sistema de saúde.

Existem algumas modalidades de atendimentos desta natureza: consultas especializadas

A equipe encaminha e responsabiliza-se pelo agendamento na rede do SUS, registrando estas providências nas fichas de referência e contra-referência utilizadas no sistema local. serviços de apoio diagnóstico e terapêutico

Os pacientes são também agendados. A equipe deve articular-se com estes serviços no sentido de viabilizar o retorno rápido dos resultados de exames à unidade de saúde. internação hospitalar

Os pacientes que necessitam de internação são encaminhados aos hospitais de referência da rede do SUS. A equipe deve acompanhar a evolução dos casos internados de sua área de abrangência.

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6- Atividades da equipe Visita domiciliar

Tem como finalidade monitorar a situação de saúde das famílias. A equipe deve realizar visitas programadas segundo critérios epidemiológicos e quando solicitadas. Apesar de ser um modelo pró-ativo, o Saúde da Família se adequa também as solicitações de demandas espontâneas ou provocadas pela própria convivência com as equipes. Internação domiciliar

Não se trata de uma substituição da internação hospitalar tradicional. Deve ser

utilizada sempre no intuito de humanizar e garantir maior qualidade e conforto ao paciente. Por isso só deve ser realizada quando as condições clínicas do paciente permitir. A realização dos cuidados domésticos também deve ser considerada na indicação desta modalidade de internação. A hospitalização deve ser feita sempre que necessária, com o acompanhamento por parte da equipe. Participação em grupos comunitários

A equipe deve estimular e participar de reuniões de grupos, discutindo os temas relativos ao controle social e ao diagnóstico e alternativas para a resolução dos problemas identificados pelas comunidades. 7- Característica da unidade Atendimento na unidade

Deve ser prestado tanto à demanda espontânea como à programada. Informação

A organização do sistema de informação deve permitir: tomada de decisões, alimentada pelo planejamento, acompanhamento e avaliação das ações e serviços;

a democratização da gestão, definição de prioridades e controle das ações de saúde.

O PSF possui alguns instrumentos de informação próprios, que se somam às demais fontes de informação existentes, melhorando o conhecimento da situação de saúde e do impacto das ações desenvolvidas. Entre eles: cadastro familiar; cartão de identificação; cartão da criança; cartão da gestante; prontuário familiar; fichas de registro de atendimentos. Planejamento

A equipe deve elaborar o planejamento e a programação das atividades por ela desempenhadas, com a participação da população da área de abrangência, em consonância com as diretrizes estabelecidas pela Secretaria Municipal de Saúde. Acompanhamento

O monitoramento do trabalho da equipe deve ser feito de forma continuada pela

Secretaria Municipal de Saúde. Periodicamente a Secretaria de Estado da Saúde deve desenvolver ações junto aos municípios para aprimoramento do trabalho das equipes de Saúde da Família. Trata-se de uma função própria do nível estadual, em seu papel de assessoramento e gestão de sistemas de abrangência supra-municipal.

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Avaliação

A avaliação deve possuir instrumentos e sensibilidade para aferir: alterações efetivas do modelo assistencial; satisfação do usuário; satisfação dos profissionais; qualidade do atendimento; desempenho da equipe; impacto nos indicadores de Saúde.

A avaliação, assim como todas as etapas do PSF, deve considerar a realidade e

as necessidades locais, a participação popular e o caráter dinâmico e perfectível da proposta. A avaliação traz elementos importantes para a definição de programas de educação continuada, aprimoramento gerencial e aplicação de recursos, entre outros.

O resultado das avaliações não deve ser considerado como um dado exclusivamente técnico, mas sim como uma informação de interesse de todos os profissionais e mesmo da população. Por isso, devem ser desenvolvidas formas de se ampliar a divulgação e discussão dos dados obtidos no processo de avaliação. 8- Financiamento:

Sendo redefinido pela Norma Operacional Básica / 96

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ANEXO B – Portaria n.º 648, de 28 de março de 2006

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

IMPRENSA NACIONAL – SEÇÃO 1

Edição Número 61 de 29/03/2006 Ministério da Saúde - Gabinete do Ministro

PORTARIA No 648, DE 28 DE MARÇO DE 2006

Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS).

O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso de suas atribuições, e Considerando a necessidade de revisar e adequar as normas nacionais ao atual momento do desenvolvimento da atenção básica no Brasil; Considerando a expansão do Programa Saúde da Família (PSF) que se consolidou como a estratégia prioritária para reorganização da atenção básica no Brasil; Considerando a transformação do PSF em uma estratégia de abrangência nacional que demonstra necessidade de adequação de suas normas, em virtude da experiência acumulada nos diversos estados e municípios brasileiros; Considerando os princípios e as diretrizes propostos nos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão, entre as esferas de governo na consolidação do SUS, que inclui a desfragmentação do financiamento da Atenção Básica; Considerando a diretriz do Governo Federal de executar a gestão pública por resultados mensuráveis; e Considerando a pactuação na Reunião da Comissão Intergestores Tripartite do dia 23 de março de 2006, resolve: Art. 1º Aprovar a Política Nacional de Atenção Básica, com vistas à revisão da regulamentação de implantação e operacionalização vigentes, nos termos constantes do Anexo a esta Portaria. Parágrafo único. A Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde (SAS/MS) publicará manuais e guias com detalhamento operacional e orientações específicas desta Política. Art. 2º Definir que os recursos orçamentários de que trata a presente Portaria corram por conta do orçamento do Ministério da Saúde, devendo onerar os seguintes Programas de Trabalho: I - 10.301.1214.0589 - Incentivo Financeiro a Municípios Habilitados à Parte Variável do Piso de Atenção Básica; II - 10.301.1214.8577 Atendimento Assistencial Básico nos Municípios Brasileiros; e III 10.301.1214.8581 Estruturação da Rede de Serviços de Atenção Básica de Saúde. Art. 3º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

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Art. 4º Ficando revogadas as Portarias nº 1.882/GM, de 18 de dezembro de 1997, publicada no Diário Oficial da União nº 247, de 22 de dezembro de 1997, Seção 1, página 10, nº 1.884/GM, de 18 de dezembro de 1997, publicada no Diário Oficial da União nº 247, de 22 de dezembro de 1997, Seção 1, página 11, nº 1.885/GM, de 18 de dezembro de 1997, publicada no Diário Oficial da União, nº 247, de 22 de dezembro de 1997, Seção 1, página 11, nº 1.886/GM, de 18 de dezembro de 1997, publicada no Diário Oficial da União nº 247, de 22 de dezembro de 1997, Seção 1, página 11, nº 59/GM, de 16 de janeiro de 1998, publicada no Diário Oficial da União, nº 14-E, de 21 de janeiro de 1998, Seção 1, página 2, nº 157/GM, de 19 de fevereiro de 1998, publicada no Diário Oficial da União nº 58, de 26 de março de 1998, Seção 1, página 104, nº 2.101/GM, de 27 de fevereiro de 1998, publicada no Diário Oficial da União nº 42, de 4 de março de 1998, Seção 1, página 70, nº 3.476/GM, de 20 de agosto de 1998, publicada no Diário Oficial da União nº 160, de 21 de agosto de 1998, Seção 1, página 55, nº 3.925/GM, de 13 de novembro de 1998, publicada no Diário Oficial da União nº 22-E, 2 de fevereiro de 1999, Seção 1, página 23, nº 223/GM, de 24 de março de 1999, publicada no Diário Oficial da União nº 57, de 25 de março de 1999, Seção 1, página 15, nº 1.348/GM, de 18 de novembro de 1999, publicada no Diário Oficial da União nº 221, de 19 de novembro de 1999, Seção 1, página 29, nº 1.013/GM, de 8 de setembro de 2000, publicada no Diário Oficial da União nº 175-E, de 11 de setembro de 2000, Seção 1, página 33, nº 267/GM, de 6 de março de 2001, publicada no Diário Oficial da União nº 46, de 7 de março de 2001, Seção 1, página 67, nº 1.502/GM, de 22 de agosto de 2002, publicada no Diário Oficial da União nº 163, de 23 de agosto de 2002, Seção 1, página 39, nº 396/GM, de 4 de abril de 2003, publicada no Diário Oficial da União nº 104, de 2 de junho de 2003, Seção 1, página 21, nº 673/GM, de 3 de junho de 2003, publicada no Diário Oficial da União nº 106, de 4 de junho de 2003, Seção 1, página 44, nº 674/GM, de 3 de junho de 2003, publicada no Diário Oficial da União nº 106, de 4 de junho de 2003, Seção 1, página 44, nº 675/GM, de 3 de junho de 2003, publicada no Diário Oficial da União nº 106, de 4 de junho de 2003, Seção 1, página 45, nº 2.081/GM, de 31 de outubro de 2003, publicada no Diário Oficial da União nº 214, de 4 de novembro de 2003, Seção 1, página 46, nº 74/GM, de 20 de janeiro de 2004, publicada no Diário Oficial da União nº 15, de 23 de janeiro de 2004, Seção 1, página 55, nº 1.432/GM, de 14 de julho de 2004, publicada no Diário Oficial da União nº 157, de 16 de agosto de 2004, Seção 1, página 35, nº 1.434/GM, de 14 de julho de 2004, publicada no Diário Oficial da União nº 135, de 15 de julho de 2004, Seção 1, página 36, nº 2.023/GM, de 23 de setembro de 2004, publicada no Diário Oficial da União nº 185, de 24 de setembro de 2004, Seção 1, página 44, nº 2.024/GM, de 23 de setembro de 2004, publicada no Diário Oficial da União nº 185, de 24 de setembro de 2004, Seção 1, página 44, nº 2.025/GM, de 23 de setembro de 2004, publicada no Diário Oficial da União nº 185, de 24 de setembro de 2004, Seção 1, página 45, nº 619/GM, de 25 de abril de 2005, publicada no Diário Oficial da União nº 78, de 26 de abril de 2005, Seção 1, página 56, nº 873/GM, de 8 de junho de 2005. publicada no Diário Oficial da União nº 110, de 10 de junho de 2005, Seção 1, página 74 e nº 82/SAS, de 7 de julho de 1998, publicada no Diário Oficial da União nº 128, de 8 de julho de 1998, Seção 1, página 62.

