Da Metaficção Como Agonia Da Identidade

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da metaficção como agonia da identidade A mão esquerda desenha a mão direita que por sua vez desenha a mão esquerda. Duas mãos desenham com zelo uma à outra, aparentemente começando por si mesmas: as mãos já estão tão definidas que parecem sair do próprio desenho que elaboram, e elas agora se dedicam a preparar os punhos da sua camisa (como se só então começassem a desenhar o dono delas mesmas). O desenho dessas mãos encontra-se pregado por tachinhas num pedaço de cortiça – mas o pedaço de cortiça que sustenta o desenho é ele mesmo um outro desenho. As mãos que se desenham não estão completas, se ainda não terminaram de se desenhar, mas ao mesmo tempo compõem um quadro completo. A imagem dessas mãos que se desenham a si mesmas é bastante conhecida. Ela remete a paradoxos importantes, como o de representar a complexidade através de uma idéia visual simples. Essa imagem é uma litogravura chamada, em holandês, de Tekenenden handen – em português, Mãos que se Desenham . Ela foi concebida em 1948 pelo artista holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972). “As mãos de Escher” nos apresentam o enigma da metaficção. Segundo verbete em dicionário de termos literários, William H. Gass cunhou o termo “metafiction”, preferindo-o à expressão “anti-romance” – essa expressão antes desqualifica do que descreve os textos literários que explicitam sua condição ficcional. Por isso, segundo Gass, “muitos dos assim chamados anti-romances são na verdade metaficções”. O redator do verbete considera que a metaficção surge para superar o peso da tradição realista na literatura americana, subvertendo os elementos narrativos canônicos como intriga, personagens e ação, para estabelecer um jogo intelectual com a linguagem e com a memória literária. Ele define a metaficção como “uma ficção fundada na elaboração de ficções”. Essa ficção peculiar promove uma separação entre a linguagem e a realidade, isto é, explora a idéia de que a linguagem não representa ou “diz” a realidade, mas antes a inventa ou a reinventa. Se essa idéia vale para toda linguagem, com maior razão deve valer para a linguagem ficcional, que desde sempre se define como a linguagem da invenção. Todavia, a definição parece insuficiente. Gass cunhou o termo “metafiction” a partir da noção de metalinguagem desenvolvida pelos lingüistas Hjelmslev e Saussure, mas aquilo que o termo designa provavelmente existe desde o primeiro poema, o primeiro drama, a primeira narrativa: “signos metanarrativos são traços inerentes à narrativa em geral, e não meramente características de romances metaficcionais”. O coro e o “deus ex machina” das tragédias gregas são soluções metaficcionais. Há quatrocentos anos atrás, o personagem Dom Quixote já criticava a narrativa

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Teoria Literaria

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da metafico como agonia da identidadeA mo esquerda desenha a mo direita que por sua vez desenha a mo esquerda. Duas mos desenham com zelo uma outra, aparentemente comeando por si mesmas: as mos j esto to definidas que parecem sair do prprio desenho que elaboram, e elas agora se dedicam a preparar os punhos da sua camisa (como se s ento comeassem a desenhar o dono delas mesmas). O desenho dessas mos encontra-se pregado por tachinhas num pedao de cortia mas o pedao de cortia que sustenta o desenho ele mesmo um outro desenho. As mos que se desenham no esto completas, se ainda no terminaram de se desenhar, mas ao mesmo tempo compem um quadro completo.

A imagem dessas mos que se desenham a si mesmas bastante conhecida. Ela remete a paradoxos importantes, como o de representar a complexidade atravs de uma idia visual simples. Essa imagem uma litogravura chamada, em holands, de Tekenenden handen em portugus,Mos que se Desenham. Ela foi concebida em 1948 pelo artista holands Maurits Cornelis Escher (1898-1972).

As mos de Escher nos apresentam o enigma da metafico. Segundo verbete em dicionrio de termos literrios, William H. Gass cunhou o termo metafiction, preferindo-o expresso anti-romance essa expresso antes desqualifica do que descreve os textos literrios que explicitam sua condio ficcional. Por isso, segundo Gass, muitos dos assim chamados anti-romances so na verdade metafices.

