D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

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ISABEL CLUNY D. LuÍs DA CuxHA e a ideia de diplomacia em Portugal

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D. Luis da Cunha e a ideia de diplomacia em Portugal

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ISABEL CLUNY

D. LuÍs DA CuxHAe a ideia de diplomacia em Portugal

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ÍNorce

INrnoouçÃo 11

Como abordámos o tema 13

Dainvestigaçãobibliográficaàinvestigaçãosobrediplomacia

[. Onrc¡Ns DE r,rMA reuÍLm. LUSTRE 19

1. A casa dos Cunhas em Santa Catarina....... 19

2. As raízes em Goa - D. Lourenço da Cunha.. 19

3. D. António Álvares da Cunha - um homem de corte 2l4. D. Pedro Álvares da Cunha 255. D. António Manoel de Vilhena - Um primo grão-mestre da Ordem de Malta 25

II. D. LuÍs oe CuNru, - EXEMpLo Do pERFTL Do DTpLoMATA oo sÉculo xvur

ïîïH:röHr;"'ffxîiî{xh;î¡ätriff î"':;:ï..:::.....:.:.::::3. A reflexão em torno do perfil do embaixador ................4. O papel da experiência .................5. O papel da formação6. Algumas reflexões sobre a importância dos tratados e a concepção de soberania

6.1. A influência de Maquiavel..............6.2. A influência de Bodin .....,,,..............

6.3. A influência de Grotius ................... .........:...........7. O direito de representação como prova de soberania

III. A Bsreon ¡Nr Lor.rpRrs (1697-1712) .. 571. A primeira Instrução e a acção diplomática como Enviado Extraordinário. 572. D. Luís da Cunha e o Tratado de Methuen - a diplomacia paralela............. 603. A actuação diplomática em Londres quando

daAliançacomaFrançaem 1701 62

IV. Dn pnz pr Ryswrcr À Gupnne oR SucsssÃ,o ¡B EspRNse 611 . A viragem na política externa portuguesa - a aliança com Inglaterra . .. .. ..... 672. Dois representantes diplomáticos de Portugal em Utreque

- o Conde de Tarouca e D. Luís da Cunha 74

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Isabel Cluny

3. Sobre a importância da actuação de D. Luís nos preliminares dapaze nas negociações em utreque

Y. As Meuórues DA PAz DE (Jrnrcmr ATRADUÇÃ.o ø PenÁrn¿sr oos Trureoos

oz Ptz e oz, CouÉncto cEtEBRADos øu Urnøcnr, Bepp¡¡ e Avvøns

VL Urr,re NovA ErApA NA cARREIRA pn D. LuÍs - DE MADRID pane PeRts

1. A actuação portuguesa no Congresso de Cambrai2. As questões do cerimonial ................3. Os conceitos de soberania, limite e fronteira

VII. Dn coRrE DE P,qrus À ESTADTA sÀd Bnuxnr.es -1725-17281. Um homem de cultura em Bruxelas2. O caso Merveilleux

X. A rsr¡,ntn Na Hnu, - 1728-17361. A residência do embaixador

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3. Quillard e Merveilleux em Portugal 1104. O projecto do geógrafo D'Anville lI25. As encomendas reais ou a arte do coleccionador............... 1136. Outras encomendas régias........... 1187. D. Luís da Cunha e os artífices 1198. D. Luís e a renovação do ensino .. 1209. A ideia de Europa em D. Luís da Cunha l2I

VIIL A cELEBRAÇÃo Dos ESpoNSArs Dos HERDETRos DAS coRoAS p¡ Ponrucels o¡ EspANHe coMo FoRMA DE REFoRÇAR A IMAGEM op Ponrucer r29

135

139139140

IX. A corsrnuÇÃo DE UMA cARREIRA, ursrónrn coNTADA poR uMA cARTA-pETlçÃo....

2. Afamília do embaixador3. A actividade diplomática ou a arte de negociar .. L45

3. 1. A polémica com o Marquês de Abrantes sobre a liberdade comercial .. 1474. A família Nunes da Costa e sua importância nas relações diplomáticas

do Portugalpos/ Restauração ................ I495. D. Luís e os mercadores............... .. 153

6. A especialização da actividade diplomática 153

7. Considerações sobre apolítica de alianças 156

XI. As sEcRETARTAS DE EsrADo, uM Novo coNcErro DE ADMTNISTRAÇÃo cEI\TRAL ...... 161l. A atribuição da Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros

a Marco António de Azevedo Coutinho 161

2. As Instruções Inéditas 166

XIL A AMTzADE te D. LuÍsl. Um agente em Paris

DA CUNHA pon Fn¡,Nclsco MENDES o¡ Gors I7II7T1742. Francisco Mendes de Gois e as relações com o Cardeal de Fleury

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D. Iús da Cunha

XIII. Urr¡ cASo DA vIDA PARTIcuLAR Do EMBAIXADoR ou A AcÇÃo DIPLoMÁrICA

ENTENDIDA COMO ESPELHO DO REI........,..

1. As cafas de Gonçalo Manuel de Lacerda sobre o carácter e vida particular

de D. Luís da Cunha1.1. Uma primeira versão da carta 181

1.2. A segunda versão da carta 184

2. Um olhar de D. Luís sobre si próprio 189

3. O olhar de Gonçalo de Lacerda sobre D. Luís ou o reforço da "centralidade

política" e da acção do rei ........... 190

XIV. Os úrrn,los DEZ ANos era PA.nls .........'..'.......' 195

1. Do amor pela Casa Paterna à luta pela concessão de um título 195

2. As "más ligações"? Ou um novo entendimento sobre os judeus

e os malefícios da Inquisição? ............ 197

3. Alvitrismo, decadência, ou defesa de uma nova ordem "civil" 205

4. D. Luís um estrangeirado que perdeu os valores de identidade nacional

ou a defesa da diplomacia como factor de equilíbrio enjÚ:e potência,i .'..... 210

5. D. Luís da Cunha e o problema da Sucessão da Áustria 214

6. A Europa em construção no século xvlu - D. Luís e a formação da Pníssia 223

179

XV. Os (rlrluos DoIS ANos DA vIDA Do EMSIIXADoR.................'

l. A morte em Paris colhe-o longe da Pátria e só ..'.'.........'.

Bmlrocn¡,rre .....'..'..........'.

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237

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CnpÍrur-o II

D. LuÍs DA CUNHA_ EXEMPLO DO PERFIL DO DIPLOMATA DO SÉCULO XVIII

_ NASCIMENTO, ESTUDO E EXPERIENCIA

L. Da rNrÂNcra gl,r Lrsno¡ lrÉ ¡,o cARco DE EMBATXADoR EM LoNnnrs

A infância, D. Luís da Cunha passou-a na freguesia de Santa Catarinal,local onde os Senhores de Tábua, como outros nobres, construíram a partir doséculo xvI a sua residência.

Aos 16 anos matriculou-se em Coimbra em "Instituta", no dia I de Outu-bro de 1678. Começou o curso em Cânones çm 1679, graduando-se comobacharel em20 de Janeiro de 1684. A 7 de,Julho de 1685 era jâ licenciado.Tinha então 23 anos.

Do brilho dos estudos em Coimbra e do ingresso na magistratura informa-nosCaetano de Sousa, quando fiaça o perfil do jovem D. Luís, afirmando-nos que tinha:

'tanto aproveitamento, que seguindo as letras, El Rey D. Pedro II, attendendo à sua

qualidade, lhe deu logo que se graduou na Universidade, o lugar da Relação do Porto,

de que tomou posse no anno de 1686, para o que fezvago exame, eleo de Jure apertocom applauso: seguindo esta vida, passou para a Relação de Lisboa; e depois estandojáfóra do Reino no serviço delRey, seguindo a sua antiguidade, foy feito Desembargador

dos Aggravos e ultimamente Desembargador do Paço, de que he Decano"2.

O estatuto de filho segundo de uma famflia da nobreza obrigou-o ao exer-cício de um lugar na administração, porque os bens de família não lhe permi-tiam sobreviver sem estar ao serviço do rei.

O primeiro cargo exercido por D. Luís da Cunha, em 30 de Agosto 1686,tinha então 24 anos, foi o de "desembargador da Relação do Porto de ondetransitou para a Casa da Suplicação a 14 de Outubro de 1688"3.

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Segundo Caetano de Lima "o Tribunal da Casa Cível do Porto he a segunda

Relação do Reyno e o seu despacho muy semelhante ao da Casa da Suplicação

de Lisboa"a sendo o seu corpo constituído pol um chanceler e oito

desembargadores, um coffegedor e um juiz. No tocante à Casa da Suplicação

informa-nos que:

.,He o mayor Tribunal de Justiça do Reyno, assim para o crime como para o civel

[...] compõe-se este Tribunal de quarenta Ministros [...] um Chanceller da ditta Casa;

dez Desembargadores [...] Ajuntão-se estes ministros na grande sala da Relação

onde se repartem, por sete mesas, na forma seguinte. No meyo da parede, fronteira

à porta está a Mesa Grande em que preside o Regedor da Justiça [...] e pelas

ilhargas se vem em bancos estofados e de encosto os dez Desembargadores de

Aggravos."5

É de notar que as funções para as quais foi nomeado D. Luís pertenciam

ao topo da carreira e o seu exercício não o obrigou à passagem pelos diversos

lugares da magistratura. No entanto, na época, os lugares de desembargadores

na-Casa da Suplicação ou no Desembafgo do Paço não eram exercidos por

elementos plovenientes das famílias da aristocracia titulaf, mas sim por gente

sem "qualidade" ou seja por "docteúrs qui ont passé pouf toutes les charges de

judicature"6.Esta nomeação não foi todavia isenta das formalidades exigidas, então'

pelo Desembargo do Paço?. Do processo de habilitação para o cafgo sobressa-

ã- or nomes das seguintes testemunhas: Inquisidor'Geral D. Veríssimo de

Alencastre, D. Francisco de Sousa, Conde de S. Lourenço e o Padre Pedro

Peixoto, Manuel Alves Pedrosa e o Dr. Gaspar de Sousa e Cristovão de Almada'

Ora, sobre a importância destas testemunhas na sociedade portuguesa de en-

tão não lestam dúvidas. Assim, não podemos deixar de referir que pelo menos

duas estavam ligadas à Inquisição. A primeira, D. Veríssimo de Lencastre, foi

inquisidor em Évora tendo transitado pafa Lisboa em 1660. Exerceu os cargos

deieputado e de promotof em Évora, pertenceu ao Conselho Geral e foi tam-

bém ârcediago de Braga. Participou no Conselho de Estado e foi Cardeal da

Igreja de Roma. A segunda, D. Francisco de Sousa, efa doutof e lente

cónãuctário em Canônes, cónego doutoral na Guarda, a partfu de 14 de Janeiro

de 1703 e deputado da Mesa de Consciência e do Conselho Geral da Bula

Cruzadas.Apesar da influência destas testemunhas que mafcaram, de certa fofma, a

sua e;trada na vida profissional, D. Luís da Cunha, vma vez integrado na

administração central, entendeu que esse lugar recheado de privilégios e de

poderes de-facto - dos quais constava a possibilidade dos desembargadores

poderem reunir em "MeSa Grande" e ploduzif "assentos"e que tinham carâc-

ter vinculativo - não o interessava o suficiente dada anattJrezaburocrática do

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D. Luís da Cunha

lugar. AnosCoutinho.

JJ

tarde, confessou-o mesmo a Marco António de Azevedo

"[...] confesso ingénuamente a V. S.", que quando sahi da Relação de Lisboa para virpara Londres succeder ao Visconde de Fonte Arcada, não sabia outra cousa mais quedespachar um feito, a quem sempre tive averção"to.

Talveztenha sido a falta de gosto pelos processos que determinou o seu

afastamento de uma carreira ligada à administração em Portugal. Em 14 deNovembro de 1695 foi-lhe atribuída uma tença anual de 38$000 pelos servi-

ços prestados na Relação do Porto e Casa da Suplicação e de mais 12$000pela tomada do hábito da Ordem de Cristo. Na mesma data, foi nomeado porD. Pedro II como enviadopxtraordiniário na corte de Londres, para suceder ao

Visconde da Fonte Arcada. As Instruções que o deviam acompanhar só lheforam facultadas, no entanto, em Outubro de 1696rt.

IJns meses depois, em 30 de Março de 1696, recebeu acrrtade Hábito daOrdem de Cristo e, no mesmo dia, foi-lhe passado o alvará de cavaleiro e de

"profição"12.

"[...] faço saber a vós Reverendo D. Prior do Convento de Thomar da mesma Ordemou a quem vosso c¿ugo servir, que D. Luís da Cunha me pedio mercê por que elledesejava e tinha devoção de servir a nosso Senhor na mesma Ordem, houvesse porbem receber e mandar provar do cabido della [...] de lhe fazer muito [...] a ordemhabilitou-se a sua pessoa diante do Presidente e dos Deputados [...] da mesa da Cons-ciência e das Ordens e juiz della se por que me conStou, que o dito D. Luis da Cunhater as pessoais qualidades e limpeza necessárias que dispoem os definitorios da mes-

ma ordem e por esperar que nella poderá fazer muitos serviços a Nosso Senhor e a

my. Hey por bem e me apras de o receber á ordem e por elle vos mando pedir cumiçãopara que lhe leveis o habito dos noviços delles e o fareis assentar no livro de matriculao que lavreis segundo forma da definição da mesma ordem, e de como assi lhe lança-

res lhe passareis certidão na forma acusfumada e esta carta mandareis guardar na arca

que esta deputada [...] guarda as cartas de habitos que os [...] governadored da ordem

mandão lançar no dito convento e essa pessoa cumprirá sendo pela referida ordem.

