Da Constatação à Construção Sentidos de Família Nos Dissertação Paulo André Sousa Teixeira
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
Da constatao construo: sentidos de famlia nos
laudos psicolgicos das Aes de Guarda de crianas e
adolescentes
Paulo Andr Sousa Teixeira
RECIFE/ PE
2013
-
Paulo Andr Sousa Teixeira
Da constatao construo: sentidos de famlia nos
laudos psicolgicos das Aes de Guarda de crianas e
adolescentes
Dissertao apresentada ao curso de Mestrado em
Psicologia, do Programa de Ps-Graduao em
Psicologia, da Universidade Federal de
Pernambuco, como requisito parcial para obteno
do grau de Mestre em Psicologia.
Orientadora: Prof. Dr. Maria Isabel Patrcio de
Carvalho Pedrosa
RECIFE/ PE
2013
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Catalogao na fonte
Bibliotecrio Tony Bernardino de Macedo, CRB4-1567
T266c Teixeira, Paulo Andr Sousa. Da constatao construo: sentidos de famlia nos laudos psicolgicos das aes de guarda de crianas e adolescentes / Paulo Andr Sousa Teixeira. Recife: O autor, 2013.
112 f. ; 30 cm.
Orientador : Prof. Dr. Maria Isabel Patrcio de Carvalho Pedrosa. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Ps Graduao em Psicologia, 2013.
Inclui referncia.
1. Psicologia. 2. Famlia. 3. Psicologia jurdica. 4. Psicologia discursiva. I. Pedrosa, Maria Isabel Patrcio de Carvalho. (Orientadora). II. Titulo.
150 CDD (22.ed.) UFPE (CFCH2013-149)
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
Da constatao construo: sentidos de famlia nos
laudos psicolgicos das Aes de Guarda de crianas e
adolescentes
Comisso Examinadora:
_____________________________________________
Prof. Dr. Maria Isabel Patrcio de Carvalho Pedrosa
1 Examinador/Presidente
_____________________________________________
Prof. Dr. Pompia Villachan Lyra
2 Examinador/Externo
_____________________________________________
Prof. Dr. Pedro de Oliveira Filhp
3 Examinador/Interno
Recife, 28 de Junho de 2013.
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AGRADECIMENTOS
Aos amigos da turma 2011 do Mestrado em Psicologia da UFPE, pelos momentos de aprendizado,
reflexo e boas risadas;
A Joo, secretrio do Programa, por visivelmente optar ir bem alm do essencial;
A minha orientadora, Bel, pelo companheirismo de tornar a minha pesquisa nossa empreitada;
banca examinadora, Profa. Pompia e Prof. Pedro. um privilgio ter pessoas que admiro na
condio de avaliadores;
Ao Tribunal de Justia de Pernambuco e ao Ministrio Pblico de Pernambuco, pela compreenso e
apoio na realizao deste trabalho, nas pessoas, respectivamente, do Des. Luiz Carlos de Barros
Figueiredo e do Dr. Josenildo Costa;
Ao Centro de Ateno Psicossocial (CAP/TJPE), pela confiana e prontido na cesso dos relatrios
psicolgicos, externados na pessoa da colega Sandra Mnica Rocha;
Aos meus amigos recifenses, hoje tantos, mas especialmente a Dany e Paulo Steffanello, famlia
escolhida;
A minha famlia, razo de cada esforo e noite em claro. Quero ser melhor por/para vocs, Nega e
Vincius.
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RESUMO
As diversidades e peculiaridades presentes nas dinmicas familiares continuam fomentando
discusses acadmicas, bem como norteando importantes questes de repercusso social.
Famlia, agora compreendida e expressa socialmente de forma diversificada, obriga os
profissionais que atuam com esse pblico a tambm acompanharem as transformaes em
termos de concepes, configuraes e demandas familiares. Nesse sentido, esta pesquisa
visou discutir sentidos de famlia construdos no bojo dos laudos psicolgicos solicitados
durante o trmite das Aes de Guarda de Crianas e Adolescentes. Para tanto, utilizamos
uma pesquisa documental em 50 (cinquenta) relatrios psicolgicos, produzidos para
subsidiar decises judiciais dos Processos de Guarda que tramitaram na Comarca do Recife -
PE, entre os anos de 2000 a 2009. Foram utilizadas ferramentas da anlise documental e
anlise discursiva para a interpretao do material coletado. A pesquisa teve por objetivo
perscrutar como o psiclogo participa da produo dos discursos sobre famlia engendrados
no/pelo poder judicirio, questionando o lugar que esse profissional se coloca(va). Afiliados a
uma perspectiva discursiva em Psicologia, na qual a linguagem ganha relevncia tanto terica
como metodolgica, entendemos que o parecer desses peritos faz circular determinados
discursos, os quais influenciam a ulterior sentena judicial. As discusses levantadas
reafirmam a pluralidade de concepes de famlia, mas tambm certa tendncia de posturas
normatizantes/normalizantes por parte dos profissionais. Lugares historicamente reservados
ao homem e mulher dificilmente so questionados, predominando o discurso que reifica
papis de gnero de forma desigual. Sobreposies frequentes entre parentalidades e
conjugabilidades alimentam conflitos, colocando crianas e adolescentes no lugar de objetos,
contrariando a normativa vigente. Apesar de algumas excees, observamos a predominncia
de laudos que se colocavam como reveladores de uma dada realidade, fomentando o debate tico em torno do saber/fazer psicolgico e os efeitos dos posicionamentos defendidos.
PALAVRAS-CHAVE: Famlia, Aes de Guarda, Psicologia Jurdica, Psicologia
Discursiva.
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ABSTRACT
Diversities and peculiarities that are present in family dynamics continue fostering academic
discussions, as well as guiding important issues of social repercussions. Family, now
understood and socially expressed in diverse ways, requires professionals who work with this
population to also monitor the changes in terms of concepts, configurations, and family
demands. In this sense, this research aimed to discuss family meanings that are constructed in
the psychological reports requested during the processes of Guard of Children and
Adolescents. To achieve our objective we used documentary research in fifty (50)
psychological reports produced to support judgments of processes of Guard that were judged
in the Court of Recife - PE, between the years 2000-2009. Documentary analysis and
discourse analysis were used for the interpretation of the collected material. The research
aimed to investigate how the psychologist participates in the production of discourses about
the concept of family created in the judiciary, questioning the role of that professional in this
creation . According to a discursive perspective in psychology, in which language becomes
relevant both theoretical and methodological, we understand that the opinion of these experts
proclaim certain discourses, which influence the subsequent court judgment. The discussions
raised reaffirm the plurality of conceptions of family, but also a tendency of normalizing
procedures pacticised by professionals. Places that are historically reserved for men and
women are hardly questioned, also, the predominant discourse consolidates unequal gender
roles. Parenthoods and concepts of marriage are become mixed au and confounded, and this
confusion contributes to conflictsan, making children and adolescent appear as objects, what
is contrary to current regulations. Despite some exceptions, we noticed the predominance of
reports that were placed as "revealing" a given reality, promoting the ethical debate about the
knowledge and practices constructed by psychologists and the effects of the positions that are
defended.
KEYWORDS: Family, Guard processes, Legal Psychology, Discursive Psychology.
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SUMRIO
INTRODUO 09
1. PSICOLOGIA E JUSTIA: PROPOSTAS PARA A COMPREENSO DE UMA RELAO CONFLITUOSA
13
1.1 Histrico da Psicologia Jurdica: contornos de uma relao em construo 13
1.2 Definies relevantes Psicologia Jurdica 15
1.3 Percia judicial e avaliao psicolgica: aproximaes e distanciamentos 16
1.4 Psicologia e Direito: pontos de (des)encontro 19
1.5 Psicologia Jurdica como uma especialidade (in)dependente 22
1.6 Psicologia Jurdica e produo de subjetividades 24
1.7 Psiclogo na justia ou psiclogo da justia? 29
2. FAMLIA(S): VISITANDO UM CONCEITO POLISSMICO 31
2.1 Tipos de Guarda 40
2.1.1 Guarda Alternada 40
2.1.2 Guarda Monoparental, Exclusiva e nica 41
2.1.3 Aninhamento ou Nidao 41
2.1.4 Guarda Conjunta ou Compartilhada 42
3. PSICOLOGIA DISCURSIVA: (DES)ENCONTROS PLURAIS 45
3.1 Encontrando e desencontrando autores e teorias 46
3.2 Nuances relevantes da linguagem em ao 55
4. O MTODO 61
4.1 O laudo pericial e o laudo psicolgico 62
4.2 Pesquisa Qualitativa 67
-
4.3 Anlise Documental 70
4.4 Coleta e Anlise dos Dados 72
5. SENTIDOS DE FAMLIA NOS LAUDOS PSICOLGICOS DAS AES DE GUARDA
75
5.1 Diversas vozes constroem a famlia 78
5.2 Transgeracionalidades e Famlia 79
5.3 O binarismo homem x mulher: ainda a guerra dos sexos? 81
5.4 Da coadjuvncia ao protagonismo: novas possibilidades de paternidades 85
5.5 Sobre a mercantilizao das relaes ou quanto vale um filho? 89
5.6 A Psicologia na produo de sentidos de famlia 92
5.7 Outros saberes, outros olhares, novas produes 95
5.8 Parentalidades X Conjugabilidades 100
REVERBERAES 104
REFERNCIAS 109
APNDICE
ANEXO
-
9
INTRODUO
O presente trabalho elegeu o laudo psicolgico em aes de guarda como objeto de
estudo. Esse documento, diferentemente do que possa parecer, tem grande influncia no
posicionamento do magistrado, o que justifica nosso interesse em estudar os circunscritores
de sua realizao. A noo de circunscritor est atrelada Rede de Significaes,
perspectiva terica da qual utilizamos alguns fundamentos, que sero explicitados no captulo
reservado ao debate sobre a influncia da linguagem no cotidiano. Por ora, basta
mencionarmos que os circunscritores so caractersticas que do condies para a existncia
de um determinado fenmeno, ao passo que o limitam. So parmetros para que determinada
situao possa acontecer, uma vez que tais balizadores ora funcionam possibilitando, ora
restringindo e dando contornos a um objeto especfico (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2004).
