Da estrutura prática à conjuntura interactiva – relendo o Esboço de uma teoria da prática de...

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Revista Crítica de Ciências Sociais 64 (2002) Número não temático ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Telmo H. Caria Da estrutura prática à conjuntura interactiva – relendo o Esboço de uma teoria da prática de Pierre Bourdieu ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Aviso O conteúdo deste website está sujeito à legislação francesa sobre a propriedade intelectual e é propriedade exclusiva do editor. Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digital desde que a sua utilização seja estritamente pessoal ou para fins científicos ou pedagógicos, excluindo-se qualquer exploração comercial. A reprodução deverá mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e a referência do documento. Qualquer outra forma de reprodução é interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casos previstos pela legislação em vigor em França. Revues.org é um portal de revistas das ciências sociais e humanas desenvolvido pelo CLÉO, Centro para a edição eletrónica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - França) ................................................................................................................................................................................................................................................................................................ Referência eletrônica Telmo H. Caria, « Da estrutura prática à conjuntura interactiva – relendo o Esboço de uma teoria da prática de Pierre Bourdieu », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 64 | 2002, posto online no dia 01 Outubro 2012, consultado o 30 Janeiro 2013. URL : http://rccs.revues.org/1239 Editor: Centro de Estudos Sociais http://rccs.revues.org http://www.revues.org Documento acessível online em: http://rccs.revues.org/1239 Este documento é o fac-símile da edição em papel. © CES

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TEXTO SOBRE A OBRA DE BOURDIEU

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  • Revista Crtica de CinciasSociais64 (2002)Nmero no temtico

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    Telmo H. Caria

    Da estrutura prtica conjunturainteractiva relendo o Esboo de umateoria da prtica de Pierre Bourdieu................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    AvisoO contedo deste website est sujeito legislao francesa sobre a propriedade intelectual e propriedade exclusivado editor.Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digitaldesde que a sua utilizao seja estritamente pessoal ou para fins cientficos ou pedaggicos, excluindo-se qualquerexplorao comercial. A reproduo dever mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e areferncia do documento.Qualquer outra forma de reproduo interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casosprevistos pela legislao em vigor em Frana.

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    Referncia eletrnicaTelmo H. Caria, Da estrutura prtica conjuntura interactiva relendo o Esboo de uma teoria da prtica dePierre Bourdieu, Revista Crtica de Cincias Sociais [Online], 64|2002, posto online no dia 01 Outubro 2012,consultado o 30 Janeiro 2013. URL: http://rccs.revues.org/1239

    Editor: Centro de Estudos Sociaishttp://rccs.revues.orghttp://www.revues.org

    Documento acessvel online em: http://rccs.revues.org/1239Este documento o fac-smile da edio em papel. CES

  • Revista Crtica de Cincias Sociais, 64, Dezembro 2002: 135-143

    A recente edio em portugus, pela CeltaEditora, do Esquisse dune thorie de lapratique um bom pretexto para reler-mos um dos clssicos da teoria socialps-estruturalista (Bourdieu, 2002), 1 pas-sados 30 anos da sua primeira publicao,em 1972. Mais do que isso, foi para mimo reencontro com o autor que, penso, maisinfluenciou, na primeira metade da dca-da de oitenta, a primeira gerao de so-cilogos licenciados em Portugal, na qualme incluo. Lembro que na altura, paramuitos de ns, numa conjuntura em queo pensamento marxista ainda era hegem-nico em Portugal no meio intelectual, noqual se faziam ainda ouvir os ecos doPREC, justificando a necessidade de ra-cionalizar desencantos e frustraes, aobra de Bourdieu parecia ser a sntese dassnteses: estrutural mas no estruturalista;histrica mas no historicista; poltica masno militante; marxista q.b. e suficiente-mente weberiana para ter a legitimao dacincia social.Muitas tm sido as interpretaes da obrade Pierre Bourdieu, muitas vezes contra-ditrias entre si. Sabemos do lamento doautor por no ser devidamente compreen-dido e lido. Suponho que, mais impor-tante do que ter ou dar a interpretaocerta da obra deste autor, ser interro-garmo-nos sobre a actualidade desta obrapara nos fazer pensar a investigao dehoje (Lahire, 2002) e, mais particular-mente, para me fazer repensar o estudoetnogrfico que realizei entre professores.