Manuel Guedes da Costa afez em Lisboa a 30 de Março de 1696, [...] assi escreveu

Elrey"r3.

Seria já na qualidade de Enviado Extraordinário que o rei o nomeou, em1710, Desembargador do Paço, atribuindo-lhe todas as regalias inerentes ao

lugar. Todavia D. Luís nunca chegou a exercer o referido cargo por estar forado reino. Três anos depois, em24 de Outubro de 1713, e jâna sequência dos

serviços prestados nas cortes estrangeiras, foi concedido o padrão de 40$000réis de tença a Frei António da Cunha, pelos bons serviços de seu pai plenipo-tenciário em Utreque.

m¿us

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Isabel Clwry

Segundo este documento, o filho natural, mas legitimado por D. Luís,tendo ingressado no Convento de Belém, disporia para seu sustento da referidaquantia "para acudir as suas necessidades religiosas"ra.

2. A mnu. DE DrpLoMAcrA No ÍNrcro DA cARRETRA DrpLoMÁTrcA

Quando D. Luís chegou a Londres em L697 foi recebido pelo rei britânicoque lhe deu uma "audiencia em Kingsinton aonde fui conduzido segundo oestilo e a forma das minhas instruções lhefiz presente que S. Magestade queDeus Guarde fora servido mandar retirar o Visconde da Fonte Arcadafazendome a honra de substituirrne em seu lugar ao que me respondeu emfrancês, que da mesma sorte e com o mesmo animo desejava continuar umasegura e estreita amizade com el Rey de Portugal seu irmão"ls.

Os primeiros contactos na corte inglesa bastaram para constatar que, aos

35 anos e com uma experiência profissional de quase 12 anos, a sua formaçãode magistrado de pouco ou nada serviria para o exercício da carreira diplomá-tica.

"[...] em poucos dias vi que os textos de Jurisprudência não me servião muito para

entrar nos príncipios da Política e assim me foi necessário aprender outra língua e

fazer outro estudo"rT.

Como se depreende pela leitura do documento, D. Luís da Cunha, emcontacto com os meios diplomáticos europeus, compreendeu logo - e talveztenha sido um dos primeiros diplomatas portugueses afazê-lo, em conjuntocom José da Cunha Brochado - que o exercício da diplomacia não se confor-mava com a ausência de uma preparação teónca específica e a definição de

uma carreira.Todavia, a preocupação com a formação dos diplomatas era uma constante

na época, não só em Portugal como nos vários países da Europa, daí a cons-tante publicação de obras de caúrcter diplomático das quais nos parecem de

salientar: Amelot de La Houssaye , Histoire du Gouvernemente de Venise,Pans,167 6; Gregori Leti, Le Ceremoniale historique et politique, Amesterdão, 1685;

Wicquefort, L'Ambassadeur et ses fonctions, Colónia; 1690 e Memoirestouchant les Ambassadeurs et Mínistrcs publics,Haia; Adrien Moetjens, Acteset mémoires des negociations de la paix de Ryswick, Haia, 1699; FrançoisCallières, De la manière de negocier avec les Souverains, d'utilité des

Negotions, du choix des Ambassadeurs et des Envoyeurs, Amesterdão,1716;Pecquet, Díscours sur L' Art de Negocier,Pais,lT3T; Du Mont e Rousset,

Suppplement au Corps Universel Diplomatique du Droit des Gens,

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D. Luís da Cunha

Amesterdão, 1739. Mais tarde, viria a lume a importante obra de Vattel,

Le Droit des Gens, cuja edição de 1758 em Leida, foi considerada no,'avertissement" do editor parisiense como "le manuel des diplomates; on

appelle dans toute I'Europe Le Code des Ambassadeurs".

A sistemática publicação de obras deste tipo prova pois que existia já anecessidade de autonomizar a Diplomacia do Direito e a preocupação em

definir o que se entendia pela "qualidade e conduta dos negociadores".

Em Portugal, uma das obras pioneiras sobre as funções dos embaixadores

foi a Corte na Aldeia, da autoria de Rodrigues Lobo, editada em 1619. Os

diálogos III e IV Da Maneira de Escrever e das Diþrenças das Cartas

Missivas, Dos Recados, Embaixadas e Vsitas, são, respectivamente, exem-

plos da preocupação didáctica em estabelecer regfas de conduta pafa os diplo-

matas.No conjunto, esta e as outfas obras acima mencionadas, foram fundamen-

tais para autonomizaf a Diplomacia, porque contribuíram para esclarecer os

diferentes papéis atribuídos na época aos ministros públicos; transmitiram

conselhos pafa o exercício bem sucedido da diplomacia, bem como formula-

ram críticas à forma de recrutamento dos embaixadores, permitindo uma cla-

rificação do objecto da própria Diplomacia.Como veremos adiante, muitas das ideias ventiladas pelo embaixadorpor-

tuguês D. Luís da Cunha denotam, precisamente, a sua concordância com a

necessidade de clarificação da práLtica e da teoria diplomática, bem como

reflectir sobre as características e qualidades que deveriam reunir oS repre-

sentantes do Estado nas cortes estrangeiras. 'A título de exemplo podemos citar algumas das opiniões de François

Callièrest8 que fizeram eco no nosso embaixador.

,,[...] ont voit souvent des hommes qui ne sont jamais sortis de leurs pays, qui n'ont

eu aucune application à s'insffuire des affaires publiques et d'un genie médiocre et

devenir pour leur coup d'essai ambassadeurs dans des Pays dont ils ne connaissent ni

les interêts, ni les loix, ni les moeurs, ni la langue, ni même la situation. [...][...] ambassadeurs, dont le but principal doit être d'entretenir une bonne

correspondance entfe leur Maître et les Princes vers lequels ils sont envoyez"re '

Veremos posterionnente como D. Luís fez suas estas palavras.

3. A nnrr,nxÃo EM ToRNo Do PERFIL Do EMBAIXADoR

Até ao século XVIII os lugares das legações nas cortes europeias eram ocu-

pados por homens que os exerciam devido à sua ascendência nobre, à sua

formação de magistrados ou, simplesmente, porque possuíam formação uni-

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versitária, sem que houvesse uma preocupação em distinguir a sua acção comodiplomatas ou como jurisconsultos. Foi contra essa tendência de confundir as

duas actividades que José da Cunha Brochado e D. Luís da Cunha lutaram2O.

José da Cunha Brochado tinha um perfil académico e profissional idênticoao de D. Luís da Cunha, embora a origem familiar fosse menos ilustre. Nome-ado para Paris, em 1695, como Secretário de embaixada na sua qualidade dejurista, acompanhou o Marquês de Cascais, deixando para trás (tal comoD. Luís), o cargo de desembargador da Relação do Porto.

Em 1698, quando o marquês se viu obrigado a sair de Paris devido às

dívidas de jogo contraídas, conseguiu ser nomeado Enviado Extraordináriona mesma corte, ocupando o lugar até Maio de 1704, altura em que abando-nou a França, devido ao alinhamento português ao lado da Inglaterra, Holandae Império, na gueffa da Sucessão de Espanha.

A estadia em França permitiu-lhe, por um lado, observar os costumes dacorte e analisar as norrnas do cerimonial dos diversos embaixadores aí acredi-tados, retirando os ensinamen(os práticos para o futuro da diplomacia portu-guesa, e por outro, levou-o a reconhecer a importância da formação doselementos que compunham as embaixadas. Daí, referir-se jocosamente aos

portugueses residentes na corte franeesa, criticando a sua falta de cultura e

incapacidad e de aí se integrarem.

"Santos homens, não há dúvida, mui devotos, sempre de camândulas em punho. Po-

rém, para serem óptimos companheiros, uma qualidade lhes bastava possuir: a de

saberem gosar Paris. Mas o quê?! Nada os interessa senáo suspirar pelas suas sopas

de vaca e pelas belas pescadas de Cascais; é êsse todo ofundo da sua erudição"2t.

Em 1698 José da Cunha Brochado já enumerava as qualidades que de-

viam reunir os diplomatas

"muito desembaraço, muita atenção, sagacidade com muita dissimulação, um sem-

blante de muitas máscaras e um aparato com tanto artifício que sirva a todos os

génios"zz'

Anos depois, em 1711, no Discurso Político que fez José da Cunha Bro-chado, Enviado dos Sereníssimos Reis de Portugal D. Pedro II e D. João V3,o autor confessou ter escrito essa obra como meio de instrução para si próprioe como notícia para embaixadas onde estavam em funções novos diplomatas,reconhecendo implicitamente a falta de experiência do pessoal das embaixa-das, bem como a inexistência deumaformação própia que permitisse um de-

sempenho positivo dos lugares ocupados.Foi também por esta linha de defesa do "profissionalismo no exercício da

diplomacia" que D. Luís da Cunha enveredou. Nesse sentido devemos enten-

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D, Luís da Cunha

der as críticas formuladas ao Duque de Ossuna, anos mais tarde, nas Memóriasd.a Paz de UtrechPa. A imagem que dele traçou seria precisamente o contráriodo que considerava serem as qualidades de um diplomata.

Recordando o luxo ostentado pelo ministro espanhol na cidade de Utreque,salientou a presença de uma bailarina da Ópera de Paris que Ossuna sustenta-

va com "publicidade e magnificiencia". Na sua opinião essa situação confir-mava o caráctefs de Embaixador que lhe atribuíra o soberano espanhol, poisde contrário não poderia comportar-se de forma tão provocatória e arrogantenuma corte estran geira.

No entanto, e apesar do estatuto que lhe conferira o seu soberano, D. Luísconsiderava-o um ignorante e incapaz de conduzir os interesses do príncipeque representava porque "não havendo jamais lido hum so Tratado, não deviaexpor-se a fazellos". Reconhecia-lhe contudo uma qualidade: a fidelidade a

Filipe V. O Duque de Ossuna, representante da Espanha nas negociações dePaz, em l7L3-L5, beneficiou contudo do apoio de Monte Léon e o condeBergeick, também embai4adores de Filipe V e, aos quais D. Luís da Cunhanão regateou elogios: "ambos praticos e intelligentes nas negociacoens para oencaminharem (ao Duque) em tudo o que fosse conviniente, porem na instruçãoque el Rey Philipe lhe deo o supoem o maior do Mundo".

Ao terminar o retrato do ministro espanhol, que considerava "ridículo"e inútil, D. Luís alertava para os perigos que a escolha errada de um diplo-mata poderia acafietar para os Estados que representava, na medida em queas insuficiências destes beneficiavam os outroS Estados envolvidos nas con-versações.

"a mal dirigida vaidade com que de repente se suppoz hum consumado Ministrocomo se em Utrecht reinasse algum contagio Politico de que logo,enfermavão osque entrarão no Congresso [...] A estranheza do Projecto e a difficuldade comque o Duque se explicava em lingoa franceza, mas ainda na sua própria, porqueapenas pronunciava metade das palavras, tiverão por algum tempo suspensos os

Deputados [...] Bem cremos que quem ler estas Memórias justamente duvidarádo que acabamos de dizer [...] Com tudo a utilidade que os Olandezes tirarãodeste negócio foi a de conhecerem a extravagância do homem com quem deviãoconferir, que não deixa de ser huma consideravel vantagem para os que desta se

sabem aproveitar".

A leitura da s Memóríastransmite-nos a ideia sobre o que D. Luís considera-va ser o perfil do embaixador e tal como Wicquefort, nas Memoíres louchant lesAmbassadeurs et Ministres Publícs, poderiam ser suas estas palavras:

"Je demeure d'accord avec ceux qui ont traité cette matiére qu'il faut que ces troisqualités se rencontre au ministre Public: la naissance, l'étude, et l'experience. La

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première rend son sujet susceptible d'instruction: la seconde I'instruit en effet, et la

troisième acheve de le formet "26

Também segundo Wicquefort, nem sempre as grandes casas produziamgrandes homens, daí que os grandes senhores fossem mais apropriados para

as cerimónias de representação, enquanto que para as negociações estariam

mais indicados aqueles que conseguissem reunir o estudo, a eloquência natu-

ral e a experiência.

"Pour ce qui est I'experience, il n'y a personne que ne demeure d'accord, que c'est

elle qui acheve de former I'ambassadeur et que cette sorte d'emploi ne peut être

surement confié qu'a des personnes quel'ageetlaconnaissance des affaires ontmeuries

[...] Les Princes ont tort de joindre, dans les commissions de cette sorte de MinistresI'experience et la fidélité; quoy que ce soyent des qualités essentielles et inseparables."u

Alguns anos depois de ter escrito as Memórias da Paz de Utrecht, a refle-xão do diplomata português sobre a experiência nas cortes europeias levou-oa crrtica\ nas Instruções Inéditas a Marco António de Azevedo Coutinho, a

maneira como a formação e recrutamento dos diplomatas haviam sido enca-

radas em Portugal desde a Restauração. Segundo o embaixador, procurava-se

uma mão-de-obra barata, que por vezes até eraeficaz, mas quase sempre pouco

instruída para o exercício das funções que desempenhava.