O que estamos produzindo com nossos relatrios psicolgicos, utilizados pelos juzes
como fundamentos para resolver como ficar a dinmica de vrias famlias? Ser que estamos
realmente fomentando situaes que garantam o bem-estar dos envolvidos, principalmente as
crianas e adolescentes, ou estamos apenas corroborando a lgica adversarial que permeia as
lides? Estamos realmente apropriados das repercusses de nossas opinies e, sobretudo, dos
alcances em termos de produo de subjetividades?
Ao longo da dissertao, estas e outras questes permearo o debate que se pretende
aqui realizar, principalmente o debate sobre os fundamentos tcnicos e as consequncias
ticas dos posicionamentos adotados pelos psiclogos. A Psicologia jurdica, ao fazer
interface com o Direito, precisa ter conscincia do terreno em que est se instalando, o qual,
muitas vezes, arenoso ou escorregadio. No recomendvel que haja uma simples
transposio do arcabouo de conhecimento psicolgico acumulado em outros cenrios para o
contexto da justia. Procedendo dessa forma, o profissional corre o risco de fazer intervenes
que alternam entre a inocncia e a impercia, condies potenciais para srios prejuzos s
partes envolvidas que procuram a justia.
Iremos desenhar consideraes tericas e metodolgicas que levam em conta o
conflito e a contradio como fundantes das relaes sociais, bem como inerentes s
possibilidades de formatao das relaes familiares. Tentaremos manter uma coerncia
epistmica no momento da anlise dos dados, trazendo para o debate aspectos que julgamos
-
10
importantes, dialogando com as ferramentas que escolhemos previamente, cientes de que no
so respostas acabadas ao problema, mas alternativas interpretativas abertas a (re)construes.
Este trabalho est situado no presente momento histrico, o qual apresenta como uma
de suas caractersticas a franca expanso na busca pelo Poder Judicirio como alternativa para
a resoluo de conflitos. Esse movimento historicamente construdo; o uso do pensamento
normativo paulatinamente legitimado como critrio de regulao das condutas sociais.
Muito embora existam formas alternativas de resoluo de conflitos - como a
mediao, conciliao e arbitragem -, at o presente momento essas opes ainda no figuram
como meios preferenciais para dirimir querelas individuais e coletivas. A busca crescente por
um terceiro que possa resolver conflitos instaurados entre pessoas, geralmente realizada por
um Juiz de Direito, pode ser entendida como uma tendncia judicializao da vida (REIS,
2009). Esse movimento implica em duas concepes: primeiro, que as pessoas no so
capazes de resolver seus prprios dilemas, seja pela ausncia de habilidades tcnicas ou pelo
fato de que a imerso demasiada em seu prprio conflito a impea de enxergar o lado do
outro, condio importante para uma soluo minimamente eficaz; segundo, a crena de que o
Poder Judicirio, por comportar autoridades e figuras de suposta competncia tcnica, pode
oferecer propostas justas para os problemas apresentados. Em razo de nosso vnculo
profissional1 e pautando-nos antecipadamente nos relatrios analisados, podemos adiantar que
ambas as concepes so discutveis.
Entendemos que os sujeitos so os atores mais indicados para falar de si. certo que
em alguns momentos de desorganizao pessoal (causados, por vezes, em razo da vivncia
de lutos, rupturas ou mudanas inesperadas) as pessoas necessitam de um terceiro que as
ajude, facilite suas buscas ou, a depender do nvel de fragilidade, decida por ela. A tomada de
deciso pelo outro deve ser a ltima opo e no a primeira, como geralmente observamos
nos casos das famlias que recorrem justia.
Nosso objeto se circunscreve a um tipo bem delimitado de pedido de ajuda: as Aes
de Guarda de crianas e adolescentes2 que tramitam nas Varas de Famlia da Comarca do
1 O autor desta dissertao Analista Judicirio (apoio especializado em Psicologia) no Tribunal de Justia de
Pernambuco TJPE, desde setembro de 2007. No incio deste curso de mestrado, a lotao se dava junto Vara Privativa da Infncia e Juventude da Comarca de Olinda. A partir de agosto de 2012, houve a transferncia de
lotao para a Coordenadoria da Infncia e Juventude CIJ/TJPE. 2 O nome oficial constante na capa dos processos Guarda de Menores. Porm, em razo de divergncias
conceituais com essa nomenclatura e o que ela representa (situada epistemologicamente nas bases menoristas,
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11
Recife. Reconhecemos, de antemo, a complexidade dos casos e no estamos interessados em
oferecer manuais de atendimento s famlias, muito menos apontar relaes causais fceis e
prontamente consumveis. Nosso interesse tentar penetrar nas teias que envolvem as
histrias que so contadas e, principalmente, como so contatas, j que o psiclogo tem papel
de destaque nesse momento. As narrativas esto em ntima relao com as demandas do seu
tempo. Os pleitos esto alinhados com aquilo que nossa sociedade entende que seu direito
perquirir.
Contudo, iremos perceber que nem sempre a questo da disputa pela guarda de uma
criana ou adolescente, apesar de despontar como primeira demanda apresentada, ser o ponto
central da discusso. So casos de relaes afetivas mal resolvidas, que usam os filhos como
munio para atingir os ex-companheiros; situaes de tentativa de uso das crianas como
forma de perpetuao de benefcios financeiros, no qual o cuidado com a guarda da criana
aparece apenas como desculpa para o real intento, entre outros. Como poderemos ver no
captulo final desta dissertao, so difceis e diversificados os pedidos direcionados
inicialmente aos juzes de famlia, mas que acabam tambm resvalando nos chamados
auxiliares de justia, como o caso do psiclogo que atua como perito.
A compreenso de que um pedido pode, com grande frequncia, escamotear outro
pleito uma das grandes contribuies que o profissional da rea de Psicologia pode oferecer
ao Poder Judicirio. Por vezes, a nfase exacerbada naquilo que est escrito induz os
operadores do direito a no levar em considerao as entrelinhas processuais, guardis
privilegiadas de informaes fundamentais sobre as partes. Pensando a justia de forma
sistmica, atrelada populao que a busca como pedido de socorro, no possvel prescindir
desse tipo de anlise, posto que a recusa de perceber as demandas para alm do explicitado
pode incorrer em decises judiciais infrutferas, j que no respondem s verdadeiras
perguntas.
Nosso objetivo, com essa dissertao perscrutar como o psiclogo participa da
produo dos discursos sobre famlia engendrados no/pelo poder judicirio, questionando o
lugar que esse profissional se coloca(va). Para tanto, centraremos especial ateno nos
sentidos de parentalidade e conjugabilidade circulantes, bem como na discusso acerca das
pautadas no antigo Cdigo de Menores), optamos pelo termo criana e adolescente, melhor afinado com a legislao vigente e a Doutrina da Proteo Integral que a norteia.
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12
peculiaridades das configuraes familiares encontradas, sobretudo de como a percia
psicolgica corrobora com essas nuances.
Os captulos esto ordenados de forma que haja compreenso histrica do surgimento
da Psicologia Jurdica e das discusses sobre o conceito de famlia. Na sequncia,
apresentaremos nossos fundamentos tericos, eixos interpretativos que perpassaram todo o
estudo. Finalmente, explicitaremos os percursos metodolgicos adotados, assim como o
resultado de nossas inquietaes, dialogando com o material coletado.
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13
1. PSICOLOGIA E JUSTIA: PROPOSTAS PARA A COMPREENSO
DE UMA RELAO CONFLITUOSA
Permaneam nas fronteiras, l que vocs faro as descobertas. (Wallon)
Neste captulo, traaremos um panorama do percurso da Psicologia Jurdica como uma
especialidade que foi historicamente construda como rea de reflexo e atuao do psiclogo.
Tentaremos enfatizar as tenses, as interfaces e os desafios antigos e atuais que a Psicologia
encontra ao buscar oferecer estratgias para os deslindes judiciais. Longe de ser um histrico
linear e acabado, percebemos que a Psicologia Jurdica, apesar dos avanos, ainda carece de
um arcabouo conceitual prprio, com reflexes intrnsecas ao seu cotidiano. Esta pesquisa
tambm busca oferecer contribuies nesse sentido, atravs de um apanhado no exaustivo do
que foi produzido at o momento, deixando explcito nosso posicionamento em algumas
celeumas ainda frequentes.
Buscaremos tambm fazer uma discusso sobre as sinuosidades da insero da
psicologia no contexto jurdico, a partir do confronto das concepes de mundo, de sujeito e
de cincia de cada uma das disciplinas. Os embates, no nosso entender, no so impeditivos
desse dilogo, mas devem ficar explcitos, para que no haja uma atuao reativa, muito
menos omissa por parte do psiclogo.
1.1 Histrico da Psicologia Jurdica: contornos de uma relao em construo
Os primrdios da Psicologia Jurdica datam de 1980, no mbito do Tribunal de Justia
do Estado de So Paulo, com o trabalho de profissionais voluntrios que, posteriormente,
foram efetivados atravs do primeiro concurso pblico, ocorrido em 1985 (BERNARDI,
1999; FRANCO e MELO, 2007). Antes desse perodo, podemos considerar a publicao do
Manual de Psicologia Jurdica de Myra y Lopes, publicado em 1932 e editado no Brasil em
1955, como um marco nos estudos que delineavam o encontro entre a Psicologia e o Direito
(SHINE, 2005).
-
14
Um dos momentos de importante reconhecimento para o lugar da Psicologia Jurdica
no Brasil ocorreu com a edio da Resoluo N 14/2000, publicada no dia 22 de dezembro
de 2000, na qual ficou criado o ttulo de Especialista em Psicologia Jurdica pelo Conselho
Federal de Psicologia (CFP). Compreendemos a relevncia histrica desse fato pela
visibilidade que a Psicologia Jurdica adquiriu para alm das j consolidadas atuaes em
clnica, escola e organizaes. Esse marco institucional merece destaque, pois, ao passo que
celebra a histria que lhe precedeu, tambm abre novas perspectivas, conferindo credibilidade
social prtica do psiclogo em interface com a Justia.
Tratando do histrico da Psicologia Jurdica, mas agora no Tribunal de Justia de
Pernambuco (TJPE), Fernandes (2001) faz um importante levantamento para a histria da
categoria, socializando as informaes obtidas sobre as primeiras inseres da psicologia na
corte pernambucana; essas incurses se deram no mbito da justia criminal e da infncia e
juventude, com a cesso de 02 (dois) psiclogos pela Procuradoria do Estado de Pernambuco
para a 3 Vara Cvel da Comarca de Olinda (privativa de menores abandonados e infratores),
no ano de 1986, quela poca coordenada pelo ento Juiz Luiz Carlos de Barros Figueiredo,
atualmente desembargador do TJPE e coordenador da infncia e juventude.