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    Da estrutura prtica conjuntura interactiva relendo o Esboo de umateoria da prtica de Pierre Bourdieu

    Assim, pareceu-me que um comentriocrtico ao Esquisse cumpriria bem estepropsito e tornaria menos polmica a in-terpretao, dado circunscrever-me a umnico texto (estou a excluir do meu co-mentrio os trs estudos sobre Etnologiacabila [pp. 3-131] que precedem a Teoriada Prtica).Este livro tem ainda a vantagem, comorefere Richard Figuier na introduo, deser o primeiro texto que revela a maturi-dade terica do autor, deixando ao mes-mo tempo, ainda, do meu ponto de vista,algumas portas entreabertas que Le senspratique, de 1980, vai abrir, nalguns casos,e fechar, noutros. Tornemos no entantoclaro, como tanto gostava Bourdieu desalientar nas suas anlises sobre os acto-res que se movimentam nos campos cul-turais, que este meu comentrio no ingnuo, nem desinteressado. , de facto,a tomada de posio de algum (1) queocupa uma posio perifrica nos camposda sociologia e da antropologia, (2) queinvestiga na aproximao entre a socio-logia, a antropologia e a psicologia, a fimde abordar objectos ligados educaoenquanto actividades scio-cognitivas eactividades de racionalizao da cultura,(3) e que se distanciou, nos ltimos 10 anos,do quadro terico de Bourdieu e da socio-logia institucional que se pratica em Por-tugal para se dedicar ao uso de teoriassociais micro-sociolgicas e antropolgicasde inspirao fenomenolgica. Vejamos,pois, ao longo das linhas que se seguem,como que esta posio concorre para odebate terico-epistemolgico em CinciasSociais.

    1 Todas as referncias a Bourdieu ao longo deste texto(e respectivas indicaes de pgina) so extradas destaobra.

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    1. Uma teoria para reflectir sobre a Cin-cia Social

    As primeiras linhas do texto de Bourdieuso muito claras quanto aos seus prop-sitos: o de desenvolver uma crtica ao modocomo se produz cincia social, denuncian-do os limites explicativos das teorias sociaisestruturalistas (principalmente as etnol-gico-antropolgicas) e da posio do te-rico-intelectual que fala em lugar deoutros e em seu lugar (pp. 137-138).Assim, a ideia base de que Bourdieu parte a de que a teoria social que serve paraexplicar as prticas de outros tambm deveservir para explicar o acto de construoda cincia social (p. 135). A cincia, ao sertambm uma prtica, no poder escapar teoria explicativa de toda a prtica socialproposta pelo autor. S a aparente inge-nuidade do cientista social poder fazeresquecer que a sua qualidade de estrangei-ro numa cultura em estudo supe uma re-lao erudita com o objecto em estudo queilusoriamente estabelece uma oposioentre a teoria (de que seria o especialista)e a prtica dos autctones. Mas, realmente,aquilo que estranho para o observadorexterno acaba por se revelar bem familiar,porque se trata de explicar prticas sociaisquando a actividade do cientista social tambm uma prtica. Em consequncia, no2. captulo (pp. 145-162), Bourdieu vaicaracterizar as modalidades de conheci-mento terico existentes para saber qualdelas que est em condies de, no mes-mo acto, ser capaz de conhecer os outros ede dar a conhecer a Cincia Social ao cien-tista.A inteno parece confundir-se, antes doseu tempo, com os pressupostos da crticaps-moderna da cultura, quando esta de-nuncia a arrogncia do conhecimentocientfico e a incapacidade deste parareconhecer os limites da sua racionalidade.A apresentao inicial do texto tambmconcorre para esta confuso, pois afirma-se

