Curta é a terra para os assinalados do amor€¦ · deuses e assim instituir o habitar dos homens...

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06 Curta é a terra para os assinalados do amor Dossiê Hélia Correia

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Tamanha Poesia • v. 3, n. 6 • jul-dez/2018 • ISSN 2525-7900

volume 3 | número 6 | jul-dez/2018Belo Horizonte - MG - Brasil

Curta é a terra para os assinalados do amorDossiê Hélia Correia

ISSN 2525-7900

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Organizadores do volumeSilvana Maria Pessôa de OliveiraRoberto Bezerra de Menezes

EdiçãoCentro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

Avenida Antônio Carlos, 6627 – Sala 3049, CEP: 31270-910 – Belo Horizonte, MG(31) [email protected]

Polo de Pesquisa em Poesia Portuguesa Moderna e Contemporâ[email protected]

Projeto Gráfico e DiagramaçãoRoberto Bezerra de Menezes

EXPEDIENTE

Capa: Elizabeth “Lee” Miller em Le sang d’un poète, de Jean Cocteau (autor desconhecido).

RevisãoSilvana Maria Pessôa de OliveiraRoberto Bezerra de Menezes

Conselho EditorialSilvana Maria Pessôa de OliveiraWagner MoreiraErick Gontijo CostaPatrícia Chanely Silva RicartePatrícia Resende PereiraRoberto Bezerra de Menezes

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Apresentação

Roberto Bezerra de MenezesSobre alguns poemas dispersos de Hélia Correia

Erick Gontijo CostaFriedrich Hölderlin, Hélia Correia e o pensamento- habitante da poesia

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SUMÁRIO

Clarissa de Oliveira CoimbraAs Medeias – Hélia Correia mergulhada em Eurípedes

Mariana Pereira GuidaOs homens estão completamente sós: notas sobre a Antígona de Sófocles em Hélia Correia e Hölderlin

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Silvana Maria Pessôa de OliveiraApodera-te de mim – Considerações sobre a ideia de amor em Hélia Correia

Poesia

Teatro

Naiani Silva NogueiraPerdição – Exercício sobre Antígona, de Hélia Cor-reia: uma análise das personagens femininas

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Tão perturbado amoreste, o que escorrecomo a goma das árvores,este que feito cãouiva e cintila

Hélia Correiain A pequena morte/Esse eterno canto

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Este número da Tamanha Poesia reúne textos que se dedicam a pensar a obra multifacetada de Hé-lia Correia. Constituído por duas seções (uma que abriga ensaios críticos sobre a poesia e outra que se destina a analisar o texto dramatúrgico da autora), o Dossiê pretende fornecer uma amostra das preo-cupações estéticas e éticas que vem constituindo o universo literário de Hélia Correia. O texto de Erick Gontijo Costa abre a se-ção consagrada à poesia e propõe a reflexão sobre o lugar da poesia e do poeta (tendo como ponto de referência a figura de Friedrich Hölderlin) em A ter-ceira miséria, livro de 2012. Na sequência, o artigo de Roberto Bezerra de Menezes foca a produção “circunstancial”, por assim dizer, de Hélia, e tem por objetivo analisar poemas publicados esparsamente, mais especificamente na revista Telhados de vidro e na coletânea Quarto de hóspedes. Fecha a seção um comentário crítico de Silvana Pessôa centrado pre-dominantemente na reflexão acerca da ideia de amor tal como se apresenta em alguns poemas de Apodera-te de mim, livro de 2002.

Apresentação

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Na parte dedicada ao drama, Clarissa de Oli-veira Coimbra recupera a dicotomia nómos x phýsis para estabelecer um estudo comparativo entre a Me-deia de Eurípedes e a releitura de Hélia, em Desme-sura, texto de 2006. Por seu turno, o artigo de Maria-na Pereira Guida propõe uma interpretação da peça teatral Perdição – exercício sobre Antígona em diálo-go com a noção de trágico segundo a formulação de Friedrich Hölderlin. Especial ênfase é dada, então, à personagem sofocliana Antígona, relida tanto por Hölderlin quanto por Hélia. Fecha esta seção a aná-lise de Naiani Silva Nogueira, que se empenha em traçar uma análise das personagens da referida Per-dição, ressaltando, em termos comparativos, os aspec-tos de diferença por Hélia engendrados em relação ao texto de Sófocles. Com esse percurso percorrido, almejamos celebrar a poesia e o teatro de Hélia Correia, escri-tora portuguesa fundamental para compreender as manifestações literárias contemporâneas em língua portuguesa.

Silvana Maria Pessôa de OliveiraRoberto Bezerra de Menezes

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Friedrich Hölderlin, Hélia Correia e o pensamento-habitante da poesia

Erick Gontijo Costa

Universidade Federal de Uber-lândia / PNPD / CAPES

1 Inflexão elegíaca

O livro A terceira miséria, de Hélia Correia (2012), compõe-se de 33 fragmentos que se reúnem em um só poema de inflexão elegíaca. Em sua tessi-tura, há citações e figurações1 de Hölderlin, Nietzs-che, Byron, entre outros não nomeados no texto, sen-do alguns referidos ao fim, como “dívida confessada”. Do texto de Hélia, recorto uma questão, a ser des-dobrada: o lugar da poesia e, por extensão, do poeta, pensado a partir de Hölderlin, principalmente.

O livro tem em seu horizonte a recuperação de certo passado grego, a que a autora, invariavelmente, nomeia, em entrevistas e discursos, como “minha Gré-cia”. Decorre, em parte, desse gesto de estar às voltas com o lugar perdido, a inflexão elegíaca do texto. In-1 Entende-se, por figuração, a representação de elementos biográficos das obras dos autores, ao passo que, por citação, entende-se o recorte de passagens de obras de autores no texto de Hélia.

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dicação disso é a abertura com um verso hölderliniano, ex-traído da elegia “Pão e vinho”, como veremos mais adiante.

A Hölderlin, interessava, mais que a Grécia como lugar real ou que os deuses gregos como seres de culto, a potência poética nascida no encontro do humano com o sagrado. A partir dessa potência criadora, o homem, na figura do poeta, instauraria a medida de habitação na ter-ra: “Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra” (HÖLDERLIN, 2000, p. 209), escreveu o alemão, em “No azul ameno”. O poema de Hélia parece se escrever à sombra dessa ideia hölderliniana.