O trabalho do Centro de Apoio Psicossocial (CAP), nosso locus de pesquisa, tambm
se insere como uma das aes pioneiras do trabalho do psiclogo no contexto da justia
pernambucana. Em 1992, foi criado um Servio Psicossocial, com apenas uma psicloga e
uma assistente social atuando, as quais prestavam assessoria especializada para as Aes que
tramitavam junto 4 Vara de Famlia de Recife. J no ano de 1993, foi realizado o primeiro
concurso pblico para o cargo de psiclogo do TJPE, com lotao na Vara da Infncia e
Juventude da capital. Temos em 1995 o surgimento do Ncleo de Apoio Psicossocial,
embrio do CAP, mas que j gozava de maior autonomia e respaldo institucional em relao
ao servio anterior. Apenas em 1997 o CAP foi criado formalmente, com uma chefia geral e
duas outras coordenaes por rea, tanto para a psicologia, quanto para o servio social.
Segundo Brito (1999), uma das primeiras demandas trazidas para a Psicologia,
advindas do Judicirio, foi na rea de psicopatologia, atravs do uso acrtico do diagnstico
psicolgico para classificar e controlar as pessoas. Tal postura engrena um discurso calcado
em modelos tericos naturalistas e naturalizantes, centrados no sujeito, como se fosse possvel
a este se forjar desconectado do seu entorno.
-
15
[a psicologia emerge] intensamente influenciada pelo iderio positivista e
privilegiando o mtodo cientfico empregado pelas Cincias Naturais,
particularmente a Biologia, a Psicologia Jurdica tambm teve sua origem
ligada aplicao de testes, quando determinava-se que a compreenso dos
comportamentos passveis de ao jurdica deveria ser aferida atravs de
instrumentos de medida desenvolvidos pela Psicologia (BRITO, 1999, p.
222).
Vamos perceber que essas caractersticas herdadas historicamente pela Psicologia
Jurdica ainda reverberam nas demandas produzidas atualmente. Continuaremos nossa
argumentao com os pontos que consideramos importantes para uma discusso mais
aprofundada das tenses entre a cincia psicolgica e o mundo do direito.
1.2 Definies relevantes Psicologia Jurdica
A Psicologia Jurdica um dos ramos da cincia psicolgica, que tem por objetivo
oferecer contribuies, a partir de teorias e tcnicas que lhe so prprias, aos diversos tipos de
demandas judiciais, tendo como lugar de reflexo e atuao as intersees entre a Psicologia e
o Direito (CARVALHO e MIRANDA, 2007). Por ser uma disciplina recente, ainda no conta
com uma vasta bibliografia que possa subsidiar a prtica cotidiana dos profissionais que
atuam nesse ramo.
Em termos conceituais, precisamos diferenciar o uso da nomenclatura Psicologia
Forense de Psicologia Jurdica, pois dizem respeito a nveis diferentes de ramificaes. No
primeiro caso, concordamos com Shine (2005) quando este argumenta que o uso da acepo
forense se aplica exclusivamente ao poder judicirio, pois se limita ao foro judicial. De
outra monta, temos que a expresso Psicologia Jurdica mais abrangente, pois contempla
as intersees da Psicologia com o Ministrio Pblico, presdios, delegacias, Defensoria
Pblica, etc. Podemos dizer que nosso objeto de estudo est no mbito da Psicologia Forense,
porm nossas reflexes esto campo da Psicologia Jurdica, posto que visam trazer
contribuies para alm da relao do saber psicolgico com espao restrito ao Frum.
Importante esclarecer que esse tipo de diviso no pacfico na literatura, mas a entendemos
como mais adequada para os nossos objetivos.
-
16
Apesar de enfatizarmos as colaboraes desta pesquisa para a atuao do psiclogo
jurdico, ressaltamos que a colaborao vai para alm de um receiturio tecnicista, reduzindo
a possibilidade interventiva a uma seriao de procedimentos. Entendemos que da reflexo
tica dos posicionamentos, sobretudo dos apontamentos constantes nos relatrios
psicolgicos, que teremos como ponderar sobre as possveis reverberaes desses documentos
na dinmica familiar dos grupos atendidos pelos psiclogos nas Aes de Guarda.
A participao da Psicologia na esfera judicial , certamente, uma abertura paulatina
ao reconhecimento de que o contexto processual atravessado por histrias de vida, afetos,
sentimentos, dinmicas das mais variadas que fogem alada dos operados do Direito. Em
nossa prtica forense, escutamos, com frequncia, a mxima da cultura judiciria que
assevera: aquilo que no consta nos autos inexiste no mundo jurdico3. Apesar da atuao
do psiclogo jurdico tambm se situar nesse contexto (posto que as consequncias de sua
atuao sero documentadas em um laudo psicolgico), possvel que ele considere vrias
relaes, desejos e perspectivas que, possivelmente, fugiriam ao alcance do que privilegiado
cons(ta)tar nos autos judiciais.
1.3 Percia judicial e avaliao psicolgica: aproximaes e distanciamentos
Antes de discutirmos os meandros da avaliao psicolgica para fins judiciais,
chamada tambm de percia psicolgica (CUNHA, 2000), importante definir o que
estamos entendendo por percia, latu sensu, posto que alguns embates entre a expectativa do
operador do direito e o que efetivamente o saber psicolgico tem a oferecer decorre, dentre
outras razes, pela falta de delimitao do que seria uma percia psicolgica, em
contraposio a outros tipos de percia, como a do engenheiro, do mdico, do contador, etc.
Segundo Silva,
3
Como estamos trabalhando no mbito da Psicologia Discursiva, acreditamos ser importante visibilizar alguns
aspectos do cotidiano do judicirio que podem ajudar na compreenso dos seus cdigos, apesar de no constar
formalmente nos autos judiciais. Nossa experincia de quase 06 (seis) anos nesse contexto possibilita esse tipo
de anlise. A frase acima transcrita uma delas, buscando resumir a supremacia conferida ao que est
documentado atravs dos ofcios, transcries de audincias, pareceres ministeriais, laudos tcnicos , em detrimento ao que porventura tenha sido vivenciado e verbalizado pelas pessoas envolvidas em um determinado
litgio.
-
17
a prova pericial produzida pelo perito, profissional habilitado para
investigar e analisar fatos especficos, a fim de produzir provas de causa e
efeito, ou seja, estabelecer o nexo causal entre o dano, fato ou ocorrncia e o
objeto de pedir da ao promovida. (2003, p. 03, grifo do autor).
Como podemos observar, esse lugar previamente formatado. Alm disso, como
iremos discutir mais adiante, a configurao para o trabalho pericial se encaixa com mais
facilidade aos nexos causais formulados pelas cincias exatas, em razo de haver maior
adequao epistmica aos moldes positivistas. No nosso caso, tendo a subjetividade4 e a
dinmica familiar como objeto, fica difcil estabelecer essa relao de causa e efeito, de forma
direta, objetiva e inequvoca, atendendo a expectativas semelhantes s formuladas para as
demais reas do conhecimento.
Certamente, reconhecemos a existncia de alguns parmetros, advindos
principalmente dos estudos em Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia da
Personalidade, que podem dar indcios de prognsticos importantes nos casos das Aes de
Guarda. A violncia fsica e psicolgica, a exposio a situaes humilhantes, o abuso sexual
e outras formas de opresso no podem/devem ser relativizados, nem tolerados, em hiptese
alguma.
Existem algumas concepes de percia psicolgica as quais no estamos de acordo.
Vejamos, por exemplo, a descrio abaixo:
Assim, pode-se afirmar que a percia psicolgica [...] consiste em um exame
que se caracteriza pela investigao e anlise de fatos e pessoas, enfocando-
se os aspectos emocionais e subjetivos das relaes entre as pessoas,
estabelecendo uma correlao de causa e efeito das circunstncias, e
buscando-se a motivao consciente (e inconsciente) para a dinmica
familiar do casal e dos filhos (SILVA, 2003, p. 06, grifos nossos).
H uma demanda comum, advinda principalmente por parte de alguns juzes e
promotores, que confunde o trabalho do psiclogo com uma atividade de cunho investigativo,
denotando certo aspecto policialesco. Isso se consubstancia quando as autoridades judicirias
acima citadas determinam que o psiclogo faa diligncias, ou quando decidem quem so
as pessoas que devem ser ouvidas pelo perito. Ora, fazer diligncia est na seara da polcia e 4 Estamos entendendo o conceito de subjetividade a partir de Gonzlez Rey (2003), que a compreende como
produto da intrincada relao do sujeito com o mundo que o cerca e no como epifenmeno de conceitos
psicolgicos intrapsquicos.
-
18
deve ser feita pelo delegado e seus auxiliares. O psiclogo faz estudo de caso e, na
circunstncia de atividades externas, realiza visitas domiciliares ou institucionais, com
objetivos e tcnicas distintas de outros profissionais como o assistente social visto que
partem de referenciais terico-metodolgicos diferenciados.
No somos favorveis a essa perspectiva, posto que corolrio desse pensamento a
busca por culpados, atravs de uma polarizao da realidade. No nosso entendimento, a
Psicologia deve contribuir na compreenso da complexidade dinmica das relaes. Por
vezes, no existe um jogo binrio de certo e errado, nem um culpado e o outro inocente,
mas dinmicas familiares disfuncionais (para usar um termo da abordagem sistmica),
adoecidas no seu modo de funcionar ou mesmo passando por crises situacionais. O olhar
psicolgico, nesse sentido, deve alternar entre os indivduos que compem o agrupamento
familiar e o grupo visto como um todo, este entendido como uma gestalt, para alm do
somatrio de suas partes.
Por certo que temos valiosas contribuies compreenso judicial das relaes
familiares; porm, elas no precisam estar circunscritas a parmetros que limitam a prpria
anlise desses fenmenos. preciso deixar claro ao demandante o que temos a oferecer, como
o estudo pode ser feito (levando em considerao os aspectos tcnicos e ticos) e o tempo que
precisamos dispor para faz-lo.