    pretender desconcertar os epistemlogossem prtica e os cientistas sem reflexoatravs de um estilo de escrita de notasem andamento, que no nem o manualde metodologia nem o trabalho de investi-gao emprica (pp.135-136). Mas no, oque se vai desenvolver uma teoria queem nenhum momento serve para criticar acincia no seu todo, enquanto campo so-cial autnomo. Nem mesmo se vai ques-tionar as metodologias em concreto, queno terreno fazem a cincia, pois o pres-suposto de Bourdieu o de que, se tiver-mos uma teoria geral da prtica, podere-mos objectivar a cincia (como qualquerprtica social) sem ter que percorrer ocaminho do relativismo elementar (p. 140)que seria o de questionar (acrescentariateorizar, cf. Caria, 2000: 37-65) o observa-dor externo datado e situado.Bourdieu esclarece que o modo praxiol-gico de produzir teoria cientfica (propostopor ele) est claramente em oposio aomodo fenomenolgico (tpico do interac-cionismo simblico e da etnometodologia),dado considerar que este explora a relaode familiaridade com o vivido (aproxi-mao que poderia ser vantajosa) sem que-rer entender as condies de possibilidadeque explicam a estrutura da cultura autc-tone existente (p. 145). Para o autor, afenomenologia, ao no buscar estabeleceruma ruptura com as representaes ind-genas do mundo, no poder estar em con-dies de poder tambm realizar uma rup-tura com as representaes do observadorestrangeiro (que permitir, segundo oautor, ver a cincia tambm como umaprtica social). Reforando o seu distan-ciamento face fenomenologia, o autorafirma que a praxiologia parte do conhe-cimento objectivista (refere-se ao estru-turalismo e a todas as construes cientfi-cas que explicam a realidade a partir demodelos ou ideias-tipo) para o superar(p. 146). Assim, assume como bom o corte

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    radical com a experincia do mundo,desenvolvido pelo objectivismo, comonico meio para entender as estruturassociais que determinam as experincias,desde que estas estruturas no sejam en-tendidas do exterior (como fixas, mecni-cas e invariantes) mas como disposiesinteriorizadas pelos agentes sociais que asactualizam e as produzem em processoshistrico-sociais (p. 145).Nesta linha de raciocnio, para Bourdieu,os indivduos so sempre determinadossocialmente, no interpretam opes pos-sveis nem tm projectos, so sempreagentes e no actores ou sujeitos sociais.No entanto, a prtica social, sem ser umainteraco (uma interpretao de expec-tativas mtuas em reciprocidade, na versofenomenolgica), tambm no um com-portamento de execuo. Tal como a fala,a prtica no depende do conhecimentodas estruturas (da gramtica e das regu-laridades scio-estatsticas) para existir(pp. 153-154).

    2. Esquemas pr-reflexivos e automatis-mos da aco

    O conceito central de Bourdieu para ex-plicar o modo como a prtica social existe o de habitus. a teorizao em tornodeste conceito que permite a Bourdieuexplicar nos captulos 3, 4 e 5 (pp. 163--212) como e porque que a lgica da pr-tica ou o domnio prtico da prtica socialno se confunde com a interaco social,com a conscincia prtica, com as racio-nalizaes discursivas ou com a regra (docostume ou da instituio) mais ou menosexplcita.O habitus definido (a sntese minhaporque os elementos referidos so varia-dos ao longo do texto) como um conjuntode esquemas pr-reflexivos (disposies)de percepo, apreciao e antecipaoque foram produzidos no agente social.Estes esquemas so o resultado de um tra-

    balho de inculcao pela prtica (ver fazere fazer acompanhando os que sabem fazer)em que o agente social interioriza, de modosistemtico e coerente, as estruturas derelaes de poder, a partir do lugar e daposio que nelas ocupa, e exterioriza emprticas as disposies (os esquemas pr--reflexivos estruturados) que antes inte-riorizou (pp. 163-164; p. 182). No entanto,a prtica no produto da estrutura pre-sente mas antes uma relao dialcticaentre a estrutura interiorizada pela histriado grupo ou da classe social (habitus) ea estrutura social presente (pp. 166-167).O eventual desfasamento entre uma e outraimplica a necessidade de improvisao, nose podendo repetir mecanicamente o quefoi praticado no passado (pp. 178-179).O facto de se reconhecer o improviso so-cial, determinado pela histria do agentesocial, no modo como a lgica da prticaopera, faz com que, por um lado, o con-ceito de prtica nunca possa ser conside-rado como a obedincia a regras sociaisexternas ainda que implcitas ou a cons-trangimentos institucionais (p. 164). Assim,a diferenciao entre o social e o indivi-dual, tantas vezes valorizada pelas cinciassociais, perde sentido porque o indivduoser sempre o produto estrutural da suahistria social face ao estado conjunturalpresente das relaes de poder (p. 167;p. 178). Por outro lado, o improviso socialtambm no deve ser entendido como umaqualquer adequao a fins posteriores oua intenes estratgicas prvia e conscien-temente formuladas (pp. 257-258).A incerteza da lgica da prtica (que tornanecessrio o improviso), segundo Bour-dieu, supe que as construes subjectivasda conscincia sejam consequncia a poste-riori da prtica improvisada e no a suaorigem ou explicao. Assim, as aspiraes,as categorizaes e os julgamentos sociaistendem a adequar-se ao provir, ao nome-vel e ao realizvel, atravs dos esquemas

