da opinião ao insulto em três comentários · Comportamentos Redes sociais: da opinião ao...
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Comportamentos
Redes sociais :
da opiniãoao insulto emtrês comentáriosReligião. Política. Futebol. Alterações climáticas. Parentalidade.
Educação. Tudo se discute nas redes sociais e todos têm umaopinião. Mas, com demasiada frequência, as trocas de ideiasdescambam em discussões violentas
SOFIA TEIXEIRANotícias Magazine/ Açoriano Oriental
A mecânica é quase sempre amesma. Começa pela ideia defazer só um comentário a umpost, uma nota breve, uma opi-nião ali deixada entre os afaze-res realmente importantes dodia. Só que, horas depois, umcomentário transformou-se em20 comentários. A calma deulugar a uma indignação cres-cente que não deixa ninguém irdormir descansado enquantohouver alguém com uma opi-nião diferente.
O conteúdo das respostascomeça a ter pouco que vercom o assunto inicial e passaà ofensa espúria. E ganhar adiscussão com desconhecidostransforma-se numa questãode vida ou morte, que ignora
as regras básicas da civilidadee educação.
O psiquiatra e professor daHarvard Medicai School,Adam P. Stern, usa uma ana-logia do quotidiano para ex-plicar o fenómeno: no dia-a-dia, uma das situações em quemais frequentemente ficamosexaltados a despropósito é
quando estamos ao volante eoutro condutor faz uma ma-nobra perigosa.
O que fomenta essa respos-ta emocional excessiva e coléri-ca é a distância e o anonimato :
a única coisa que sabemos so-bre o outro é que ele se atraves-sou à nossa frente, colocando-nos em perigo.
Sabendo isto, já se adivinhapor que está aberto o caminho
para a truculência nas intera-ções virtuais. O outro está tão
distante que não o vemos e, fre-
quentemente, a única coisa quesabemos sobre aquela pessoa é
que tem convicções diferentesdas nossas - o que, na realida-de, sentimos como um perigo.
"As trocas de opinião onlineevoluem rapidamente para dis-cussões porque não há ligaçãohumanapalpável quando esta-mos a digitar num teclado.Quando podemos olhar alguémnos olhos, temos mais hipóte-ses de perceber as suas inten-ções e não esquecemos a hu-manidade subjacente a todosnós. Online essa ligação huma-na é perdida, pelo que os nos-sos instintos mais primários de
agressão e dominância podemassumir o controlo", explica o
psiquiatra em entrevista à "No-tícias Magazine".
Temos tendência para ficarparticularmente indignadoscom assuntos que nos tocampessoalmente, que são parteintegrante da nossa identida-de e da nossa visão do Mundo.E isso que explica que assun-tos de política, futebol ou pa-rentalidade sejam gatilhosmuito frequentes para dis-cussões em murais de Face-bookque se tornam infinitas:o que está em causa quasenunca são factos, mas antescrenças pessoais.
E sempre que alguém escre-ve alguma coisa que choca defrente com as nossas crenças,sentimo-nos ameaçados e rea-gimos com fervor. O fenóme-no não é exclusivo do mundovirtual, mas, mais uma vez, o
distanciamento que a internetproporciona faz com que se ig-norem regras de convivênciasocial básicas.
Eis a "vantagem" de uma dis-cussão virtual: termina quan-do se quiser que termine. E pos-sível ficar três horas seguidasa destilar ódio e, de um segun-do para outro, desligar o com-putador e ir fazer o jantar outratar das crianças. Não viráninguém bater-nos no ombro a
pedir satisfações."Há muito menos conse-
quências quando o tom se tor-na agressivo, por comparaçãocom ávida real", lembra o pro-fessor da Harvard MedicaiSchool. "Se duas ou mais pes-soas entram numa disputa queenvolve gritos e ofensas pes-soalmente, existe a possibilida-de de um acabar por recorrerà violência. Online não existeessa ameaça de consequênciasreais. Por isso, guiamo-nos pe-las nossas pulsões e instintos
mais básicos."
Somos iguaisou somos outros?Dylan Marron, um ativista nor-te-americano criador de con-teúdos digitais - por exemplo,sobre os direitos dos transe-xuais, a brutalidade da políciae os maus tratos aos nativosamericanos -, descobriu de-
pressa que atrás do sucesso on-line vem o ódio online. "Es umamerda", "És um exibicionistasem talento" e "És um gay no-jento" são uma amostra dos co-mentários que começou a rece-ber em catadupa.
Dylan tinha várias dúvidas:
quem eram as pessoas que es-creviam isto? Seria possívelcriar pontes com elas? Seriamelas capazes de lhe dizer o mes-mo verbalmente? Por isso, re-solveu criar um podcast cha-mado "Conversas com pessoasque me odeiam" e falar por te-lefone com algumas delas. Nasua recente TED Talk "Empa-tia não significa aprovação", re-flete sobre essa experiência edefende que, por vezes, "a coisamais subversiva que se pode fa-zer é conversar com as pessoasde quem discordamos, em vezde apenas lhes responder".
No final da maioria dessas
conversas, ambos os lados se re-cordam que, do outro, estavauma pessoa e conseguiram, de
alguma forma, criar empatia econcordar em discordar. Nin-guém o ofendeu durante os te-lefonemas e a maioria expres-sou arrependimento por tê-lofeito por escrito.
Uma das teorias que explicaa razão pela qual pessoas apa-rentemente civilizadas se trans-formam, ocasionalmente, em
comentadores tão incendiáriosé a teoria do "Efeito da Desini-bição Online" que defende queas particularidades do am-biente virtual são propícias aessa mudança de comporta-mento. Mas, apesar disso, serofensivo e agressivo por siste-ma parece estar mais relacio-nado com as características in-dividuais de cada um do quecom o meio utilizado.