2 Primeira miséria

A figuração de Hölderlin, em A terceira miséria, gravita, primeiramente, à volta do pensamento da con-dição do vivo no abandono dos deuses e da presença da Natureza como sobrevivência do sagrado. Às figurações de Nietzsche e Byron, caberá o pensamento da morte dos deuses, do declínio de Atenas (a deusa e a cidade) e, com isso, a perda de uma ideia de polis, de uma noção de casa e de hospitalidade. Assim, a partir das ruínas compostas de tempo e espaço de um país – a Grécia – e das supostas indigências do pensamento (decorrentes da perda de certo horizonte poético e filosófico) as misérias vão-se revelan-do no livro de Hélia. A primeira:

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Para quê, perguntou ele, para que servemOs poetas em tempo de indigência?Dois séculos corridos sobre a horaEm que foi escrita esta meia linha,Não a hora do anjo, não: a horaEm que o luar, no monte emudecido,Fulgurou tão desesperadamenteQue uma antiga substância, essa belezaQue podia tocar-se num recessoDe poeirenta estrada, no terrorDas cadelas nocturnas, na contínuaPerturbação, morada da alegria.(CORREIA, 2012, p. 7)

Esse fragmento de abertura do livro traz em si, condensadas, algumas das questões estruturantes na obra e no pensamento de Hölderlin. Os dois primeiros versos são uma citação do décimo quarto verso da elegia höl-derliniana “Pão e vinho”. O verso se encontra no sétimo fragmento desse poema:

Mas nós, amigo, chegamos demasiado tarde. Certo é que os [deuses vivem, Mas acima de nós, lá em cima, noutro mundo. Aí o seu domínio é infinito e parecem não se importar Se estamos vivos, tanto nos querem poupar. Pois nem sempre pode um frágil vaso contê-los, O homem apenas algum tempo suporta a plenitude divina. Depois toda a nossa vida é sonhar com eles. Mas os erros, Tal como o sono, ajudam, e a necessidade e a noite fortalecem, Até que haja suficientes heróis, criados em berço de bronze, De coração corajoso, como dantes, semelhantes aos Celestiais. Depois eles chegam, trovejantes. Entretanto penso por vezes Que é melhor dormir do que estar assim sem companheiros, Nem sei perseverar assim, nem que fazer entretanto,

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Nem que dizer, pois para que servem poetas em tempo de [indigência? Mas eles são, dizes, como sacerdotes santos do deus do vinho Que em noite santa vagueavam de terra em terra.(HÖLDERLIN, 1999, p. 75)

O poeta é aquele que “chegou demasiado tarde” e os deuses se tornaram inacessíveis. Do ponto de vista filosófico, é o edifício metafísico que entra em crise no cenário poético. No entanto, é interessante perceber que a Natureza, palavra grafada em maiúscula nos Hinos tardios hölderlinianos, ao ser revelada no canto, confere ao poeta um lugar próximo ao do sacerdócio. A esse sacerdócio do desaparecimento dos deuses (e o Cristo, para Hölderlin, é o último dos seres divinos gregos, um semideus), cabe alguma sorte de revelação e, por isso, é possível, ainda, ins-tituir o habitar dos homens na Terra:

Mas se vós,E é preciso dizê-lo,Todos vós, ó antigos, não disserdes como o aprendeste,Então invocamos-te, ó Natureza! Invocamos-te,Carentes do divino, e, como depois de um banho, [novo, de ti emergeTudo o que é de origem divina.

(HÖLDERLIN, 2000, p. 37)

Heidegger, em um livro dedicado à poesia de Höl-derlin, dirá que o poeta alemão, como homem movido pela transformação (ou pela passagem dos deuses ao estatuto de

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Natureza), é “aquele precisamente que tem de perseverar no centro do Ser, para, nesse lugar, sujeitar-se a encontrar os deuses e assim instituir o habitar dos homens na Terra, a sua História” (HEIDEGGER, 2004, p. 268). Portanto, se há luto dos deuses na elegia de Hölderlin, há também uma transfor-mação do que fora sagrado em potência poética advinda da Natureza.

Não parece ser exatamente essa a maneira como se figura a poesia de Hölderlin no poema de Hélia. Afinal, ao atualizar a pergunta de Hölderlin em seu escrito, sobre o lu-gar do poeta em tempo de indigência, a autora portugue-sa delimita aí o que entende por primeira miséria: “Sim, foi essa/ A primeira miséria, a deserção/ Dos Deuses” (COR-REIA, 2012, p. 24). Nessa deserção, um sentido específico de vida se colocaria em crise, embora a saída encontrada por Hölderlin e explicitada por Heidegger não seja mencionada por Hélia. Lembremos, ainda, que a obra de Hölderlin, em sua complexidade que abarca distintas posições de um sujeito nada linear nem coeso, busca recuperar, no horizonte grego, uma ideia de Grécia, ou de polis grega, a ser convertida numa nação, digamos assim, virtualizada em sua poesia como “Ger-mânia, enquanto sacerdotisa” (HÖLDERLIN, 2000, p. 77) dos deuses, que não estão ainda mortos, apenas são inacessí-veis ao humano. A ideia hölderliniana de Germânia permiti-ria, assim, a existência da figura do poeta como uma clareira de revelação divina e transmissão do que se revela ao povo:

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Porém a nós compete-nos, ó poetas, permanecerDe cabeça descoberta enquanto passam as trovoadas de Deus,Segurar nas próprias mãos o próprio raio vindo do PaiE entregar ao povo, oculto no canto,A dádiva divina.(HÖLDERLIN, 2000, p. 31)

Dos deuses, há um sinal natural que se transmi-te no poema. No mesmo poema, podemos ler: “Aos poe-tas também compete,/ Sendo do espírito, ser também do mundo” (HÖLDERLIN, 2000, p. 99). O poeta, nas raízes da modernidade2, é já dividido, não coincide consigo e não se encerra na pura revelação das dádivas divinas, pois a Natureza é já um indício de esvaziamento do horizonte sagrado. Sendo uma clareira de revelação, o poeta é tam-bém pertencente ao mundo, de onde os deuses desertaram. Nesse horizonte de divisão do pensamento, Hölderlin in-sinua já a dispersão da antiga ordem poética e pensante. Sem se deter aí, o poema de Hélia salta da primeira à se-gunda miséria.