"Com tudo lembra-me ouvir dizer a meu Pay, que o Senhor Rei D. João IV se servia

muitas vezes de Desembargadores para as Missoins Estrangeiras e que costumava

dizer que era a galinha boa e barata."28

Ao construir a ideia de diplomacia D. Luís viu-se obrigado a demonstrar,

simultaneamente, que para Portugal ocupar um lugar de primeira grandezana

Europa das potências teria não só de alterar os conteúdos e os métodos do

ensino do Direito e do ensino em geral, mas também de modificar o recruta-

mento dos seus diplomatas procurando os mais "profissionais" e experientes.

No seu entender, a diplomacia portuguesa devia ocupar um lugar de des-

taque anível internacional em vez terumpapel apagado, confundindo neuffa-

lidade com falta de protagonismo.Ora, ao perfilhar estas ideias , ter-lhe-â sido muito penoso constatar que

homens como V/icquefort nunca se referiam à acção da diplomacia portugue-

sa nas suas obras.Com efeito , em L'Ambassadeur et ses Fonctions2e, Wicquefort referiu-se

a viárias embaixadas europeias de renome sem nunca mencionar Portugal.E, no entanto, conhecia a diplomacia portuguesa, já que na secção XII da

referida obra, dava como exemplo de falta de fidelidade de um embaixador ao

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D. lnís da Cunhn

príncipe, o caso de D. Fernando Tþlles de Faro, embaixador de Portugal nas

Províncias Unidas no tempo de D. Afonso VI. Segundo a descrição, D. Fer-

nando Telles de Faro ter-se-ia tornado espião ao serviço de França e de Ingla-terra por ter optado pela fidelidade a Filipe IV de Espanha que considerava

ser o rei legítimo de Portugal.A falta de "grandeza" e de reconhecimento internacional da nossa diplo-

macia parece ter, desde sempre, incomodado D. Luís, daí a preocupação em

melhorar as formas de actuação dos futuros minisffos públicos, da¡do-lhesconselhos e orientações que pudessem ser frutuosos.

4. O prpnl DA EXPERTÊNcIA

Apesar de reconhecer que a origem social e a instrução recebida, enquanto

membro de uma elite, lhe haviam facultado os meios essenciais para o exercí-

cio da diplomacia, D. Luís não descurou a importância da experiência como

outro aspecto da sua formação. Nas Instruções aMarco António de Azevedo

Coutinho explicou claramente como a adquiriu e onde.

"Dois grandes Ministros Secretarios de Estado conheci em Londres, os quais me

confessavão que sabendo quais erão os negócios que no Conselho se poderião tratar,

se servião das semilhanças e como por acaso para os comunicarem às pessoas que

supunhão ter delles melhores luzes e mais profundas notícias; e que depois de as

ouvirem com paciência e atenção escolhião entre as su¿ts rezoens, as que lhes parecião

mais solidas, e mais concernentes à materia de que se tratava, para depois dizerem a

sua opinião. E não sabe pouco quem escolhe obem. Mr. Robert Southwel que me deu

os primeiros elemattos do governo de Inglaterra e foi ministro em Porfugal no tempo

em que fizemos a paz em Hespanhø me disse que o voto de Milord Suderland e

informando-me do seu caracter, hera no Conselho o mais seguido, porque de ndo o

que ouvir aos que consultava, escolhia as melhores flores e dellas concertava o mais

vistoso e mais bem fundado ramalhete.

Este methodo me parece sempre muito bom e muito prudente devendo praticar-se

com grande cautela para que não perigue o segredo. O nosso proverbio de que mais

vem quatro olhos que dois he assaz verdadeiro, não porque estes deixem de ver igual-mente os mesmos objectos; mas porque todos juntos os vem, ainda que materiais por

todas as suas partes; e esta multiplicação de olhos parece ser mais necessaria nos do

entendimento, porque sendo especulativa a sua terminação deve examinar-se em to-

das as circunstâncias."3o

Segundo as SuaS próprias palavras os contactos mantidos com o embaixa-

dor Robert Southwell e com Lord Sunderland, ter-lhe-iam sido fundamentais

para entender os píncipios da teoria e da prática diplomática, bem como das

relações internacionais.

Page 14: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

Isabel Cluny

O convívio com Southwell foi certamente proveitoso para D. Luís, então

recém-chegado a Londres e desconhecendo os meandros da diplomaciaeuropeia. De facto, o diplomata inglês tinha sido embaixador de Carlos II na

corte de Lisboa e segundo Thomaz Carte era um "homem esclarecido, judi-cioso e experiente nos negócios" e autor de uma obra importante, publicada

em Londres pela primeiravezemlT40, sob o título The history of revolutionsof Portugal from the fondation of that kingdom to the year the I667 with letters

of. t...1 during his Embassy there, to the Duke of Ormond; giving a particularaccount of the deposing Alþnso and placing D. Pedro on the throne3t.

Quem era afinal Southwell? Segundo Manuel Lopes de Almeida, "este

diplomata viajando sozinho por Portugal não pôs só o interesse no conheci-

mento dos problemas políticos e diplomáticos [...] Procurou [...] conhecer e

difundir as relações de viagens da época levado pelo þôsto dominante"32.

Southwell correspondia pois ao perfil do diplomata europeu do final do sécu-

lo xvu e D. Luís ao aprender com ele o "método" de negociar estaria a iniciar--se na "arte da política" e da diplomacia.

Outro facto que não deixa de ser curioso é Robert Southwell ter sido pre-

sidente du$gla!_lggigg no mesmo ano em que D. Luís foi nomeado para

Londres e, embora o embaixador só entrasse em exercício de funções em

1697, é, natural que através dele tivesse tomado contacto com o pensamento

dessa sociedade, à qual pertenceu, como já referimos anteriormente, seu paiT

D. António Átvares da Cunha. ¡#Sunderland foi outõ-dosiomes referidos pelo embaixador33. A corres-

pondência mantida com ele e com outros membros do governo inglês ter-lhe-:ia possibilitado conhecer os principais problemas da diplomacia europeia. Aleitura desta correspondência - quase toda em francês - permitiu-nos estudar

alguns problemas da diplomacia da época, bem como entender a enorme in-fluência dos diplomatas ingleses na formação de D. Luís, levando-o a com-

preender que'duas qualidades fundamentais se impunham na escolha dos

Ministros Públicos - Instrução e Experiência. Estas ideias apareceriam ex-

pressas, anos mais tatde, na carta enviada para o sobrinho, D. Luís da Cunha

Manoel, que precedeu o envio das Instruções de D. Luís da Cunha a MarcoAntónio de Azeiedo Coutinho. Na referida carta o nosso Embaixador infor-mava-o de como lentamente e de forma prudente se tinha posto ao corrente

dos segredos da "política" e expunha as virtudes exigidas em qualquer fun-

ção, nomeadamente no exercício da diplomacia.

"Isto suposto, meu sobrinho, como os empregos de qualquer género que elles sejão,

não se alcanção sem que os pretendentes trabalhem para alcança-los he necessario

que cada um se ponha em postura de os merecer segundo objecto que tiver, por exem-

plo: como poderá pretender vir a ser General, quem não entender de Guerra ou ser

Page 15: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

D.LuísdaT I \Almirante quàtqão souber nautica; e da mesma sorte como aspirará a entrar no

goverAo ãsse informar pelo menos especulativamente das muitas partes em

que elle\ devide e isto he ao que deveis aplicar, para que possais falar [...] com

huma boa tintura de todas."3a

para o exercício da diplomacia.

"[...] terV. S." sido enviado extraordinario nas duas maiores Cortes daEuropa, a

saber: Pariz e Londres; e por consequência adquerido nellas as experiencias que con-

vem ao seu novo emprego. He verdade que ha muito que reparo que as experiencias

dos Ministros são como as dos Medicos, que quando não conhecem a constituiçãodos enfermos, as mesmas medicinas com que curão huns matam outros [...] que he o

que com mais f¡equencia se experimenta no corpo politico, pella multiplicidade dos

negocios, que se não retratão fielmente, ainda que em alguma coisa se assemelhem,

antes sempre diferem em tal ou qual das suas feiçoens; porque são o tempo e as

circunstancias, as que os desfigurão para não se poder fazer sobre eìles o mesmo

identico juizo. [...] Daqui se segue, que não basta inculcar as pessoas de que V. S."

conhecer a capacidade; mas he necessario instrui-1as"35.

Teria sido ainda nas Instruções que propôs o método de trabalho a adoptarpelo futuro secretário de estado dos Negócios Estrangeiros - Marco Antóniode Azevedo Coutinho - revelando um entendimento perfeito do que seria umprofissional da diplomacia.

"A boa repartição das horas he absolutamente necessaria a hum Secretario de Estado

e as da manhã a que V. S." não está acostumado, são as mais próprias e as mais livres

para trabalhar, porque V. S.u não é senhor daquellas em que sua Magestade lhe quere-

rá dar que fazer, e¿síim toda a ocupação por grande que seja, lhe será sofrivel, antes

por não confundir as audiências que deve às partes com as que os Ministros dos

, estrangeiros (que graças a Deus não são tantos, como nas outras Cortes) lhe pedirem,

lhes assignaria hum em cada dia de cada semana, para ouvir a todos, como V. S.u viopraticar em Pariz; servindo-se dellas e delles para saber o que se passa e se de tempo

em tempo lhes der de jantar será muito milhor, principalmente nos dias de gala, pon-

do grande cuidado em conhecer o humor de cada hum, assim como elles o poram em

penetrar o de V. S.u"36

5. O papu DA roRMAçÃo

Referimo-nos anteriormente a alguns autores que, de uma forma ou de

outra, influenciaram a concepção de diplomacia e de actividade diplomáticaadoptada por D. Luís. Dor:avante tentaremos descortinar a importância que

este atribuíu à formação teórica dos diplomatas.

Page 16: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

Isabel Cluny

Na sua opinião, essa fotmação dependia fundamentalmente de dois aspec-

tos: o estudo das questões a negociar e a leitura das obras teóricas sobre diplo-macia.

D. Luís da Cunha não hesitou em afirmar no Prefácio àTradução e Paró-

frase dos Tratados de Paz. e Comércio Celebrados em Utrecht, Baden e Anvers:

"que a mayor applicação de um Ministro que deseja ter bom sucesso nos negocios de

que esta encarregado deve ser oestudo dos Tratados" e salienta que "Monsieur de

AmelotdelaHoussayecomu-"ffimvariasobservaçõessobreosTratados de Pazes e Aliaqças que os reys de França celebraram com outros Principes

[. . . ] He constante que merecendo cada Tratado de paz huma particular historia que se

explicar comclateza tambem he precizo que a obra fique imperfeita por exceder a

capacidade de hum homem, mas nem por isso deixará de ser util, porque toda a breve

Luz que se der das suas rnatérias considera a coriozidade para que se leão com mais

gosto.

Os Tratados são como logo direi como humas Leys comuns entre os Principes de que

he necessario saber a causa que os moveo, anzáo porque se fizerão e os gffeito_s que

produzirão, de sorte que não se achando estas circunstâncias nas complicações [sic]que athe aqui se tem feito são poucos ou nenhuns os que se rezolveram a examinallasmais que para verem algum ponto dos que expressamente estão tratando [...] A mais

ampla e modema (compilação) que lemos he de {Adriano Moetiens que começa noano de 536, e acabano de 1699, mas com o mesmô defeito das outras em que se não

encontra alguma cauza de Historia ou de direito Publico em que estes Tratados se

fundarão, o que Hugo Grocio acha que deve ser o mais particular estudo dos Minis-fos que ártaå

"típíäu¿ãiì. semelhantes negociaçoens, que se não se podem deci-

dir somente pello Direito da Natureza, cujos preceitos pão genéricos, nem pelo

Municipal de cada Estado, que se restringe a leys especiais, estatutos, nem pello

Commum e Civil dos Romanos por estar cheo de subtilezas mas pello das -Gentes_queinclue todos e contem certas Leys em que as Naçoens reciprocamente consentirão

para a sua conservação"37.

Como se pode verificar defendia o aprofundamento do estudo das causas

dos Tratados e nesta'passagem, que acabámos de citar, radicava-as no DireitoPúblico e no Direito das Gentes. invocando a autoridade de AmeloîõG

omo o voltaria afazeÍ,îoTestamento Polí-tico (I747).

\ Dos autores citados pelo nosso embaixador Abraham Nicolas Amelot de lall---- ^- #I Houssaye seria aquele cuja vida e a obra se tornarffi'ffiilconhecidas. Na ver-" dud" as Mémoires Historiques, Politiques, Critiques et Littéraire.r38, publicadas

em Amesterdão em 1722 e organizadas por ordem alfabética em três tomos,

pelas referências feitas à actuação de diversos embaixadores, bem como pela

definição de conceitos dos quais podemos destacar os de "ambassadeur","ambassatrice","cétemonial", 'þlenipotenciaite" entre outros, tornaram-se umaobra de referência importante para os estudiosos da Diplomacia.