"Duvido que as pessoas quesão permanentemente agressi-vas e insultuosas online não o
sejam também no contacto pre-sencial", considera Guilhermi-na Lobato Miranda, professo-ra do Instituto de Educação daUniversidade de Lisboa. A in-vestigadora nos domínios daPsicologia da Educação e daTecnologia Educativa acredita
que uma parte significativa dasdiscussões online que descam-bam em extremos é explicadapor uma necessidade narcísica
que muitos têm de se ouvir a si
próprios, de acolher a aprova-ção ou mesmo a indignação dos
outros."Ficar anónimo e indiferente
é que não. É uma necessidade e
desejo de ser visto, observado e
reconhecido, mesmo que pelanegativa, que lhes vem desde ainfância. Muitas dessas pessoasnão desenvolveram mecanis-mos que lhes permitam reagirà frustração de não serem o alvode atenção", remata.
Outro fator que explica a pro-liferação desse tipo de comen-tários online é um certo efeitode eucalipto que acabam porter: secam tudo à sua volta, nãodeixam que nada mais floresça.A "Teoria das Janelas Partidas",aplicada ao contexto dos com-
portamentos antissociais, podeajudar a explicar por que é queos comentários negativos eofensivos parecem proliferarem algumas páginas, murais e
publicações.A imagem que mais facil-
mente explica esta ideia é a se-
guinte: quando uma janela deum edifício está partida e não é
reparada, é mais provável quemais gente atire pedras às res-
tantes janelas do edifício, aca-bando por destruí-lo por com-pleto. O caos gera caos, adesordem gera desordem, o
vandalismo gera mais vanda-lismo. Na internet acontece o
mesmo: quando um post oumural já tem comentários ne-gativos ou ofensivos, quem pas-sa sente-se mais à vontade para"atirar mais uma pedra".
"Na criminologia, essa teoriapressupõe que num ambienteem que há sinais visíveis de cri-me, de comportamentos antis-sociais e de vandalismo, geram-se mais destes comportamentose que, por isso, se devem preve-nir e evitar de início estes com-portamentos, por mais 'inofen-sivos' que possam parecer",assinala Guilhermina LobatoMiranda.
"Se a regra começa a ser acei-tar ou tolerar certo tipo de com-
portamentos desviantes, seránatural que estes comporta-mentos sejam aceites e prati-cados por um maior número de
pessoas ou pelas mesmas pes-soas, mas com mais frequênciae intensidade."
Uma mão cheiade especialistas em tudoO efeito Dunning-Kruger, queleva as pessoas com menos co-nhecimentos sobre um deter-minado assunto a acreditar quesabem sobre o tema mais do
que outros mais bem prepara-dos, não é um fenómeno re-cente, mas a internet veio dar-lhe outra dimensão. Se antesessa superioridade ilusória erafundada apenas na falta de co-nhecimento, agora é reforça-da com a internet, onde abun-da informação errada quelegitima crenças falsas.
"O Google e outros motoresde busca permitem que as pes-soas sintam que são especialis-tas num assunto, quando naverdade só vêem as visões dis-torcidas das primeiras páginasde resultados daquilo que pes-quisam", salienta Adam P. Stern.
Porque a internet não de-mocratizou apenas o acesso à
informação e ao conhecimen-
to - também democratizou odireito a dizer disparates e ater público para eles -, quemprocure online "provas" de quea terra é plana vai encontrá-las facilmente. Depois, o sis-tema autoalimenta-se: o serhumano já tem uma tendên-cia para o viés de confirmação,ou seja, para procurar infor-mação que confirma as suas
crenças, mas isso é reforçadopelo algoritmo do Google e doFacebook que estão progra-mados para nos colocar cons-tantemente debaixo do narizo tipo de informação que cos-tumamos procurar e não in-formação contraditória.
Resultado: mesmo que não
procuremos, o sistema encar-rega-se de nos dar sempre maisdo mesmo. E, quando recebe-mos alguma coisa diferente, te-
mos mecanismos de proteção:"É um efeito conhecido em psi-cologia cognitiva e comporta-mental como o 'efeito do con-tra-ataque'", explica Adam P.
Stern. "De forma perfeitamen-te contraintuitiva e pouco ra-cional, as pessoas tornam-semais entrincheiradas na sua po-sição, quanto mais argumentose factos contra as suas crençaslhes são apresentados." É umjogo viciado.
Ainda estamos a viver na in-fância das redes sociais. O Fa-cebook entrou nas nossas vidashá pouco mais de dez anos e, fa-zendo scroll down no mural du-rante tempo suficiente, quasetoda a gente encontrará algu-ma coisa de que se envergonhar.O conceito de netiqueta - o con-
junto de normas de comporta-mento educado online - é cadavez mais falado, pese embora
mais não sejado que uma trans-posição das regras habituais decortesia para o mundo virtual.
Lentamente, a legislação temapertado o cerco e aumentadoa responsabilização por algunscomportamentos online, comoo recente aumento das penaspara a divulgação de imagensou vídeos da intimidade de ou-tros sem a autorização. Ascrianças estão a deixar de serconsideradas "nativas digitais"por definição, e cada vez se re-flete mais sobre a necessidadede lhes dar literacia digital.
Muitos sinais de que a Inter-net é cada vez menos encara-da uma terra de ninguém e o ca-minho parece seguir na direçãodo mais elementar bom senso:não se fazer nem dizer onlinenada que não se faria ou diriapessoalmente. ?