2 Por modernidade, entendo, a partir de Maria Esther Maciel, o período e as obras literárias que começam a se formular com os românticos alemães, ganhando consistência estética em Baudelaire e atravessando as produções que se seguem. A modernidade, ainda hoje, é uma questão que não se esgo-tou; antes, se dispersou, sem desaparecer por completo: “Como se sabe, foi Baudelaire o primeiro poeta a problematizar, pela via estética, o conceito de modernidade na acepção moderna do termo, embora os românticos alemães já tivessem tangenciado esse novo conceito, ao tratarem da relação entre Ro-mantismo (considerado por eles a expressão por excelência do moderno) e Classicismo” (MACIEL, 1995, p. 178-179).

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3 A segunda miséria

[...] A segunda, a sua morte, [dos deuses]3

Já na morte de Pã anunciadaPelo lamento dos bosques, o clamorLutuoso das ilhas do Egeu.Esse grito o escutou o outro Friedrich,Dionysos de seu nome, o europeu,O anunciador, o que caminhaSobre águas estagnadas e parece,Ao afundar-se, desenhar no lodoUm mapa para o qual não há leitura.(CORREIA, 2012, p. 24)

O segundo Friedrich, sabemos, é Nietzsche. Na deserção dos deuses apontada por Hölderlin, estaria já de-senhado o projeto nietzschiano de superação do homem (e, por extensão, da metafísica) ante a morte dos deuses. Trata-se de uma reconfiguração das formas de pensamen-to e de vida então vigentes. Para Hélia, correlata à morte dos deuses gregos, seria a falência quotidiana, em última instância, do pensamento e da arte:

A segunda miséria: não a morteDo deus crepuscular, do invasor Que proibiu a imaginaçãoE tirou à tragédia dignidade – Pois muito longe de morrer está esse.A morte, uma falência quotidianaDa limpidez, da arte e da divinaColoquialidade com o mistérioE com o semelhante, a que extinguiu

3 O conteúdo do parêntesis não está no texto, apenas acrescento aqui o con-texto.

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Como um sopro de fogo na planície,Ao mesmo tempo o vivo e o seu rasto.(CORREIA, 2012, p. 25)

É curioso que se situe junto à figura de Nietzsche a falência da arte e da coloquialidade com o mistério. Afinal, sua obra se propõe justamente a ser uma passagem da dor à alegria, por meio de procedimentos, em última instância, análogos ao poético. E o tema da morte de deus é como um trampolim para o pensamento nietzschiano: “Mas, quando Zaratustra se achou só, assim falou para seu cora-ção: Como será possível este velho santo, na sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!” (NIETZSCHE, 2011, p. 13). Melhor dizendo, há para o filósofo um de-clínio salutar na morte dos deuses. Declínio de certa ló-gica humana impregnada pela metafísica: “Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizeste para superá-lo?” (NIETZSCHE, 2011, p. 13). Nietzsche não busca um homem superior pela elevação ou pelo sublime, como Hölderlin buscou. É antes àquele que é forte na fragilidade, que extrai da dor a sua potência, que o filósofo se refere: “Amo aquele cuja alma é profun-da também no ferimento, e que pode perecer de uma pe-quena vivência: assim passa de bom grado sobre a ponte” (NIETZSCHE, 2011, p. 17). É da libertação que se trata, portanto. Para além (ou aquém) de qualquer vínculo com a sombra dos deuses (e com tudo que isso pode repre-

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sentar em termos filosóficos e poéticos), a superação visa ao nascimento daquele que extrai da fraqueza uma força, daquele que tem força para cultivar a palavra na própria fraqueza.

Talvez a referência a Nietzsche, no texto de Hélia, como aquele que afunda sob a água e deixa um mapa para o qual não há leitura, se faça mais clara ao acompanhar-mos outra miséria, a de interlúdio: “E veio outra miséria, em interlúdio:/ A miséria da interpretação/ Que tudo trai. Os textos, os tão belos/ Textos do ódio e da melancolia/ Carregavam os sacos dos soldados (...)/ equivocados/ Com o som do poema, com a ira/ Formosa do poema” (CORREIA, 2012, p. 26). É possível pensar, a partir tanto da imagem do mapa ilegível quanto da ideia de que a in-terpretação pode trair, que as misérias a que Hélia se refere não seriam apenas as dos poetas em tempo de indigência, mas também as leituras equivocadas, que não captariam exatamente o que Hélia entende, em seu livro, como cerne das obras mencionadas. No prefácio à tradução das Ele-gias de Hölderlin, Maria Teresa Dias Furtado informa que poemas, cartas e trechos do romance Hipérion e da peça A morte de Empédocles, todos de Hölderlin, compuseram o conteúdo da Seleta de campanha, que todos os soldados nazistas carregavam obrigatoriamente nas mochilas, du-rante os combates (FURTADO, 1999, p. 25). É, de fato, indefensável qualquer apropriação nazista da arte, e não

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estamos aqui para discutir o indiscutível. Mas grande des-serviço à poesia de Hölderlin foi prestada, não se pode esquecer, principalmente pelos críticos literários que, até o começo do século XX, se interessaram praticamente ape-nas em rechaçar a obra do poeta alemão que viveu com os dois pés na loucura durante 40 anos. Isso não aparece no texto de Hélia.

Em todo caso, ao retomar a pergunta “Para que poetas em tempo de indigência?”, com a qual Nietzsche não deixa de estar, mesmo que tacitamente, às voltas, Hé-lia traz novamente a questão à cena, porque não teria tido ainda o impacto necessário. Afinal, faltaria ao tempo pre-sente, em que se extinguiu “Ao mesmo tempo o vivo e o seu rasto” uma “Coloquialidade com o mistério” (CORREIA, 2012, p. 25). São hipóteses o que Hélia propõe, embora, ao menos como percebo, no livro em questão, sua leitura simplifique a poética e a recepção de Hölderlin e, por isso, pode ser problematizada. Além disso, não é tão claro, no texto de Hélia, se a proposta é de um retorno à vigência de pensamentos já esgotados ou de atualização, neste tempo, do que precisaria, ainda, ser inscrito na cultura.