SARAIVA FELIPE

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ANEXO

POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO BÁSICA

CAPÍTULO I

Da Atenção Básica 1 - DOS PRINCÍPIOS GERAIS A Atenção Básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de saúde de maior freqüência e relevância em seu território. É o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde. Orienta-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social. A Atenção Básica considera o sujeito em sua singularidade, na complexidade, na integralidade e na inserção sócio-cultural e busca a promoção de sua saúde, a prevenção e tratamento de doenças e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo saudável. A Atenção Básica tem a Saúde da Família como estratégia prioritária para sua organização de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde. A Atenção Básica tem como fundamentos: I - possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade e resolutivos, caracterizados como a porta de entrada preferencial do sistema de saúde, com território adscrito de forma a permitir o planejamento e a programação descentralizada, e em consonância com o princípio da eqüidade; II efetivar a integralidade em seus vários aspectos, a saber: integração de ações programáticas e demanda espontânea; articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde, tratamento e reabilitação, trabalho de forma interdisciplinar e em equipe, e coordenação do cuidado na rede de serviços; III - desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a população adscrita garantindo a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado; IV - valorizar os profissionais de saúde por meio do estímulo e do acompanhamento constante de sua formação e capacitação; V - realizar avaliação e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados, como parte do processo de planejamento e programação; e VI - estimular a participação popular e o controle social. Visando à operacionalização da Atenção Básica, definem-se como áreas estratégicas para atuação em todo o território nacional a eliminação da hanseníase, o controle da tuberculose, o controle da hipertensão arterial, o controle do diabetes mellitus, a eliminação da desnutrição infantil, a saúde da criança, a saúde da mulher, a saúde do idoso, a saúde bucal e a promoção da saúde. Outras áreas serão definidas regionalmente de acordo com prioridades e pactuações definidas nas CIBs.

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Para o processo de pactuação da atenção básica será realizado e firmado o Pacto de Indicadores da Atenção Básica, tomando como objeto as metas anuais a serem alcançadas em relação a indicadores de saúde acordados. O processo de pactuação da Atenção Básica seguirá regulamentação específica do Pacto de Gestão. Os gestores poderão acordar nas CIBs indicadores estaduais de Atenção Básica a serem acompanhados em seus respectivos territórios. 2 - DAS RESPONSABILIDADES DE CADA ESFERA DE GOVERNO Os municípios e o Distrito Federal, como gestores dos sistemas locais de saúde, são responsáveis pelo cumprimento dos princípios da Atenção Básica, pela organização e execução das ações em seu território. 2.1 Compete às Secretarias Municipais de Saúde e ao Distrito Federal: I - organizar, executar e gerenciar os serviços e ações de Atenção Básica, de forma universal, dentro do seu território, incluindo as unidades próprias e as cedidas pelo estado e pela União; II - incluir a proposta de organização da Atenção Básica e da forma de utilização dos recursos do PAB fixo e variável, nos Planos de Saúde municipais e do Distrito Federal; III - inserir preferencialmente, de acordo com sua capacidade institucional, a estratégia de saúde da Família em sua rede de serviços, visando à organização sistêmica da atenção à saúde; IV - organizar o fluxo de usuários, visando a garantia das referências a serviços e ações de saúde fora do âmbito da Atenção Básica; V - garantir infra-estrutura necessária ao funcionamento das Unidades Básicas de Saúde, dotando-as de recursos materiais, equipamentos e insumos suficientes para o conjunto de ações propostas; VI - selecionar, contratar e remunerar os profissionais que compõem as equipes multiprofissionais de Atenção Básica, inclusive os da Saúde da Família, em conformidade com a legislação vigente; VII - programar as ações da Atenção Básica a partir de sua base territorial, utilizando instrumento de programação nacional ou correspondente local; VIII - alimentar as bases de dados nacionais com os dados produzidos pelo sistema de saúde municipal, mantendo atualizado o cadastro de profissionais, de serviços e de estabelecimentos ambulatoriais, públicos e privados, sob sua gestão; IX - elaborar metodologias e instrumentos de monitoramento e avaliação da Atenção Básica na esfera municipal; X - desenvolver mecanismos técnicos e estratégias or ganizacionais de qualificação de recursos humanos para gestão, planejamento, monitoramento e avaliação da Atenção Básica; XI - definir estratégias de articulação com os serviços de saúde com vistas à institucionalização da avaliação da Atenção Básica; XII - firmar, monitorar e avaliar os indicadores do Pacto da Atenção Básica no seu território, divulgando anualmente os resultados alcançados; XIII - verificar a qualidade e a consistência dos dados alimentados nos sistemas nacionais de informação a serem enviados às outras esferas de gestão; XIV - consolidar e analisar os dados de interesse das equipes locais, das equipes regionais e da gestão municipal, disponíveis nos sistemas de informação, divulgando os resultados obtidos; XV - acompanhar e avaliar o trabalho da Atenção Básica com ou sem Saúde da Família, divulgando as informações e os resultados alcançados; XVI - estimular e viabilizar a capacitação e a educação permanente dos profissionais das equipes; e XVII - buscar a viabilização de parcerias com organizações governamentais, não governamentais e com o setor privado para fortalecimento da Atenção Básica no âmbito do seu território. 2.2 - Compete às Secretarias Estaduais de Saúde e ao Distrito Federal:

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I - contribuir para a reorientação do modelo de atenção à saúde por meio do apoio à Atenção Básica e estímulo à adoção da estratégia Saúde da Família pelos serviços municipais de saúde em caráter substitutivo às práticas atualmente vigentes para a Atenção Básica; II - pactuar, com a Comissão Intergestores Bipartite, estratégias, diretrizes e normas de implementação da Atenção Básica no Estado, mantidos os princípios gerais regulamentados nesta Portaria; III - estabelecer, no Plano de Saúde Estadual e do Distrito Federal, metas e prioridades para a organização da Atenção Básica no seu território; IV - destinar recursos estaduais para compor o financiamento tripartite da Atenção Básica; V - pactuar com a Comissão Intergestores Bipartite e informar à Comissão Intergestores Tripartite a definição da utilização dos recursos para Compensação de Especificidades Regionais; VI - prestar assessoria técnica aos municípios no processo de qualificação da Atenção Básica e de ampliação e consolidação da estratégia Saúde da Família, com orientação para organização dos serviços que considere a incorporação de novos cenários epidemiológicos; VII - elaborar metodologias e instrumentos de monitoramento e avaliação da Atenção Básica na esfera estadual; VIII - desenvolver mecanismos técnicos e estratégias or ganizacionais de qualificação de recursos humanos para gestão, planejamento, monitoramento e avaliação da Atenção Básica; IX - definir estratégias de articulação com as gestões municipais do SUS com vistas à institucionalização da avaliação da Atenção Básica; X - firmar, monitorar e avaliar os indicadores do Pacto da Atenção Básica no território estadual, divulgando anualmente os resultados alcançados; XI - estabelecer outros mecanismos de controle e regulação, monitoramento e avaliação das ações da Atenção Básica e da estratégia Saúde da Família no âmbito estadual ou do Distrito Federal; XII ser co-responsável, junto ao Ministério da Saúde, pelo monitoramento da utilização dos recursos da Atenção Básica feridos aos municípios e ao Distrito Federal; XIII - submeter à CIB, para resolução acerca das irregularidades constatadas na execução do PAB fixo e variável, visando: a) aprazamento para que o gestor municipal corrija as irregularidades; b) comunicação ao Ministério da Saúde; e c) bloqueio do repasse de recursos ou demais providências consideradas necessárias e regulamentadas pela CIB; XIV - assessorar os municípios para implantação dos sistemas de informação da Atenção Básica, como instrumentos para monitorar as ações desenvolvidas; XV - consolidar, analisar e transferir os arquivos dos sistemas de informação enviados pelos municípios para o Ministério da Saúde, de acordo com os fluxos e prazos estabelecidos para cada sistema; XVI - verificar a qualidade e a consistência dos dados enviados pelos municípios por meio dos sistemas informatizados, retornando informações aos gestores municipais; XVII - analisar os dados de interesse estadual, gerados pelos sistemas de informação, divulgar os resultados obtidos e utilizá-los no planejamento; XVIII - assessorar municípios na análise e gestão dos sistemas de informação, com vistas ao fortalecimento da capacidade de planejamento municipal; XIX - disponibilizar aos municípios instrumentos técnicos e pedagógicos que facilitem o processo de formação e educação permanente dos membros das equipes; XX - articular instituições, em parceria com as Secretarias Municipais de Saúde, para capacitação e garantia de educação permanente aos profissionais de saúde das equipes de Atenção Básica e das equipes de saúde da família; XXI - promover o intercâmbio de experiências entre os diversos municípios, para disseminar tecnologias e conhecimentos voltados à melhoria dos serviços da Atenção Básica; e XXII - viabilizar parcerias com organismos internacionais, com organizações governamentais, não-governamentais e do setor privado para fortalecimento da Atenção Básica no âmbito do estado e do Distrito Federal. 2.3 - Compete ao Ministério da Saúde:

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I - contribuir para a reorientação do modelo de atenção à saúde no País, por meio do apoio à Atenção Básica e do estímulo à adoção da estratégia de Saúde da Família como estruturante para a organização dos sistemas municipais de saúde; II - garantir fontes de recursos federais para compor o financiamento do Piso da Atenção Básica - PAB fixo e variável; III - prestar assessoria técnica aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios no processo de qualificação e de consolidação da Atenção Básica e da estratégia de Saúde da Família; IV - estabelecer diretrizes nacionais e disponibilizar instrumentos técnicos e pedagógicos que facilitem o processo de capacitação e educação permanente dos profissionais da Atenção Básica; V - apoiar a articulação de instituições, em parceria com as Secretarias de Saúde Estaduais, Municipais e do Distrito Federal, para capacitação e garantia de educação permanente para os profissionais de saúde da Atenção Básica; VI - articular com o Ministério da Educação estratégias de indução às mudanças curriculares nos cursos de graduação na área da saúde, em especial de medicina, enfermagem e odontologia, visando à formação de profissionais com perfil adequado à Atenção Básica; VII - assessorar estados, municípios e o Distrito Federal na implantação dos sistemas de informação da Atenção Básica; VIII - analisar dados de interesse nacional, relacionados com a Atenção Básica, gerados pelos sistemas de informação em saúde, divulgando os resultados obtidos; IX - elaborar metodologias e instrumentos de monitoramento e avaliação da Atenção Básica de âmbito nacional; X - desenvolver mecanismos técnicos e estratégias organizacionais de qualificação de recursos humanos para gestão, planejamento, monitoramento e avaliação da Atenção Básica; XI - definir estratégias de articulação com as gestões estaduais e municipais do SUS com vistas à institucionalização da avaliação da Atenção Básica; XII - monitorar e avaliar os indicadores do Pacto da Atenção Básica, no âmbito nacional, divulgando anualmente os resultados alcançados, de acordo com o processo de pactuação acordado na Comissão Intergestores Tripartite; XIII - estabelecer outros mecanismos de controle e regulação, de monitoramento e de avaliação das ações da Atenção Básica e da estratégia de Saúde da Família no âmbito nacional; XIV - promover o intercâmbio de experiências e estimular o desenvolvimento de estudos e pesquisas que busquem o aperfeiçoamento e a disseminação de tecnologias e conhecimentos voltados à Atenção Básica; e XV - viabilizar parcerias com organismos internacionais, com organizações governamentais, não governamentais e do setor privado, para fortalecimento da Atenção Básica e da estratégia de saúde da família no País. 3 - DA INFRA-ESTRUTURA E DOS RECURSOS NECESSÁRIOS São itens necessários à realização das ações de Atenção Básica nos municípios e no Distrito Federal: I - Unidade(s) Básica(s) de Saúde (UBS) com ou sem Saúde da Família inscrita(s) no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde, de acordo com as normas sanitárias vigentes; II - UBS com ou sem Saúde da Família que, de acordo com o desenvolvimento de suas ações, disponibilizem: III - equipe multiprofissional composta por médico, enfermeiro, cirurgião dentista, auxiliar de consultório dentário ou técnico em higiene dental, auxiliar de enfermagem ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde, entre outros; IV - consultório médico, consultório odontológico e consultório de enfermagem para os profissionais da Atenção Básica; V - área de recepção, local para arquivos e registros, uma sala de cuidados básicos de enfermagem, uma sala de vacina e sanitários, por unidade; VI - equipamentos e materiais adequados ao elenco de ações propostas, de forma a garantir a resolutividade da Atenção Básica; VII - garantia dos fluxos de referência e contra-referência aos serviços especializados, de apoio diagnóstico e terapêutico, ambulatorial e hospitalar; e

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VIII - existência e manutenção regular de estoque dos insumos necessários para o funcionamento das unidades básicas de saúde, incluindo dispensação de medicamentos pactuados nacionalmente. Para Unidade Básica de Saúde (UBS) sem Saúde da Família em grandes centros urbanos, recomenda-se o parâmetro de uma UBS para até 30 mil habitantes, localizada dentro do território pelo qual tem responsabilidade sanitária, garantindo os princípios da Atenção Básica. Para UBS com Saúde da Família em grandes centros urbanos, recomenda-se o parâmetro de uma UBS para até 12 mil habitantes, localizada dentro do território pelo qual tem responsabilidade sanitária, garantindo os princípios da Atenção Básica. 4 - DO CADASTRAMENTO DAS UNIDADES QUE PRESTAM SERVIÇOS BÁSICOS DE SAÚDE O cadastramento das Unidades Básicas de Saúde será feito pelos gestores municipais e do Distrito Federal em consonância com as normas do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. 5 - DO PROCESSO DE TRABALHO DAS EQUIPES DE ATENÇÃO BÁSICA São características do processo de trabalho das equipes de Atenção Básica: I - definição do território de atuação das UBS; II - programação e implementação das atividades, com a priorização de solução dos problemas de saúde mais freqüentes, considerando a responsabilidade da assistência resolutiva à demanda espontânea; III - desenvolvimento de ações educativas que possam interferir no processo de saúde-doença da população e ampliar o controle social na defesa da qualidade de vida; IV - desenvolvimento de ações focalizadas sobre os grupos de risco e fatores de risco comportamentais, alimentares e/ou ambientais, com a finalidade de prevenir o aparecimento ou a manutenção de doenças e danos evitáveis; V - assistência básica integral e contínua, organizada à população adscrita, com garantia de acesso ao apoio diagnóstico e laboratorial; VI - implementação das diretrizes da Política Nacional de Humanização, incluindo o acolhimento; VII - realização de primeiro atendimento às urgências médicas e odontológicas; VIII - participação das equipes no planejamento e na avaliação das ações; IX - desenvolvimento de ações intersetoriais, integrando projetos sociais e setores afins, voltados para a promoção da saúde; e X - apoio a estratégias de fortalecimento da gestão local e do controle social. 6 - DAS ATRIBUIÇÕES DOS MEMBROS DAS EQUIPES DE ATENÇÃO BÁSICA As atribuições específicas dos profissionais da Atenção Básica deverão constar de normatização do município e do Distrito Federal, de acordo com as prioridades definidas pela respectiva gestão e as prioridades nacionais e estaduais pactuadas. 7 - DO PROCESSO DE EDUCAÇÃO PERMANENTE A educação permanente dos profissionais da Atenção Básica é de responsabilidade conjunta das SMS e das SES, nos estados, e da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Os conteúdos mínimos da Educação Permanente devem priorizar as áreas estratégicas da Atenção Básica, acordadas na CIT, acrescidos das prioridades estaduais, municipais e do Distrito Federal. Devem compor o financiamento da Educação Permanente recursos das três esferas de governo acordados na CIT e nas CIBs.

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Os serviços de atenção básica deverão adequar-se à integração ensino-aprendizagem de acordo com processos acordados na CIT e nas CIBs.

CAPÍTULO II

Das Especificidades da Estratégia de Saúde da Família

1 - PRINCÍPIOS GERAIS A estratégia de Saúde da Família visa à reorganização da Atenção Básica no País, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde. Além dos princípios gerais da Atenção Básica, a estratégia Saúde da Família deve: I - ter caráter substitutivo em relação à rede de Atenção Básica tradicional nos territórios em que as Equipes Saúde da Família atuam; II - atuar no território, realizando cadastramento domiciliar, diagnóstico situacional, ações dirigidas aos problemas de saúde de maneira pactuada com a comunidade onde atua, buscando o cuidado dos indivíduos e das famílias ao longo do tempo, mantendo sempre postura pró-ativa frente aos problemas de saúde-doença da população; III - desenvolver atividades de acordo com o planejamento e a programação realizados com base no diagnóstico situacional e tendo como foco a família e a comunidade; IV - buscar a integração com instituições e organizações sociais, em especial em sua área de abrangência, para o desenvolvimento de parcerias; e V - ser um espaço de construção de cidadania. 2 - DAS RESPONSABILIDADES DE CADA NÍVEL DE GOVERNO Além das responsabilidades propostas para a Atenção Básica, em relação à estratégia Saúde da Família, os diversos entes federados têm as seguintes responsabilidades: 2.1 Compete às Secretarias Municipais de Saúde e ao Distrito Federal: I - inserir a estratégia de Saúde da Família em sua rede de serviços visando à organização do sistema local de saúde; II - definir, no Plano de Saúde, as características, os objetivos, as metas e os mecanismos de acompanhamento da estratégia Saúde da Família; III - garantir infra-estrutura necessária ao funcionamento das equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e das unidades básicas de referência dos Agentes Comunitários de Saúde, dotando-as de recursos materiais, equipamentos e insumos suficientes para o conjunto de ações propostas; IV - assegurar o cumprimento de horário integral - jornada de 40 horas semanais – de todos os profissionais nas equipes de saúde da família, de saúde bucal e de agentes comunitários de saúde, com exceção daqueles que devem dedicar ao menos 32 horas de sua carga horária para atividades na equipe de SF e até 8 horas do total de sua carga horária para atividades de residência multiprofissional e/ou de medicina de família e de comunidade, ou trabalho em hospitais de pequeno porte, conforme regulamentação específica da Política Nacional dos Hospitais de Pequeno Porte; V - realizar e manter atualizado o cadastro dos ACS, dos enfermeiros da equipe PACS e dos profissionais das equipes de Saúde da Família e de Saúde Bucal, bem como da população residente na área de abrangência das equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS, nos Sistemas Nacionais de Informação em Saúde definidos para esse fim; e VI - estimular e viabilizar a capacitação específica dos profissionais das equipes de Saúde da Família. 2.2 Compete às Secretarias Estaduais de Saúde:

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I - pactuar com a Comissão Intergestores Bipartite estratégias, diretrizes e normas de implementação e gestão da Saúde da Família no Estado, mantidos os princípios gerais regulamentados nesta Portaria; II - estabelecer no Plano de Saúde estadual metas e prioridades para a Saúde da Família; III - submeter à Comissão Intergestores Bipartite (CIB), no prazo máximo de 30 dias após a data do protocolo de entrada do processo, a proposta de implantação ou expansão de ESF, ESB e ACS elaborada pelos municípios e aprovada pelos Conselhos de Saúde dos municípios; IV - submeter à CIB, para resolução, o fluxo de acompanhamento do cadastramento dos profissionais das Equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS nos sistemas de informação nacionais, definidos para esse fim; V - submeter à CIB, para resolução, o fluxo de descredenciamento e/ou o bloqueio de recursos diante de irregularidades constatadas na implantação e no funcionamento das Equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS, a ser publicado como portaria de resolução da CIB, visando à regularização das equipes que atuam de forma inadequada; VI - analisar e consolidar as informações enviadas pelos municípios, referentes à implantação e ao funcionamento das Equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS; VII - enviar, mensalmente, ao Ministério da Saúde o consolidado das informações encaminhadas pelos municípios, autorizando a transferência dos incentivos financeiros federais aos municípios; VIII - responsabilizar-se perante o Ministério da Saúde pelo monitoramento, o controle e a avaliação da utilização dos recursos de incentivo da Saúde da Família transferidos aos municípios no território estadual; IX - prestar assessoria técnica aos municípios no processo de implantação e ampliação da SF; X - articular com as instituições formadoras de recursos humanos do estado estratégias de expansão e qualificação de cursos de pósgraduação, residências médicas e multiprofissionais em Saúde da Família e educação permanente, de acordo com demandas e necessidades identificadas nos municípios e pactuadas nas CIBs; e XI - acompanhar, monitorar e avaliar o desenvolvimento da estratégia Saúde da Família nos municípios, identificando situações em desacordo com a regulamentação, garantindo suporte às adequações necessárias e divulgando os resultados alcançados. 2.3. Compete ao Distrito Federal: I - estabelecer, no Plano de Saúde do Distrito Federal, metas e prioridades para a Saúde da Família; II - analisar e consolidar as informações referentes à implantação e ao funcionamento das equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e ACS; III - responsabilizar-se junto ao Ministério da Saúde pelo monitoramento, o controle e a avaliação da utilização dos recursos de incentivo da Saúde da Família transferidos ao Distrito Federal; e IV - acompanhar, monitorar e avaliar o desenvolvimento da estratégia Saúde da Família no Distrito Federal, identificando e adequando situações em desacordo com a regulamentação e divulgando os resultados alcançados. 2.4 Compete ao Ministério da Saúde: I - definir e rever, de forma pactuada, na Comissão Intergestores Tripartite, as diretrizes e as normas da Saúde da Família; II - garantir fontes de recursos federais para compor o financiamento da Atenção Básica organizada por meio da estratégia Saúde da Família; III - apoiar a articulação de instituições, em parceria com Secretarias de Saúde Estaduais, Municipais e do Distrito Federal, para capacitação e garantia de educação permanente específica aos profissionais da Saúde da Família; IV - articular com o Ministério da Educação estratégias de expansão e de qualificação de cursos de pós-graduação, residências médicas e multiprofissionais em Saúde da Família e em educação permanente; V - analisar dados de interesse nacional relacionados com a estratégia Saúde da Família, gerados pelos sistemas de informação em saúde, divulgando os resultados obtidos; e

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VI - para a análise de indicadores, de índices de valorização de resultados e de outros parâmetros, o cálculo da cobertura populacional pelas ESF, ESB e ACS será realizado a partir da população cadastrada no sistema de informação vigente. 3 - DA INFRA-ESTRUTURA E DOS RECURSOS NECESSÁRIOS São itens necessários à implantação das Equipes de Saúde da Família: I - existência de equipe multiprofissional responsável por, no máximo, 4.000 habitantes, sendo a média recomendada de 3.000 habitantes, com jornada de trabalho de 40 horas semanais para todos os seus integrantes e composta por, no mínimo, médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem ou técnico de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde; II - número de ACS suficiente para cobrir 100% da população cadastrada, com um máximo de 750 pessoas por ACS e de 12 ACS por equipe de Saúde da Família; III - existência de Unidade Básica de Saúde inscrita no Cadastro Geral de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde, dentro da área para o atendimento das Equipes de Saúde da Família que possua minimamente: a) consultório médico e de enfermagem para a Equipe de Saúde da Família, de acordo com as necessidades de desenvolvimento do conjunto de ações de sua competência; b) área/sala de recepção, local para arquivos e registros, uma sala de cuidados básicos de enfermagem, uma sala de vacina e sanitários, por unidade; c) equipamentos e materiais adequados ao elenco de ações programadas, de forma a garantir a resolutividade da Atenção Básica à saúde; IV - garantia dos fluxos de referência e contra-referência aos serviços especializados, de apoio diagnóstico e terapêutico, ambulatorial e hospitalar; e V - existência e manutenção regular de estoque dos insumos necessários para o funcionamento da UBS. São itens necessários à incorporação de profissionais de saúde bucal nas Equipes de Saúde da Família: I - no caso das Equipes de Saúde Bucal (ESB), modalidade 1: existência de equipe multiprofissional, com composição básica de cirurgião dentista e auxiliar de consultório dentário, com trabalho integrado a uma ou duas ESF, com responsabilidade sanitária pela mesma população e território que as ESF às quais está vinculada, e com jornada de trabalho de 40 horas semanais para todos os seus componentes; II - no caso das ESB, modalidade 2: existência de equipe multiprofissional, com composição básica de cirurgião dentista, auxiliar de consultório dentário e técnico de higiene dental, com trabalho integrado a uma ou duas ESFs, com responsabilidade sanitária pela mesma população e território que as ESFs, às quais está vinculada, e com jornada de trabalho de 40 horas semanais para todos os seus componentes; III - existência de Unidade de Saúde inscrita no Cadastro Geral de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde, dentro da área para atendimento das equipes de Saúde Bucal, que possua minimamente: a) consultório odontológico para a Equipe de Saúde Bucal, de acordo com as necessidades de desenvolvimento do conjunto de ações de sua competência; e b) equipamentos e materiais adequados ao elenco de ações programadas, de forma a garantir a resolutividade da Atenção Básica à saúde. É prevista a implantação da estratégia de Agentes Comunitários de Saúde nas Unidades Básicas de Saúde como uma possibilidade para a reorganização inicial da Atenção Básica. São itens necessários à organização da implantação dessa estratégia: I - a existência de uma Unidade Básica de Saúde, inscrita no Cadastro Geral de estabelecimentos de saúde do Ministério da Saúde, de referência para os ACS e o enfermeiro supervisor; II - a existência de um enfermeiro para até 30 ACS, o que constitui uma equipe de ACS; III - o cumprimento da carga horária de 40 horas semanais dedicadas à equipe de ACS pelo enfermeiro supervisor e pelos ACS;