O redator do verbete considera que a metafico surge para superar o peso da tradio realista na literatura americana, subvertendo os elementos narrativos cannicos como intriga, personagens e ao, para estabelecer um jogo intelectual com a linguagem e com a memria literria. Ele define a metafico como uma fico fundada na elaborao de fices. Essa fico peculiar promove uma separao entre a linguagem e a realidade, isto , explora a idia de que a linguagem no representa ou diz a realidade, mas antes a inventa ou a reinventa. Se essa idia vale para toda linguagem, com maior razo deve valer para a linguagem ficcional, que desde sempre se define como a linguagem da inveno.

Todavia, a definio parece insuficiente. Gass cunhou o termo metafiction a partir da noo de metalinguagem desenvolvida pelos lingistas Hjelmslev e Saussure, mas aquilo que o termo designa provavelmente existe desde o primeiro poema, o primeiro drama, a primeira narrativa: signos metanarrativos so traos inerentes narrativa em geral, e no meramente caractersticas de romances metaficcionais. O coro e o deus ex machina das tragdias gregas so solues metaficcionais. H quatrocentos anos atrs, o personagem Dom Quixote j criticava a narrativa das histrias de... Dom Quixote. A metafico no , portanto, uma inveno da literatura anglo-americana contempornea.

Tambm no esclarece muito defini-la como uma fico fundada na elaborao de fices. Talvez fosse melhor definir metafico como uma fico que explicita, de diferentes maneiras, sua condio de fico, quebrando assim o contrato de iluso entre o autor e o leitor. Esse contrato de iluso, porm, mais recente do que faz parecer o verbete, datando do sculo que Jos Ortega Y Gasset chamou de centria realista, ou seja, do sculo XIX.

Marcado pela crena positivista no progresso, o sculo XIX acreditava que graas cincia se estava chegando muito prximo da certeza final sobre a realidade. Parte substancial da fico desse perodo emulava os procedimentos cientficos na sua prtica discursiva a ponto de fingir que no fingia, isto , de fingir que no fazia fico mas sim que dizia toda a verdade, nada mais do que a verdade, somente a verdade. Por essa razo, seria mais adequado chamar de anti-romances ou de anti-fico os textos desse perodo, e no os textos metaficcionais.

Explicam-se as afirmaes de Ortega Y Gasset, no incio do sculo XX: toda a arte normal da centria passada foi realista; romantismo e realismo, vistos da altura de hoje, aproximam-se e descobrem a sua comum raiz realista. Por essa perspectiva, pode-se considerar tanto o romantismo quanto o realismo como um nico estilo de poca: o estilo burgus. Esse estilo se caracterizaria pela denegao da fico (mesmo quando faz fico), graas confiana arrogante do burgus em sua prpria capacidade de descobrir e revelar a verdade (nada mais do que a verdade).

Continuamos burgueses, mas a nossa autoconfiana se enfraqueceu bastante. O sculo seguinte ao XIX pode ser chamado de centria da incerteza graas ao retorno das dvidas polticas e epistemolgicas, em funo de decepes histricas e impasses cientficos. emblemtico do sculo XX o conhecido princpio da incerteza de Heisenberg, pelo qual a observao de um fenmeno altera o prprio fenmeno, impedindo que se saiba ao certo como seria o fenmeno antes de ser descrito. Junto com as dvidas e as incertezas, retorna, com toda a fora, a metafico: a metafico funda-se numa verso do princpio heisenberguiano da incerteza. De acordo com Forrest-Thompson, na verdade no h outra realidade que no nossos prprios sistemas de medir a realidade. Reagindo denegao realista da fico, a metafico se define melhor como uma fico que no esconde que o , obrigando o leitor a manter a conscincia clara de estar lendo um relato ficcional e e no um relato verdadeiro obrigando o leitor, portanto, a manter-se em suspenso, ou seja, em estado permanente de dvida e incerteza.

A obrigao da fico no a de dizer a verdade mas sim a de firmar uma verdade a diferena sutil mas importante. O ato de dizer a verdade supe uma e somente uma verdade prvia ao de express-la, enquanto que o ato de firmar uma verdade supe uma verdade possvel entre outras, verdade esta que se constri no momento mesmo em que se a expressa. Nas palavras ligeiramente jocosas de William Gass, a verdade, eu estou convencido, sente antipatia pela arte. melhor quando um escritor tem uma profunda e persistente indiferena por ela, embora como pessoa a verdade possa ser vital para ele.