4 A terceira miséria

A terceira miséria é esta, a de hoje.A de quem já não ouve nem pergunta.A de quem não recorda. E, ao contrárioDo orgulhoso Péricles, se torna

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Num entre os mais, num entre os que se entregam,Nos que vão misturar-se como um líquidoNum líquido maior, perdida a forma,Desfeita em pó a estátua. (CORREIA, 2012, p. 29)

É notável o fato de que, ao retomar a pergunta de Hölderlin, sem problematizá-la, Hélia, se pretendeu atualizá-la, não dispersou de todo as sombras do desapa-recimento dos deuses hölderlinianos. Digo isso porque o poeta alemão oscila entre o suposto lugar de indigência e um outro: o de acesso à potência poética por outra via que não o contato direto com os deuses. Assim, nada pa-rece comprovar que a citação do poeta alemão não tenha trazido algum embaraço no decorrer do poema de Hélia. E a lição nietzschiana da potência extraída da fraqueza também parece não se ter inscrito nas malhas do poe-ma da autora. Afinal, a partir do contexto referido em A terceira miséria, será de fato o presente um tempo de indigência? Pois só em face de um ideal – por exem-plo, o do desaparecimento ou da morte dos deuses e da sombra que deixam –, se poderia pensar que os tempos são de miséria. Desdobrando a pergunta: será a visão dos tempos, presente no poema de Hélia como tempos de indigência, um olhar elegíaco?

Justifico a pergunta: porque os deuses, como lu-gar transcendente e organizador de certo pensamento político e estético, parecem ter caído em desuso como

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categoria operacional de centralização do pensamento e de inspiração poética em parte significativa da con-temporaneidade, qualquer salvação ou redenção parece estar fora de causa. Tanto melhor. Num mundo há muito descentrado, as saídas viáveis me parecem ser, sobretu-do, pela potência de singularização. E onde crescem as singularidades, as saídas – a poesia, por exemplo – são possíveis, são possíveis franqueando impossíveis.

Para concluir, gostaria de lembrar uma parte de um poema de Hölderlin, o seu último escrito, intitulado “Mirante”. Um poema de quem guarda no corpo, ainda, uma “vida habitante”.

Quando dos homens a vida habitante avança ao longe,Onde o tempo das vinhas brilha ao longeE onde há também campos vazios de verão,A floresta aparece com sua imagem obscura.Que a natureza faça brilhar a imagem dos tempos(HÖLDERLIN apud HEIDEGGER, 2012, p. 180-181)

É já a aposta na alegria, ainda que em estado de voto, o que Hölderlin lega. Entretanto, se há ainda alguma “vida habitante”, nada indica que seja uma vida à imagem obscura da floresta ou de certa ideia de polis já irrecupe-rável. Convenhamos, são tempos em que a natureza, me refiro à de Hölderlin, desertou pouco depois dos deuses. O que não impede que a poesia tenha procurado outras paisagens. Talvez a questão “Para que servem poetas em

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tempos de indigência?”, de Hölderlin, faça mais sentido, hoje, convertida em “Para onde vai a Poesia?”4

Referências Bibliográficas

CORREIA, Hélia. A terceira miséria. Lisboa: Relógio D’Água, 2012.

FURTADO, Maria Teresa Dias. Prefácio. In: HÖLDER-LIN, Friedrich. Elegias. Tradução de Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. p. 17-31.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulis-ta: Editora Universitária São Francisco, 2012.

HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin. Tradução de Lumir Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 2004.

HÖLDERLIN, Friedrich. Elegias. Tradução de Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.

HÖLDERLIN, Friedrich. Hinos tardios. Tradução de Ma-ria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.

4 Faço, aqui, alusão ao título de um dos livros da autora portuguesa Maria Gabriela Llansol – Onde vais, Drama-Poesia? –, autora mencionada ao fim do livro de Hélia Correia. No livro de Llansol, Hölderlin é também uma figura presente.

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A produção poética de Hélia Correia não é certamente a mais expressiva se comparada a de ou-tros poetas na ativa em Portugal. Isso se deve porque Correia se dedica mais à produção de suas ficções, que obtêm mais destaque que sua poesia ou seu teatro. Ela publicou três livros de poesia: A pequena morte/Esse eterno canto (1987), em díptico com Jaime Rocha, Apodera-te de mim (2002) e A terceira misé-ria (2012). O intuito deste texto é dialogar com essa produção poética não pelo acesso imediato aos re-feridos títulos, mas pelo reconhecimento de alguma produção poética dispersa que, não constituindo for-ma autônoma e nem inserida, por enquanto, em um volume de poesia, toca em questões que podemos identificar como parte das inquietações da autora.

Os poemas de que aqui nos ocuparemos fo-ram publicados na coletânea Quarto de Hóspedes e na revista Telhados de vidro, esta última editada pelos poetas Manuel de Freitas e Inês Dias, também res-ponsáveis pela editora Averno. Não por acaso, por-

Sobre alguns poemas dispersos de Hélia Correia

Roberto Bezerra de Menezes

UniversidadeFederal de MinasGerais / PNPD / CAPES

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tanto, o primeiro poema de que falaremos refere-se aos dois: “Para a Inês e o Manuel que me ofereceram uma/ AL-MOFADA DE ANDORINHAS” (CORREIA, 2014a, p. 33)1, eis a dedicatória-título que antecede o poema. Em uma reflexão sobre o tempo, as estações e os voos das ando-rinhas, Hélia Correia nos oferece o factual afetivo tornado poema, valorizado enquanto gesto. O poema parte de um suposto presente de aniversário de Inês Dias e Manuel de Freitas para Correia, em fevereiro, seu mês de aniversário, como anunciado no poema. Vejamos um trecho:

Poucos, alguns, os quenão acreditamno jogo dos volumes, muito menosna diferença entre o vooe o envio,oferecem coisas luxuosas, sem pensaremquão luxuosas são.Por exemplo, andorinhas em fevereiro,no início de fevereiro, quando a ordemdas migrações assim não determina. (2014a, p. 33)

Com “o voo/ e o envio” (2014a, p. 33) aproxima-dos, a poeta faz coincidir o objeto (almofada) ao animal nele representado. É, então, o olhar da presenteada que acrescenta ao objeto a animação de que o poema é nota. O gesto, dotado do poder de fazer atravessar as “janelas fe-chadas” (2014a, p. 33), é comparado ao processo da poesia

1 Todas as referências aos poemas de Hélia Correia analisados virão apenas com ano e número de página de agora em diante.

