DA ESCRAVATURA AO TRABALHO FORÇADO: Da escravatura ao trabalho forçado: teorias e...

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    pp 299-325AFRICANA STUDIA, N 7, 2004, Edio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

    DA ESCRAVATURA AO TRABALHO FORADO: TEORIAS EPRTICAS*

    Valdemir Zamparoni**

    Pequeno povo do ocidente de Europa, de gloriosa e

    fidalgas tradies, em 3 de julho de 1842, deu Portugal

    com sua aliada a nobre e generosa Inglaterra o

    primeiro passo para a emancipao da raa negra.

    Paulo de Lima, 15/10/19151

    Havia o vento sobre as cabeas dos milhos

    havia a chuva sobre as guas dos rios

    e havia a carcia de fogo do cavalo-marinho

    sobre a cabea dos homens.

    Jos Craveirinha.

    * Verso deste texto foi publicada em Henriques, Isabel Castro (org.). Escravatura eTransformaes Culturais. Lisboa, Vulgata, 2002, pp. 81-118. Tratei o tema demaneira ampliada na tese de doutorado Entre narros & mulungos: colonialismo epaisagem social em Loureno Marques, Moambique, c. 1890 c. 1940. So Paulo,Universidade de So Paulo, 1998. Agradeo a meu aluno Marcos Vincius SantosDias Coelho o apoio na transcrio de microfilmes.

    ** Centro de Estudos Afro-Orientais, Universidade Federal da Bahia - Brasil1 Paulo de Lima. A theoria do humanitarismo. O Africano. Editorial. 15/05/1915.

    Carta enviada de Tete.

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    A abolio do trfico em 1836, e o tratado anglo-portugus de 1842,mencionado na epgrafe de Paulo de Lima, embora de reduzido signifi-cado para quotidiano das populaes coloniais, tiveram ampla resis-tncia da opinio pblica portuguesa que no s no alinhava com oabolicionismo como viu nos dois atos manifesta subservincia potnciaestrangeira.2 Ainda que tardios e ineficientes, a legislao e todas asjustificativas de S da Bandeira lanaram as pedras inaugurais de umdiscurso fundador do mito da precedncia do abolicionismo portugus,depois periodicamente reanimado.

    No vou aqui retomar toda a histria do sucessivo fracasso daproibio efectiva do trfico e da escravatura. Basta lembrar que asoberania nominal e a presena simblica em pequenos pontos dosterritrios africanos, fazia com que, mesmo que se quisesse, poucopoderia ser feito em relao continuidade do trfico: potentados echefaturas africanas agiam a seu bel prazer e, nas reas em queteoricamente Portugal exercia controle efetivo, as autoridades adminis-trativas e colonos estavam envolvidos no lucrativo negcio dos corposnegros (S da Bandeira, 1873; Farinha, 1942:335, 337 e 340; Capela,1985, 1993 e 2002). A sucessiva edio de leis sobre o assunto mostrao quanto eram ignoradas.3 O certo que foi o crescente apresamentode navios negreiros pelos ingleses somado legislao anti-escravistabrasileira o que extinguiu o grosso do trfico atlntico aps 1850. Istono quer dizer que alm da escravido interna, outros destinos nocontinuaram a existir como j demonstraram vrios estudos. No casomoambicano, o trfico se concentrou no centro-norte destinando-se aMadagascar e s demais colnias francesas do ndico at os primeirosanos do sculo XX.4

    2 Para uma anlise das relaes entre diplomacia e trfico de escravos ver Marques,1989, pp. 65-99.

    3 1856 - Abolio da escravido no Ambriz e em Cabo-Verde. Livres os filhos de mulherescrava. Abolio do trabalho forado dos carregadores; 1858 - Decreto fixandopara 1878 a abolio definitiva da escravido colonial; 1868 - Decreto de abolioimediata, assinado mas no promulgado; 1869 - Abolio da escravido (25 defevereiro). Indenizao dada pelo trabalho gratuito e forado dos libertos, at 1878;1876 - Extino do trabalho forado dos libertos. Cf. Oliveira Martins, 1920:187-88,n. 2.

    4 Particularmente sobre o trfico no ndico, ver entre outros: Campbell, 1988, Capela,O Escravismo Colonial em Moambique. Porto, Afrontamento,1993; Gerbeau, 1981;

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    Apesar da persistncia de prticas escravistas mais ou menosescamoteadas sob frmulas jurdicas diversas, a fase vivida pelo capita-lismo, nas dcadas finais do sculo XIX, exigia a re-significao dosentido de colnia. Em famoso texto de 1880, Oliveira Martins afirmavaque era mistr dissecar os pntanos, navegar os rios, abrir as estradas,construir os armazns e obter os braos, ferramenta humana detrabalho. Outrora a escravido supria isso, e o capital consolidava-seno preo dos negros. Hoje consolida-se nos adiantamentos e salriosdos imigrantes, negros ou chineses contratados para os territriosdespovoados. Nas regies habitadas por povos indgenas susceptveisda submisso rudimentar da civilizao, o capital intervm sob umaforma, s aparentemente diversa. A fora e no o contrato sua expres-so activa (...). Nesta nova conjuntura era preciso garantir a abun-dncia desse instrumento de trabalho chamado homem, e por isso asfazendas s prosperam custa mais ou menos brutal dos braosindgenas (Oliveira Martins, 1920:205, 218). Era, pois, necessriodescobrir um meio de tornar forado o trabalho do negro, sem cair novelho tipo condenado da escravido (idem, ibidem:233). O objetivoperseguido, entretanto, no tinha como ser mais explcito: explorarem proveito nosso o trabalho de uns milhes de braos, enriquecendo--nos custa deles, de tal modo se fez no Brasil (idem, ibidem).