A verdade mesma cinzenta, sensaborosa e, em ltima anlise, inacessvel, ao passo que a verdade do escritor colorida, suculenta e intensa: isso ilustra um princpio bsico: se eu descrevo muitssimo bem o meu pssego, o poema que far a minha boca aguar... enquanto o pssego real se estraga.

A caracterstica principal da metafico a autoconscincia, mas uma autofico socrtica que sabe o quanto no sabe: de acordo com David Lodge, metafico uma fico sobre fico: romances e histrias que chamam a ateno para o seu status ficcional e para os seus prprios procedimentos de composio. Suas passagens reconhecem a artificialidade das convenes realistas mesmo quando as empregam; desarmam a crtica, antecipando-a; adulam o leitor tratando-o como intelectualmente igual, suficientemente sofisticado para no ser derrubado pela assuno de que um trabalho de fico antes uma construo verbal do que uma fatia da vida.

A fico que chama a ateno sobre a sua prpria condio ficcional termina por levantar questes relevantes sobre as relaes entre fico e realidade e, em ltima anlise, questes decisivas sobre a a realidade mesma. De acordo com Patricia Waugh, ao criticar seus prprios mtodos de construo, tais escritos no examinam apenas as estruturas fundamentais da fico narrativa, eles tambm exploram a possvel condio ficcional do mundo externo ao texto ficcional. A reflexo terica sobre a literatura se amplia, nesse caso, para uma reflexo filosfica sobre o mundo e a nossa existncia nele: a metafico tambm tem oferecido modelos extremamente acurados para entender a experincia contempornea do mundo como uma construo, um artfice, uma rede de sistemas semiticos interdependentes.

Para faz-lo, o texto metaficcional incorpora o dilogo no seu monlogo, fazendo o escritor, os leitores e os crticos conversarem entre as metforas: a metafico assimila todas as perspectivas crticas dentro do prprio processo ficcional. Entre os esquemas metaficcionais, encontramos: romances sobre uma pessoa escrevendo um romance; contos sobre uma pessoa lendo um conto at se ver de repente dentro do conto que est lendo; histrias que comentam as convenes da prpria histria, como captulos, ttulos, pargrafos ou enredos; romances no-lineares que possam ser lidos no apenas do princpio para o final; notas de rodap que continuam a histria enquanto a comentam; romances em que o autor personagem do seu prprio romance; histrias que conversam com o leitor, antecipando, frustrando ou ironizando suas reaes histria; personagens que se preocupam seriamente com a circunstncia de se encontrarem em meio a uma histria de fico; trabalhos de fico que saem de dentro de outros trabalhos de fico; histrias que incorporam aspectos e referncias de teoria ou crtica da literatura; obras que criam biografias de escritores imaginrios; enredos que sugerem aos leitores que eles se encontram em mundos to ficcionais quanto aquele dos enredos.

O romance metaficcional confronta, sem a eles se opor totalmente, o romance realista do sculo XIX e sua variante no sculo seguinte, o romance no-ficcional ou histrico. No romance histrico pessoas reais e personagens histricos interagem com personagens de verdade (ou de mentira, dependendo do ponto de vista). Algumas vezes esse tipo de fico chamado de no-fico justamente porque, ao usar personagens histricos em meio a personagens-personagens, reforaria a iluso realista de representao do real ponto a ponto. No entanto, o efeito pode ser semelhante ao da metafico estrita: romances no-ficcionais sugerem que fatos so, em ltima anlise, fices, e romances metaficcionais sugerem que fices so fatos. Em ambos os casos, a histria vista como uma construo provisria. A Histria maiscula que conhecemos marcada pelas molduras textuais que a narram e se mostra um mundo alternativo dentro de um conjunto de vrios mundos alternativos.

Intensificando esse efeito, h uma variante contempornea do romance histrico conhecida como metafico historiogrfica. Esse tipo de metafico critica ou at mesmo falsifica a narrativa histrica tradicional, revisitando ironicamente as convenes da memria cultural e manifestando clara desconfiana quanto as grandes narrativas, em particular quanto a narrativa da Histria. Segundo Currie, a importncia da metafico historiogrfica definida por sua habilidade de pr em dvida as pressuposies do romance realista e da narrativa da histria, de questionar a conhecibilidade absoluta do passado e de especificar as implicaes ideolgicas das representaes histricas passadas e presentes.