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de “tornar/ transitável um corpo que era sólido” (2014a, p. 34). A mão, emblema da doação, é o lugar em que o tempo pode ser elaborado “sem esforço” (2014a, p. 33), al-terado para fazer acontecer as andorinhas em fevereiro: “Poucos, alguns, têm na mão o tempo” (2014a, p. 33), diz Correia, tornando o gesto algo da ordem do “improvável”, que “convive, sem cerimónia, com alguns, poucos” (2014a, p. 34). Do céu para a cama, as andorinhas habitam o fundo branco do tecido e são tratadas como figuras animadas, em tom infantil:

O certo é que aqui estão, na minha cama,tão entranhadas num tecido brancoque parecem ter sido nele inscritas –pinceladas sobre um papel de arroz.E facilmente passariam porobra de humana fábrica, não fossea chilreada que me acorda cedoe os cuidados que eu tenho em não deixarque a luz do meu serão asincomode. (2014a, p. 34)

Essa cena doméstica e potencialmente pessoal não é encontrada nos livros de poesia de Correia, o que nos leva a crer que a circunstância tenha influenciado a sua escrita como um sinal de agradecimento e de afeto, ten-do vindo, inclusive, a ser publicada na revista editada pelo referido casal. Os gestos de cortesia e amizade se multipli-cam no tecido do poema.

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No mesmo número da Telhados de vidro, Hélia Cor-reia publica um segundo poema, intitulado “Alice e Pedro nos capuchos”. O espaço nele delineado é o do Convento de Santa Cruz dos Capunhos, na Serra de Sintra. Ao final do poema, inclusive, há a datação e o local: “Sintra, 2015” (2014a, p. 37). Sabe-se, de acordo com a matéria de Isabel Lucas para o Público, de 2012, que Hélia Correia criou para si um refúgio em Janas, próximo às Azenhas do Mar, na região de Sintra. É a jornalista que também relata que a au-tora tem por hábito levar filhos de amigos para o Convento, “por achar que há ali algo de miniatura” (LUCAS, 2012). O poema de que falamos pode ser, então, fruto desse tipo de convivência, desta vez com Alice e Pedro, dois pequenos filhos de “jovens adultos” (2014a, p. 37) amigos, não identi-ficados ao longo do poema.

Em vários momentos, somos testemunhas do olhar que a autora reserva às crianças: “Como água cantam e cintilam, refazendo,/ a seu modo, a paisagem.” (2014a, p. 35), “estas crianças generosas vêem/ essa duplicidade” (2014a, p. 36), “E estas crianças/ deslocam-se à vontade entre a ficção/ e a dureza da história, elas que pegam/ nas palavras e as deitam para o ar,” (2014a, p. 36), por exemplo, denunciam o modo afetivo que a autora mantém ao tratar da inserção desses personagens infantis em seu poema.

Os dois momentos em que as falas das crianças são relatadas e transpostas dão conta do estranhamento frente

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ao desconforto como matéria essencial da vida franciscana: “E perguntam,/ por segurança, à mãe, se o desconforto/ é bom e belo/ — o que é o desconforto?” (2014a, p. 35), e, mais à frente, agora entre aspas: “‘Esses frades não po-diam/ sentir o desconforto neste claustro/ tão cheio de beleza. Para que queriam eles/ o desconforto?’” (2014a, p. 36). O desconforto anunciado pelas crianças do poema deve, muito provavelmente, ser uma referência ao modo de vida dos franciscanos, que têm por medida central o voto de pobreza, de humildade e de obediência. Isto acei-to, é importante ressaltar o momento em que a autora, que se confunde com a voz do poema, com subjetividade mar-cada em primeira pessoa, fala da diferença entre as suas razões e as dos monges:

[...]

Há uma elipse entre as razões dos mongese as minhas razões: do que eles faziampor santa humilhação e ódio à carne,e agrado a Deus, não falo.

Eu falo sobrea doçura da árvore e da penha,mostro as ervas que cuidam e aquelasque apenas embelezam, perfazendoumas e outras o arco do consolo.

Qualquer deslocação da perspectivaimplica a não coincidênciados reais – e estas crianças generosas vêemessa duplicidade.

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Vêem o sítio agreste, a inexplicávelprocura do tormento, e depois vêemcomo eu pareço ter chegado a casa,como percorro, distraída, as celas,e dou, sem querer, informações erradas,porque não sei – e já cá vim mil vezes –a função monacal de cada espaço:como inquilina de direito ponho a camae as brasas e o escritório onde imaginoque ficavam melhor.

[...] (2014a, p. 35-36)

Correia não chega a propagar uma visão anticristã — e mais à frente ela se diz “franciscana ateia” (2014a, p. 36) —, mas define sua fala e seu conhecimento como provindos de uma aprendizagem da natureza, revelando uma postura próxima da pagã (sem o cunho pejorativo do monoteísmo ocidental). É ainda, portanto, de afeto que esses poemas de Hélia Correia falam. A “deslocação de perspectiva” (2014a, p. 36) oferecida pelas crianças é comparada a uma desloca-ção poética, posto que “o seu belo olhar” permite o trânsito “à vontade entre a ficção e a dureza da história” (2014a, p. 36). As duas crianças tornam-se uma mesma perspectiva — “o seu belo olhar”, no singular — ou, para lembrar a aproxi-mação que a autora faz com a água, um só fluxo aquático cantante: “Como água cantam e cintilam, refazendo,/ a seu modo, a paisagem.” (2014a, p. 35). Ou, de outro modo, mais ao final do poema: “desço para a gruta do eremita e espero/ que, feitos água, caiam sobre mim.” (2014a, p. 37).

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Encontramos no poema ainda o caráter recolhido, voltado à natureza, à terra, da autora. Vejamos o trecho final (2014a, p. 37):

[...]

Elas sabem que eu amo este lugarCom uma espécie de arrebatamento,Uma aflição de bicho que só querInternar-se na terra, no rochedo,Não sem antes silvar, para que ninguém,Excepto a minha ninhada, se aproxime.

Excepto a minha ninhada, estas criançase os jovens adultos que as trouxerame que, aos poucos – connosco está Alice –,talvez por inalarem certos fungosque o nosso peso humano levantou,vão perdendo tamanho,

eles também.