Page 17: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

/A N, &",0$lÁ"1 MlA. - Mh&D. Luís da Cunha

Abraham Nicolas Amelot de la Houssave. nasceu em Orleães em L634 e

morreu em 1 tiu sobre a sua experiência como se-

cretário de embaixada em Viena, referindo-se também a episódios que tive-ram lugar em diversas cortes europeias. As alusões à diplomacia portuguesa,

no tempo de D. António Prior do Crato e D. João IV, dão-nos ûma ideia da

visão negativa que os europeus tinham sobre a corte e os nossos ministrospúblicos.

Todavia, a obra deLa Houssaye, no seu conjunto, é muito mais do que

uma descrição de factos ou de práticas diplomáticas. Acima de tudo, procura-vafazer um enquadramento histórico da diplomacia, não deixando de parte a

,

reflexão política e os fundamentos da soberania. La Houssaye foi tradutor de i/obras como O Prínciþe, d" \þgglgygl Anais, de Tiácito, L'Homme de Coufe

llde Baltasar Gracian, tendo enveredado por correntes de pensamento próxi- Ìì

mas de Maquìã7ffUma das suas traduções mais criticadas foi precisamente a-Histoire du

.Concíle de Trente, deEreiPaolo S¿rqlr. O autor foi um destacado d€-nsõr-õõ-"maquiavelismo" e ùum outro estudo intitulado Opinione del Padre PaoloSarpi servita, come debba governarsi la Republica veneziana per havere per-petuo dominio, datada de 1681, fez a apologia da Razão de Estado.

Das anotações feitas por La Houssaye, à obra de Sarpi, relativas ao papeldesempenhado pela lgreja, e que deram azo ater sido chamado mau cristão,destacamos a seguinte:

"c'est porquoi I'on ne saurait veiller de trop sur les moines qui forment une monarchie

étrangère dans les coeurs des États des Princes séculieres"4.

La Houssaye foi também autor de diversos estudos entre os quais pode-mos salienta4 Histoire du Gouvemement de Veniseat, em L676, Lettes aucardínal D'Ossat, em 1698, Histoire de Philippe de Nassau, Prince D'Orange.Por último, como obras póstumas, foram publicadas, emI7I4, as Reflexions,Setences et Maximes Morale{2.

A leitura de alguns destes textos permitiu-nos encontrar alguns pontos

de contacto entre as ideias expostas por A. de La Houssaye e o nosso embai-xador.

Interessando-nos particularmente o entendimento que ambos tiveram da

diplomacia e da acção diplomática, procurámos detectar os ensinamentos que

D. Luís poderia ter retirado dessas leituras. Assim, constatámos que

La Houssaye fez uma descrição minuciosa da actuação dos embaixadoresvenezianos tendo contribuído, de certo modo, para a posterior reflexão de

D. Luís sobre as práticas diplomáticas. Segundo La Houssaye, os embaixado-res venezianos nunca abandonavam as cortes estrangeiras, onde se encontra-

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Isabel CIutry

vam em representação do seu país, antes da chegada dos seus substitutos, a

quem prestavam todo o auxflio necessário. Quando regressavam aVenezaapresentavam ao Senado uma relação circunstanciada de toda a actuação de-senvolvida fora da sua cidade, de modo a reunir nesse abrégá as notícias da-das em anteriores comunicações, quer por cartas, quer por memórias. Poroutro lado, outra nota digna de registo era a obrigação de entregar os presen-

tes recebidos no fim da estadia, como forma de demonstrar a disposição parao serviço público, independentemente das possíveis recompensas a obter pelodesempenho dos cargos. Um outro aspecto focado era a responsabilidade doembaixador pela conduta de quantos lhes estavam próximos, incluíndo nestes

a própria mulher. Nesse capítulo, La Houssaye abordou um assuntb até entãopouco esclarecido, ou seja, se o embaixador podia ter condutas privadas quepusessem em causa a sua imagem pública.

Ao defender que o carácter do embaixador o punha ao abrigo do Direitodas Gentes e que o obrigava a ser constantemente o representante do seu so-

berano, Amelot de la Houssaye deu como exemplo a posição defendida porAntónio de Sousa Macedo, durante a estadia na Holanda. O representanteportuguês não fora bem recebido pelos Estados Gerais, que haviam tentadonão lhe reconhecer o estatuto de Pessoa Pública. Perante esta situação, SousaMacedo demonstrou-lhes nada os obrigar a entrar em negociações, mas tam-bém nada lhes permitir pôr em causa o seu carácter de Pessoa Pública porqueo seu estatuto the tinha sido atribuído pelo seu soberano e só ele lho poderiaretirar.

Episódios deste tipo foram descritos noutras obras que, mesmo sem preo-cupações didáticas, reflectiam também sobre a grande importância do carác-ter do embaixador.

Estão nesse caso as Cartas Familiares, Historicas, Políticas e Criticas

- Discursos Sérios e.Jocosos, de Cavaleiro de Oliveira, publicadas em I747em Amesterdão e onde se alude ao carócter do embaixador.

"Il est vrai que la rigeur du Droit des Gens, la seule personne de I'ambassadeur ne

révéle que du Maître que I'envoye. Il est pourtant vrai aussi que dans I'usage, le droitd'exception s'etend sur toutes les personnes que I'ambassadeur reconnoit luiappartenir."a3

Os aspectos mais discutidos por quantos reflectiam sobre as questões di-plomáticas, ao longo do século xvru, parecem justamente ter sido o carácterdo embaixador, as preffogativas e os privilégios que lhe eram inerentes, bemcomo as liberdades de que dispunhaa.

Num artigo intitulado "Ambassadeur" publicado pelo DictionnaireUniversel des Sciences, Morale, Économique, Politique et diplomatique oula

Page 19: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

ü l* Å{Åû'*[" j drry*ø lfu{--dd,D. lnís da Cunha

Bibtíotheque de L'Homme d'État et du Citoyenas,referem-se todos os privilé-gios do embaixador, salientando-se serem um atributo da Soberania e parteintegrante do carócter de embaixador. Daí o facto deste dever ser semprerecebido e ser sempre inviolável na sua pessoa.

Também La Houssaye discutiu o carácter do embaixador atribuindo-lheuma função vital: "ambassadeurs sont aux Etats, ce que la langue est àI'homme". Reconhecendo que das suas qualidades dependia o êxito das nego-ciações, afirmou ser maior a recompensa de Deus pelo que se fazia, do quepela maneira como se fazia.

Amelot de La Houssaye ao expressar-se deste modo contribuiu para criara ideia do embaixador como espelho do rei ou do Estado represeûtadoa6. Nes-ta perspectiva, reflectiu também sobre a ideia de luxo nas cortes europeias.Partindo da dicotomia público/privado,definir o luxo como "la trop grand politesse dans les Etats font le préssageassuré de leur décadence; parce que tous les particuliers s'attachent á leursinterêts propres, ils se détournent du bien public"aT.

Para concluir esta breve análise das opiniões expressas por La Houssaye e

que, de um modo geral, parecem coincidir com as opiniões expressas pelonosso diplomata, não podemos deixar de notar a idêntica rejeição pelo poderda Igreja nos assuntos internos do Estado e a admiração similar pelo modelopolítico da Holanda. La Houssaye descreve-a como um "pays du bonheur etde la liberté. L'homme en Holande n'est sujet qu'aux Loix. C'est elles seulesqu'il craint et qu'il respect. Libre dans tous ce qui va point contre l'Etat il neconnoit d'autres maîtres que la vertu et son devoir"a8.

O mesmo parece ter sentido e pensado D. Luís ao afirmar ser a Holanda amelhor terra para se viver, dado o espírito de liberdade permitido aos seushabitantesae.

Outro dos nomes citado no Prefácio daTradução e Paráfrase dos Trata-dos de Paz e Comércio Celebrados em Utrecht, Baden e Anvers é precisamen-te Adriano Moetiens, cuja alteração na transcrição do nome nos manuscritos e

impressos consultadossO, dificultou até à data esclarecer a sua importância naobra do embaixador português.

Adriano Moetjens foi editor de várias compilações de tratados e de me-mórias sobre os diversos conflitos europeus dos quais destacamos: Actes etMémoires des negotiations de Ia paix de Nièmege, Amesterdão,1679-1690;Actes et Mémoires des negotiations de lapaix de Ryswick,Haia,1699; Recueilde tous les dffirents traitéz de paix signés pendant les annés 1713, 1714,1715, à Utrecht,Haia,lT15; Lettres et négotiafions de Messieur Le marechald' Estrades, Haia, 1710.

Publicou também uma recolha de legislação intitulada Les loix civilesdans leur ordre naturel e um excelente catálogo de livros denominado

45

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Isabel Cluny

Bibliotheca Anonymianast que continha 3863 títulos no primeiro tomo e

cerca 5558 no Segundo. Este catálogo, muito bem estruturado e organizado

por temas, pefmite-nos conhecer o que então se lia nas diversas áreas da

õultura europeia. Nele constam livros in folio sobre Teologia Antiga e Mo-

derna, escritos em ltália, Hispania (Portugal e Espanha), França e Inglater-

ra; também podemos aí encontrar quase tudo o que era necessário para bem

instruir um embaixador, obras jurídicas e políticas ou miscelâneas. A títulode exemplo podemos referir algumas das obras que fariam concerteza parte

da biblioteca dos "politólogos" de então: de Balthazat Gfacian, L'Homme

détrompé ou le Criticon, Haia, 1708; L'Homme (Jniversel,'H.aia, 1724,

L'Homme d.e Court, em trad. de La Houssaye, Paris, L648; Testament

Politique du Cardinal de Richelieu, Amesterdão, 1709; Le ParfaitAmbassadeur,Leida,1709; L'espion du Grand Seigneur, trad. por Manan,

Amesterdão, 1684; Espion dans les cours des Princes Chrétiens, 1702;

Histoire des contestations sur la diplomatique, Paris, 1708; Discours sur

Ies Gouvernements,IHLua, L702; Les devoírs des Grans, Prince Conti; Intêrets

des Princes, Colónia, 1666; Actes et Mémoires de la paix de Ryswick, Haia,

L707; Mémoires de M. D'Ablancourt, contenantl'Histoire de Portugal depuis

Ie Traité des Pyrénnes de 1659, iusqu'a 1668,Patis,I70I; Relation acacte

des Traitéz de l'evêque de Munstef Baden, Aix-la-Chapelle et [...]de laTriplice Allíance, (Jtrecht, 170!; Corte na Aldeia, de Rodrigues Lobo, Lis-

boa, 167 5: Advertencias para Reys, Príncipes e Embaxadores, de Christobal

de Benavente y Benevides, Madrid, t634.Esta lista poderia ser muito maior, no entanto pensamos serem estes

exemplos suficientes pafa demonstrar que Moetjens conhecia perfeitamente

quanto se produzia sobfe política e diplomacia, na Europa do final do

século XVII e príncipio do século XVIII. Por Seu turno, D. Luís quando o

citava teria também tido acesso a muitos dos livros sobre diplomacia fefe-

ridos no catár\ogosz. Ora, no início deste capítulo, salientámos ter tido D.

Luís consciência, tal como vários diplomatas de então, que ao nascimen-

to, o embaixador devia acrescentar o estudo e a experiência. Parece-nos

pois lícito afirmar que, quando o embaixador português defen4iaijCelsde diplomacia como autónoma do difçjtpS quandorþaig-e

izaçáo das fu embaixador, definindo-lhe o- nao o

azla sem fundamentffihËöffiäTo þi"no do quðîe passava nas cortes europeias alicer-

çava-se não só na observação da prâtica diplomática, mas também num

éstudo aturado das obras que se publicavam sobre diplomacia e funções

do diplomata.

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D, Luß da Cunha

6. Ar,culr¡.s REFLExÕEs soBRE A rMpoRTÂNCra Dos TRATADos E A coNcnp-

çÃo DE SOBERANTA

NaTradução e Paráfrase [...], D. Luís procurou resumir em poucas pala-vras as necessidades de uma bibliografia renovada sobre diplomacia e propôsa publicação das fontes - tratados - juntamente com estudos da realidadepolítica envolvente, bem como das questões jurídicas subjacentes.