O advento da metafico historiogrfica foi analisado por Linda Hutcheon, que mostrou como as disciplinas Literatura e Histria eram consideradas no sculo XIX dentro do mesmo campo de aprendizado. Elas se separam no sculo XX por fora da hiper-especializao, mas tambm por fora da multiplicao das dvidas epistemolgicas. Entretanto, essas mesmas dvidas acabam por reaproxim-las num determinado aspecto: na fico e na histria escritas hoje, nossa confiana nas epistemologias empiricistas e positivistas tem sido abalada abalada, mas talvez ainda no destruda.

A lio comum a ambas a de que o passado existiu um dia, mas nosso conhecimento sobre esse passado s pode ser transmitido por meio de signos verbais e visuais. Questiona-se dessa maneira o conhecimento positivo, mas no se pode e no se quer destruir a possibilidade desse conhecimento. Logo, no lugar de uma destruio iconoclasta das formas anteriores de saber, promove-se uma espcie de ceticismo suspensivo. Esse ceticismo marcar igualmente a metafico mais ampla, quando ela se dedica, como veremos um pouco mais adiante, a revelar as convenes do realismo sem, todavia, ignor-las ou abandon-las.

Se a presena do personagem histrico em um trabalho de fico no torna a a fico mais histrica mas sim contamina de fico a histria, de modo equivalente a realidade do autor como pessoa, quando ele se torna personagem de suas prprias histrias, se esfuma: quanto mais o autor ou autora aparece, menos ele ou ela existe. Quanto mais o autor ou autora alardeia sua presena no romance, mais notvel sua ausncia fora dele. Entre ns o caso mais emblemtico o de Machado de Assis (como veremos adiante): quanto mais intervm como autor nos seus romances, confundindo-se com seus narradores, menos conhecida e mais misteriosa se torna a sua vida pessoal. Teramos aqui uma espcie de retomada do Paradoxo do Mentiroso, quando um cretense dizia que todos os cretenses so mentirosos: se ele estivesse dizendo a verdade, ele estaria mentindo, logo, no estaria dizendo a verdade; entretanto, se ele estivesse mentindo, ele estaria dizendo a verdade, logo, no poderia estar mentindo. Pela reconfigurao moderna do Paradoxo, um metaficcionista afirmaria, com toda a sinceridade: todos os romancistas so mentirosos.

As definies que Lodge e Waugh nos oferecem para a metafico so elogiosas, sugerindo que ela se constitua em uma caracterstica sofisticada da literatura contempornea. Suas definies tambm mostram a importncia da metafico para compreender no somente a literatura, mas o mundo em que se faz literatura. No entanto, preciso lembrar que h controvrsias. Tom Wolfe, por exemplo, v esse tipo de escrita como sintoma de uma cultura literria narcisista e decadente: Outra histria sobre um escritor escrevendo uma histria! Outro regressus ad infinitum! Quem no prefere arte que ao menos imite abertamente alguma outra coisa, preferencialmente a seus prprios processos?

De fato, so muitos os escritores, editores e professores que continuam defendendo o contrato de iluso e verossimilhana entre autores e leitores, reagindo ao que entendem como a moda (ou a overdose) da metafico. Escutam-se comumente declaraes desse tipo: ser Machado de Assis no para quem quer, s para quem pode. O elogio a Machado (nosso escritor metaficcional por excelncia, como adiante tentarei demonstrar) na verdade um elogio-restrio metafico e ao prprio escritor, praticamente sugerindo que ele permanea quieto na sua condio de esttua cannica de maneira a no dar mau exemplo para os jovens escritores. Manifesta-se dessa maneira a saudade do realismo simples e direto que Machado tanto criticou quando afirmou, por exemplo, que a realidade boa, o realismo que no presta para nada , ou quando solicitou: voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo. A saudade do realismo implica, enfim, a saudade do tempo das certezas burguesas.

A importncia para compreender a literatura e o mundo em que se faz literatura ressalta quando se estuda a linguagem cotidiana. Essa linguagem endossa e sustenta estruturas de poder que naturalizam, isto , tornam invisveis diferentes formas de opresso. Para Waugh, o equivalente literrio da naturalizante linguagem cotidiana a linguagem do romance realista e suas convenes de verossimilhana: a metafico se ergue em oposio no ostensivamente contra os fatos objetivos no mundo real, mas contra a linguagem do romance realista que tem sustentado e endossado tal viso da realidade.