    Ainda que divergisse do pessimismo colonial de Oliveira Martins,Ennes concordava que Portugal precisava encontrar um forma deobrigar as provncias ultramarinas a produzirem.5 Mas como? Dianteda inviabilidade de se poder contar com o trabalho dos colonos brancosem razo de factores ecolgicos, notadamente a dita inclemncia doclima, doenas tropicais, etc. e nem contar com o poder das mquinas,face escassez de capital (Ennes, 1946:28), a nica alternativa seriarecorrer ao trabalho indgena. O Estado, como legtimo soberano dasfuturas terras conquistadas, no deveria ter escrpulos em forar atrabalhar estes rudes negros da frica, esses ignaros prias da sia,

    Gregory, 1971:20-1, e sobre sua permanncia tardia ver, Capela & Medeiros, 1987,estudo este atualizado e republicado em Capela, 1993:75-132. Ver ainda Medeiros,1988, que rene a principal bibliografia sobre o assunto.

    5 Ennes et alii, 1946. Extrato do relatrio elaborado pela Comisso encarregada deestudar o problema de trabalho dos indgenas em 1899.

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    esses meios selvagens da Ocenia (idem, ibidem:27). A questo estavaresolvida. Restava coloc-la em prtica.

    Para isto era preciso se impor militarmente sobre o territrio epessoas, suprimindo soberanias. Isto feito, no sem alguma dificuldadediante dos acanhados recursos metropolitanos, desencadeou-se umvigoroso processo de expropriao de recursos materiais e espoliaocultural, que foi seguido de no menos vigoroso discurso justificadorda explorao que se iniciava, sobretudo, no que tangia utilizao detrabalho forado, o tristemente clebre chibalo. Reconhecia-se que oindgena, trabalhava, mas no por hbito, por instinto, com o fito deuma capitalizao ilimitada, como o europeu. Trabalha, sim, masaguilhoado pela necessidade imediata: e as necessidades do negro socurtas, e satisfazem-se com pouco. No abandona a liberdade e aociosidade, para ele felizes condies da vida selvagem, pelo trabalhofixo, ordinrio, constante, que a dura condio da vida civilizada.(Oliveira Martins, 1920:219). Era preciso pois buscar formas de fazercom que este potencial produtivo desperdiado se transformasse numafora de trabalho disponvel e abundante para servir ao mercado.Expropriao de terras, impostos e mecanismos legais foram articuladospara tal objetivo. Embora inequivocamente baseado no exerccio dafora o trabalho assim obtido no deveria ser tomado como um meroacto de explorao brutal dos braos indgenas como o admitiapublicamente Oliveira Martins (Idem, ibidem:218). Para os idelogosdo Estado colonial era essencial mostrar o trabalho assalariado edisciplinado como um avano civilizacional, um aporte cultural daEuropa para o mundo: suave caminho para os selvagens melhorarem-se pelo trabalho, a adquirirem pelo trabalho meios de existncia maisfeliz, a civilizarem-se trabalhando (Ennes, 1946:27).

    Conquistado, o sul de Moambique tornou-se uma reserva de forade trabalho barata quer para as minas do Transvaal e Rodsia6, quer

    6 Com a Portaria no 152 de 02/08/1875, Boletim Oficial no 32, I Srie, de 07/08/1875,o governo colonial inaugurou a regulamentao da emigrao de trabalhadores paraa regio, contudo foi a partir do Modus Vivendi, assinado durante a guerra sul-africana (1899-1902), pelo governo britnico no Transvaal, que se estabeleceu umvnculo explcito entre o fornecimento de fora de trabalho moambicana e aprioridade do trfego do Transvaal pelo porto de Loureno Marques. Para a principallegislao sobre o assunto, ver Covane, 1989.

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    para as machambas dos colonos locais quer, a partir de julho de 1908,para So Tom, justamente no pice da polmica que acusava Portugalde usar prticas escravistas nas roas cacaueiras.7 Nos sete anosseguintes 32.781 moambicanos foram enviados para as ilhas, dos quaissomente 22% foram repatriados. No vou me alargar sobre as condiesde trabalho em tal destino, assunto j tratado com maestria por outros.Basta mencionar o que, em 1912, O Africano publicou sob o ttuloPeles Humanas:

    Vimos a bordo do vapor portuguez frica enquanto ahi esteve fundeado,

    umas 37 peles humanas com pretos dentro, que nos disseram ser restos

    de 200 e tantos valentes que foram in-illo tempore prestar servios em S.

    Thom. Francamente, para um estudo anatmico do cadver do preto,

    achamos dispendioso o transporte de tais esqueletos e muito infame,

    pouco digno, pouco humano, o tratamento que se d a seres humanos

    at aquele estado de lindesa. S. Thom, serviais indgenas e escravatura,

    so trs tremendos poemas a fazer que no acham facilmente poeta que

    os rime em verso sono