Perfeitamente consciente dos seus conhecimentos teóricos e da sua capa-

cidade de exposição e não se furtando a citar os antigos como Ulpiano53, cujocontacto deve ter sido através de uma publicação feita em Antuérpia, eml622,sob o título de Fragmentasa, afrrma{ta que os:

"[...] tratados não são outra couza mais qu'huns contrattos, ou convençoens que as

partes celebrão entre sy, para se obrigarem a fazer observar certos pontos que estipullão;

de sorte que tantas são as convençoens quantos são os Tratados, cuja diversidade de

materias lhe dá tambem differentes nomes, como são Tratados de Paz, de Alliança, de

Amizade, de Tregoa, de Neutralidade, de Suspensão de Armas, de Garantia e de Co-mercio. Estes Tratados geralmente dividem-se, conforme dão a entender Ulpiano e

Tito Livio em Publicos e Particulares. Os Publicos são aqueles em que intrevem oconhecimento das potencias soberanas e se subdividem nos que não contem mais que

as obrigaçoens que são de Direito Natural e nos em que se estipullão outras couzas

que pertencem ao Direito das Gentes; Da necessidade destes não duvidão os Authores,

mas a respeito dos outros totalmente se encontrão, supposto que com grande facilida-de se possão conciliar, pois os quejulgão que os taes Tratados são precÞos, rÞgulão-se

pelo que os homens obrão conforme a comrpção do-s tempos e os que entendem que são

inuteis, considerão o que os homens deverião obrar, segundo o Estado de Natureza-'55.

No fundo encontramos neste prefácio não só a concepção de tratado di-plomático adoptada pelo Embaixador, como t¿ìmbém a intenção da obra que

viria a escrever após as negociações de Utreque.

"O que suposto como não faço huma colleçção dos Tratados, não somente ajunto, ou

traduzo os de Utrecht imito nestes com mayor extenção o designio de Wicquefort e

com mais impa¡cialidade as observações de Amelot [...] Para mayor instrução ajunto

no principio de cada tratado huma conciza noticia dos Domínios, Governo, Forças e

Genealogia dos Potentados que os celebrarão e finalmente no corpo dos mesmos

Tratados aproveitando-me da {out{na de Hugo GIggLo acrescento certas notas nas

quaes explico esta parte da jurisprudencia publica [...] sem faltar argeografia das

terrasdeouesefallão.nemoSDontoSdehistoriaqueellesmer"."..--:-:-r-------'-- æ'-%

A novitla-de da oräèmñe que offereço ao publico [...] achando aqui junto o que lhe

seria necessa¡io buscar em muitos authores [.. . ]Abstive-me quanto me foi possivel das reflecçoens porque as mais judiciozas e as

mais innocentes são de ordinario as mais expostas a interpretações alheas da intenção

de quem os faz, do que resulta escandalo sem utilidade.

Page 22: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

Isabel Cluny

Isto he o que tenho a dizer nesta especie de Prefacio que tambem pode servir deadvertencia ao Leitorpara que nesta união de diferentes partes se assemelhe ao corpode esta obra que organizo, dando-lhe por cabeça a rellação dos sucessos e negociaçoensdaPaz. E por braços a noticia das Potencias que a Sustentarão de sorte que contendonotas dos artigos de tão diversas materias e tantos pedaços de Historia, delles poderáo leitor se lhe parecer compor o resto deste mesmo corpo [...]."56

Interessante justificação para uma obra que, no entender do autor, deveriaformar um corpo completo, cuja unidade contribuísse para o esclarecimentodaqueles que pretendessem conhecer as causa,s e sucessos da MemoravelGuerra de 1702.

Não há dúvida que o diplomata leu numerosos estudos da época sobrediplomacia e procurou fundir num só texto os conhecimentos dos Modernos edos Antigos.

O impacto da obra nos vários círculos ligados ao exercício do poder nãodeve ter sido pequeno. Apareceram numerosas cópias atestando, em princí-pio, o interesse despertado por tal assunto entre as elltes cultivadas. O sucessodestas memórias ficou a dever-se essencialmente ao seu carácter inovador.Pela primeira vez, um diplomata português contava os acontecimentos e asnegociações em que esteve envolvido, retirando-lhes os aspectos meramentenarrativos para lhes acrescentar um suporte teórico considerável.

As Memórías de D. Luís são hoje em dia fundamentais para o estudo dadiplomacia do século xvm. Não tanto pelo conteúdo, que em parte era umamera apropriação de ideias em voga na época sobre a diplomacia, mas simpela visão pessoal que transmitem da política externa da Europa. outro as-pecto importante é revelarem como o discurso diplomático europeu foi enten-dido pelo autor, bem como pelos inúmeros leitores da sua obra, ao longo dedois séculos, como atestam as inúmeras cópias daTradução e Parafhrasi dosTratados de Paz e Comércio /.../ existentes nas bibliotecas do nosso país.

Procuriámos demonsffar que D. Luís não descurou a sua formaçáo teónca,pelo contrário. Parece mesmo lícito afirmar ter tido uma preocupação cons-tante de aliar aprâticacom a teoria, durante o exercício das funções diplomá-ticas ao longo de toda a vida.

Com uma formação inicial baseada no estudo do Direito e Teologia,D. Luís encontraria fora de Portugal as obras dos juristas jusracionalistas que,um pouco por toda a Europa, começavam a invadir o universo literátto até aídominado pelos juristas tradicionalistas. Estes últimos foram os responsáveispela manutenção de um pensamento político de concepção corpõrativa deonde se baniam estudos como os de Maquiavel, Bodin ou Hobbes, por seremconsiderados "imorais". No entanto, o nosso embaixador atreveu-se a divul-gar nas suas obras alguns desses autores de teoria política que consideravamais importantes, tais como

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NVr,t ^'r^,,lÅJ' r þv}$n/ (rtnuo

l{Ltþ-fu+ ,

D, Luís dn Cunha

6.1. A NnLuÊNcrA DE Maeurlvsl,

Maquiavel, foi um dos autores citados em momentos diferentes da sua

vida e obra. Fê-lo inicialmente emI7I6 e mais tarde em lT4T,noTestamentoPolítico:

"Se alguem me acusar de que nesta parte abraço as maxiamas de Machiavelo, emquanto diz que o Governo Monarquico seria o mais perfeito de todos, se o Principenão tivesse Validos, nem Confessor, confesso a minha culpa sem arrependimen-to.[...]"tt

O diplomata português não ignorava certamente que as ideias do teóri-co florentino (I469-L527) estavambanidas do pensamento político portu-guês posr-Restauragão, visto que a nova ordem política, instaurada em1640, se alicerçava numa teoria de poder baseada na def,esa da ética tradi-cional cristã58.

fensor da laici do Estado e da autonomia do facg_à moral,Maquiavel, na sua obra mais conhecida, O , acabou por propôr so-luções pragmâticas que o iriam identificar, mais tarde, como o defensor doabsolutismo pessoal e arbitriário, bem como sendo o introdutor da ideia de"Razáo de Estado", como fundamento da acção política. Ora, o pensamentopolítico no século xvrr em Portugal era essencialmente católico, embora porvezes estabelecesse "relações íntimas com as concepções políticas que resul-tavam das condições complexas da Europa do tempo, onde o jogo e o interes-se do Estado eram cadavez mais considerados"60. Coube a D. Luís fazer asíntese do pensamento de raiztradicionalista e católica, com as novas concep-

ções políticas em voga na Europa, como se pode depreender pela leitura dacarta enviada ao Príncipe D. Manuel quando este, em 1728,lhe pediu umcomentiário ao Projecto da Quádrupla Aliança.

"Não pode haver acçam mais louvavel em hum Principe que de conservar a Paz dosseus estados e procurar que os mais a tenham tambem entre si, principalmente quandoelle he o garante dessa Paz, pois que para este effeito fica concorrendo só a obrigaçãocivil, mas tambem a naturalmente Christam, porem he necessario que a execuçamnão seja feita contraria em algumas das suas partes à mesma obrigaçam da naturezada Christandade, quero dizer que os meyos de sustentar o socego publico sejam tãonaturaes e christãos como os principios e os fins."6l

D. Luís, buscando alancizaçáo da política e propondo com fundamento dadiplomacia o realismo político, defendido porMaquiavel, entre os Modernos,e por Tácito entre os Antigos, acabaria pois por divulgar Bodin e Puffendorf.

Page 24: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

6.2 A rurluÊNcH un BotrN

Se o maquiavelismo foi identificado com uma prática política desprovida

de valores morais, as teorias propostas por Bodin (1529-1596) foram igual-

mente reprovadas por seguirem os mesmos critérios de utilidade.Considerado como o introdutor da ideia de soþerania e reivindicando

mesmo esse papel, Bodin conceito de so-

berania que existia já desde o século xIII, o que em nada diminiu a sua impor-tância na definição de conceitos, visto que pala a História das Ideias importa

mais o impacto que um autor tem na sua época, que a originalidade absoluta

do seu pensamento62.

Bodin, entendendo a soberania como "direito natural, como necessidade

política e defendendo assim a sua indivisibilidade e o seu carâcter absoluto",

contribuiu, em cefta medida, pafaateonzaçáo da monarquia absoluta. Bodinnunca apostou na noção de sobqfarya ili![ilSS4,¿UIgS ?-%tendeu subordinada

ao Direito daslGgntes. Ora, foi este conceito de "limitação da soberania exter-

-_-\--na" que D- Luís dêlendeu nas obras onde abordava a ideia de soberania.

D. Luís ao arrepio do que se esclevia e publicava na Península Ibérica

- onde surgiam frequentemente escritos que atacavam o bodinismo, tendo o

Catálogo dos Livros Deþsos Neste Reyno de Portu7al, que veio a lume no

ano de 1755, excluíndo as obras de Bodin - não hesitou em recoffer às refle-

xões de Bodin para justificar certas ideias que defendia.

Assim, naTradução e Paraphrasl adverte o leitor sobre a natureza da sua

obra:

"união de diferentes partes se assemelhe ao corpo de esta obra que organizo, dando-

-lhe por cabeça a rellação dos sucessos e negociaçoens da paz. E por braços a noticia

das Potencias que a Sustentarão de sorte que contendo notas dos artigos de tão diver-

sas materias e tantos pedaços de Historia, ilelles poderá o leitor se lhe parecer compor

o resto deste mesmo corPo".

Ao fazu esta adveftência o Diplomata mais não faz que apropriar-se da

analogia enffe o colpo humano e o co{po político, tão utilizada pelos poucos

autores peninsulares que adoptavam as teorias de Bodin para definir Repú-

blica e Soberania.

6.3. A r¡mluÊNcr¡, nr Gnorrus

Grotius (1533-1645), outro dos nomes frequentemente citado porD. Luís,

propôs uma teoria do poder baseada nas concepções jusnaturalistas-

Page 25: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

1yD. l¡tís tln Cunha

De origem holandesa, Hugo Grotius, estudou em Leida63, enveredandopela carreira diplomática. Ficou conhecido na História das Ideias Políticaspela obra De Jure Belli ac Pacis (1625). Segundo os estudiosos das relaçõesinternacionais com ele alteraram-se profundamente as concepções existentesem matéria de Direito Internacional6a.

Para Reis Torgal6s, tenalaicizado a ideia de direito natural abrindo "cami-nho [...] às teorias Oo s

tarde os conceitos de liberdade e igualdade", e "apesar de Grotius passar mui-tas vezes pelo defensor do pacifismo, não o é efectivamente. O que ele pretendeé uma fegulamentacãg iurí$icjt da ryeg} para que esta não fosse mais dodomínio do arbitrário". Aqui podemos de novo estabelecer uma comparaçãoentre estas ideias, e a ldeia de Diplomacia acarinhada por D. Luís, visto quena sua opinião, os tratados não eram mais que acordos entre nações desavindas,que visavam reconhecer a existência de soberanos diferentes em conflito. Ouseja, tal como Grotiul, 9-e.feqdi4

que as {elaçQes jurídicas entr.e Estados deve-riam ser reguladas pelo 4irq!!q int@iote!:ó.

7. O nrnnrro DE REpREsnNraçÃo coMo pRova DE soBERANra

A suspeita que pairava sobre pensadores como Maquiavel, Bodin ouGrotius, por terem rompido com o pensamento tradicional e sobreporem asideias de conveniência e utilidade - particular e pública - à ética, não afectouD. Luís da Cunha. Citando-os, inseriu-se de fäcto, numa geração europeia de'þolitólogos" que aceitavam a divisão entre a esfera pública e privada, entre arczáo de Estado e os interesses particulares.

Ao aproximar-se da linha de pensamento "maquiavelista" sobre o poder, afas-tou-se também do fradicionalismo ibérico, que entendia não existir dicotomiaenfre moral e política, recusando categoricamente o conceito profano de Estado.

Exemplo desse novo entendimento da diplomacia, como meio de reforçaro Estado, ignorando critérios morais seria a sua invocação do Cardeal Duboy:

"[...] me lembra que o Cardeal Duboy estando hum rlia de humor disse que deixavafeitos tantos Tractados que se contradizião huns aos outros que depois de sua morte soo Diabo os poderia desembrulhar"67.

Por outro lado, o Diplomata, ao rcalizara síntese das novas correntes depensamento político com o exercício da diplomacia defendeu que s-ó aos Esta-dos Soberanos cabia o direito de enviar embaixadores. inferindomlñ-,

portância da acção e das funções do representante diplomático comorepresentante dessa própria soberania.

Page 26: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

52 Isabel Cluny

Para entender o conteúdo deste conceito implícito na obra de D. Luís,teremos de desmontar o seu discurso, foriado ao longo dos anos, em torno doconceito de diplomacia.