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    pr-reflexivos, respectivamente, de anteci-pao, percepo e apreciao, de acordocom as possibilidades estruturais relativas posio de poder ocupada por cadaagente social. Os improvisos que se desen-volvem nas situaes de desfasamento en-tre o passado e o presente supem: (1) parao caso das apreciaes, transferncias desentido que operam atravs de um cr-culo de metforas que permite analogiasimplcitas entre sistemas de classificao(p. 167); (2) para o caso das antecipaes,um clculo estratgico prtico que operapor homologias estruturais de posies depoder entre diferentes situaes o inte-resse de ter posio, mantendo-a ou evitan-do perd-la (pp. 176-177; 208; 234; 237;247; 263); para o caso das percepes, com-petncias culturais adquiridas de apropria-o e descodificao simblicas, que pos-sam transformar os interesses materiais dasestratgias prticas em relaes de comu-nicao e de cooperao, apresentadascomo desinteressadas e generosas a fim dedissimular as desigualdades de poder exis-tentes (pp. 177; 237-240).O melhor argumento de Bourdieu paraque a explicao do improviso prtico nopasse pela conscincia do agente social estno facto de a inculcao do habitus seproduzir e reproduzir atravs do corpo (dofazer e ver fazer, como dissemos atrs).Existe, assim, nos primeiros anos de vida(h uma cronologia das estruturas,p. 183) um trabalho pedaggico difusoe annimo, sem autonomia e sem especifi-cidade, que enquanto ambiente social es-truturado vai ser incorporado (uma hexiscorporal), desenvolvendo-se no corpoos esquemas pr-reflexivos j referidos(pp. 185-186). Sendo aprendido por incor-porao (os exemplos apresentados soinmeros e esto centrados nos ritos so-ciais, pp. 187-193), o habitus no trans-parente conscincia e sua transformaovoluntria (p. 194).

    A incorporao das estruturas cumpre afuno de disciplinar o corpo selvagem,exigindo-se o pormenor das atitudes, dosgestos, dos tons de voz, etc., aparentementeinsignificantes, e exigindo-se o rodeio eo adiamento da satisfao, diferindo e di-versificando os prazeres no tempo, isto ,exigindo-se a forma pela forma, sem razo(pp. 193-194). Deste ponto de vista, o habi-tus um ser que se reduz a um ter, a umter sido e um ter feito ser (p. 182). Assim,nada tem a ver com qualquer teoria queaborde o problema da identidade socialcomo construo de uma conscinciacolectiva. Existiro habitus mais seme-lhantes e outros mais diversos conforme aidentidade de condies de existncia (dosteres). Estes, ao serem regulados estrutu-ralmente, supem uma harmonizao dehabitus diversos que se tornaro previsveise inteligveis, na prtica, os comportamen-tos de outros, reproduzindo-se as estru-turas de desigualdade existentes, como sede uma grande orquestra se tratasse, em-bora sem maestro: uma inveno seminteno, uma concertao objectiva(pp. 169-176).Em concluso, a lgica da prtica permiteuma adequao automtica do pensamen-to e da aco conjuntura, para vencer osdesfasamentos entre o habitus e as ocasies,sem que a subjectividade do agente socialtenha que ser activada, dado estar em pri-meiro lugar inscrita no corpo (pp. 164-165). Esta adequao automtica supe umdomnio prtico da prtica, presente nosprincpios organizadores das disposiesdo habitus, em que da prtica se passa prtica pela arte de quem aprendeu fa-zendo sem manifestar interesse ou intenoem saber (pp. 185-187; 232) e em queo tempo irreversvel, supondo para oagente social uma cronologia e uma se-quncia de acontecimentos necessrios ebvios (a naturalizao da histria em in-consciente) (pp. 168; 227-231).