Como o realismo pretende descrever a vida como ela , o que subentende a idia de que a vida s pode ser de um jeito, a saber, o jeito com que o realismo a descreve, faz parte das suas convenes a figura do narrador onisciente que tudo sabe porque, no seu mundo ficcional que supostamente representa o mundo real, tudo pode ser sabido. O narrador onisciente a que personagens e leitores no tm o menor acesso atua como invisvel alter ego do prprio escritor, por sua vez representao em miniatura do prprio Criador. Em contrapartida, romances nos quais o romancista apaga a si mesmo criam mundos sem deuses, isto , mundos livres de causas suficientes, onipresentes e onipotentes.

Identifica-se a saudade do realismo, ainda, na nfase obsessiva dos media e das prprias editoras na pessoa do escritor: de fato a recepo de um novo escrito provavelmente nunca foi to obsessivamente centrada no autor quanto hoje. Semelhante obsesso no se traduz na multiplicao de resenhas e crticas, mas sim na multiplicao de entrevistas, perfis, prmios, leituras pblicas e lanamentos performticos de livros. Os livros que mais vendem no so necessariamente os mais lidos, simplesmente porque eles so comprados menos por causa deles mesmos e mais graas persona do autor. Se os autores contemporneos desconfiam tanto da realidade quanto de si mesmos, seus crticos e leitores resistem a essa desconfiana com todas as suas foras cognitivas: insiste-se em ver no autor a origem real do seu texto bem como a representao fiel daquele Criador que criou um mundo s (e no vrios mundos, muito menos vrias verdades).

A linguagem realista basicamente metonmica: as descries so apresentadas como recortes de um todo que seria o mundo real. Romances metaficcionais, entretanto, quebram a metonmia e rejeitam aquela noo divinizante do escritor, entendendo-o como uma construo social tal qual o leitor: a metafico torna explcita a problemtica implcita ao realismo. Desconfiando da sua prpria histria, a metafico promove a desconfiana em relao realidade, conseqentemente, em relao a todo tipo de realismo. Desconfiando do seu prprio narrador, a metafico promove a desconfiana em relao cincia e oniscincia do escritor. Desconfiando ironicamente de ambos, a metafico promove a desconfiana do leitor em relao sua prpria identidade.

Todavia, cabe uma ressalva importante: a metafico explicitamente revela as convenes do realismo; ela no as ignora nem as abandona. O combate ao realismo no supe a construo de um texto anti-realista ou completamente surrealista que siga sem peias os prazeres narcisistas da imaginao. O que o texto metaficcional faz reexaminar as convenes do realismo para descobrir, atravs da sua prpria auto-reflexo, um formato ficcional que seja relevante e compreensvel para os leitores contemporneos: ao nos mostrar como a fico literria cria seus mundos imaginrios, a metafico nos ajuda a entender como a realidade que vivemos dia a dia , de modo similar, construda e escrita.

Mais do que isso, a metafico nos ajudaria a viver nesta realidade. Os textos metaficcionais revelam a indeterminao e a referencialidade propositalmente incompleta da fico, sua existncia como mundo feito de palavras: tais textos, entretanto, enfatizam que a habilidade para manipular e construir mundos hipotticos, alternativos ou ontologicamente distintos tambm uma condio da existncia social, da vida fora dos romances.

Porque ainda somos burgueses, logo ainda relativamente presos concepo realista da verdade e do mundo como nicos, a metafico se dedica a desequilibrar esta nossa condio e as certezas dela derivadas com boas doses de ironia. Se a caracterstica principal da metafico a autoconscincia, importa lembrar que via de regra a autoconscincia irnica e auto-irnica. Logo, uma caracterstica secundria da metafico a ironia. A ironia se justifica porque a conscincia-de-si leva, paradoxalmente, dvida existencial mais profunda. O movimento de autoconscincia conduz ao beiral de diferentes abismos. Quanto mais me pergunto quem sou, com o providencial auxlio da histria, da biologia, da psicanlise ou da filosofia, menos sei quem sou, quem fui ou quem serei nos prximos instantes.