Temos ainda a referncia da autora acima (SILVA, 2003) busca de motivaes
inconscientes. Precisamos analisar com bastante cautela essa afirmao, visto que nos remete
a um tema que foi percebido tambm na anlise dos dados. No fica claro se a referncia ao
inconsciente diz respeito apenas aos materiais no acessveis imediatamente conscincia ou
se o termo se reporta ao constructo psicanaltico. Partindo do pressuposto de que a autora est
se referindo segunda opo, a psicanlise , certamente, uma forma de compreenso do
comportamento humano que traz valiosas contribuies para as diversas reas de atuao do
psiclogo, incluindo a judicial. O que no concordamos trazer como necessria a referncia
a uma alternativa terica. Um dos problemas percebidos durante a anlise dos laudos, os quais
sero discutidos ulteriormente, a apropriao fraturada de alguns conceitos psicanalticos.
Foi comum a referncia a conceitos como funo paterna e funo materna diferentes de
como a bibliografia especializada aponta, situando esses termos de forma desviada e/ou
reducionista.
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19
Estes e outros temas precisam ser discutidos para minimizar os equvocos constantes
na atuao do psiclogo a servio da justia. Aprofundaremos outros temas adiante, com um
enfoque mais epistemolgico, os quais somados s questes tcnicas podero oferecer pistas
valiosas s inseres mais crticas e criativas do psiclogo jurdico.
1.4 Psicologia e Direito: pontos de (des)encontro
Apesar de se constiturem como disciplinas independentes, Psicologia e Direito
possuem um ponto de intercesso: o interesse pelo comportamento humano. Certamente
estamos levando em conta a diversidade de correntes psicolgicas, no intentando generalizar,
apenas considerar que a compreenso, a predio e o controle so o ponto de encontro, em
muitos aspectos, dos interesses de certas Psicologias5 e de terminado ramo do Direito
(ROVINSKI, 2004). Contudo, apesar do encontro em relao ao objeto de estudo, temos o
Direito mais voltado ao mundo do dever ser, enquanto a Psicologia se debrua para o mundo
do ser. Esta ltima tem seu foco de anlise nos processos que governam a natureza humana,
enquanto aquela supe essas regularidades e decide em razo do juzo do certo e errado para o
convvio em sociedade. Rovinski resume a relao entre essas disciplinas de forma
esclarecedora:
[...] o plano do ser e do dever ser se justapem e se entrelaam de maneira
inextricvel, em que um no pode ser compreendido sem o outro. No
poderamos entender o mundo da lei sem o recurso de todos os modelos
psicolgicos que, de maneira mais ou menos explcita, o inspiraram. E,
muito menos, poderamos compreender o comportamento humano
(individual, grupal, organizacional) sem intuir como a lei transpassa nossas
fronteiras interiores, sem entender como o direito positivo, as tradies e os
costumes chegam a constituir o nosso prprio self, nossa identidade, nosso
ser social (2004, p. 14 - 15).
5 Para os juristas, a multiplicidade de pontos de vista da Psicologia entendida como uma cincia no-confivel ou contraditria (ROVINSKI, 2004, p. 39).
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20
Um dos pontos que consideramos estar na base das divergncias entre essas disciplinas
a forma como cada uma lida com a cobrana social na busca por uma competncia tcnica.
Ao demandar a efetivao dos seus direitos ao Judicirio, o cidado espera que esse Poder -
socialmente legitimado para dirimir conflitos possa oferecer solues s questes que os
indivduos julgam ser incapazes de resolver sozinhos. A Psicologia entra em cena sob a
mesma expectativa, ou seja, de responder a uma demanda objetiva, mas que foi inicialmente
dirigida ao rgo judicial.
Podemos entender, como bem argumenta Coimbra et al. (2010), que a busca por uma
competncia tcnica uma produo histrica, tendo o pensamento liberal e a lgica
positivista como um de seus alicerces. Como desdobramentos no mbito da cincia (estando a
Psicologia tambm vista nesse lugar, tanto para os operadores do direito, quanto para as partes
atendidas), temos a busca pela objetividade, neutralidade e previsibilidade. Um dos problemas
que a lgica positivista adota a naturalizao das relaes ao atribuir uma essncia aos
fatos sociais (COIMBRA et al., 2010, p. 21), pressuposto epistmico dessa corrente
cientfica que vamos de encontro, pois estamos entendendo a realidade, as relaes
intersubjetivas e, em especial, a dinmica familiar, como construes scio-histrica-poltico-
culturais, atravessadas por vozes6 diversas, no havendo um famlia prvia a ser buscada.
A naturalizao da realidade est intimamente ligada a uma justificativa poltica de
exerccio de poder, posto que, quando se concebe uma relao essencializada, pode-se exercer
domnio sobre esta. Dito de outra forma, tudo que coloca em xeque o bom funcionamento
das relaes hegemnicas, consideradas naturais, passa a ser rotulado de anormal, doentio,
patolgico que necessita ser diagnstico (COIMBRA et al., 2010, p. 21). Como a Psicologia
Jurdica, inserida nesse contexto e ciente desses dilemas, poderia propor caminhos opcionais
que no repetissem esses lugares comuns, modos diferenciados de atuao que pudessem
permitir o surgimento do novo e do diferente? Esperamos que as reflexes trazidas nessa
pesquisa, bem como a anlise acurada dos dados, possam contribuir no sentido de uma
Psicologia mais crtica e menos produtora seriada de padres estereotipados.
Estes (des)encontros de objetivos entre a Psicologia e o Direito resultam,
cotidianamente, em conflitos que, em parte, foram percebidos durante a nossa anlise. Um
exemplo desses foi a questo do tempo, j que a necessidade de celeridade de grande
6 Discutiremos mais detidamente a noo bakhitiana de vozes, entrelaada com outros conceitos, no captulo
dedicado discusso terica sobre a Linguagem.
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21
importncia para os operadores do direito. De outra monta, algumas dinmicas psicolgicas
necessitam de mais tempo para serem compreendidas/analisadas. A linguagem adotada foi
tambm outro ponto de divergncia, alternando entre laudos que adotam uma linguagem
extremamente judicializada - numa tentativa de aproximao ou submisso (?) ou que se
fecham em jarges psicolgicos, possivelmente dificultando a compreenso dos demais atores
envolvidos no litgio.
Nesse contexto, a deciso tica7 do psiclogo se torna um ponto central: j que a todo
o momento alterna entre canalizar seus esforos para a produo de um documento rpido,
que atenda a contenda judicial, ou aproveite os encontros com as partes tambm como forma
de reflexo, indo alm da avaliao, fazendo das entrevistas tambm momentos de mediao e
conciliao, conforme proposto em uma experincia trazida por Ribeiro (2001).
Estamos apresentando essas diferenas quanto aos valores, premissas e mtodos entre
as disciplinas no como forma de superao, mas entendendo que, ao explicitar tais
peculiaridades, a atuao do psiclogo jurdico nesse contexto pode ser mais embasada e
menos ingnua. patente que a viso de homem e de mundo da Psicologia e do Direito
entram em choque em vrios momentos. nesse sentido que a prxis psicolgica deve/pode
ser pautada na contradio, na incerteza, na imprevisibilidade e, sobretudo, no conflito.
Buscar, por vezes, uma realidade monoltica reificar os lugares-comuns, reproduzindo
noes que normalizam e normatizam as famlias atendidas. O discurso jurdico no deve
engolir a realidade subjetiva das partes envolvidas, apesar de ser essa a inteno s vezes
percebida no transcorrer processual. No estamos defendendo uma queda de brao entre os
saberes, mas que, na considerao das divergncias, haja possibilidade de dilogo e
demarcao dos respectivos espaos e limites de cada uma.
Silva (2003) vai tratar esse embate, valendo-se da leitura de que o psiclogo se
encontra em uma:
encruzilhada entre a tica do cuidado (ideal teraputico) e a lgica da Justia
(produo da verdade). Sua funo oscila entre limitar-se a tarefa de resolver o conflito do casal e o de transcender ao mero maniquesmo
certo/errado, ganhador/perdedor, inocente/culpado esperado pelo Judicirio
(p. 28).
7 A tica, em uma perspectiva foucaultiana, tem como foco principal a criao de novas formas de existncia, a
produtividade do ser, o carter criados da vida como critrio de valor e no qualquer espcie de forma que a vida
tenha tomado, ou venha a tomar. (ROLNIK, 1994, p. 171)
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22
Tambm entendemos que o trabalho do psiclogo jurdico marcado por hibridismos,
principalmente de origens ticas. Para o advogado, por exemplo, comum usar de todas as
provas admitidas em direito para defender sua tese, em favor do seu cliente. A lgica
adversarial, binria e belicosa parece estar no DNA das atividades de parte desses
profissionais. Para o psiclogo (ou deveria ser) diferente, j que, eticamente, somos
responsveis, sobretudo, pela garantia da sade psquica das pessoas que atendemos.
Discordamos, em parte, da forma como Silva (2003) exps seu pensamento por dois
motivos. Primeiramente, no concordamos que a tica do cuidado seja atrelada apenas ao
ideal teraputico. Isso porque no somos favorveis ao discurso que preceitua independente
de ser no consultrio, todo profissional leva a escuta clnica para os seus espaos de trabalho.
No podemos generalizar a escuta clnica como se fosse uma chave mestra para o trabalho
do psiclogo. Isso vai de encontro ao desenvolvimento da profisso, no qual precisamos criar
mecanismos, tcnicas, mtodos e teorias que respondam aos questionamentos especficos dos
espaos em que somos convidados a atuar. A tica do cuidado no um ideal teraputico,
mas um parmetro profissional.
Alm dessa ressalva - na qual a autora coloca em oposio a tica do cuidado e a
produo de verdades -, a assertiva permite a interpretao de que s podemos ter uma coisa
ou a outra, afirmativa que tambm no comungamos. Para ns, a produo de verdades no
uma opo, mas uma consequncia inerente ao trabalho institucional, posto que o lugar de
saber ocupado pela Psicologia na nossa sociedade, atrelado ao poder de quem diz uma
verdade desse lugar, no permite uma prtica apartada desses regimes de verdade.
1.5 Psicologia Jurdica como uma especialidade (in)dependente
Alm das aproximaes e distanciamentos da Psicologia com o Direito, importante
tambm refletirmos sobre os contornos da Psicologia Jurdica em contraste com outras
especialidades psicolgicas, especialmente a Psicologia Clnica. comum a referncia
atuao do psiclogo em instituies (seja escola, empresas, e mesmo no mundo jurdico)
apenas como uma mera transposio da prtica clnica para outra conjuntura.