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    3. As facetas das teorias indgenas e ahysteresis do habitus

    A necessidade que Bourdieu tem de des-valorizar o papel da conscincia e da inter-aco na dinmica social coerente com oposicionamento epistemolgico inicial derejeitar totalmente a tradio fenomenol-gica e aceitar parcialmente a tradio estru-turalista. Penso que a colocao do pro-blema nestes termos poder ser resultadoda conjuntura intelectual dos anos 70 emFrana e do facto de os trabalhos de inves-tigao (os trs estudos sobre os Cabila)em que se apoia terem provavelmente cor-respondido a um corte na sua trajectriaintelectual de formao, de filsofo paraetnlogo (Pinto, 2000: 17-36). Da quetenhamos que perguntar at que pontoBourdieu nos deixa portas abertas parapensar as tambm parciais contribuiesda fenomenologia para uma teoria da pr-tica? No caso, uma teoria da prtica queno se centre apenas na anlise estrutural(essa retirada parcialmente da con-tribuio epistemolgica objectivista queo texto em anlise expressa) e enfatizeaquilo que poderamos designar comoanlise conjuntural (esta, pelo contrrio,retirada das contribuies fenomenol-gicas). , principalmente, nos captulos 5e 6 que encontramos os elementos que nosfizeram admitir como possvel este outroolhar e leitura.No pretendo afirmar ou dar a entenderque Bourdieu tenha formulado este pro-blema. Neste texto, no o encontrei eaquilo que conheo da restante obra deBourdieu no me permite afirm-lo. A per-gunta minha e justifica-se no quadro deraciocnio que desenhei no incio desta re-censo: ler Bourdieu para ver das suascontribuies para repensar a teoria e a in-vestigao social de hoje. O propsito ode saber at que ponto pode existir umaregulao consciente da prtica sem a con-fundir com o reducionismo culturalista

    relativo explicao subjectivista da aco.Globalmente, toda a teoria estrutural daprtica de Bourdieu est subordinada ideia, no que se refere s possveis con-tribuies da fenomenologia, de que nopodemos reduzir a estrutura objectiva darelao social estrutura conjuntural dainteraco (p. 177-178). Pergunto: E o in-verso, tpico da anlise estrutural, reduzira conjuntura estrutura da relao social,podemos? Bourdieu responder-nos-ia quesim. Mas suponho que, em vrios momen-tos do seu texto, nos d sinais de quepodem existir excepes. Vejamos: fala--nos da lgica da prtica (p. 203; 223)como aberta porque necessariamente in-coerente nos princpios e incerta na pre-viso dos resultados, para assim poderpermitir o improviso e subordinar a cons-cincia s funes prticas da prtica.Acrescenta (p. 222) que s a lgica for-malista do terico pode imaginar uma l-gica da prtica como formando um todohomogneo. Admite, ainda, que umaforma de conscincia lacunar, parcial edescontnua acompanha as prticas na for-ma de controlos de vigilncia sobre os au-tomatismos (p. 201) (Giddens [1989]chama-lhe conscincia prtica), dado o in-consciente no ser totalmente opaco in-teraco (p. 200). Os costumes (Giddens[1989] chama-lhes rotinas de aco) e asnormas (como produtos dos habitus,p. 198; 202) esto prximos da lgica daprtica porque no enunciam princpiosexplcitos (apresentam situaes singu-lares como exemplares) e porque reforamos princpios implcitos dessas situaesexemplares sem os explicarem, emborapodendo enunciar o que no se pode fazer(isto , sem implicar a racionalizaodiscursiva).Em sntese, na minha leitura, aquilo a queBourdieu chama as teorias indgenas daprtica tanto pode servir as ideologias e osconflitos de legitimidade (as racionaliza-