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IV - definição das micro-áreas sob responsabilidade de cada ACS, cuja população não deve ser superior a 750 pessoas; e V - o exercício da profissão de Agente Comunitário de Saúde regulamentado pela Lei nº 10.507/2002. 4. DO PROCESSO DE TRABALHO DA SAÚDE DA F AMÍLIA Além das características do processo de trabalho das equipes de Atenção Básica, são características do processo de trabalho da Saúde da Família: I - manter atualizado o cadastramento das famílias e dos indivíduos e utilizar, de forma sistemática, os dados para a análise da situação de saúde considerando as características sociais, econômicas, culturais, demográficas e epidemiológicas do território; II - definição precisa do território de atuação, mapeamento e reconhecimento da área adstrita, que compreenda o segmento populacional determinado, com atualização contínua; III - diagnóstico, programação e implementação das atividades segundo critérios de risco à saúde, priorizando solução dos problemas de saúde mais freqüentes; IV - prática do cuidado familiar ampliado, efetivada por meio do conhecimento da estrutura e da funcionalidade das famílias que visa propor intervenções que influenciem os processos de saúde-doença dos indivíduos, das famílias e da própria comunidade; V - trabalho interdisciplinar e em equipe, integrando áreas técnicas e profissionais de diferentes formações; VI - promoção e desenvolvimento de ações intersetoriais, buscando parcerias e integrando projetos sociais e setores afins, voltados para a promoção da saúde, de acordo com prioridades e sob a coordenação da gestão municipal; VII - valorização dos diversos saberes e práticas na perspectiva de uma abordagem integral e resolutiva, possibilitando a criação de vínculos de confiança com ética, compromisso e respeito; VIII - promoção e estímulo à participação da comunidade no controle social, no planejamento, na execução e na avaliação das ações; e IX - acompanhamento e avaliação sistemática das ações implementadas, visando à readequação do processo de trabalho. As atribuições dos diversos profissionais das Equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal, ACS e enfermeiros das equipes PACS estão descritas no Anexo I. 5 - DA CAPACITAÇÃO E EDUCAÇÃO PERMANENTE DAS EQUIPES O processo de capacitação deve iniciar-se concomitantemente ao início do trabalho das ESF por meio do Curso Introdutório para toda a equipe. Recomenda-se que: I - o Curso Introdutório seja realizado em até 3 meses após a implantação da ESF; II - a responsabilidade da realização do curso introdutório e/ou dos cursos para educação permanente das equipes, em municípios com população inferior a 100 mil habitantes, seja da Secretaria de Estado da Saúde em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde; e III - a responsabilidade da realização do curso introdutório e/ou dos cursos para educação permanente das equipes, em municípios com população superior a 100 mil habitantes, e da Secretaria Municipal de Saúde, que poderá realizar parceria com a Secretaria de Estado da Saúde. No Distrito Federal, a sua Secretaria de Saúde é responsável pela realização do curso introdutório e/ou dos cursos para educação permanente das equipes. Os conteúdos mínimos do Curso Introdutório e da Educação Permanente para as ESFs serão objeto de regulamentação específica editada pelo Ministério da Saúde. 6 - DO PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO I - O município e o Distrito Federal deverão elaborar a proposta de implantação ou expansão de ESF, ESB e ACS e em conformidade com a regulamentação estadual aprovada pela CIB. Na ausência de regulamentação específica, poderão ser utilizados os quadros constantes no Anexo II a esta Portaria. A proposta deve definir: a) território a ser coberto, com estimativa da população residente, definição do número de equipes que deverão atuar e com o mapeamento das áreas e micro-áreas;

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b) infra-estrutura incluindo área física, equipamentos e materiais disponíveis nas UBS onde atuarão as equipes, explicitando o número e o local das unidades onde irão atuar cada uma das equipes; c) ações a serem desenvolvidas pelas equipes no âmbito da Atenção Básica, especialmente nas áreas prioritárias definidas no âmbito nacional; d) processo de gerenciamento e supervisão do trabalho das equipes; e) forma de recrutamento, seleção e contratação dos profissionais das equipes, contemplando o cumprimento da carga horária de 40 horas semanais; f) implantação do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), incluindo recursos humanos e materiais para operá-lo; g) processo de avaliação do trabalho das equipes, da forma de acompanhamento do Pacto dos Indicadores da Atenção Básica e da utilização dos dados dos sistemas nacionais de informação; h) a contrapartida de recursos do município e do Distrito Federal. II - A proposta elaborada deverá ser aprovada pelos Conselhos de Saúde dos Municípios e encaminhada à Secretaria Estadual de Saúde ou sua instância regional para análise. O Distrito Federal, após a aprovação por seu Conselho de Saúde, deverá encaminhar sua proposta para o Ministério da Saúde; III - A Secretaria Estadual de Saúde ou sua instância regional terá o prazo máximo de 30 dias após a data do protocolo de entrada do processo para sua análise e encaminhamento à Comissão Intergestores Bipartite (CIB); IV - Após aprovação na CIB, cabe à Secretaria de Saúde dos Estados e do Distrito Federal informar ao Ministério da Saúde, até o dia 15 de cada mês, o número de ESF, de ESB e de ACS que fazem jus ao recebimento de incentivos financeiros do PAB variável; V - O município, com as equipes previamente credenciadas pelo estado, conforme decisão da CIB, passará a receber o incentivo correspondente às equipes efetivamente implantadas, a partir do cadastro de profissionais no sistema nacional de informação definido para esse fim, e da alimentação de dados no sistema que comprovem o início de suas atividades; VI - O Ministério da Saúde, os estados e os municípios terão o prazo de até 180 dias para implantação do novo fluxo de credenciamento e implantação de ESF, de ESB e de ACS; e VII - O fluxo dos usuários para garantia da referência e contra-referência à atenção especializada, nos serviços assistenciais de média complexidade ambulatorial, incluindo apoio diagnóstico laboratorial e de imagem - RX e ultra-som, saúde mental e internação hospitalar, levando em conta os padrões mínimos de oferta de serviços de acordo com os protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde e a proposta para garantia da assistência farmacêutica básica devem constar no Plano Municipal de Saúde.

CAPÍTULO III

Do Financiamento da Atenção Básica

1 - CONSIDERAÇÕES GERAIS O financiamento da Atenção Básica se dará em composição tripartite. O Piso da Atenção Básica (PAB) constitui-se no componente federal para o financiamento da Atenção Básica, sendo composto de uma fração fixa e outra variável. O somatório das partes fixa e variável do Piso da Atenção Básica (PAB) comporá o Teto Financeiro do Bloco Atenção Básica conforme estabelecido nas diretrizes dos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. Os recursos do Teto Financeiro do Bloco Atenção Básica deverão ser utilizados para financiamento das ações de Atenção Básica descritas nos Planos de Saúde do município e do Distrito Federal.

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2 - DO PISO DE ATENÇÃO BÁSICA O Piso da Atenção Básica - PAB consiste em um montante de recursos financeiros federais destinados à viabilização de ações de Atenção Básica à saúde e compõe o Teto Financeiro do Bloco Atenção Básica. O PAB é composto de uma parte fixa (PAB fixo) destinada a todos os municípios e de uma parte variável (PAB variável) que consiste em montante de recursos financeiros destinados a estimular a implantação das seguintes estratégias nacionais de reorganização do modelo de atenção à saúde: Saúde da Família - SF; Agentes Comunitários de Saúde - ACS; Saúde Bucal - SB; Compensação de Especificidades Regionais; Saúde Indígena - SI; e Saúde no Sistema Penitenciário. Os repasses dos recursos dos PABs fixo e variável aos municípios são efetuados em conta aberta especificamente para essa finalidade, com o objetivo de facilitar o acompanhamento pelos Conselhos de Saúde no âmbito dos municípios, dos estados e do Distrito Federal. Os recursos serão repassados em conta específica denominada "FMS - nome do município - PAB" de acordo com a normatização geral de transferências fundo a fundo do Ministério da Saúde. O Ministério da Saúde definirá os códigos de lançamentos, assim como seus identificadores literais, que constarão nos respectivos avisos de crédito, para tornar claro o objeto de cada lançamento em conta. O aviso de crédito deverá ser enviado ao Secretário de Saúde, ao Fundo de Saúde, ao Conselho de Saúde, ao Poder Legislativo e ao Ministério Público dos respectivos níveis de governo. Os registros contábeis e os demonstrativos gerenciais mensais devidamente atualizados relativos aos recursos repassados a essas contas, ficarão, permanentemente, à disposição dos Conselhos responsáveis pelo acompanhamento, e a fiscalização, no âmbito dos Municípios, dos Estados, do Distrito Federal e dos órgãos de fiscalização federais, estaduais e municipais, de controle interno e terno. Os municípios deverão remeter por via eletrônica o processamento da produção de serviços referentes ao PAB à Secretaria Estadual de Saúde, de acordo com cronograma por ela estabelecido. As Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito Federal devem enviar as informações ao DATASUS, observando cronograma estabelecido pelo Ministério da Saúde. Os municípios e o Distrito Federal deverão efetuar suas despesas segundo as exigências legais requeridas a quaisquer outras despesas da administração pública (processamento, empenho, liquidação e efetivação do pagamento). De acordo com o artigo 6º, do Decreto nº 1.651/95, a comprovação da aplicação dos recursos transferidos do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde, na forma do Decreto nº 1.232/94, que trata das transferências, fundo a fundo, deve ser apresentada ao Ministério da Saúde e ao Estado, por meio de relatório de gestão, aprovado pelo respectivo Conselho de Saúde. Da mesma forma, a prestação de contas dos valores recebidos e aplicados no período deve ser aprovada no Conselho Municipal de Saúde e encaminhada ao Tribunal de Contas do Estado ou Município e à Câmara Municipal. A demonstração da movimentação dos recursos de cada conta deverá ser efetuada, seja na Prestação de Contas, seja quando solicitada pelos órgãos de controle, mediante a apresentação de: I - relatórios mensais da origem e da aplicação dos recursos; II - demonstrativo sintético de execução orçamentária; III - demonstrativo detalhado das principais despesas; e IV - relatório de gestão. O Relatório de Gestão deverá demonstrar como a aplicação dos recursos financeiros resultou em ações de saúde para a população, incluindo quantitativos mensais e anuais de produção de serviços de Atenção Básica.