Assim, se recorrermos ao sentido etimológico da palavra soberania pode_mos considerar que assenta na ideia de superioridadé decorrendo daí u i¿"iude exclusividade. Desse modo,

"o-pr""nãer a noção de soberania, como o

poder do Estado, obriga a conhecer os meios de aplilação desse mesmo poderou seja, as suas implicações internas e externas.

Em termos de política externa o objectivo da soberania do Estado seriaobter o reconheciménto das soberanias suas iguais. Daí derivava serem a gueffae a diplomacia duas formas possíveis de impôr o poder soberano do Estado anível internacional.

sobre esta matéria discorrerá, no fim da vida, o embaixador português,expondo com clarividência, numa síntese bem elaborada, conhecida acìual_mente por Testamento porítico ou carta Escrita pero Grande D. Luiz da cu-nha ao senhor rei D. José I, os meios necessárioi ao futuro rei para preservara soberania.

Para jâ, interessa-nos perceber apenas como os conceitos de soberania ede diplomacia se interpenetraru-, uo ponto do Embaixador considerar que odireito de enviar embaixadoreJ era a melhor prova de reconhecimento da so_berania de um Estado, de jure e de facto.

"ApalavraEmbaxadorheoriginariarnentedaHespanhaesederivado verboimbiarou inviar e assim se pode dizer que os Embaixadires são pessoas publicas que osPrincipes mandam a outras cortes ou a hum congrerao p*u os representarem emvertude das cartas de crença e plenos poderes que lhã dão e pellos quaes fazem conhe_cer o seu caracter. Isto supposto he necessario saber que o ãireito de mandarEmbaxadores a que os Authores chamão Jus Legøtions he a mais distinta prova daSoberania."68

Entendendo a diplomacia como umas das partes integrantes da políticaexterna, D' Luís da cunha como hornem pragmáti"o q""-"ru, mas tambémpacifista, defendeu os interesses da coroa portuguesa nas negociações em queesteve envolvido. Essa dedicação exemplai manifestori-se pelo estuioaprofundado das questões que negociou, enquanto embaixador. Nas observa_ções enviadas ao infante D. Manuel em o projecto das condições da euti-drupla Aliança, procura esclarecer o infante "i...] do systema da Europa ou .

da mayor e melhor parte dos Estados que a compõem,,, dizendo: E - -?

"[...] Eu me lisongeo de que v. A. se dignara de ler, não porque prezuma dellas(observações) mas porque a politica he huma das parte, -ui, "rrencij,

ouqu"iru art"Militar que V. A. tam generozamente quis vir apprender nas extremidades da Hungria

Page 27: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

D. Luís da Cunha

[. . .] so direy, senhor que não sey se deva recear, que as minhas ideas pacificas que lhedou no fim deste papel discordem da inclinaçam marcial que levou V. A. por entre os

riscos do mar e do vento a desprezar os perigos da terra e do fogo, porem como V. A,deixou, digo, não deixou a paz senam por aquella parte, que tinha de ocio ainda quevirtuozo busquea V. A. prezentemente por aquella, que pode ter de trabalho' nammenos util e necessario, applicando-se à política, como faz com tanta felicidade, porser outra especie de guerra, nam rnenos gloriosa, supposto que dezarmada."6e

NOTAS

I Veja-se sobre o assunto Fregø esia de Santa Catarina, Lisboa, Guias Context o, 1992. Entre outrasresidências construídas nesta zona da cidade são citados os palácios do Calhariz, Sobral, Valada e

Azambuja, dos Marqueses de Minas e o dos Carvalhos onde teria nascido o Marquês de Pombal.2 Caetano de Sousa, op. cit., p.492.3 Raul da Silva Veiga, Católogo de Documentos do Canórto de D. Luís da Cunha (1709-1749),Coimbra, INIC., p. 6.a Caetano de Lima, op. cit., vol. I, pp. 2741275.s ldem,pp.270/273.6 J. Veríssimo Serrão, op. cit., p. 36.i Segundo Caetano de Lima, op. cit., p. 265, o Desembargo do Paço era um "Tribunal de maisamplo poder e jurisdição que todos os tribunais do Reyno. Nelle se consultão todos os lugares delettras [.. .]". Também D. Luís, anos mais tarde, quando embaixador extraordinário seria nomeado

ffiÏ:tri:B;:åi;,";r' dos rnquisidores que rem Havido a santa rnq,r,içoi'o"sta corte deLisboa e Católogo dos Deputados da Inquisiçam de Coimbra.e Assentos eram decisões, por acordão de tribunal pleno que passavam a ter força de lei.r0D. Luís da Cunha,Instruções Inéditas de D. Luís da Cunha aMarco António de Azevedo Coutinho,p. 16. Como apareceram algumas incorrecções nesta edição fizemos o eonfronto com o ms. da BN,cod. 8759, razáo pela qual, cada vez que o texto aparece em itálico difere do ms. e foi alterado pormim.rrLuís F. de Almeida, TestamenÍo Político de D. Luís da Cunha,Rev. de Hist., tomo III, p. 28. Vertambém, Visconde Santarém, Quadro Elementar [...], tomo XVIII, p. 188.t2 Instruções Inéditas [...], op. cit., p.XIl.'3 ANT'T, Chancelaria da Ordem de Cristo, Carta de Habilitação da Ordem de Cristo,L.60, fl. 137 v.

'4 ANT'T, Chancelaria de D. João Y liv. 38, fl. 289, v.

'5 ANTT, MNE, livro 775, Correspondência de D. Luís da Cunha Pendente a sua Residência emInndres,2T de Abnl de 1697, fl.. 3.16 Refere-se à época de D. João fV.t? D. Luís da Cunha, Instruções Inéditas t...1, p. 16.t8 F. Calliéres, De la manière de negocier avec les Souverains, d'utilité des Negotians, du choíx desAmbassadeurs et des Envoyeurs.

'e BN, S. C. 883, op. cit., Amesterdão, pour la compagnie, 1716, pp. 5 e 6.20 Sobre o assuûto veja-se, José Calvet de Magalhães, A Acção Diplomótica no Pensamento dosDiplomatas Portugueses dos Séculos XVII e XVIil". A Diplomacía na História de Portugal,Lis-boa, FCG, 1990.2t Artur Magalhães Bastos, IJm Díplomata na Corte de Luís XIV, Porto, Emp. Gritfica, 1928, p.20.22 ldem, op. cit., p.34.23 BN, cod.4438. Estas memórias são datadas de l7l1 e o autor considera-as um conjunto dasmemórias do que aconteceu na corte francesa.

Page 28: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

Isabel Clutry

24 ANT[, ms. liv. 967. Ver também G. de Mello, Duas Obras de D. Luís da Cunha, "As Memóriasda Paz de Utrecht" e a "Traduçõo e Parófrase do Tratado de Paz", Lisboa, 193 1. Segundo G. de

Mello na advertência (pp. l5l41 ) os originais destas obras encontravam-se um no British Musuem,tendo sido adquirido no leilão da biblioteca de Lord Rothesay cujo catálogo existe na BN (pp. 304,

309). Outro exemplar faz parte da Col. Pomb. n." 450. Esta investigação de Gastão de Mello adian-

ta ainda que as numerosas cópias existentes se encontram na BN, BAC, ANTT, BME(pp. 1,5 l2l), fornecendo as respectivas cotas.2s Cará.cter do embaixador, é o estatuto jurídico que lhe atribui o soberano que ele representa, na

corte para onde se deslocou e que depende da Instrução e da carta de crença que tem consigo.26 Op. cit.,Haía, ChezJean et baníel Stencker,p. 5. Joachim ou Abraham de Vy'icquefort (Amesterdão

- 1598, Zell- 1682).21 ldem,pp. 17ll8.28 Instruções Inéditas, op. cit., p. 16.2e BN, AbrahamWicquefort, L'Arnbassadeur et ses fonctions, Colónia, em casa de Pierre Manteau,1681.30 Instruções Inéditas, op. cit., pp. 10/11. Alteração no texto em itálico, segundo ms da BN. Cod.8759.3t O editor Thomaz Carte publicou a referida obra em 1740. A versão francesa da obra de Southwellapareceu precedida de um estudo da história do reino português da autoria de Thomas Carte. Aimportância da publicação prende-se com a interpretação dos acontecimentos de 1667 que, naopinião do autor, não consistiram num descontentamento generalizado da população face à gover-nação do reino, mas foram apenas uma manobra política dos Grandes de Portugal, através deD. Pedro, contra um soberano mal amado, A referida fonte dá-nos a ideia de como os ingleses,ligados à diplomacia, viam os acontecimentos em Portugal. O embaixador inglês refere a submis-são de Portugal a França que, no seu entender, teria aumentado após o casamento de D. Pedro comMaria Francisca de Sabóia, em 1668 (após a anulação do matrimónio com Afonso VI).32 Manuel Lopes de Almeida, Carta de Robert Southwell para o Conde de Castelo Melhor sôbre os

negócios da pal com a Espanha, Coimbra, 1932, p. 8.33 Ministro apoiado pelos Whigs e afastado do poder em 1711, pelo Tories.3a D. Luís da Cunha, Carta do embaixador D. Luís da Cunha a ieu sobrinho D. Luís da CunhaManoel envíando-lhe as Instruções Inéditas a Marco António da Azevedo Coutinho, pp. 415.3s ldem, pp. 1ll13.

::'{;K:i"%-Xr-6 e BN, pBA, 44j.D.Luís da ctnha,Traducção e: paraphrasí dos rratados de

Paz e Comércio Celebrados em Utrecht, Baden e Anvers, f1. l/2.38 Amelot de la Houssaye, Mémoíres Historiques, Politiques, Critiques et Littéraires,1722.3e BN, liv. 16633,P. Baltasar Gracian, L'Homme de Cour, Paul Kuhtze, Augsbourg, 1710.a0 Amelot de La Houssaye, Nouvelle Bibliographie, sob a direcção de M. Dr. Hoefer, vol. I-II,pp.35l/352.ar BN, Amelot de la Houssaye, Histoire du Gouvernement de Venise, Lyon, P. Ponthas, 1757.a2 BN, Amelot de la Houssaye, Reflexions, Setences et Maximes Morales, mise en nouvel ordreavec des notes politiques et Historiques M., Paris, 1725.a3 BN, Res. l4l2,CavaIeiro de Olivei¡a, op. cít.,pp.98199.4 Anos mais tarde, 1752, o sobrinho de D. Luís da Cunha, seu homónimo, teceria uma crítica ferozà actuação dos Ingleses pois, no seu entender, limitavam as liberdades e prerrogativas inerentes ao

carócter do embaixador. Veja-se Carta de D. Luís da Cunha Manoel, BN, PBA, n.o 610, f7.74.as Op. cit., vol. I., p. 623.a6 Esta ideia então muito divulgada obrigará anos mais tarde o embaixador português ajustificar-sepela sua conduta privada (ver cap. XIII).a7 Reflexions, Setences et Maximes Morales, p. 1 13. Ao longo do nosso estudo, verificaremos comoesta ideia foi retomada por D. Luís.a8 Amelot de La Houssaye, Mémoires Historíques, [.../, vol. ll., p.349.

Page 29: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

D. Luís da Cunha

ae Veja-se carta de G. de Lacerda publicada neste trabalho, p. 201.50 Nas vá¡ias cópias consultadas da Tradução e Parófrase dos Tratados de Paz e Comércio Cele-brados em Utrecht, Baden e Anvers (BPA, BN), os nomes próprios citados vêm frequentementemal transcritos. Em G. de Mello, Duas obras de D. Luís da Cunha, "As Memórtas da paz deUtrecht" e a "Tradução e Paráfrase do Tratado de Paz", o nome vem trancrito da seguinte formaAdriano Moetyens. Na obra de Nuno Valdez dos Santos, Memórias dn Paz de Utrecht, segundo acópia do mss existente no AHM o nome vem transcrito como Adriano Ahoeryens (?). Sobre esteassunto - alteração de nomes e de palavras dos manuscritos - podemos adiantar que a frequenteincorreção das transcrições dos nomes, tem impossibilitado a identificação de figuras-chave cita-das por D. Luís da Cunha. Na verdade, uma simples citação de um nome pode elucidar sobrealgumas das fontes de conhecimento utilizadas pelo diplomata e apoiar o conhecimento da estrutu-ra da obra. Ao invés, a deturpação pode impedir a compreensão não só do próprio texto, como doenquadramento histórico e teórico subjacente.5¡ BN, B. 477 P Bíbliotheca Anonymiana, qrÌae continent libros in folio in Aula magna (vulgo) deGroote zaal van't Hof, Hagae, comitum, Apud Adrianum Moejtens, 1728. Este catálogo existetambém em Havard com o título de Biblíotheca exquisitissima insignium [...],Haye, 1732.52 Também o catálogo dos livros de diplomacia de Sebastião José de Carvalho e Mello (de quem sediz ter sido discípulo de D. Luís da Cunha) existente na BN cita alguns destes livros embora acres-cente outros publicados posteriormente.53 Jurisconsulto romano natural da Fenícia, do tempo de Alexandre Severo e que morreu em228.Deixou uma obra importante no campo do direito privado e empreendeu a cornpilação do direitoromano - 3." parte do Digesto.s4 BPA, 80-I-56 (2), Ulpiano, Fragmenta, in Julius Pacius, Antuérpia, 1622.55 D. Luís da Cunha, Tradução e ParaJhrasi t...1, p.304.s6 ldem, op. cit., p.2.57 Op. cit., pp.TlS.Imprensa Régia, 1820.58 Sobre a questão do pensamento tradicionalista, veja-se Rámon Menéndez Pidal, "La epoca de laIlustracion en el estado de la cultura - 1759-1808", História de España, Madrid, Espasa Calle,pp. 827, e seg.5e Maquiavel, op. cit.,1976,2." ed,.m Luís Reis 'lorgal, Ideologia Política e Teoria do Estado na'Restauração, Coimbra, 1977 , p. 67 .6t ANTT, ms. liv. 374. Carta que Escreveu ao Sr Infante D. Manuel o Embaixador D. Luís daCunha Mandando-lhe o Projecto das Condições da QuadruplaAliança e o Discurso Sobre Ellesque por Mandado do Sr Inþnte Fez o Mesmo D. Luís da Cunha. Este ms. foi todo rubricado por D.Luís.62 Martim de Albuquerque, Jean Bodin na Península lbértca, Paris, FCG, 1978, pp. 68/71. *63 Veja-se a consideração que D. Luís tinha por esta Universidade, no cap. VII, "D. Luís e a renova-

ção do ensino".a Hugo Grotius, Le Droit de la Guerre et de la Paix,Paris, Guillaume, 1867, vol. II, cap. XIV.65 Luís Reis Torgal, op. cit.66 BPA, ms. 49-XI-6, D. Luís da Cunha, Tradução e Parffirasi 1.../, p. 185.6? ANTT, MNE, liv. 795,28 Maio de 1728.68 D. Luís da Cunha, Tradução e ParaJhrasi [...], n.314.6e ANTT, ms.liv. 374. Carta que Escreveu ao Sr Infante D, Manuel o Embaixador D. Luís daCunha. [...], fl. 98 v.