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Entendemos esse raciocnio como tecnicamente equivocado, alm de eticamente
questionvel. A atuao do profissional de psicologia intrinsecamente relacionada ao seu
lugar de insero, no podendo prescindir das caractersticas, smbolos, linguagem e cultura
prpria da instituio que requisita seus servios. Nesse sentido, a passagem mecnica e
acrtica da compreenso bipessoal que se tem no setting teraputico (clnico) para a avaliao
dos casos judiciais (jurdico) pode acarretar em problemas para as partes envolvidas (so
demandas e expectativas diferentes) e para o laudo pericial (que possivelmente ficar aqum
do esperado, j que fugir ao seu objetivo central, que seria uma anlise com vistas a subsidiar
uma deciso judicial).
Uma primeira grande diferena a ser delineada a questo da voluntariedade. Na
clnica, em geral, as pessoas procuram o atendimento psicolgico espontaneamente, a fim de
resolver algum sofrimento que lhe assola. J na Justia, apesar do ingresso da Ao de Guarda
ser voluntrio, geralmente as fases processuais no so encaradas da mesma forma, como a
questo do estudo psicolgico, principalmente para o polo passivo da Ao8. A volitividade
vai repercutir diretamente na abertura para a entrevista, na cooperao com as informaes
que precisam ser prestadas, assim como no possvel manejo de estratgias de escamoteamento
de fatos e situaes importantes de serem trabalhadas.
Um segundo ponto que merece ateno a questo da finalidade. Na terapia, o
psiclogo tem por objetivo o tratamento de questes pessoais, do abrandamento de
sofrimentos. Na avaliao psicolgica no contexto judicial, seu objetivo ltimo a redao de
um laudo, que subsidiar o juiz na prolatao de uma sentena. O objetivo final da avaliao
ser, sempre, atravs da compreenso psicolgica do caso, responder a uma questo legal
expressa pelo juiz ou por outro agente jurdico (ROVINSKI, 2004, p. 43).
O terceiro tpico est diretamente ligado ao segundo e j foi mencionado alhures, j
que a durao temporal nos estudos periciais delimitada, enquanto na clnica psicolgica
no h uma demarcao de tempo prvia. s vezes, o juiz remete o processo para o psiclogo
com um prazo exguo, como 30 (trinta) ou 60 (sessenta) dias para todo o processo avaliativo,
compreendendo o estudo documental, o contato e marcao de entrevista com as partes, a
entrevista propriamente dita, a anlise do contexto e a finalizao com a confeco do
8
No modelo adversarial de justia, geralmente temos dois polos que disputam uma determinada questo. Nas
Aes de Guarda, encontramos a parte que entrou com o pedido, que pode ser chamada de requerente ou polo
ativo, em contraposio parte requerida ou polo passivo ou ainda chamada de ru, numa acepo influenciada
pelo Direito Penal.
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relatrio. Isso sem contar que, raramente, um psiclogo tem apenas um processo sob sua
responsabilidade, devendo respeitar esse trmite em todos, com a qualidade que a
complexidade do caso e a tica profissional exigem.
Acrescente-se ainda que, ao submeter-se a uma avaliao psicolgica judicial, os
sujeitos no so avaliados em si, mas em comparao a uma srie de normas culturais e
sociais em que esto inseridos. Ou seja, o conhecimento psicolgico est circunscrito pelas
leis vigentes, pelos costumes socialmente legitimados e por todo arcabouo discursivo que o
alimenta, ao passo em que o delimita. Por essa razo, compreendemos o trabalho do psiclogo
jurdico tambm como uma crtica cultural, pois, ao se posicionar sobre o litgio familiar,
tambm legitima e (re)produz padres que podem vir a ser perpetuados, em detrimento de
outros. A dinmica entre indivduo e sociedade se aproxima e se intercruza, nesse sentido.
por essa razo que, no captulo dedicado discusso terica sobre o conceito bakhitiano de
vozes, alm do captulo reservado para a anlise dos dados, levaremos em considerao que
o relatrio resulta de um intercruzamento entre o que foi dito nas entrevistas, o que foi
documentado no processo, as leis vigentes e o que est tacitamente posto nos cdigos de
conduta morais.
1.6 Psicologia Jurdica e produo de subjetividades
Uma questo polmica em Psicologia Jurdica, mas que precisa ser abordada,
principalmente por se tratar de um ponto nevrlgico para a atuao do psiclogo em Varas de
Famlia, diz respeito aos limites dos pareceres psicolgicos ou, dito de outra forma, at que
ponto as opinies sobre uma dinmica subjetiva dos envolvidos pode/deve estar atrelada ao
ponto central da questo jurdica em discusso. No tocante s Aes de Guarda, podemos nos
perguntar se tecnicamente interessante e eticamente vivel a manifestao clara do
profissional sobre quem deve exercer a guarda da criana ou adolescente envolvidos.
Corroboramos com Shine (2007) em relao ao posicionamento de que inexistem teorias
psicolgicas que estabeleam, de forma inequvoca, uma relao causal entre comportamentos
parentais e um determinado desenvolvimento infanto-juvenil esperado.
Primeiramente, a dinmica relacional entre pais e filhos, a idiossincrasia das
subjetividades e a permanente interao dos sujeitos com um contexto sociocultural
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impossibilitam esse tipo de raciocnio linear, como se fosse possvel isolar, nos moldes de
uma cincia positiva, o comportamento parental como varivel independente (manipulvel) e
o desenvolvimento da criana como varivel dependente (observvel). Alm desse entrave
tcnico, temos ainda a questo tica: o que seria um desenvolvimento infanto-juvenil
esperado? Ou, dizendo de outra forma, haveria um comportamento normal que deveria
ser alcanado, a partir de determinadas orientaes paterno-maternais?. Fica patente o vis
perigoso desse tipo de pensamento.
Ainda sobre o posicionamento do psiclogo jurdico nas Aes de Guarda, tambm
estamos questionando um suposto lugar de neutralidade que ele possa querer se colocar.
Imparcialidade um pressuposto tico, o qual requer exerccio contnuo na busca de se ouvir,
empaticamente, todos os lados em questo. Por suposto que a neutralidade diz de outra ordem,
como se houvesse possibilidade de um no afetamento do psiclogo com a realidade a ser
investigada, pensamento que entendemos como equivocado. na considerao/aceitao
ativa de que a dinmica familiar avaliada tambm remete a outras dinmicas encontradas na
cultura, inclusive aquelas que so/foram da convivncia do prprio profissional, que o
psiclogo dever/poder atuar de uma maneira mais isenta, nunca neutra.
s vezes, esse discurso de neutralidade alimenta a prtica de no implicao da
Psicologia com a realidade que se produz, induzindo o magistrado a pensar que existe um
contexto a priori que foi revelado, descoberto ou descortinado. Algumas definies,
encontradas na bibliografia, sobre atuao do perito, abrem margem para esse tipo de
interpretao. Citamos como exemplo um trecho de um pensamento que avaliamos estar
alinhado com esse tipo de compromisso: Assim, voltando ao papel do perito na avaliao
psicolgica, pode-se dizer que sua tarefa descrever, da forma mais clara e precisa
possvel, aquilo que o periciado sabe, entende, acredita ou pode fazer (ROVINSKI, 2004, p.
77, grifo nosso).
O trecho acima emblemtico para apontar o rano positivista circulante na
Psicologia, mesmo em autoras e correntes tericas que criticam essa perspectiva ou que
consideram a questo superada. O profissional colocado no lugar de observador, no
participante de uma determinada relao. Em outro texto, Silva (2003, p. 39), ao discutir sobre
as especificidades do trabalho do psiclogo jurdico nas Varas de Famlia, afirma:
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seu objetivo o de destacar e analisar os aspectos psicolgicos das pessoas
envolvidas em que se discutam questes afetivo-comportamentais da
dinmica familiar ocultas por trs das relaes processuais, e que
garantam os direitos e o bem-estar da criana e/ou adolescente, a fim de
auxiliar o juiz na tomada de deciso que melhor atenda s necessidades
dessas pessoas (grifo nosso).
Mais uma vez o trabalho do perito psiclogo associado a algo que vai em busca do
escondido. No entanto, defendemos a perspectiva de que a dinmica psquica e as relaes
sociais no so uma caixa de pandora9, mas textos que necessitam de bons leitores. Estes
textos so permanentemente reescritos e reinventados, com interpretaes diversas a partir do
lugar de quem as escreve e l. A posio de implicao do psiclogo com o produto parte de
uma concepo diferenciada de cincia, redundando em uma prtica que se repensa
constantemente, pois a prpria Psicologia deve questionar a finalidade e utilizao dos
laudos e pareceres elaborados nos processos (SILVA, 2003, p. 197).
incomum encontrarmos na literatura especializada uma meno implicao do
psiclogo nas produes das subjetividades das famlias avaliadas, de como o saber
psicolgico baliza determinadas formas de existncia, como prescreve modos de ser e
legitima maneiras de ser famlia que limitam a criatividade e a infinidade de possibilidades de
atuao das figuras que a compem, assim como as configuraes que poderiam assumir.
Na busca por um pai ideal, uma me ideal, um filho normal e uma famlia
padro, deixa-se de considerar que fora da norma esperada existem formas de existncia que
podem ser interessantes aos membros daquele arranjo especfico. O uso de um crivo
previamente demarcado limitante, alm de ferir a individualidade dos sujeitos e dos grupos,
pressuposto caro a determinadas correntes da Psicologia, dentre as quais ns nos afiliamos.
Em nosso material emprico, encontramos casos de uso de drogas, alm de pais que possuem
algum tipo de transtorno mental que, antes de qualquer coisa, so considerados inaptos ao
exerccio de suas funes parentais, somente por fugirem ao padro idealizado pelo
psiclogo/sociedade e/ou por aquilo que ele acredita que a autoridade judicial vai julgar.
Ora, a questo do uso de substncias entorpecentes, como a maconha, por exemplo,
pode ser encarada pelo profissional como a exposio a qualquer outro tipo de alucingeno,
9 Para maiores informaes sobre o mito, consultar: http://pt.wikipedia.org/wiki/Caixa_de_Pandora. Acesso em:
04/06/2013, s 10h20.