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    es dos discursos enganadores do enga-nado, p. 202) como corresponder aodomnio simblico da prtica, no qual osagentes detm a sua ateno em segmen-tos da aco que so mais relevantes, maisrecomendados ou mais reprovados nosjogos sociais. Nestes jogos sociais, o dever--fazer e o dever-ser j no so vividos comonicos mas, entretanto, os princpios daprtica continuam implcitos, sem que seapresentem como regras sociais exteriores(p. 198; 201). Trata-se de analisar, porhiptese, esse saber social procedimental ecategorial que j uma norma mas aindano uma doxa, isto , um saber que descritvel e nomevel (principalmente pelanegativa) mas continua a ser inexplicvelpara os prprios agentes sociais, dado exis-tir na oralidade pr-formalizada da cons-cincia prtica, numa fase intermdia en-tre o estado de incorporao e o estadodiscursivo (Caria, 2000: 195-206, 2002a).Tambm Augusto Santos Silva (1994), noseu trabalho sobre a Sociologia da Cultu-ra, enfatiza este nvel intermdio dedomnio simblico da prtica que ficariaentre o sentido prtico e a formalizaodiscursiva/doutrinria.A minha experincia de investigao etno-grfica com professores encontrou os ele-mentos referidos por Bourdieu no qual asteorias indgenas tinham esse carcter aber-to, incoerente e muito pouco sistem-tico, para permitir que a lgica da prticapudesse improvisar. Para exprimir estascaractersticas, conclu que a cultura dosprofessores era como um puzzle de peasdesencaixadas mas onde os actores sociaisno deixavam de reconhecer, no planolocal das suas interaces, as incertezas daprtica sem que desenvolvessem discursosracionalizadores (Caria, 2000: 525-586).A explicao para esta oralidade interactiva(em muitos casos com valor normativo parao grupo, referida acima como pr-forma-lizada) estava, como mais tarde analisei

    quando os qualifiquei de problemas do quo-tidiano (Caria, 2002a), em trs factos quereflectiam o enquadramento histricodesta cultura local de orientao profis-sional (Caria, 2000: 225-306): (1) as mu-danas institucionais que decorriam dosesforos polticos de democratizao docampo escolar que pareciam conflituarcom a maioria das orientaes prtico--pedaggicas dos professores; (2) a diver-sidade de orientaes prtico-pedaggicasprotagonizadas por diferentes geraes deprofessores, socializadas no campo escolarem conjunturas histrico-polticas muitodiversas; (3) a nova conjuntura de procurasescolares, reconhecida pelos professores nolocal pela chegada de novos grupos sociaisquele nvel de escolaridade para o qualestes mostravam no ter uma experinciapedaggica acumulada.Sabemos que Bourdieu, quando analisouo campo escolar e outros campos culturaisnoutras obras desenvolveu um modelo deanlise que enfatizava esta dimensohistrica atravs do conceito de campo,permitindo-lhe situar e explicar a diversi-dade de habitus em presena atravs dasposies, ocupadas enquanto capitais espe-cficos, e das tomadas de posio dosagentes sociais, enquanto participao naslutas simblicas de legitimao de prticase obras no quadro de relaes de fora epoder estabelecidas atravs da histria docampo em anlise. Penso que o conceitode campo conduziu Bourdieu a valorizarsempre muito mais s dimenses macro--sociais da reproduo social, relativas srelaes de desigualdade, tendo isso comoconsequncia ver sempre dissolvidas naanlise estrutural as dinmicas sociais, pro-vocadas pelas incertezas da prtica (porexemplo aquelas que acima referi) que nogeravam mudanas estruturais. Nunca viuas dinmicas sociais como corresponden-do aos micro-processos de socializao quetm que lidar com a heterogeneidade de