Nessas duas estrofes que encerram o poema, en-contramos uma reflexão final sobre o papel de Correia nesse ambiente, quando anuncia conservar um círculo es-treito de convivência, que chama de “ninhada”, em atitude tanto protetora e afetiva quanto hierárquica. É a sua pre-sença que fará “inalarem certos fungos” (2014a, p. 37), ou seja, adquirir certa história, sabedoria, maturidade e grau de seriedade que signifique deixar de lado a infância física e mentalmente.

O terceiro poema, “Quarto em Edimburgo II”, foi primeiramente publicado na coletânea Quarto de hóspedes

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(Ed. Língua Morta), de 2013. Dos cinco que aqui selecio-namos, talvez este seja o que mais se aproxima da dicção temática da autora em seus livros de poesia autônomos. Nele, encontramos uma reflexão sobre o amor que man-tém alguma relação com os poemas de A pequena morte e de Apodera-te de mim. Vejamos as duas primeiras e a última estrofes do poema:

Eu certamente acabaria por arderse ficasse mais tempo enoveladano banco da janela,certamenteos meus limites individuaisacabariam por esbater-se,como é justo acontecer no amore em nada maisdo vulgarmente humano.

Como no amor, de facto,algo de bruto e deinvasivo, algo queestá longe de dar as boas vindas.

[...]

É realmente necessário um esforçoque rebente as cadeiasque nos tragapara a superfície da respiração,é necessário que juntemos todosos pedaços do corpo e,como no amor,nos arranquemos,a muito custo,dos lugares do perigo,

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a minutos de ardemos,a minutosde o turno da manhãlevar as cinzas. (2014b, p. 63-64)

Logo de início, somos confrontados com essa mu-lher “enovelada”, “no banco da janela”, próxima de “arder”, ecoando o mais famoso poema camoniano. O quarto, enunciado no título, não aparece no interior do poema, fazendo-nos supor que esse banco e essa janela são parte desse quarto na capital da Escócia. A seu modo, o poema reitera a visão da autora sobre o amor, essa força que se apodera do ser de forma a evitar qualquer evasão. Descrito como “algo de bruto e de/ invasivo”, lembramos os ver-sos de A pequena morte que dizem: “Tão perturbado amor/ este, o que escorre/ como a goma das árvores,/ este que feito cão/ uiva e cintila.// O amor com suas facas, suas cordas,/ o seu lenço cigano —/ —abrindo as frestas, di-vidindo a pele.” (1986, p. 15). Podemos ainda lembrar da primeira parte da série “Tene me”, de Apodera-te de mim: “O seu amor rodeia-me a garganta./ Foi bem cedo selado, este metal,/ e o meu pescoço não robusteceu./ Nem quase canto./ Dizem que são belas as vozes das cativas./ Porém não estas, as que enrouqueceram/ sob o estrangulamento do amor.” (2002, p. 15).

Os dois últimos poemas de que nos ocuparemos aqui versam sobre a dança. Em “Otherwise”, Correia con-voca a coreógrafa e dançarina alemã Pina Bausch tanto

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a partir de sua epígrafe — “Dance, dance, otherwise we’re lost” — quanto com a citação direta a ela na terceira parte. Apesar de Correia atribuir a epígrafe à Pina Bausch, segun-do a coreógrafa, em seu discurso de recebimento do título de doutora honoris causa na Universidade de Bolonha (Itá-lia), em 1999, a frase é de uma criança cigana grega:

Permitam-me, senhoras e senhores, começar com uma história. Certa vez visitei ciganos na Grécia. Estávamos sentados juntos e conversávamos e a certa altura eles começaram a dançar, e eu devia acompanhá-los. Tive um medo enorme e a sensação de que não conseguiria. Aí veio ter comigo uma garotinha, com os seus 12 anos, que não parava de insistir que eu dançasse também. Di-zia ela: “Dance, dance, otherwise we are lost” (dance, dance, senão estamos perdidos). (2000, s.p.)

O poema é dedicado a Lucinda Canelas, jornalista do jornal Público, e que escreveu ao menos dois textos a propósito da coreógrafa, em 2003 e 2005. Em conversa com Peter Pabst, a jornalista relata a seguinte definição do cenógrafo para o método de Bausch: “‘É como andar no nevoeiro cerrado. Não há conceito, não há direcção possível até que o nevoeiro levante.’ No início, explica o cenógrafo, não há nada para desenhar porque Pina começa do zero. As coisas estão na sua cabeça, nas suas mãos, nos seus olhos.” (CANELAS, 2005, s.p.).

Dividido em três partes, o poema começa por questionar a ligação do homem com a terra, essencial para

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que a dança aconteça e ele se conecte a um deus. Vejamos o início:

Se a dança nos salvasse, mesmo assimdançaríamos mal e deus algumreceberia o nosso movimento.Pois nem se a terra nos prendesse pelas mãosComo se prende um filho de maneiraa fazê-lo voar em rotação,com um pouco de perigo, o que subtraiainda mais o corpo à gravidade,confiávamos nela.Já perdemosa ligação? (2014b, p. 65)

Esse tom lamentativo anuncia a perda de uma liga-ção que muito possivelmente seja da ordem do que a au-tora entende por mundo grego, como veremos na segunda parte. Para ela, a dança verdadeira seria uma transformação, uma découpage do que nos torna humanos, fazendo-nos vol-tar à forma de fera, bestiais e sem movimentos programados pela razão primária: “tornar-se outra vez fera,/ estar na fera” (2014b, p. 65), diz o poema. Enraizar os pés no solo é outra imagem que a autora usa para falar dessa ligação com a terra que foi perdida pela civilização ocidental. A menção ao bai-larino russo, de origem polaca, Vaslav Nijinsky, para além de ajudar na demonstração de erudição, marca as referências em matéria de dança para Hélia Correia. A Bausch e Nijinsky, juntam-se as figuras de Isadora Duncan, bailarina conside-rada pioneira em dança moderna, seu irmão Raymond Dun-

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can, “cunhado de Angelos Sikelianos,/ por sua vez marido de Eva Palmer” (2014b, p. 67). Esse quarteto é inserido no poema de Hélia de maneira semelhante à utilização da fi-gura de Lord Byron em A terceira miséria (2012, p. 33-35). Byron é convocado a participar indiretamente na frente de batalha da autora pela salvação da Grécia moderna, devedora dos bancos e asfixiada pelo poderio alemão. Sikelianos é, no poema, convocado por conta de, em 1927, ter formado um pequeno grupo para viver aos modos da Antiguidade Clássi-ca, em Delfos, fato a que o poema refere:

Raymond Duncan,cunhado de Angelos Sikelianos,por sua vez marido de Eva Palmer,gente de consequência todos eles,gente capaz de recriar, em Delfos,não apenas os ritos teatraismas inclusivamente a confecçãodo vestuário duro e vegetalque usavam sem pudor.Eva, Penélope,mulheres com um tal excesso de belezaque isso as tornava intransigentes e as punhaa salvo de ternuras comezinhas,atacando o trabalho de tearnão por fidelidade, como a outra,mas numa guerra à Belle Époque e ao séculoque estava a começar.Um pouco menos de dinheiro na famíliae tê-los-iam internado a todos. (2014b, p. 67-68)

Em 2010, a jornalista Raquel Ribeiro entrevistou Hélia Correia a propósito de seu romance Adoecer, no qual

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a autora reinventa a personagem, que Correia insiste em chamar pessoa, Lizzie Siddal. Correia diz: “Acho que atingi por dentro, era o que faltava. Na minha arrogância que os gregos me ensinaram a temer profundamente – tenho mui-to medo e isto é um caso de arrogância – senti que passei para lá das portas que os protagonistas fecharam a todos os contemporâneos”. E completa: “Arrogância de me sentir, de certo modo, única.” (2010, s.p.). Essa arrogância assinalada é visível na terceira parte do poema “Otherwise”:

Eu, que amei Pina Bausch muito antesdo português comum,e ouvi depoisos novos-ricos a gritarem «bravo»contra o seu rosto onde passava tudoo que eles não entendiam,gostava de pedir em alemão«Tanzt», como ela pediu. (2014b, p. 68)

Podemos pensar que tal arrogância é o que preside a escrita de seus textos, normalmente marcados pelas refe-rências à cultura clássica. A necessidade de criar a partir de um repertório e, às vezes, de expô-lo assim tão evidente-mente, como é o caso da “dívida confessada” ao final de A terceira miséria, é marca da autora, ainda que, lembremos, é a mesma que escreveu um poema sobre uma almofada de andorinhas.

Em “Pele II”, o tema da dança retorna, agora ins-pirado no espetáculo Pele, de Miguel Moreira, que esteve

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em cartaz em Portugal no período de 18 a 22 de 2013, no Teatro Municipal de São Luiz. Catarina Félix e Sandra Ro-sado, a quem Correia dedica o poema, são as intérpretes, junto a Regina Fiz e Joana Gama, não mencionadas. Passe-mos primeiramente ao poema:

Essa, a sem voz, que, no entanto, grita,grita sem que a ouçamos, grita e cai,meio cega, na busca de calor,a que não pára de sangrar,como também sangram ainda as rochas,como, à noite, sangra o peito das ferasde tal modo que tudo brilhae tudo se avermelha,revelando as pegadas da batalha,os despojos no chão assustador,

essa, a abandonada, a que, por vezes,é percorrida pelo arrepio,pela frialdade da separação,a que enlouquece na procura,a nua, a que perdeu,a que não sabe segurar-se e oscila,fora do equilíbrio, decepada,em si mesma contida, única, pobre,sobrevivente das primeiras coisas,

ela, a deixada para sempre só,a que corre nos charcos, em demandada pertença maior, a que estremece, atravessada pelos elementos,a água, o fogo, o vento, até as pedras,ela que é fácil de dilacerar,fácil de espezinhar, uma ligeirasuperfície dançante,cheia de morte, ornamentada pela mortecom dourados objectos musicais,

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a que tem de abrigar-se sob as plantas,ou sob a lã, ou mesmo sob o pêlodos bichos chacinados, essa quenão se basta a si própria e busca, busca,oh, infinitamente um recomeço,a que dilata as ventas e tacteiae julga achar, e engana-se outra vez,essa, a magra, a tão magra, a sem espessura,a que podia ser apenas fumoou flutuação, um mero efeito,um desvio da luz, nada importante,nada capaz de perturbar a história. (2014c, p. 41-42)

A pele – “uma ligeira/ superfície dançante” (2014c, p. 42), como bem definiu a autora –, portanto, é o centro do espetáculo e do poema. A pele, que é corpo “sem espessura” (2014c, p. 42) e é movimento, tornada palavra, também em movimento. A natureza ecfrástica do poema nos leva a ver as cenas, ocupadas com esses corpos femininos dançantes. Construído em ecos e anáforas, o texto reitera, a partir de dêiticos, o olhar observador e imaginador de quem escre-ve: “Essa, a sem voz” (2014c, p. 41), “essa, a abandonada” (2014c, p. 41), “ela, a deixada” (2014c, p. 41), “ela que é fácil de dilacerar” (2014c, p. 42), “essa, a magra” (2014c, p. 42), entre outras marcações, põem o olhar do leitor a acompa-nhar o texto em ritmo de observação dessa dança.

Podemos, após esse pequeno percurso, dizer que es-ses cinco poemas de Hélia Correia apresentam duas linhas de força: a tendência à poetização de situações suposta-mente pessoais, ligadas à convivência extra/co literária da

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autora, e que, se comparados aos seus livros de poesia, apre-sentam uma inclinação até então inédita, e, de outro lado, os poemas inspirados em linguagens diversas: as artes, a his-tória ocidental e a cultura grega, mais acentuadamente, que corroboram para a visão mais hegemônica que se tem da autora, preocupada em reunir suas referências intelectuais e culturais para integrar suas ficções, poemas e peças teatrais.

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Retorna frequentemente e apodera-te de mimSensação amada, retorna e apodera-te de mim - quando a memória do corpo desperta,E um desejo antigo torna a passar pelo sangue; Quando os lábios e a pele se lembram,E as mãos sentem como se tocassem de novo. Retorna frequentemente e apodera-te de mim à noiteQuando os lábios e a pele se lembram...

(Konstantinos Kaváfis)

Neste estudo, parto da hipótese de que os poemas de Apodera-te de mim (2002), de Hélia Cor-reia, podem ser considerados um pequeno diagrama das preocupações estéticas e éticas que têm enfor-mado tanto a produção poética quanto a dramática da autora. Constituído por quatro seções de poemas (“Em Knossos”, “A de Cólquida”, “Penthesiléa” e “Tene me”), o volume parece sintetizar, por assim dizer, o pensamento de Hélia Correia em relação a um afeto que aparece disseminado por toda a sua

Apodera-te de mim –Considerações sobre a ideia de amor em Hélia Correia

Silvana Maria Pessôa de Oliveira

UniversidadeFederal de MinasGerais

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obra: o amor, tomado na sua condição de “evento” com-plexo e contraditório.