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como o lcool ou outros medicamentos controlados. De forma semelhante podemos pensar
em relao aos portadores de algum transtorno mental. A depender do tipo de patologia, a
forma de tratamento, o nvel de estabilizao, o autocuidado, a retaguarda familiar e dos
equipamentos sociais disponveis, a faculdade de cuidar do outro (seja uma criana ou
adolescente) no estar necessariamente prejudicada, merecendo ateno e avaliao
pormenorizada, considerando-se caso a caso. Esses episdios no foram aprofundados no
captulo analtico por terem fugido aos ncleos temticos escolhidos, apesar de merecerem
outras pesquisas, em razo da relevncia social dos temas.
No estamos, com isso, advogando a favor de um relativismo irresponsvel e sem
parmetro. Como a funo do psiclogo nessa seara , antes de tudo, avaliativa, entendemos
que certos referenciais so importantes e at necessrios. O que estamos querendo ressaltar
que esses critrios avaliativos devem estar claros, tanto para o profissional que avalia, quanto
para o magistrado que ter acesso ao laudo, permitindo um acompanhamento da linha de
raciocnio adotada, visibilizando o argumento para que este possa ser refutado ou acolhido.
Feito de outra forma, teremos apenas a repetio dos rtulos, uma psicologia que no est
preocupada com o surgimento de outras formas de existir, um conhecimento utilizado apenas
para fazer girar a engrenagem judicial fabricadora de sentenas.
No podemos nos furtar de pensar que o fortalecimento da psicologia como saber que
assessora a mquina jurdica na resoluo de conflitos familiares vai ao encontro de uma
tendncia que vem crescendo paulatinamente, que diz respeito judicializao da vida.
Essa tendncia insinua que a grande maioria das querelas cotidianas s podem ser resolvidas
por intermdio de uma deciso judicial. Isso tem causado um aumento considervel no
ingresso de Aes, movimento que no foi acompanhado pela Justia, causando um enorme
contingente processual reprimido, sem que pudesse haver o clere andamento das causas10
.
As questes de famlia, outrora tratadas como privativas do mbito domstico, agora
so publicizadas em peties, narradas em audincias e exaustivamente perscrutadas durante
as avaliaes psicolgicas. Certamente que esse movimento social deve ser entendido dentro
de um contexto mais amplo, no qual as relaes esto mais fluidas e a noo da separao
entre o pblico e o privado cada vez mais relativizada.
10
Para maiores informaes sobre a taxa de congestionamento processual do Judicirio pernambucano:
http://www.cnj.jus.br/component/content/article/96-noticias/7245-para-corregedor-nacional-dificuldades-
denunciadas-no-judiciario-de-pe-sao-observadas-em-outros-estados- . Acesso em 04/06/13, s 11h20.
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A judicializao da vida e a tnue diviso entre o pblico e o privado se somam a um
terceiro movimento que pode dar pistas para uma melhor compreenso para a enxurrada de
Aes de Guarda que adentram as Varas de Famlia: a psicologizao do cotidiano e da vida
social (COIMBRA et al., 2010, p. 21). Isso fica bem evidente quando percebemos que os
argumentos que municiam as disputas de guarda so repletos de inferncias sobre a
dinmica psicolgica do oponente, j que adjetivos como emocionalmente imaturo,
afetivamente instvel, dentre outros, so comumente utilizados nos relatrios para descrever
o perfil do rival. No nosso entendimento, a circulao desse tipo de discurso refora a
produo de subjetividades seriadas, que servem para a manuteno de um determinado status
quo.
Apostamos na viabilidade de caminhos diferentes, na afirmao de modelos que
produzam individualidades plurais. s vezes, parece que apenas os objetos do mundo
direcionam nossa conduta. Contudo, partindo de uma premissa construcionista11
, acreditamos
que nossas prticas, em especial as discursivas, tambm atuam na construo daquilo que
podemos chamar de objeto, mundo ou realidade.
A atuao do psiclogo jurdico, nos contextos das disputas de Guarda, poderia ser
redirecionada para a potencializao da famlia como instituio capaz de resolver seus
prprios dilemas. Quanto mais as pessoas forem livres umas em relao s outras, quanto
mais esse jogo de poder for aberto, seja nas relaes familiares, sexuais ou amorosas, tanto
mais ele ser atraente e fascinante (REIS, 2009, p. 99). Certamente, cada famlia possui
limites prprios de abertura para um trabalho nesse sentido. Muitas delas diramos que a
maioria procuram o judicirio para que haja o menor nvel possvel de implicao subjetiva
nas decises e acordos a serem firmados. Buscam o apoio de um terceiro no caso, o juiz
para diminuir a necessidade de dilogo com o outro lado.
Existem vrias formas de atuao do psiclogo jurdico, desde uma avaliao
psicolgica da dinmica familiar mais distanciada, at uma proposta de interveno mais
diretiva, que aproveita o momento avaliativo como promotor de mudanas. Entendemos que
no deva haver um nico modelo a ser seguido, mas que o profissional tenha segurana e
sensibilidade para utilizar o modus operandi mais eficaz, oferecendo alternativas resoluo
do conflito instaurado. Geralmente, em famlias mais reservadas e com conflitos
11
Tpico que ser comentado no captulo reservado discusso sobre a Psicologia Discursiva. Resumidamente, podemos dizer que o alicerce do Construcionismo a compreenso de que o mundo socialmente construdo,
em especial pelas relaes lingusticas que intrinsecamente o constituem.
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historicamente mais consolidados, a atuao mais avaliativa e estruturada poder subsidiar
melhor a deciso judicial.
Em outros casos - quando se percebe abertura para o dilogo e a reflexo -, possvel
um trabalho mais longitudinal e criativo, no qual so elaboradas metodologias a partir da
interao dos membros da famlia com o profissional, algo muito aproximado ao trabalho de
mediao proposto por Ribeiro (2001). Ao adotar essa postura, o psiclogo estaria facilitando
tambm a autonomia da famlia, ressignificando o trabalho judicial de encontro s abordagens
punitivas, polarizadas e belicosas. Ampliando esse horizonte reflexivo e questionando
determinados discursos circulantes em relao ao papel da justia na sociedade, Coimbra et
al. (2010b, p. 34) segue questionando: A justia no seria tambm uma polcia das famlias,
punindo-as e corrigindo-as, assumindo a funo de escola de pai para a populao que l
chega, tutelando-a e ensinando-a a cuidar de seus filhos?
1.7 Psiclogo na justia ou psiclogo da justia?
impossvel fazer uma reflexo crtica sobre a atuao do psiclogo jurdico sem
tambm analisar o contexto em que ele est inserido e quais so os discursos que transitam
socialmente no tocante ao alcance de uma deciso judicial na vida das pessoas. Ao requerer
uma prestao jurisdicional, fica difcil diferenciar o operador do direito, aquelas figuras que
movimentam o processo advogado, juiz, defensor pblico e promotor de justia dos
auxiliares da justia, como os peritos dentre eles o psiclogo e os demais serventurios
judiciais tcnicos, analistas e oficiais de justia.
Sendo assim, ao adotar estratgias que fogem ao padro esperado no mundo jurdico, o
psiclogo (por ser visto como integrante desse sistema) poder fazer circular outros discursos
e valores. Fazemos questo de destacar isso para explicitar que outras formas de insero so
possveis. Uma vez integrante do sistema justia, a Psicologia pode usar (d)esse lugar para
diversificar as subjetividades produzidas, os sentimentos valorizados e os cdigos morais
outrora tidos como nicos.
Essa discusso est umbilicalmente ligada a outra, que diz respeito ao posicionamento
tico-poltico do profissional diante das relaes de poder que esto, de forma inerente,
-
30
compondo as relaes sociais, especialmente no mbito do jurdico. Estamos entendendo o
conceito de poder a partir de uma leitura foucaultiana, no qual o poder s existe em ao
(FOUCAULT, 2007), no se constituindo em um lugar ou em um objeto. Ao contrrio, o
poder se constituiria e circularia a partir da batalha cotidiana, do enfrentamento. No existiria
uma deteno rgida do poder, mas um exerccio de poder a partir dos lugares que se ocupa
em um determinado contexto. A compreenso do funcionamento em rede do poder retira dos
grupos sociais (como a famlia) a conotao destes como alvos inertes e consentidos daquele,
pois so, ao mesmo tempo, efeitos e seus centros de transmisso12
.
Esta concepo importante, principalmente para a Psicologia, pois corremos o risco
de restringir o poder ao exerccio judicante do magistrado e das demais autoridades que
compem o judicirio, esquecendo-se de que o prprio processo de avaliao psicolgica e o
laudo pericial tambm compem a engrenagem do poder e fazem circular formas diversas de
poder, uma vez que as relaes de saber e poder esto intrinsecamente relacionadas.
No lugar de pensar ser possvel atuar fora das relaes de poder, mais interessante o
perito redimensionar o questionamento para que tipo de subjetividades eu quero favorecer,
partindo das minhas condies objetivas e subjetivas de trabalho? Ou que discursos eu opto
fazer circular na instituio, a fim de propiciar modos de existncia mais condizentes com
uma proposta tica que prima pela pluralidade e diversidade? Esse tipo de implicao
profissional afronta outros modelos, de cunhos positivistas, que pressupem a possibilidade
de aes neutras, fora das relaes de poder circulantes.
Consoante com o que foi discutido anteriormente, para Shine (2007), o carter arbitral
faz parte das atribuies desse profissional. A questo que, em sua formao, o psiclogo
no preparado para manejar as relaes de poder que permeiam sua prtica. A conscincia
dessa faculdade, em parte, decisria, pode contribuir para posicionamentos mais coerentes em
relao s dinmicas familiares que se intenta fomentar. A verdade que proferida (no laudo)
ganha respaldo a partir do lugar que dita (judicirio), no havendo separaes com a
histrica legitimao do saber (psicolgico) produzido, o qual induz formas de vida pelas
relaes de poder que faz circular.
12
Estamos utilizando o conceito de poder, tal como concebido por Foucault: A multiplicidade de correlaes de fora imanentes ao domnio onde exercem e constitutivas de sua organizao; o jogo que, atravs de lutas e
afrontamentos incessantes as transforma, refora, inverte; os apoios que tais correlaes de fora encontram
umas nas outras [...]; enfim, estratgias em que se origina e cujo esboo geral ou cristalizao institucional toma
corpo nos aparelhos estatais, na formulao da lei, nas hegemonias sociais (FOUCAULT, 1997, p. 88).