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    trajectrias sociogeracionais para produ-zir uma identidade social colectiva (dira-mos, um estar-ser).No trabalho de investigao que j referi,junto de professores, lidei directamentecom este problema das microdinmicasinscritas em dinmicas de campo e vice--versa, tendo para o efeito analisado o feixede trajectrias scio-profissionais exis-tentes no grupo em estudo e procuradoproblematizar estes factos atravs dos con-ceitos de (re)produo social da profisso,de capital scio-profissional e de fracesgeracionais da profisso, englobando di-menses e variveis tanto micro como ma-cro, tanto objectivas como subjectivas (Ca-ria, 2000:240-305; 581-584). Expresso darelevncia destes processos tambm otrabalho simblico que analisei, realizadopela hierarquia informal do grupo de pro-fessores, para dissimular as heterogenei-dades de prticas e representaes, prove-nientes da heterogeneidade de trajectriasexistentes, desenvolvendo-se processosque designei de igualitarizao social (Caria,2000: 536-538). A anlise destes processose os conceitos que mobilizei para o efeitocorrespondem a dinmicas que penso ten-deram a ser pouco valorizadas no uso quefoi dado ao conceito de campo social e quecorrespondem tarefa de inculcao dosesquemas pr-reflexivos em uso nas novasgeraes num determinado contexto, paraque a posio e as tomadas de posio nocampo faam sentido com as teorias ind-genas vigentes, nem que para isso sejanecessrio (imposio de uma necessidadeobjectiva) dissimular os habitus diferencia-dos numa cultura oral que se reproduz nainteraco social quando confrontadacom processos de mudana.Ser importante no esquecer que estaaparente opo de Bourdieu de sobreva-lorizar os processos macro-societais temassociada, posteriormente, nos seus prin-cipais trabalhos dos anos 80, o desenvolvi-

    mento de metodologias de investigaoquase sempre centradas em inquritos queinevitavelmente reduziram a reflexividadedos agentes sociais aos discursos raciona-lizadores, desvalorizando por isso a orali-dade interactiva e pr-formalizada queatrs referi. Porventura, esta oralidadeno seria relevante no contexto dos Cabila(e das sociedades arcaicas, como lhes cha-ma Bourdieu) mas, hipoteticamente, podeser determinante em sociedades com ex-tensos espaos sociais institucionalizadose em processo de transio e mudanaacelerada, contendo desfasamentos estru-turais acrescidos.

    4. Para uma teoria conjuntural da prticaEm rigor, este problema no parece serinteiramente estranho s formulaes deBourdieu neste texto. De facto, encontra-mos afirmaes que nos ajudam a melhorexplicar esta reflexividade dos actores so-ciais, ao nvel da sua conscincia prtica einteractiva, sem o desenvolvimento de dis-cursos racionalizadores. Bourdieu d-nosdois tpicos de anlise que considero rele-vantes para este problema: (1) fala-nos deuma hysteresis do habitus enquanto desa-justamento das estruturas incorporadaspassadas s estruturas sociais presentes daprtica, para referir o eventual efeito deconjunturas revolucionrias (desvalorizan-do-as dizendo que o passado continua aser preponderante para a lgica da prtica),no chegando a negar a possibilidade deocorrerem mudanas sociais significativas,embora no a totalidade daquelas que eramdesejadas pelos actores sociais (as chama-das ocasies falhadas, p.179); (2) diz que aharmonizao dos habitus (o chamado fun-cionamento da orquestra social sem maes-tro) tem graus variveis, reconhecendo apossibilidade de existirem falhas nos pro-cessos de inculcao e deficincias nos ha-bitus, e acrescenta a possibilidade de ainstitucionalizao de regras sociais mais

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    explcitas permitir regular prticas que pelasua lgica, enquanto orquestrao impro-visada, no ocorreram automaticamente(p. 206; 234)Assim, poderemos perguntar: ser que areflexividade interactiva dos actores sociais(oralidade pr-formalizada e conscinciaprtica) em conjunturas de desfasamentoentre as estruturas sociais passadas e futu-ras pode desempenhar um papel comple-mentar regulao da prtica pela prtica,sem que tal possa ser confundido com asracionalizaes discursivas inscritas naslutas simblicas que ocorrem nos campossociais?Uma das possveis explicaes para queBourdieu no tenha formulado esta per-gunta, tendo antes sempre valorizado osdesfasamentos entre habitus e ocasiesnovas pelo lado das macrodinmicas doscampos sociais, decorre do facto de, paraexplicar a conduta social do agente nestassituaes, apenas ter como recurso o con-ceito de interesse (p. 208). Lembro, comoj referi atrs, que a lgica da prtica, quereproduz os habitus, em primeiro lugar ado ter e s depois a do ser. De facto, adefinio de capital simblico no captulo8 (pp. 237-258), apenas desenvolvida nacrtica ao economicismo marxista, isto ,como uma dissimulao dos interessesmateriais (uma economia das trocas sim-blicas). Bourdieu nunca coloca comoproblema terico a tarefa tantas vezes enfa-tizada pela antropologia social: a produodos homens pelos homens que, sendo ma-terial, tambm ser cultural-identitria.Este problema torna-se decisivo se admi-tirmos que a hysteresis do habitus ocorreem todas as conjunturas em que existemdescoincidncias e desfasamentos entreestruturas passadas e processos de mu-dana em curso, tornando a estrutura so-cial presente pouco estruturante e, por isso,as condies da prtica excessivamenteincertas para que o habitus possa operar