Page 30: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

CepÍruro XI

As secnETARIAS DE ESTADO, uM Novo coNCEITo DE. ADMINISTRAÇÃO CENTRAL

1. A ¡rnrsurçÃo n,L sncnnmnn nr Esrulo nn Nncócros EsrnaNcnrnosr Mlnco ANróNro m Azrvnoo CourrNno

Ainda D. Luís não se tinha instalado em Paris, já em portugal se davamprofundas mudanças na administração do reino. Por alvará de 28 de Julho de1736,D. João v reformou as secretarias de Estado, procurando corresponderà necessidade de especializaçáo que, aos poucos, se ia fazendo sentir. As trêssecretarias constituídas foram atribuídas aos seguintes titulares: Pedro da Motae Silva Negócios Interiores do Reino; António Guedes Pereira Marinha eDomínios ultramarinos; Marco António de Azevedo coutinho, Estrangeirose Guerras.

Além destes secretários, o rei despachava com o poderoso cardeal da Mottade quem os biógrafos traçaram o seguinte perfil:

D. João de Motta e Silva nasceu em Castelo Branco, a 14 de Agosto de1685. Estudou Teologia na Universidade de Évora e depois seguiu paraCoimbra, onde obteve o grau de Doutor. Por nomeaçáo régiafoi cónego ma-gistral da insigne colegiada de s. Tomé. Distinguiu-se na Academia do Núnciopelos seus discursos em Latim. Por nomeação de D. João V o Papa BentoXIII tornou-o cardeal a22 ol27 de Novembro de L727.Devido às suas qua-lidades o rei fê-lo membro do Conselho de Estado, em l"ll7, e a partir de1724 e até à sua morte, em 17 47 , "gozou do favor real", sendo ministro talveza partir de 17331.

Segundo a descrição do embaixador francês Chavigny, o seu papel juntodo rei era de tal modo importante que quando adoeceu, o soberano mandou"fazer preces em todas as igrejas". Faleceu a4 de Outubro de 1747. A sua

:I

ii

Page 31: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

t62 Isabel Cluny

obra como homem de estado foi referida no Testamento Político de D. Luís da

Cunha.A figura do cardeal da Motta tem sido objecto de reflexão por parte dos

historiadores que estudaram os aspectos políticos e económicos durante o rei-

nado de D. João V. Ao avaliafem a actuação do cardeal na definição da políti-

ca externa poftuguesa, confrontaram a sua figura com a de D. Luís da Cunha.

Dessa confrontação, resultou que as diferentes posições da historiografia por-

tuguesa sobre a polémica castiços e estrangeirados e respectivos papéis no

contexto da corte joanina, acabaram por atribuir a cada uma destas figuras um

papel pré-determinado que, de facto, não correspondeu à actuação que tive-ram. No nosso entender pensamos ter provado que nem D. Luís foi um defen-

Sor incondicional da política de intervenção portuguesa na Europa, nem o

cardeal foi um acérrimo defensor da neutralidade e das tradições. Por outro

lado, e ao contrário do que se tem afirmado, D. Luís da Cunha não foi o

primeiro a mencionaf as qualidades.de Sebastião José de Carvalho e Mello no

Testamento Político,como por largo tempo se afimou, mas sim o Cardeal da

Motta. Também não foi por sua indicação que este ocupou o cargo de ministro

de D. José I.Sabemos que o Cardeal da Motta despachava directamente com o rei e

que provavelmente teria sido o autor da ideia de criar uma Secretaria dos

Negócios Estrangeiros. A nova redistribuição de lugares na administração

central, pela importância que ocupavam no cerne da vida política portuguesa,

obriga-nos a reflecir sobre a rede de clientelismos existentes e na força política

daqueles que, estando próximos do rei influenciavam a atribuição de cargos.

Por essa tazáo,não é de estranhar que a mais influente secretaria de estado -Negócios Interiores do Reino - fosse parar às mãos de um sobrinho do Carde-

al da Motta. Assentes em laços de parentesco, estas fedes eram muito eficazes

tanto ao nível da corte como no exercício do poder local, e permitiam o bom

funcionamento da buro craciado Estado, bem como assegufavam a estabilida-

de do poder.

O que Se passava em Portugal, de certo modo já sucedia noutfas cortes

europeias, isto é, a monopolizaçáo de certos cargos da administração central

por uma elite cortesã, que se envolvia, juntamente com o rei, numa teia de

relações recíprocas, pré-definidas através de regimentos (regimentos das mer-

cês), onde o jogo do poder permitiu aos Grandes controlar o destino da mo-

narquia.D. Luís da Cunha, ao saber da atribuição da Secretaria dos Negócios Es'

trangeiros a Mafco António de Azevedo Coutinho, acusou de imediato certa

m6goa por ter sido preterido em favor de um seu "aprendiz". Na verdade, o

futuro secretário de estado não possuía tão boas referências e qualidades como

o sexagenário diplomata.

Page 32: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

¡.t'tu

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D- Luís da Cmha 163

Quem era Marco António de Azevedo Coutinho?Marco António de Azevedo Coutinho, nascido em 1688, era alcaide-mor

de Vimioso, senhor donatário de Monsaraz, comendador da Ordem de Cristoe de S. Tiago, secretário de estado dos Negócios Estrangeiros e de Guerra e

Académico da Sociedade Real de Londres. Faleceu em 1750, deixando o reimuito impressionado com este desaparecimento, por pensar que também eleestaria perto do fim.

Iniciou a carreira diplomática aos 33 anos, em Paris, ao lado deD. Luís da Cunha, quando o rei lhe mandou passar carta credencial comoEnviado Extraordinário, em Janeiro de 172L, sendo recebido em Novem-bro pelo rei de França em substituição do Conde da Ribeira Grande, queentretanto fora mandado regressar a Portugal devido à contenda entre as

duas cortes. Foi plenipotenciário em Cambrai e Ministro em Londres eParis. A partir de 1728, até 1736, auxiliou Diogo de Mendonça Corte Realnos Negócios Estrangeiros, altura em que foi criada a Secretariapara aqual foi nomeado secretário de estado, tendo despachado frequentementecom D. Luís da Cunha2.

Entre 17 37 e 17 39 foi embaixador em Ingl aterra, voltando definitivamentepara a secretaria de estado a partir de então.

Sobre a figura política de Marco António de Azevedo Coutinho escreveuo Visconde de Santarém citando o embaixador francês em Lisboa.

"O embaixador de França conta, em offício de 3 d'Outubro d'este anno de 1747 ,paraa Côrte o estado em que se achava o Cardeal (da Motta), dizia que Marco Antóniod'Azevedo além de ser de um vagar indiscritível nos negócios, poucos despachava eestava longe de gozar a confiança d'Elrei, como o Cardeal e accrescentava que adoença havia causado grandissimo transtorno no negócio de Mediação, do qualD. Luís da Cunha disporia como lhe parecesse"3.

Segundo a descriçã, a imagem que Marco António dava de si prório era ode um homem muito "moroso" no despacho dos assuntos do reino.

Um pouco diferente seria a opinião de D. Luís sobre o futuro secretário de

estado - Marco António de Azevedo Coutinho - pois, quando da nomeaçãodeste para a corte de Londres, na qualidade de embaixador, em cartadatadade7 de Outubro de 1735, afirmou ao Cardeal da Motta:

"ser inútil a sua deslocação a Londres por estar aí um Ministro que tem todas as

qualidades e porque havendo Sua Magestade escolhido Marco Antonio para ir a Lon-dres com huma tão importante negociação que executou com felicidade seria de

desconfiar do seu merecimento, se lhe mandasse um Ministro da minha avançadaidade [...] que o Mundo creria que hia ser seu pedagogo de que certamente não neces-

sita"4.

Page 33: D. Luis Da Cunha e a Ideia de Diplomacia Em Portugal

Isabel Cluny

Reconhecendo-lhe capacidades e nutrindo por ele uma profundaamizade,

D. Luís sempre considerou a formação político-diplomática de Marco António

como produto dos contactos havidos entre ambos e do muito que lhe ensinou,

principalmente em Paris, onde este o acompanhou quef nas negociações, quer

na, "rrco-"ndas

reais, familiarizando-se por esse meio com a "linguagem" do

ofício diplomático.Entre as razões pelas quais Marco António de Azevedo Coutinho, por

indicação do Cardeal da Motta, acabou pof ser escolhido pafa secretáfio de

estado dos Negócios Estrangeiros, em vez de D. Luís da Cunha, podemos

apontar a proximidade das idades entre os dois e a maiof possibilidade de

"õontrolo político" e pessoal do futuro secretário de estado pelo cardeal. Se-

gundo juízos da época o Cardeal não teria feito a remodelação das secretarias

de estado se não pudesse indicar homens da sua confiança pala os cargos.

Uma opinião um pouco diferente defende José Barretos,.que afirma ter sido

Marco António escolhido por vontade expressa do rei. É pelo menos o que

deduz da leitura de uma carta sobre o assunto existente no Arquivo Histórico

Ultramarino, datada de2I de Maio de 1736.

Mas uma outra carta curiosa, pertencente ao espólio de D. Luís, datada de

Junho de 1736- portanto antes da sua retirada da Holanda pafa Paris, que só

se verificou em Outubro desse ano - e enviada para Azevedo Coutinho' per-

mite-nos fazer uma nova leitura do processo de criação das secretarias de

Estado e respectivas atribuições.se, quando escreveu ao sobrinho, D. Luís da CunhaManoel6, a fim de the

enviar aS Instruções (I747), o velho Diplomata deixou transparecer uma certa

amargura por não ter sido o escolhido pafa a secfetafia de estado dos Negó-

cios Estrangeiros, um pouco diferente pafece ter sido a sua atitude dez anos

antes ou seja, na mencionada correspondência com Marco António.

Pela leitura do documento, apercebemo-nos que Mafco António o teria

sondado para o cafgo de secretário de estado e quiçá, teria despertado nele a

vontade de o exercer. No entanto, o convite jamais Seria formulado. Os argu-

mentos utilizados por D. Luís para não aceitar o referido lugar foram desne-

cessários, já que a ideia da sua nomeação pafa ministro nem chegou a ser

formulada como hipótese na corte de Lisboa.

Na realidade, o Cardeal da Motta, responsável pela remodelação governa'

mental, nunca pensou nomear D. Luís como minisffo, nem sequer o consultou

sobre o assunto. De certo modo, essa atitude acentua a pouca influência de

D. Luís.Totalmente alheado da realidade nacional, como aliás ele próprio

reconhecia, D. Luís não se apercebeu do poder do Cardeal da Motta, demons-

trado na escolha de Marco António de Azevedo Coutinho, para a secretaria de

estado

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i:

D, Luís da Cunha

Na carta de 1736, que passamos a transcrever, D. Luís define-se como um'lhomem do mundo", com hábitos estranhos à corte e dificuldade em aceitaros costumes da nobreza portuguesa. Pela primeiravez etalvez a única durantetoda a vida assume-se como um "estrangeirado", com todas as característicasque mais tarde vieram a ser-lhe atribuídas pela historiografia.