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2. FAMLIA(S): VISITANDO UM CONCEITO POLISSMICO
Famlia! Famlia!
Papai, mame, titia
Famlia! Famlia!
Almoa junto todo dia
Nunca perde essa mania...
(Arnaldo Antunes/ Toni Bellotto Tits)
Neste captulo, visamos situar a noo de famlia em seus aspectos histricos e
conceituais. Entretanto, acreditamos que esse conceito bastante amplo, merecendo um
aprofundamento maior em relao ao que nos propomos, face ao enquadramento possvel
numa dissertao de mestrado. De fato, a escolha por um tema abrangente foi proposital, visto
que ele abarca uma ampla margem de relaes e dinmicas que temos por intento discutir, tais
como: lugares paternos e maternos (tambm chamados de parentalidades), relaes conjugais
(ou conjugabilidades), os aspectos de gnero que permeiam as relaes familiares e a
compreenso da famlia como um sistema aberto, no qual circulam significados tanto no seu
interior, quanto no seu contato com o macrocontexto.
Essa dinmica discursiva faz da famlia um objeto de investigao valioso, pois ao
mesmo tempo em que circunscreve um grupo afetivamente relacionado e socialmente
delimitado, tambm interage dinamicamente com outros grupos sociais, fazendo-o produtor e
produto de um determinado tempo e espao.
O tratamento conceitual noo de famlia na contemporaneidade uma tarefa que
demanda uma srie de interconexes. Isso porque nenhuma disciplina isoladamente seja a
Psicologia, o Direito, a Histria, a Antropologia, a Sociologia, a Biologia, etc13
. pode
oferecer respostas acabadas a um fenmeno histrico e ainda em permanente mutao. Nesse
sentido, ressaltamos que partiremos de uma leitura eminentemente psicolgica (mas no
exclusiva) do fenmeno famlia. Para tanto e considerando a complexidade inerente ao
objeto de estudo, dialogaremos com vrios saberes, com destaque ao Direito, face o nosso
13
Para Jacob Burckhardt, se nas cincias necessrio ser um especialista e se podemos controlar apenas um campo limitado do conhecimento, preciso ser tambm amador no maior nmero possvel de outros domnios,
se no quisermos perder a faculdade de julgar as coisas no seu conjunto (MORIN, 2012, p. 58).
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campo de pesquisa. Nascimento (2009), em seu estudo jurdico sobre a transformao do
conceito de famlia, alerta para a necessidade dessa articulao multidisciplinar:
H dificuldade em se construir uma concepo de famlia que atenda ou d
conta deste fenmeno. Quando so ressaltadas algumas das caractersticas,
outras so deixadas de fora, no sendo possvel contemplar todas as
vertentes. At mesmo dentro de alguns ramos do Direito, esse instituto
visto de forma polifacetada, para dizer o mnimo acerca das tenses que
nesse campo se verificam. (p. 12)
importante resgatarmos o que algumas disciplinas construram sobre essa noo,
entendendo que a vivncia objetiva das pessoas influencia a formao dos preceitos
cientficos, mas tambm as prprias concepes formuladas pela academia circunscrevem
comportamentos, normatizando-os no momento em que os nomeiam. A psicologia, o servio
social, a sociologia e a psiquiatria so frequentemente convocadas para auxiliar na resoluo
dos conflitos familiares com excelentes resultados (ASSUNO, 2001, p. 29).
Para alguns estudos antropolgicos, por exemplo, famlia est ligada aos laos de
parentesco, sangue e dependncia, gerando relaes de solidariedade, tenso, conflito e afeto
entre seus membros (BRUSCHINI apud NASCIMENTO, 2009). J para estudos no mbito
jurdico, fica patente a noo de famlia como celula mater da sociedade, pois esta
considerada o primeiro grupo social de insero do indivduo no mundo, lugar de
compartilhamento dos valores do seu grupo social.
Essa ideia circulante nas leis e nas decises judiciais encontra guarida em muitas
correntes psicolgicas, como aquelas que entendem a famlia como uma matriz de
identidade, como Minuchin (1990). Souza e Miranda (2007) tambm centralizam na famlia
as bases para o desenvolvimento humano. No entanto, relativizam o seu modo de
compreender o fenmeno famlia quando afirmam que, dependendo do teor qualitativo das
relaes (afeto, apego, segurana, disciplina, aprendizagem e comunicao), ela pode se
tornar um fator tanto de sade como de doena.
Donatti, adotando uma perspectiva relacional da noo de famlia, afirma que tal
anlise:
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[...] no sincrtica; tenta ir ao corao da famlia no sentido de reconhecer
sua peculiaridade, a originalidade da relao familiar, como distinta de todas
as outras relaes. Ela procura encontrar e compreender a relao familiar a
partir daquilo que constitui sua unicidade, porque a famlia diferente da
relao de amizade, de trabalho, mdico-sanitria. (DONATTI, apud
NASCIMENTO, 2009, p. 22).
A compreenso de famlia da escola relacional traz um cuidado importante para a
nossa pesquisa, j que a busca da definio de um conceito deve incluir tambm o que no
estamos entendendo como relaes familiares, ressaltando os limites do objeto visado. Nesse
sentido, no podemos generalizar, afirmando que qualquer agrupamento de pessoas pode ser
chamado famlia. Isso porque a questo fsica, e at mesmo geogrfica, apenas um dos
aspectos que merecem ateno quando estamos refletindo sobre as famlias na modernidade.
A maior democratizao dos meios de comunicao (com destaque para a Internet) e o maior
acesso aos meios de transporte (especialmente o avio) produziram outras noes de tempo e
espao que merecem ser consideradas.
Dialogando com o enfoque relacional, temos ainda a abordagem familiar sistmica,
que visualiza a famlia de uma forma mais ampla, na qual seus membros se comunicam e
interagem entre si, bem como com a totalidade que a cerca (SILVA, 2003). Qualquer conflito
familiar que entendido por essa escola como um sintoma que outrora pesava apenas
sobre um dos seus membros, agora visto como representante das interaes familiares. Para
essa abordagem, as mudanas na famlia podem ser provocadas tanto por fatores internos,
quanto externos, a depender das suas caractersticas objetivas de funcionamento.
Olhando em perspectiva, de um ponto de vista histrico, percebemos como as relaes
familiares mudaram no decorrer dos sculos. A ttulo de comparao, fica evidente como
aquilo que chamamos famlia na atualidade completamente diferente daquilo que se
concebia como famlia h trs sculos. A capacidade de ajustes na formatao e na funo da
famlia, em relao s diversas mudanas na sociedade, parece ser a chave de sua
permanncia como forma possvel de organizao social na contemporaneidade. [...] Apesar
de todas essas transformaes acontecidas no interior da famlia, podemos dizer que ela ainda
se mantm idealizada e desejada por todos (AMAZONAS E BRAGA, 2006, p. 179).
Muitas dessas mudanas que vm ocorrendo nas famlias, sobretudo nos
comportamentos de homens e mulheres, podem ser circunscritas aos acontecimentos scio-
histricos que despontaram em torno da dcada de 1960, desde a expanso do sistema
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capitalista e os avanos tecnolgicos/biomdicos, at os movimentos intitulados
contracultura, como o feminismo, LGBT e ecolgicos (REIS, 2009). Ressaltamos que no
estamos entendendo as mudanas em termos de substituio, mas como outras formas de
subjetivao, que trazem em seu bojo o amlgama do velho e do novo.
Ao longo do sculo XX, rpidas e profundas transformaes continuaram
acontecendo. A maior frequncia nos rompimentos conjugais, famlias nucleares se
transformam em monoparentais, as quais, em seguida, tornam-se famlias recasadas (que, por
sua vez, em um breve intervalo temporal, cambiaram para a monoparentalidade novamente) e
a dispensabilidade da interao sexual como condio da gerao de crianas (substituveis
pelas procriaes assistidas) so apenas alguns dos exemplos mencionados por Brito e
Peanha (2010) como demonstrativos da agilidade dessas mudanas. Essas novas
configuraes familiares formam o que se tem convencionado chamar famlia mosaico,
revelando-se uma tendncia mundial (SHINE, 2007).
Por seu turno, a Psicologia pode pensar as relaes familiares como vnculos
duradouros, nas relaes de afeto e na possibilidade de trocas significativas (CARVALHO,
2005). Fonseca, pesquisadora antroploga que estuda famlias, define laos familiares de
modo muito prximo Psicologia, entendendo-os como relaes marcadas pela identificao
estreita e duradoura entre determinadas pessoas que reconhecem entre elas certos direitos e
obrigaes mtuos (2005, p. 54). Corroborando com essas definies de famlia, temos a
contribuio de Virgnia et al. (2001, p. 143), que a entende como um grupo de pessoas
ligadas por parentesco, afeto, solidariedade, necessidade de reproduo, garantindo uma
identidade social e, por conseguinte, a socializao.
Observamos que a incluso da temtica da afetividade, compreendida como
constituinte das relaes familiares, transformou tambm a forma das outras cincias
abordarem a noo de famlia. A partir de dados histricos, foram os estudos do francs
Philippe Aris (1981) que apontaram as mudanas sentidas no trato diferenciado dado aos
infantes, as quais tambm repercutiram na configurao familiar. Ao contrrio das relaes de
famlia da Idade Mdia, pautadas, sobretudo, no aspecto moral e social da criana (esta como
herdeira e representante de uma linhagem), tinham-se nas relaes familiares, a partir da
chamada Modernidade, maior considerao aos aspectos afetivos. A intensificao com os
cuidados de sade e educao das crianas, quando transformados em indispensveis,
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reorientou as atenes tambm para uma nova maneira de organizao do grupo familiar,
posto que os filhos passaram a ser a prpria razo de existncia da famlia.
A noo de vnculo afetivo valiosa para a Psicologia, pois partir dela que a pessoa
capaz de, interacionalmente, constituir-se em suas potencialidades. Vale ressaltar, segundo
Carvalho (2005), que esse conceito no est preocupado com a valorao moral do vnculo:
pode-se ter tanto vinculaes consideradas positivas como negativas; o fundamental do
vnculo a indispensabilidade do outro como constituidor do eu, sendo a famlia locus
privilegiado dessa construo.