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2.1. Da parte fixa do Piso da Atenção Básica Os recursos do PAB serão transferidos mensalmente, de forma regular e automática, do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos Municipais de Saúde e do Distrito Federal. Excepcionalmente, os recursos do PAB correspondentes à população de municípios que não cumprirem com os requisitos mínimos regulamentados nesta Portaria podem ser transferidos, transitoriamente, aos Fundos Estaduais de Saúde, conforme resolução das Comissões Intergestores Bipartites. A parte fixa do PAB será calculada pela multiplicação de um valor per capita fixado pelo Ministério da Saúde pela população de cada município e do Distrito Federal e seu valor será publicado em portaria específica. Nos municípios cujos valores referentes já são superiores ao mínimo valor per capita proposto, será mantido o maior valor. A população de cada município e do Distrito Federal será a população definida pelo IBGE e publicada em portaria específica pelo Ministério da Saúde. Os municípios que já recebem incentivos referentes a equipes de projetos similares ao PSF, de acordo com a Portaria nº 1.348/GM, de 18 de novembro de 1999, e Incentivos de Descentralização de Unidades de Saúde da FUNASA, de acordo com Portaria nº 1.502/GM, de 22 de agosto de 2002, terão os valores correspondentes incorporados a seu PAB fixo a partir da publicação do teto financeiro do Bloco da Atenção Básica. Ficam mantidas as ações descritas nos Grupos dos Procedimentos da Atenção Básica, na Tabela do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde que permanecem como referência para a alimentação dos bancos de dados nacionais. 2.2. Do Piso da Atenção Básica Variável Os recursos do PAB variável são parte integrante do Bloco da Atenção Básica e terão sua utilização definida nos planos municipais de saúde, dentro do escopo das ações previstas nesta Política. O PAB variável representa a fração de recursos federais para o financiamento de estratégias nacionais de organização da Atenção Básica, cujo financiamento global se dá em composição tripartite. Para fazer jus ao financiamento específico do PAB variável, o Distrito Federal e os municípios devem aderir às estratégias nacionais: I - Saúde da Família (SF); II - Agentes Comunitários de Saúde (ACS); III - Saúde Bucal (SB); IV - Compensação de Especificidades Regionais; V - Saúde Indígena (SI); e VI - Saúde no Sistema Penitenciário. A transferência dos recursos financeiros que compõem os incentivos relacionados ao PAB variável da Saúde Indígena SI será regulamentada em portaria específica. A transferência dos recursos financeiros que compõem os incentivos relacionados ao PAB variável da Saúde no Sistema Penitenciário se dará em conformidade ao disposto na Portaria Interministerial nº 1.777, de 9 de setembro de 2003. A efetivação da transferência dos recursos financeiros que compõem os incentivos relacionados ao PAB variável da SF, dos ACS e da SB tem por base os dados de alimentação obrigatória do SIAB, cuja responsabilidade de manutenção e atualização é dos gestores do Distrito Federal e dos municípios:

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I - os dados serão transferidos, pelas Secretarias Estaduais de Saúde e do Distrito Federal para o Departamento de Informática do SUS - DATASUS, por via magnética, até o dia 15 de cada mês; II - os dados a serem transferidos referem-se ao período de 1º a 30 do mês imediatamente anterior ao do seu envio; III - a transferência dos dados para a Base Nacional do SIAB se dará por meio do BBS/MS, da Internet, ou por disquete; IV - o DATASUS remeterá à Secretaria Estadual de Saúde o recibo de entrada dos dados na Base Nacional do SIAB; e V - O DATASUS atualizará a Base Nacional do SIAB, localizada no Departamento de Atenção Básica, da Secretaria de Atenção à Saúde, até o dia 20 de cada mês. O número máximo de equipes de Saúde da Família, de Saúde Bucal e de ACS a serem financiadas pelo Ministério da Saúde, a cada ano, será definido em portaria específica, respeitando os limites orçamentários. Os valores dos componentes do PAB variável serão definidos em portaria específica pelo Ministério da Saúde. Equipe de Saúde da Família (ESF) Os valores dos incentivos financeiros para as Equipes de Saúde da Família implantadas serão transferidos a cada mês, tendo como base o número de Equipe de Saúde da Família (ESF) registrados no cadastro de equipes e profissionais do Sistema de Informação de Atenção Básica - SIAB, no mês anterior ao da respectiva competência financeira. O número máximo de ESF pelas quais o município e o Distrito Federal podem fazer jus ao recebimento de recursos financeiros específicos será calculado pela fórmula: população/2400. A fonte de dados populacionais a ser utilizada para o cálculo será a mesma vigente para cálculo da parte fixa do PAB. São estabelecidas duas modalidades de financiamento para as ESF: 1. ESF Modalidade 1: são as ESF que atendem aos seguintes critérios: I - estiverem implantadas em municípios com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) igual ou inferior a 0,7 e população de até 50 mil habitantes nos Estados da Amazônia Legal e até 30 mil habitantes nos demais Estados do País; ou II - estiverem implantadas em municípios que integraram o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS) e que não estão enquadrados no estabelecido na alínea I deste item; e III - estiverem implantadas em municípios não incluídos no estabelecido nas alíneas I e II e atendam a população remanescente de quilombos ou residente em assentamentos de no mínimo 70 (setenta) pessoas, respeitado o número máximo de equipes por município, publicado em portaria específica. 2. ESF Modalidade 2: são as ESF implantadas em todo o território nacional que não se enquadram nos critérios da Modalidade 1. Os valores dos componentes do PAB variável para as ESF Modalidades I e II serão definidos em portaria específica publicada pelo Ministério da Saúde. Os municípios passarão a fazer jus ao recebimento do incentivo após o cadastramento das Equipes de Saúde da Família responsáveis pelo atendimento dessas populações específicas no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB). Agentes Comunitários de Saúde (ACS) Os valores dos incentivos financeiros para as equipes de ACS implantadas são transferidos a cada mês, tendo como base o número de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), registrados no cadastro de equipes e profissionais do Sistema de Informação de Atenção Básica - SIAB, na respectiva competência financeira.

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Será repassada uma parcela extra, no último trimestre de cada ano, cujo valor será calculado com base no número de Agentes Comunitários de Saúde, registrados no cadastro de equipes e profissionais do Sistema de Informação de Atenção Básica - SIAB, no mês de agosto do ano vigente. O número máximo de ACS pelos quais o município e o Distrito Federal podem fazer jus ao recebimento de recursos financeiros específicos será calculado pela fórmula: população IBGE/ 400. Para municípios dos estados da Região Norte, Maranhão e Mato Grosso, a fórmula será: população IBGE da área urbana / 400 + população da área rural IBGE/ 280. A fonte de dados populacionais a ser utilizada para o cálculo será a mesma vigente para cálculo da parte fixa do PAB, definida pelo IBGE e publicada pelo Ministério da Saúde. Equipes de Saúde Bucal (ESB) Os valores dos incentivos financeiros para as Equipes de Saúde Bucal implantadas serão transferidos a cada mês, tendo como base o número de Equipes de Saúde Bucal (ESB) registrados no cadastro de Equipes e profissionais do Sistema de Informação de Atenção Básica - SIAB, na respectiva competência financeira. Farão jus ao recebimento dos incentivos financeiros referentes a Equipes de Saúde Bucal (ESB), quantas equipes estiverem implantadas no SIAB, desde que não ultrapassem o número existente de Equipes de Saúde da Família, e considerem a lógica de organização da Atenção Básica - Saúde da Família. São estabelecidas duas modalidades de financiamento para as ESB: I - Equipe de Saúde Bucal Modalidade 1: composta por no mínimo 1 cirurgião-dentista e 1 auxiliar de consultório dentário; II - Equipe de Saúde Bucal Modalidade 2: composta por no mínimo 1 cirurgião-dentista, 1 auxiliar de consultório dentário e 1 técnico de higiene dental. Compensação de Especificidades Regionais Os valores do recurso Compensação de Especificidades Regionais serão definidos em Portaria Ministerial especifica para este fim. A utilização dos recursos de Compensação de Especificidades Regionais será definida periodicamente pelas CIBs. A CIB selecionará os municípios a serem contemplados, a partir de critérios regionais, bem como a forma de utilização desses recursos de acordo com as especificidades regionais e/ou municipais de cada estado, a exemplo de sazonalidade, migrações, dificuldade de fixação de profissionais, IDH, indicadores de resultados, educação permanente, formação de ACS. Os critérios definidos devem ser informados ao plenário da CIT. No caso do Distrito Federal, a proposta de aplicação deste recurso deverá ser submetida à aprovação pelo Conselho de Saúde do Distrito Federal. As Secretarias Estaduais de Saúde enviarão a listagem de municípios com os valores e o período de transferência dos recursos pactuados nas CIBs ao Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, para que os valores sejam transferidos do FNS para os FMS. 3 - REQUISITOS MÍNIMOS PARA MANUTENÇÃO DA TRANSFERÊNCIA DO PAB Os requisitos mínimos para a manutenção da transferência do PAB são aqueles definidos pela legislação federal do SUS.