    apenas por via dos automatismos pr-re-flexivos. Assim, trata-se de tomar em con-siderao que as falhas da inculcao e asdeficincias do habitus decorrem de umproblema geral de todas as sociedades, queem Portugal tem sido reafirmado por RalIturra (1988, 1989, 1992) para fundamen-tar o objecto da antropologia da educao,a saber: o problema conjuntural relativo morte das geraes mais velhas que tmque se questionar sobre as condies emque entregam a sua herana (de patrimnioe saberes sociais) aos mais novos, pois, nasrelaes inter-geracionais, reconhecida aexistncia, especialmente nas nossas socie-dades, de um problema de envelhecimen-to dos habitus dos mais velhos, que expli-caria a sua hysteresis como facto socialcomum e no excepcional teoria da prti-ca. O trabalho simblico de igualitarizaosocial (que atrs referi como um dos re-sultados da nossa investigao com profes-sores) constitui, a meu ver, um bom exem-plo do que a produo social de umestar-ser que no se reduz lgica da dis-simulao dos interesses e que, pelo con-trrio, parece funcionar em sentido inver-so: o de objectivar uma subjectividadediversificada (uma cultura como processode interaco), absolutamente necessriaao desafio conjuntural de socializar as gera-es mais novas nas prticas de um grupode pertena e/ou referncia numa conjun-tura de mudana (Caria, 2000: 579-586).Do meu ponto de vista, a formulao doproblema nestes termos que d autonomia anlise conjuntural da prtica e d plau-sibilidade hiptese de que a reflexividadeinteractiva, tal qual a definimos anterior-mente, pode desempenhar um papelacrescido que supera as situaes difceise acidentais em que no se d a concer-tao objectiva dos habitus.Em concluso, o conceito de cultura (nosentido antropolgico) sem se opor ao dehabitus e sem se reduzir a este (como faz

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    Bourdieu, p. 177) abre-nos as portas paraa especificidade da anlise conjuntural daprtica que permite epistemologiapraxiolgica aceitar (parcialmente e paraa superar, semelhana do que Bourdieuafirma querer fazer com o objectivismo) atradio fenomenolgica. Mostra que aconjuntura interactiva nem sempre sereduz estrutura prtica, podendo ter comela provavelmente uma relao que comeapor ser de conflitualidade scio-cognitivaao nvel dos contextos da prtica de cadaindivduo e das relaes intra-grupos (cf.Caria, 2000: 20-27,170-177; cf. 2002b),antes de ser conflito e luta simblicas emcampos sociais particulares, nas relaes depoder entre grupos sociais.Portanto, Bourdieu deve ser levado a srioquando afirma que a reaco contra o ju-ridicismo sob a sua forma aberta ou mas-carada no deve levar-nos a fazer do habi-tus o princpio exclusivo de toda a prtica() (p. 200). Parece-me que muitos dosseus discpulos, e mesmo alguns dos seuscrticos, sempre partiram da ideia inversa:a de que, para este autor, o habitus era onico princpio de explicao da prtica.O meu propsito foi mostrar que Bourdieunos deixa portas entreabertas para pen-sarmos os restantes princpios explicativosda prtica, ainda que admitamos que elemuito provavelmente no se reveria nalgica dos argumentos expostos de apro-ximao fenomenologia.

    Telmo Caria

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