"Meu filho do meu coração, confesso a V. S.u que a sua carta de 29 do passado mepenetrou a alma e o coração, que não estava previnido para este terrível golpe,pois havíamos recebido as cartas que Diogo de Mendonça assignou em 4 do pas-sado, de que infiro que doença de que faleceu foi apressada. Deus o tenha no Ceo!El rey perdeu nelle hum velho, fiel e incansavel Ministro e eu hum grandeAmigo, como V. S.u não ignora e assim pode considerar qual sera o meu senti-mento.Eu não dei credito a noticia que participei a V. S.", ainda que as que vem por seme-lhantes subterraneos são as vezes as mais certas, e suponho esta com a mesma quali-dade, bejo mil vezes a mão a V. S.u pela exortação que me fas, que pa.rte mais de humPay para filho, que de hum filho para Pay e resebendo-a naquelle grau para lhe dartodo o pezo que ella merece direi a V. S.u as minhas consideraçoes com aquella since-ta clareza aque me he ñatural, havendo sempre detestado toda a prezumpção revistidade afectadas humitraçoes e modestias.Considero pois meu amado Pay ou filho, como V 5." quizer, que seria grandeexpectação que todos conceberião do meu prestimo e de que V 5." mostra ser o pri-meiro, se o Amo me tirqsse de tão longe para o servir de mais perto, preferendome atantos outros sujeitos quantos deve haver na nossa terra, muito mais capazes desemelhante emprego do que eu o sou.Lembrese V. S.u,'que quando algumas vezes falamos nesta matéria, sempre lhe disse,que eu poderia ser menos mau Secretario de Estado dos Negocios Estrangeiros por-que o uzo me poderia haver dado delles mais conhecimento que a qualquer outro quenem os tractou, nem talves ouviu falar delles, se não muito superficialmente; mas quedas couzas interiores do Reyno faria hum pessimo ministro, porque totalmente as

ignoraria, e estas são as que fazemqttazitodo o trabalho e pezo daquella Secretaria,ainda que eu conto entre as primeiras a Segurança do Reyno e tudo o que toca a dealem Mar e seu Comercio, que não he pouca besogne pra quem lhe der a aplicaçãoque merece; De maneira, que logo que nella estivesse 4 dias ouvira VS." dizer aoscríticos e ainda aos que o não sáo, este he o Oraculo que S. Magestade nos foy buscara Holanda! que utilidade nos trouxe qle faz e em que nos melhora? e terão muitarazão de assim o dizerem. Quando meu bom Amigo, que Deus tem, entrou na Secre-taria de Estado, tinha ja a practica da das merces, achavasse em huma idade compe-tente e lograva huma robusta saude, que he tudo o que me falta e so os annos e osachaques me sobrão, quem sem consultar as suas forsas, a sua capacidade toma acarga com que não pode, precizamente cahira com ella perdendo a honra, e servindomal o Amo, em que a consiencia a que V. S." quer que eu a atenda (?), não vai menosinteressados.Ajunte V 5." a esta consideração a do meu genio inteiramente oposto ao das intrigase lizonjas das cortes, de que ordinariamente depende a conservaçõo, ølem de que os

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166 Imbel Clurry

muitos annos que tenho vivido com as outras naçoens me frzerão contrahir habitos,que me não deixarão contentar com a nossa nobrezq e he muito tørde para me repa-trianDepois desta reflexão e outras que V. S." pode entender que não ignorei, nem VS.u

nem eu ignoramos, não sou tão temerario que engeitasse a honra que o Amo mequizesse fazer, mas sera reprezentandolhe com toda a verdade a minha insuficiencia,a minha muita idade e as minhas repetidas molestias, pam que depois se não ache

enganado na ideia que fas do meu prestimo e da minha possibiliade.Pesso a V. S.u o mesmo que V. S." me pede e, que he, despindose da atnizade que meprofesse, que meta a mão na consiencia e vera que lhe fallo como quem dezejava nãoir perder a honra que me fazem os que de mim conceberão tão boa opinião, sem poderutilizar o serviço do Amo, parte por incapasidade e parte por pouca saude. Deus G. ade V. S." para que me mande no que for servido e o guarde como dezejos. Haya 5 de

Junho 1736.Sei que a Quinta da Boa Viagem tem melhor vista que a de Mon Plaisir mas ondeestqrq o tempo para a lograr e o caminho para ntio se estropiax Eu dou o meu voto aMotta por ser capaz et honet homme."1

Bela carta esta! D. Luís analisa as suas insuficiências e reconhece que os

largos anos de afastamento da corte o impediam de ser um homem do apare-lho administrativo central porque, como ele próprio reconhecia, não domina-va os mecanismos fundamentais da actividade política interna, nomeadamenteas redes clientelares. Pela primeiravez, tal como farão anos mais tarde os seus

admiradores, D. Luís auto-intitula-se "Oráculo" da vida política portuguesa.

2. As lNsrnuçÕns h,tÉntrts

Quem viria preencher a vaga na Secretaria dos Negócios Estrangeiros se-

ria Marco António de Azevedo Coutinho.Este reconhecera desde sempre o estatuto de superioridade a D. Luís e, ao

ser nomeado como secretário de estado, escreveu-lhe a pedir conselhos.Vieram então a lume, anos mais tarde, as lnstruções Inéditas de D. Luís da

Cunha a Marco António de Azevedo Coutinho, apesar das hesitações do autorem as ffansmitir.

"Bem me poderia persuadir que era sincero o comprimento que Marco Antonio de

Azevedo me fazia de desejar as minhas instruçoens para servir o emprego de que Sua

Magestade acabava de o revestir, porque eu tinha muitos mais annos de Ministerio doque elle, devendo lembrar-se, que no tempo que ambos assistimos em Pariz, nuncalhe deixei tomar a pena para fazer os despachos dos negocios, que sómente estavão ameu cargo; e ao seu dar expedição ás encomendas que Sua Magestade lhe ordenava

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D. Luís da Cunha 167

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Isto suposto, depois de terja escrito muitas folhas de papel, fiz duas reflexoens: a pri-meira comecei a conceber que fora o espirito de lisonja e não de necessidade que MarcoAntonio me pedia que o instruisse; a segunda que ou elle se devia aproveitar das minhasideias como minhas ou como suas: que no pri-meiro caso as suprimiria pois desta sortenão lhe grangiarião o credito que com ellas devia procurar; e que no segundo não ouzariaprove-las por serem muito livres do que se seguiria a inutilidade do meu trabalho; e

assim tomei a resolução de lhas não comunicar; ainda que elle algumas vezes me lem-brasse o dezempenho da promessa que lhe havia feito, mas nas horas melancolicascontinuei a escrever como se não tivesse mudado de sentimento [...]"8

As hesitações de D. Luís da Cunhaprolongaram-se durante dez anos, tempoque demorou a escrever e enviar as Insftuçõese, não para Marco António,como estava previsto, mas sim a D. Luís da Cunha Manoel, seu sobrinho, como pedido de as manter secretas.

Esta atitude prudente não se ficou a dever apenas ao facto de as Instruçõescomentarem as acções dos secretiários de estado, como Marco Antonio, oudos embaixadores, como Galvão de Lacerda, mas sim devido às opiniões ex-pressas sobre o desenvolvimento de Portugal. As sugestões apresentadas cons-tituíam um programa ministerialpara ser executado pela secretaria de estadodos Negócios Estrangeiros. D. Luís defendia a divisão da secretaria de Esta-do, tal como veio a acontecer após a morte de Diogo de Mendonça CorteReal. Reconhecia a autonomia da política face à moral e a consequente neces-sidade de formação da classe dirigente. Discorria sobre a acçáo governativa esobre as relações entre o governo e os diplomatas e, por último, debruçava-sesobre a razáo de Estado e sobre as relações entre rei e súbditostO.

Todas as considerações feitas iam ao encontro das grandes questões pos-tas pelos estadistas do seu tempo. D. Luís da Cunha ao escrever as Instruçõespensou Portugal em termos ideais e as soluções apresentadas pressupunhamque bastaria a vontade política do soberano/estadista para que a gestão doEstado fosse perfeita. Tal como Maquiavel e outros grandes teóricos dagovernação, o embaixador encarava a política como uma arte e embora aprática diplomática the sugerisse que a amplitude dos Impérios, como o Por-tuguês, Espanhol, Francês e Inglês, diminuia a capacidade de intervenção dossoberanos e restantes elementos do governo, nunca adaptou o seu pensamentoà verdadeira dimensão do Império. As expressões utilizadas para designar oaparelho de Estado, são justamente exemplo dessa visão teórica da época.Referindo-se ao rei, D. Luís chamava-lhe "Soberano", "Piloto", acrescentan-do que ele governava "a barca do Estado, os marinheiros são os seus Minis-tros" e deviam estar concertados entre si para não naufragarem. Outra referênciade claro sentido barroco foi a comparação qrue fez entre a experiência dosministros e a dos médicos. No seu entender, ambos se dedicavam aos proble-mas do corpo: os primeiros, aos do corpo político, os segundos, aos do corpo

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168

humano. Ora, como aponta Henry

lsabel CIUnY

, este tipo de metáforas são Pró-

prias do imaginário barroco'"-- g ãrur¿o"r" ,"f"r" ao conceito de "Razão de Estado" que D' Luís se reve-

la um profundo conhecedor da reflexão teórica do seu tempo sobre política e

simultaneamente um conhecedor da mesma ptáttica política'

..NãosedeveV.S..seduzirdoquecommodamentesechamaRazãodeEstadoenten-

dendo-a no seu verdadeiro sentido e não no que ella se praticalo fundo não he Razão

deEstado,massjmrazáodoPríncipe,oqualcomopfetextodeseguraroquepossueprocura uzurpar o que lhe não toca"r2'

Da leitura deste texto, inferimos uma crítica ao abuso que oS estadistas

faziamdo termo ..Razão de Estado", como forma de justificar todas as acções

eemespecialasagressõesexternas.Porúltimo,D.Luísafirmouconstituirseu objectivo o "melhoramento dos interesses gefaes de Portugal"' Sendo as-

sim, eram precisos meios para prevenir o futuro' já que "pusemos o remédio

dosprezentesnasmaosequasiarbítriodepotenciasquepertendemcombinara nossa Segurança e a Hoìra de S. M com os seus particulares interesses"'

Estas palavras inserem-se na linha de pensamento político da altura, fazendo

decorrer dos inimigos externos a instabilidade governativa dos estados' uma

;;áñ" detalhada ãas Instruções permitiria rever todos os conceitos e ideias

de D. Luís, relativamente às relações de Portugal com os países europeus,

bem como conhecer as suas críticas ao poder temporal da Igreja. No entanto,

a impossiuilidade de nos determos apenas sobre uma obra, obriga-nos a ficar

por esta análise.

Nas Instruções D.Luís chamava também a atenção para o problema da

velhice,queatacavaocorpoeoespírito'ComparandoaDiplomaciaàPintu-ra, afirmåu que tal

"o-o ó, pintores, os diplomatas também.perderiam o va-

lor com a idade a não ser que transformassem a experiência em reflexão e

estudo. Esta ideia sobre a função do diplomata nunca a perdeu ao longo da

,orrr¡ropois considerava que em diplomacia' como em qualquer ofício' eta

necessáriaumaformaçãoespecífi"u'qu.estasóseadquiriapeloestudoepela experiência, tornando-se Ûma arte se bem aplicada'

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D, Luís da Cunha

NOTAS

I Borges de Macedo, Pensamento Económico do Cardeal da Motta, Lisboa, Rev. da FLL, 1960,pp.79-97.2 BN, cod. 4417, Correspondência de Marco António Azevedo Coutinho e o Embaixador na Cortede França, 7 de Janeiro de 17 40 e 28 de Dezembro de 1742.3 Visconde de Santarém, Quadro Elementar [...],1842-1860, T. V n." 2,pp.220e seg.a BN, ms. 62, nÎ 2, doc. 222, Correspondêncía Diplomátíca de D. Luís da Cunha a GonçaloGalvão, A. Guedes Pereira etc... "Carta ao Cardeal da Motta", Haia,7 de Outubro de 1735.5 "J. Sebastião José Carvalho e Mello", Escritos Económícos de Inndres- 1741-1742, Lisboa,BN, 1986, p. 63.6 As Instruções Inéditas, foram enviadas por volta de 1747 .? ANTT, MNE, cx. 789,Legaçáo dos Países Bàixos, Cartas de 1728-1736 de D. Luís da Cunha aMarco António de Azevedo Coutinho,5 de Junho de 1736.8 D. Luís da Cunha, Instruções Inéditas, p.7.e As Instruções foram solicitadas em 1736, data da nomeação do secretário de estado. A redaçãofinal foi enviada ao sobrinho e parece ser pouco anterior a 1747. Ora, esta é a data provável daredacção doTestamento Político que, segundo algumas opiniões, seria um resumo das Instruções.r0 A impossibilidade de trancrever todos os assuntos mencionados obriga-nos a remeter para aspáginas da obra citada onde estes assuntos são tratados. Instruções Inéditas, op. cit, pp. 9-10, 12,t8,21-22,25-26.rrHenry Kamen, "O Estadista", O Homem Batoco, Lisboa, Presença, 1994,p. 16.t2 Instruções Inéditas,p.25. O texto em itálico corresponde ao ms. da BN, cod. 8759.