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O Plano de Saúde municipal ou do Distrito Federal, aprovado pelo respectivo Conselho de Saúde e atualizado a cada ano, deve especificar a proposta de organização da Atenção Básica e explicitar como serão utilizados os recursos do Bloco da Atenção Básica. Os municípios e o Distrito Federal devem manter a guarda desses Planos por no mínimo 10 anos, para fins de avaliação, monitoramento e auditoria. O Relatório de Gestão deverá demonstrar como a aplicação dos recursos financeiros resultou em ações de saúde para a população, incluindo quantitativos mensais e anuais de produção de serviços de Atenção Básica, e deverá ser apresentado anualmente para apreciação e aprovação pelo Conselho Municipal de Saúde. Os valores do PAB fixo serão corrigidos anualmente mediante cumprimento de metas pactuadas para indicadores da Atenção Básica. Excepcionalmente o não alcance de metas poderá ser avaliado e justificado pelas Secretarias Estaduais de Saúde e pelo Ministério da Saúde de maneira a garantir esta correção. Os indicadores de acompanhamento para 2006 são: I - Cobertura firmada pelo gestor municipal e do Distrito Federal para o ano anterior no Pacto da Atenção Básica, para: a) média anual de consultas médicas por habitante nas especialidades básicas; b) proporção de nascidos vivos de mães com quatro ou mais consultas de pré-natal; c) razão entre exames citopatológico cérvico-vaginais em mulheres entre 25 e 59 anos e a população feminina nessa faixa etária; e II - Cobertura vacinal da terceira dose de tetravalente em menores de um ano de idade maior ou igual a 95%; O Ministério da Saúde publicará anualmente, em portaria específica, os indicadores de acompanhamento para fins de reajuste do PAB fixo. 4 - DA SOLICITAÇÃO DE CRÉDITO RETROATIVO Considerando a ocorrência de problemas na alimentação do Sistema de Informação de Atenção Básica - SIAB, por parte dos municípios e/ou do Distrito Federal, e na transferência dos arquivos, realizada pelos municípios, o Distrito Federal e os estados, o Fundo Nacional de Saúde - FNS/SE/MS poderá efetuar crédito retroativo dos incentivos financeiros a equipes de Saúde da Família, a equipes de Saúde Bucal e a de Agentes Comunitários de Saúde, com base em solicitação da Secretaria de Atenção à Saúde - SAS/MS. Esta retroatividade se limitará aos seis meses anteriores ao mês em curso. Para solicitar os créditos retroativos, os municípios e o Distrito Federal deverão: I - preencher a planilha constante do Anexo III a esta Política, para informar o tipo de incentivo financeiro que não foi creditado no Fundo Municipal de Saúde ou do Distrito Federal, discriminando a competência financeira correspondente e identificando a equipe, com os respectivos profissionais que a compõem ou o agente comunitário de saúde que não gerou crédito de incentivo; II - imprimir o relatório de produção, no caso de equipes de Saúde da Família, referente à equipe e ao mês trabalhado que não geraram a transferência dos recursos; e III - enviar ofício à Secretaria de Saúde de seu estado, pleiteando a complementação de crédito, acompanhado da planilha referida no item I e do relatório de produção correspondente. No caso do Distrito Federal, o ofício deverá ser encaminhado ao Departamento de Atenção Básica da SAS/MS. As Secretarias Estaduais de Saúde, após analisarem a documentação recebida dos municípios, deverão encaminhar ao Departamento de Atenção Básica da SAS/MS solicitação de complementação de crédito dos incentivos tratados nesta Portaria, acompanhada dos documentos referidos nos itens I e II.

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A Secretaria de Atenção à Saúde - SAS/MS, por meio do Departamento de Atenção Básica, procederá à análise das solicitações recebidas, verificando a adequação da documentação enviada, se houve suspensão do crédito em virtude da constatação de irregularidade no funcionamento das equipes e se a situação de qualificação do município ou do Distrito Federal, na competência reclamada, permite o repasse dos recursos pleiteados. 5 - DA SUSPENSÃO DO REPASSE DE RECURSOS DO PAB O Ministério da Saúde suspenderá o repasse de recursos do PAB aos municípios e ao Distrito Federal, quando: I - Não houver alimentação regular, por parte dos municípios e do Distrito Federal, dos bancos de dados nacionais de informação, a saber: a) Sistema de Informações da Atenção Básica (SIAB) - para os municípios e o Distrito Federal, caso tenham implantado ACS e/ou ESF e/ou ESB; b) Sistema de Informações Ambulatorial - SIA; c) Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM; d) Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos -SINASC; e) Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional -SISVAN; f) Sistema de Informações de Agravos de Notificação - SINAN; e g) Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações SIS-PNI. Considera-se alimentação irregular a ausência de envio de informações por 2 meses consecutivos ou 3 meses alternados no período de um ano. II - Forem detectados, por meio de auditoria federal ou estadual, malversação ou desvio de finalidade na utilização dos recursos. A suspensão será mantida até a adequação das irregularidades identificadas. 5.1. Da suspensão do repasse de recursos do PAB variável O Ministério da Saúde suspenderá o repasse de recursos dos incentivos a equipes de Saúde da Família ou de Saúde Bucal ao município e/ou ao Distrito Federal, nos casos em que forem constatadas, por meio do monitoramento e/ou da supervisão direta do Ministério da Saúde ou da Secretaria Estadual de saúde ou por auditoria do DENASUS, alguma das seguintes situações: I - inexistência de unidade de saúde cadastrada para o trabalho das equipes e/ou; II - ausência de qualquer um dos profissionais da equipe por período superior a 90 (noventa) dias, com exceção dos períodos em que a contratação de profissionais esteja impedida por legislação específica e/ou; III - o descumprimento da carga horária para os profissionais das Equipes de Saúde da Família ou de Saúde Bucal estabelecida nesta Política. O Ministério da Saúde suspenderá o repasse de recursos dos incentivos, relativos aos Agentes Comunitários de Saúde, ao município e/ou ao Distrito Federal, nos casos em que forem constatadas, por meio do monitoramento e/ou da supervisão direta do Ministério da Saúde ou da Secretaria Estadual de Saúde, ou por auditoria do DENASUS, alguma das seguintes situações: I - inexistência de unidade de saúde cadastrada como referência para a população cadastrada pelos ACS e/ou; II - ausência de enfermeiro supervisor por período superior a 90 (noventa) dias, com exceção dos períodos em que a legislação eleitoral impede a contratação de profissionais, nos quais será considerada irregular a ausência de profissional por e/ou; III - ausência de ACS, por período superior a 90 (noventa) dias consecutivos, e/ou; IV - descumprimento da carga horária estabelecida nesta Política, para os profissionais. 6 - DOS RECURSOS DE ESTRUTURAÇÃO Na implantação das Equipes de Saúde da Família e de Saúde Bucal os municípios e/ou o Distrito Federal receberão recursos específicos para estruturação das Unidades de Saúde de cada Equipe de Saúde da Família e para Equipes de Saúde Bucal, visando à melhoria da infra-

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estrutura física e de equipamentos das Unidades Básicas de Saúde para o trabalho das equipes. Esses recursos serão repassados na competência financeira do mês posterior à implantação das equipes. Caso a equipe implantada seja desativada num prazo inferior a 12 (doze) meses, contados a partir do recebimento do incentivo de estruturação, o valor recebido será descontado de futuros valores repassados aos Fundos de Saúde do Distrito Federal, do estado ou do município. Em caso de redução do numero de Equipes de Saúde da Família ou de Saúde Bucal, o município ou o Distrito Federal não farão jus a novos recursos de implantação até que seja alcançado o número de equipes já implantadas anteriormente. O Ministério da Saúde disponibilizará, a cada ano, recursos destinados à estruturação da rede básica de serviços de acordo com sua disponibilidade orçamentária. A CIT pactuará os critérios para a seleção dos municípios e/ou do Distrito Federal. Para o ano de 2006 serão disponibilizados recursos aos municípios: I - Que realizem residência médica em medicina de família e comunidade credenciada pelo CNRM; e II - Que em suas Unidades Básicas de Saúde recebam alunos de Cursos de Graduação contemplados no PROSAUDE. O Ministério da Saúde publicará portaria especifica com o montante disponibilizado, a forma de repasse, a listagem de contemplados e o cronograma de desembolso. Esses recursos serão transferidos fundo a fundo aos municípios que se adequarem a esses critérios, e depositados em conta específica.

ANEXO I

AS ATRIBUIÇÕES DOS PROFISSIONAIS DAS EQUIPES DE SAÚDE DA FAMÍLIA, DE SAÚDE BUCAL E DE ACS

As atribuições globais abaixo descritas podem ser complementadas com diretrizes e normas da gestão local. 1 - SÃO ATRIBUIÇÕES COMUNS A TODOS OS PROFISSIONAIS: I - participar do processo de territorialização e mapeamento da área de atuação da equipe, identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos, inclusive aqueles relativos aotrabalho, e da atualização contínua dessas informações, priorizando as situações a seremacompanhadas no planejamento local; II - realizar o cuidado em saúde da população adscrita, prioritariamente no âmbito da unidade de saúde, no domicílio e nos demais espaços comunitários (escolas, associações,entre outros), quando necessário; III - realizar ações de atenção integral conforme a necessidade de saúde da população local, bem como as previstas nas prioridades e protocolos da gestão local; IV - garantir a integralidade da atenção por meio da realização de ações de promoção da saúde, prevenção de agravos e curativas; e da garantia de atendimento da demanda espontânea, da realização das ações programáticas e de vigilância à saúde; V - realizar busca ativa e notificação de doenças e agravos de notificação compulsória e de outros agravos e situações de importância local; VI - realizar a escuta qualificada das necessidades dos usuários em todas as ações, proporcionando atendimento humanizado e viabilizando o estabelecimento do vínculo; VII - responsabilizar-se pela população adscrita, mantendo a coordenação do cuidado mesmo quando esta necessita de atenção em outros serviços do sistema de saúde;