Outras concepes de famlia, muitas vezes compartilhadas por diversos segmentos da
Psicologia, no levavam em considerao as mltiplas possibilidades de configuraes
familiares. Apontamos uma expresso comum na literatura psicolgica, a qual diz respeito a
uma suposta estrutura familiar, pressupondo haver alguma formatao/estrutura prvia a ser
considerada/buscada (GROENINGA apud NASCIMENTO, 2009). Corolrio dessa
compreenso so as taxaes estigmatizantes das famlias desestruturadas, as quais no
obedeceriam a esse padro predeterminado, possivelmente pautado nas expectativas de
determinados setores da sociedade que elegem comportamentos familiares e os descrevem
como estruturados ou normais (FONSECA, 2005). O uso desses jarges geralmente
abriga preconceitos de cunho moral, partindo de uma anlise fragmentada, focalista e
individualizante das questes familiares (BARBOSA, et al., 2001).
Nossa contribuio ao conceito de famlia tenta ir de encontro a esses tipos de
formatao. Ao considerarmos vrias disciplinas, abrimos um leque de possibilidades para as
funes e configuraes que elas possam assumir. A caracterstica marcante de uma famlia
deixa de ser o padro nuclear (surgido no contexto da Revoluo Industrial e da formao dos
grandes centros urbano) e passa a ser a congregao (no necessariamente fsica) de pessoas
por laos afetivos e que se reconheam como integrantes desse ncleo afetivo.
A proposta aqui , pelo contrrio, pensar o modo de vida como fenmeno
histrico, fruto de determinadas circunstncias econmicas e polticas, e que
d prova da criatividade de indivduos agindo em sociedade. Quero insistir
que essa perspectiva, evidente nas propostas de pesquisadores, como Elsen e
Althoff (2004) e Dytz (2004), no um acrscimo cincia j existente.
Representa algo revolucionrio, uma reviravolta no senso comum, superando
abordagens neocolonialistas e apontando o caminho para um espao de
verdadeiro dilogo nos programas de interveno. (FONSECA, 2005, p. 58)
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Fonseca (2005) nos alerta ainda que olhar para as diversidades de famlias com uma
viso estreita, geralmente tendo como referencial a famlia nuclear burguesa, atuar junto a
elas com uma camisa de fora. A criatividade das relaes limitada por normas
reducionistas. A ao cotidiana seria, para a autora, um permanente cenrio para novas
prticas, atravs da constante renegociao dos comportamentos e da transformao de
valores.
Outra relativizao necessria ao se trabalhar com famlias decorre do recorte de
acordo com a classe social. Segundo Duarte, o valor famlia tem grande peso em todas as
camadas da populao brasileira. No entanto, significa coisas diferentes dependendo da
categoria social (apud FONSECA, p. 51). Enquanto entre as elites predomina o orgulho do
patrimnio e do sobrenome, nas classes mdias h um investimento exacerbado na
manuteno da famlia nuclear. J nos grupos populares, a vivncia familiar est ancorada
pelas atividades cotidianas, em especial as domsticas, e em relaes mais coletivistas,
principalmente de ajuda mtua. Importante ressaltar que estamos falando de tendncias, e no
de uma realidade estanque, passvel de ser enclausurada em conceitos predeterminados.
[...] o advento da famlia moderna no se deu de forma homognea em todas
as camadas da sociedade, mas, ao contrrio, seguiu trajetrias distintas e
produziu efeitos diferenciados. Vale dizer que o prprio recentramento da
famlia sobre si mesma, ocorrido, tanto nas famlias burguesas como nas
populares, adquiriu sentidos diferentes, na medida em que, para os
burgueses, tratou-se de retraimento ttico, com o fim de controlar um
inimigo interior, que eram os serviais, enquanto que, para os pobres, tratou-
se muito mais de uma relao circular de vigilncia sobre os membros da
famlia tal como incentivada pelos higienistas contra as tentaes exteriores da rua. (REIS, 2009, p. 31).
J no mbito jurdico, o delineamento da famlia a partir da Constituio Federal de
1988 (BRASIL, 1988) formado por trs aspectos: o casamento (art. 226, 1), a unio
estvel de um homem com uma mulher (art. 226, 3) e por um dos pais e seus descendentes
(art. 226, 3). Fica patente que tal noo, a despeito dos avanos em relao s legislaes
anteriores, principalmente em relao ao carter mais plural e democrtico das configuraes
familiares, continua invisibilizando outras possibilidades, como a formada por casais
homoafetivos. Ademais, o interesse maior do Judicirio, como um dos poderes do Estado
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socialmente legitimado, exercer, atravs da famlia, sua funo de controle social, tendo nela
um lugar privilegiado para a regulao dos comportamentos.
De sorte que o Estado, na preservao da prpria sobrevivncia, tem
interesse primrio em proteger a famlia, por meio de leis que lhe assegurem
o desenvolvimento estvel e a intangibilidade de seus elementos
institucionais. Da a interferncia por vezes exagerada do Estado nas
relaes familiares. (RODRIGUES apud NASCIMENTO, 2009, p. 18).
O conceito foucaultiano de biopoltica (FOUCAULT, 1997) nos ajuda a
compreender como o sentimento moderno de famlia surgiu inicialmente nas camadas
burguesas e, em seguida, foi reproduzido tambm pelas demais classes sociais, tudo atrelado
ao seu uso como forma de controle social. Segundo a ideia do autor, a biopoltica corresponde
a um campo de prticas responsveis pela disseminao de tecnologias polticas, as quais iro
incidir sobre os corpos de uma populao. Dito de outra forma, so as tecnologias que vo
investir sobre as regras de sade/doena, alimentao, moradia e demais condies de vida de
um povo.
Atrelado historicamente a essas formas de controle e visando manter a regularidade
das relaes sociais, o Direito de Famlia se restringia regulao da transmisso de bens e
dos patrimnios das famlias que se uniam por meio do casamento civil. (ZARIAS, 2010).
Paulatinamente, uma nica organizao familiar aceita juridicamente foi sendo substituda por
novos arranjos, ainda que atualmente limitados do ponto de vista da norma. Havia, antes da
Constituio Federal de 1988, uma associao direta e limitadora entre famlia e casamento,
admitindo-se legalmente apenas os filhos havidos dentro do matrimnio.
O que a nova Carta Magna fez foi tornar formalmente plural aquilo que no cabia mais
em uma concepo unvoca e anacrnica.
O que ontem era pensado segundo a lgica do patrimnio, hoje, reveste-se
de um novo manto: o da afetividade ou o da lgica dos direitos pessoais
vistos a partir de um conjunto de princpios de direito emanados da
Constituio de 1988. (ZARIAS, 2010, p. 65).
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Segundo Alves (2001), o moderno Direito de Famlia, alm do abrigamento de novas
entidades familiares, tambm exigiu uma abordagem multidisciplinar, reconhecendo a
complexidade no trato de temas conflituosos e a necessidade da interdisciplinaridade dos
ramos da cincia para a compreenso da dinmica familiar.
Assuno critica a noo cunhada por Clvis Bevilquia, famoso jurista cearense, o
qual definia o Direito de Famlia como:
o conjunto de princpios que regulam a celebrao do casamento, sua
validade e os efeitos que dele resultam, as relaes pessoais e econmicas da
sociedade conjugal, a dissoluo desta, as relaes entre pais e filhos, o
vnculo de parentesco e os institutos complementares da tutela, da curatela e
da ausncia. (2001, p. 27).
A ressalva em face da incompletude da definio segue a mesma esteira discursiva
utilizada por ns, ao entender que a famlia no pode ficar adstrita ao contrato matrimonial.
Essa ligao historicamente construda entre famlia e casamento provoca ainda
interpretaes equivocadas, como se a crise vivenciada pelo segundo, em razo dos nmeros
crescentes de divrcios, tivesse uma relao de dependncia necessria com a primeira
(SHINE, 2007). Contundo, no entendemos profcuo aderir ao posicionamento
diametralmente oposto, que defende uma separao absoluta entre esses dois institutos, uma
vez que muitas configuraes familiares ainda so pautadas nas unies conjugais e, no caso
particular de nossa pesquisa, nas repercusses provocadas pela sua dissoluo.
Vale a pena apresentar a evoluo da Taxa geral de divrcios, ndice utilizado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE)14
, para acompanhar o movimento
populacional em relao s dissolues conjugais. Temos, no perodo de 1984 a 2007, um
aumento do ndice de 0,46 para 1,49, uma evoluo de, aproximadamente, 200% em um
perodo de 23 anos. Esse ndice medido a partir da diviso dos nmeros de divrcios
concedidos pelo quantitativo populacional:
14
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/registrocivil/2007/default.shtm. Acesso em 26/01/2013, s
19h10.
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Ressalte-se ainda que, segundo Foucault (1997), a ideologia do amor conjugal tambm
uma inveno, no sentindo de ser uma forma de regulao entre o casal que foi
paulatinamente se desenhando no transcorrer da histria, incentivada principalmente pelo
movimento higienista, como uma estratgia diferenciada para o controle da sexualidade. Com
a burguesia, a famlia conjugal confiscou a sexualidade, elegendo o casal legtimo como
modelo e norma a serem seguidos. Esses mecanismos visavam, dentre outras coisas,
solidificar as funes de paternidade e maternidade, principalmente em relao s
consequncias da rigidez desses papis na relao com os filhos.
Considerando esse aumento na taxa de divrcio nos ltimos anos, tambm cada vez
mais frequente o aumento na solicitao de pedidos de guarda de crianas e adolescentes,
resultantes dessas relaes desfeitas. Existem algumas possibilidades no exerccio do
direito/dever de guarda, tais como veremos na seo adiante.
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2.1 Tipos de Guarda
O interesse dessa dissertao no servir como um manual de Psicologia Jurdica, mas
fazer uma reflexo sobre como a Psicologia pode (re)produzir determinadas formas de ser
famlia e quais os possveis efeitos disso na produo de subjetividades. Por isso, importante
mencionarmos algumas distines que sero teis nas anlises do material emprico que
traremos ulteriormente, como, por exemplo, quais os tipos de guarda existentes no nosso
regramento jurdico atual.
2.1.1 Guarda Alternada
Segundo Souza e Miranda (2007), nesse tipo de regime de guarda, um cnjuge o
detentor da guarda, enquanto ao outro reservado o direito de visitao. Passado um
determinado perodo, o qual foi acordado pr