A catarse literria tambm mostra esse paradoxo da identidade. Quando Fulano sente se identificar com um personagem ou com uma de suas falas, imagina que aquele personagem faz ou diz algo que ele sempre quis fazer ou dizer, como se o autor estivesse pensando especificamente em Fulano para criar seu personagem e seus dilogos. Uma auto-reflexo um pouco mais atenta e menos auto-referente, porm, reconhecer que antes de ler aquele livro Fulano nunca desejou fazer ou dizer o que o personagem fez ou disse, simplesmente porque isso no poderia ter lhe ocorrido. A vulgar sensao de identificao que chamamos de catarse no se deve definir como uma igualdade primria e prvia entre leitor e personagem, mas sim como o processo do reconhecimento de si mesmo como algum que h pouco no se era, isto , como o processo de produo de si mesmo.

O leitor no se identifica propriamente com o personagem, mas sim este que oferece quele uma identidade: no que nos identifiquemos com o personagem, mas sim este que nos atribui uma identidade, nos esclarece e nos define frente a ns mesmos. Como nossa sensao de identidade pessoal difusa, tanto que gaguejaremos se forados a responder de chofre pergunta quem voc, e como o personagem ficcional tem uma identidade muito melhor definida, merc de sua limitao folha de papel, de bom grado tomamos emprestada a identidade e o carter do personagem que tenha nos comovido. Dizendo de outra maneira: a leitura do mundo atravs da perspectiva diferente do personagem modifica a perspectiva do leitor; ora, essa modificao implica alterao substancial na sua prpria identidade. Ou seja: a catarse no implica uma identificao que acalme porque, afinal, se tem uma identidade e se sabe quem se , mas sim uma mudana de identidade (ora prazerosa, ora dolorosa).

A prpria palavra identidade e suas derivadas escondem esse processo. Quando algum diz que tem uma identidade (e no apenas um documento de identidade) est na verdade dizendo que idntico a algo ou a algum que idntico a um modelo. A identidade, nos termos da prpria palavra e a despeito de ns mesmos, no aquilo que singulariza Fulano mas todo o contrrio: a identidade aquilo que o torna igual a outrem. Quando outrem um ser que no existe, todavia, realiza-se sim uma identificao singularizante ainda que sempre irnica. Como dir o matemtico, o smbolo do eu provavelmente o mais complexo de todos os smbolos do crebro. No possvel dizer eu no sendo eu, ao contrrio de todos os outros referentes possveis. Logo, no possvel sair de mim para saber o que sou ento, s me resta fazer uma pirueta mental e aninhar-me em mim mesmo atravs de um meta-movimento equivalente ao da metafico.

Logo, a metafico representa a busca da identidade, mas a define como essencialmente agnica: dizer quem sou uma necessidade que me exige sair de mim para poder me ver, o que uma impossibilidade. Corro atrs da minha prpria imagem como o cachorro corre atrs do seu prprio rabo e como o urboro corre desde sempre atrs da sua prpria cauda para devor-la e devorar-se.

Robert Scholes, no artigo em que procura definir a metafico a partir da obra dos escritores americanos John Barth e Donald Barthelme, considera-os os cronistas do nosso desespero: desespero por sobre as formas exauridas do nosso pensamento e da nossa existncia.. O desespero de que se fala remete diretamente agonia, isto , aos momentos de dor que antecedem a morte, por extenso quaisquer momentos de sofrimento extremo.

Entretanto, o termo grego agona significava antes luta do que dor. Associando os dois sentidos temos que estabelecer algo como uma identidade no fcil no caso artstico, depende da autoconscincia irnica facultada pelos processos de metafico. Por isso, a hiptese que ser trabalhada doravante a de que o enigma da metafico remete diretamente ao enigma e ao drama da identidade humana.

O que bem representado peloauto-retratodo desenhista argentino Joaqun Salvador Lavado, mais conhecido como Quino, o autor da Mafalda. No retrato, Quino parece caprichosamente encarcerar a si mesmo no quadrado que desenha com o lpis, de modo a ficar preso como numa solitria muito apertada. O quadrado pode ser visto como um quadrinho, das histrias em quadrinhos, ou como a moldura de um quadro, o seu recorte definitivo. O desenho cmico, decerto, mas, como todo o cmico, fala de nossas tragdias cotidianas e da estreita margem de esperana que temos. Essa margem estreita tambm se encontra representada no desenho: como vemos, o desenhista ainda no fechou o quadro em torno de si mesmo.Todavia, falta pouco.