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VIII - participar das atividades de planejamento e avaliação das ações da equipe, a partir da utilização dos dados disponíveis; IX - promover a mobilização e a participação da comunidade, buscando efetivar o controle social; X - identificar parceiros e recursos na comunidade que possam potencializar ações intersetoriais com a equipe, sob coordenação da SMS; XI - garantir a qualidade do registro das atividades nos sistemas nacionais de informação na Atenção Básica; XII - participar das atividades de educação permanente; e XIII - realizar outras ações e atividades a serem definidas de acordo com as prioridades locais. 2 - SÃO ATRIBUIÇÕES ESPECÍFICAS Além das atribuições definidas, são atribuições mínimas específicas de cada categoria profissional, cabendo ao gestor municipal ou do Distrito Federal ampliá-las, de acordo com as especificidades locais. Do Agente Comunitário de Saúde: I - desenvolver ações que busquem a integração entre a equipe de saúde e a população adscrita à UBS, considerando as características e as finalidades do trabalho de acompanhamento de indivíduos e grupos sociais ou coletividade; II - trabalhar com adscrição de famílias em base geográfica definida, a micro-área; III - estar em contato permanente com as famílias desenvolvendo ações educativas, visando à promoção da saúde e a prevenção das doenças, de acordo com o planejamento da equipe; IV - cadastrar todas as pessoas de sua microárea e manter os cadastros atualizados; V - orientar famílias quanto à utilização dos serviços de saúde disponíveis; VI - desenvolver atividades de promoção da saúde, de prevenção das doenças e de agravos, e de vigilância à saúde, por meio de visitas domiciliares e de ações educativas individuais e coletivas nos domicílios e na comunidade, mantendo a equipe informada, principalmente a respeito daquelas em situação de risco; VII - acompanhar, por meio de visita domiciliar, todas as famílias e indivíduos sob sua responsabilidade, de acordo com as necessidades definidas pela equipe; e VIII - cumprir com as atribuições atualmente definidas para os ACS em relação à prevenção e ao controle da malária e da dengue, conforme a Portaria nº 44/GM, de 3 de janeiro de 2002. Nota: É permitido ao ACS desenvolver atividades nas unidades básicas de saúde, desde que vinculadas às atribuições acima. Do Enfermeiro do Programa Agentes Comunitários de Saúde: I - planejar, gerenciar, coordenar e avaliar as ações desenvolvidas pelos ACS; II - supervisionar, coordenar e realizar atividades de qualificação e educação permanente dos ACS, com vistas ao desempenho de suas funções; III - facilitar a relação entre os profissionais da Unidade Básica de Saúde e ACS, contribuindo para a organização da demanda referenciada; IV - realizar consultas e procedimentos de enfermagem na Unidade Básica de Saúde e, quando necessário, no domicílio e na comunidade; V - solicitar exames complementares e prescrever medicações, conforme protocolos ou outras normativas técnicas estabelecidas pelo gestor municipal ou do Distrito Federal, observadas as disposições legais da profissão; VI - organizar e coordenar grupos específicos de indivíduos e famílias em situação de risco da área de atuação dos ACS; e VII - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da UBS.

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Do Enfermeiro: I - realizar assistência integral (promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) aos indivíduos e famílias na USF e, quando indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos demais espaços comunitários (escolas, associações etc), em todas as fases do desenvolvimento humano: infância, adolescência, idade adulta e terceira idade; II - conforme protocolos ou outras normativas técnicas estabelecidas pelo gestor municipal ou do Distrito Federal, observadas as disposições legais da profissão, realizar consulta de enfermagem, solicitar exames complementares e prescrever medicações; III - planejar, gerenciar, coordenar e avaliar as ações desenvolvidas pelos ACS; IV - supervisionar, coordenar e realizar atividades de educação permanente dos ACS e da equipe de enfermagem; V - contribuir e participar das atividades de Educação Permanente do Auxiliar de Enfermagem, ACD e THD; e VI - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da USF. Do Médico: I - realizar assistência integral (promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) aos indivíduos e famílias em todas as fases do desenvolvimento humano: infância, adolescência, idade adulta e terceira idade; II - realizar consultas clínicas e procedimentos na USF e, quando indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos demais espaços comunitários (escolas, associações etc); III - realizar atividades de demanda espontânea e programada em clínica médica, pediatria, gineco-obstetrícia, cirurgias ambulatoriais, pequenas urgências clínico-cirúrgicas e procedimentos para fins de diagnósticos; IV - encaminhar, quando necessário, usuários a serviços de média e alta complexidade, respeitando fluxos de referência e contra-referência locais, mantendo sua responsabilidade pelo acompanhamento do plano terapêutico do usuário, proposto pela referência; V - indicar a necessidade de internação hospitalar ou domiciliar, mantendo a responsabilização pelo acompanhamento do usuário; VI - contribuir e participar das atividades de Educação Permanente dos ACS, Auxiliares de Enfermagem, ACD e THD; e VII - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da USF. Do Auxiliar e do Técnico de Enfermagem: I - participar das atividades de assistência básica realizando procedimentos regulamentados no exercício de sua profissão na USF e, quando indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos demais espaços comunitários (escolas, associações etc); II - realizar ações de educação em saúde a grupos específicos e a famílias em situação de risco, conforme planejamento da equipe; e III - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da USF. Do Cirurgião Dentista: I - realizar diagnóstico com a finalidade de obter o perfil epidemiológico para o planejamento e a programação em saúde bucal; II - realizar os procedimentos clínicos da Atenção Básica em saúde bucal, incluindo atendimento das urgências e pequenas cirurgias ambulatoriais; III - realizar a atenção integral em saúde bucal (promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) individual e coletiva a todas as famílias, a indivíduos e a grupos específicos, de acordo com planejamento local, com resolubilidade;

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IV - encaminhar e orientar usuários, quando necessário, a outros níveis de assistência, mantendo sua responsabilização pelo acompanhamento do usuário e o segmento do tratamento; V - coordenar e participar de ações coletivas voltadas à promoção da saúde e à prevenção de doenças bucais; VI - acompanhar, apoiar e desenvolver atividades referentes à saúde bucal com os demais membros da Equipe de Saúde da Família, buscando aproximar e integrar ações de saúde de forma multidisciplinar. VII - contribuir e participar das atividades de Educação Permanente do THD, ACD e ESF; VIII - realizar supervisão técnica do THD e ACD; e IX - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da USF. Do Técnico em Higiene Dental (THD): I - realizar a atenção integral em saúde bucal (promoção, prevenção, assistência e reabilitação) individual e coletiva a todas as famílias, a indivíduos e a grupos específicos, segundo programação e de acordo com suas competências técnicas e legais; II - coordenar e realizar a manutenção e a conservação dos equipamentos odontológicos; III - acompanhar, apoiar e desenvolver atividades referentes à saúde bucal com os demais membros da equipe de Saúde da Família, buscando aproximar e integrar ações de saúde de forma multidisciplinar. IV - apoiar as atividades dos ACD e dos ACS nas ações de prevenção e promoção da saúde bucal; e V - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da USF. Do Auxiliar de Consultório Dentário (ACD): I - realizar ações de promoção e prevenção em saúde bucal para as famílias, grupos e indivíduos, mediante planejamento local e protocolos de atenção à saúde; II - proceder à desinfecção e à esterilização de materiais e instrumentos utilizados; III - preparar e organizar instrumental e materiais necessários; IV - instrumentalizar e auxiliar o cirurgião dentista e/ou o THD nos procedimentos clínicos; V - cuidar da manutenção e conservação dos equipamentos odontológicos; VI - organizar a agenda clínica; VII - acompanhar, apoiar e desenvolver atividades referentes à saúde bucal com os demais membros da equipe de saúde da família, buscando aproximar e integrar ações de saúde de forma multidisciplinar; e VIII - participar do gerenciamento dos insumos necessários para o adequado funcionamento da USF.

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ANEXO C – Mapas e Gráficos da Evolução da Implantação e Implementação da Estratégia Saúde da Família no Brasil

Evolução da Implantação das Equipes Saúde da Família BRASIL, 1998/2005

1998 1999

2000

2001

2002 2003

2004 2005

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2006

Situação de Implantação de Equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e Agentes Comunitários de Saúde

BRASIL, FEVEREIRO/2007

Evolução do Número de Municípios com Equipes de Saúde da Família Implantadas

BRASIL - 1994 – FEVEREIRO/2007

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Meta e Evolução do Número de Equipes de Saúde da Família Implantadas BRASIL - 1994 – FEVEREIRO/2007

Evolução da População Coberta por Equipes de Saúde da Família Implantadas BRASIL - 1994 – FEVEREIRO/2007

Meta e Evolução do Número de Agentes Comunitários de Saúde Implantados BRASIL - 1994 - FEVEREIRO/2007

Evolução do Número de Municípios com Agentes Comunitários de Saúde Implantados

BRASIL - 1994 - FEVEREIRO/2007

Evolução da População Coberta por Agentes Comunitários de Saúde Implantados BRASIL - 1994 - FEVEREIRO/2007

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Evolução do Número de Equipes de Saúde Bucal BRASIL - 2001 - FEVEREIRO/2007

Evolução da População Coberta por Equipes de Saúde Bucal BRASIL - 2001 - FEVEREIRO/2007

Evolução do Percentual de Cobertura Populacional das ESF, Distribuído por Porte Populacional

BRASIL - FEVEREIRO/2007

Evolução da Cobertura Populacional (%) de ACS, PSF e ESB BRASIL - 2001 a FEVEREIRO/2007

Evolução dos Recursos Financeiros da Atenção Básica BRASIL - 2000 - 2006

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