É preciso assinalar que quando da publicação des-te livro, já Hélia havia dado à estampa algumas de suas obras dramáticas nas quais trava um diálogo ao mesmo tempo rente e distanciado com a tradição do teatro grego: Perdição – Exercíciosobre Antígona é de 2001 e O rancor – Exercício sobre Helena tem sua primeira edição no ano 20001. Na esteira destas duas publicações é que se pode pensar o livro de poemas ora em questão. Como os títulos das composições evidenciam, a remissão ao mundo gre-go é explícita. A própria Hélia declara: “volto sempre à ‘minha’ Grécia, a minha casa, porque a grande Literatura, hoje, não é mais do que era a grande Literatura na Grécia” (2007, p. 14).

No interior deste contexto, não se pode deixar de lembrar que a matriz do pensamento sobre o amor remon-ta a dois célebres diálogos platônicos, quais sejam O ban-quete e Fedro. Sabe-se que em ambos Platão conceberá o amor segundo uma visão já amplamente difundida de que amor e fala, amor e discurso, amor e palavra estão intrín-seca e definitivamente interligados, no que diz respeito à cultura do Ocidente. Com efeito, é ao discurso sobre o amor proferido por Diotima de Mantineia em O banquete

1 É oportuno lembrar que, em 2006, Hélia retorna ao universo literário da Grécia antiga, desta vez com remissões a Eurípedes em Desmesura – Exercício com Medeia.

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que se pode atribuir uma interessante conexão com a vi-são de Hélia Correia sobre o amor. Neste diálogo, Dio-tima revela a Sócrates a existência de uma criatura que atuaria no plano intermediário entre os extremos (o belo e o feio, o bom e o mau, o justo e o injusto), servindo, então, de mediadora entre os homens e os deuses. Tal criatura é Eros, que, na ótica de Diotima, seria um daimon, este ser que vive tanto entre mortais quanto entre imortais; uma espécie de gênio dotado de poderes especiais, entre os quais destacam-se:

O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte divinatória, como também a dos sa-cerdotes que se ocupam dos sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda adivinhação e magia. Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser que se faz todo o convívio e diálo-go dos deuses com os homens, tanto quando despertos como quando dormindo; e aquele que em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o sábio em qualquer coisa, arte ou ofício, é um artesão. E esses gênios, é certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Amor. (apud PESSANHA, 2009, p. 107)

A citação ressalta justamente a função mediadora de Eros, que carrega em si a possibilidade de interpre-tação e de transmissão, exatamente como são os atribu-

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tos da linguagem. Nesse sentido, pode-se pensar que a personagem feminina na obra dramática de Hélia Correia (Medeia, Penthesiléa, Antígona) são figurações de Eros ora como daimon, ora atreladas a determinadas concep-ções de amor, como aquelas que o veem como delírio, seja ele de origem divina ou não. Tal noção de amor como a ausência do domínio de si, amor de duas almas desme-suradas, entregues a uma avassaladora paixão, tanto na vida quanto na morte, é o que se dá a ver no Fedro, outro dos diálogos platônicos centrados na reflexão acerca da natureza desse afeto. Também Hélia no poema “Tene me” retoma a figura da desmedida, encarnada tanto por Me-deia quanto por Penthesiléa. A própria expressão latina “tene me” expressa a ideia de posse e servidão, já que era habitualmente usada, no mundo romano, como inscrição em uma espécie de pequena coleira ou colar, em forma de placa, levada ao pescoço pelos cães ou escravos romanos como indicativo de pertencimento a um senhor. Em caso de fuga, a placa teria a função de atestar a propriedade do animal ou escravo e garantir o retorno ao lar do qual fugira (TENE ME FUGIA ET REVOCA ME AD EVVIVENTIUM IN ARA CALLISTI, cuja tradução seria: “Segure-me, para que eu não fuja e me devolva ao meu patrão Viventius, na propriedade de Callistus”). Veja-se a figura:

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British Museum (Século IV a.C.)

Esta é a imagem que aparece no início do poema “Tene me”, como a indicar a introjeção do sentimento de posse na subjetividade feminina:

O seu amor rodeia-me a garganta Foi bem selado, este metal,E o meu pescoço não robusteceu. (2002, p. 15)

Contudo, a ambivalência contida na voz feminina em relação ao jugo amoroso é exposta na sequência do poema, uma vez que aquela que supostamente havia se

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submetido à escravidão do amor acaba por ser privada da força da alegria e do canto:

Nem quase canto. Dizem que são belas as vozes das cativas. Porém, não estas, As que enrouqueceram Sob o estrangulamento do amor. (2002, p. 15)

Na parte final do poema, expõe-se o modo como a figura feminina submetida à vertigem do sentimento amo-roso está, ao mesmo tempo, a ele agrilhoada:

Mas que dirão do ferro, até aquelesQue descobrem bondade nas serpentes,Nos charcos azulados?Que dirãoCom os seus corações imaginosos?Não há louvor que salve este colar. (2002, p. 19)

Outra figura feminina igualmente subjugada pelo amor é Penthesiléa que, no poema homônimo e anterior a “Tene me”, surge representada em um duelo de amor e morte com Aquiles. Hélia Correia, neste seu poema em prosa, lança mão, ecfrasticamente, de duas representa-ções plásticas bastante conhecidas – a da amazona que se apaixona por seu algoz. A primeira destas representações é conhecida por “ânfora de figuras negras” e atualmente está depositada no British Museum; a segunda é a deno-minada “Taça de Munique”, célebre objeto em cerâmica

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ornada com figuras vermelhas. Em um procedimento vi-sual bastante contundente, Hélia materializa a “convulsão do amor” juntamente com a experiência do êxtase vivido pela amazona:

Na bela jarra, e ao contrário de dezenas de recontros pintados pelos gregos, os seus olhares encontram-se e perduram. Estão ligados amorosamente pela linha dos olhos, como os pares cujos esponsais o ceramista cele-brou. Ela antecipa já, na palidez, o corpo exangue que se vai abrir. E, na serenidade com que o faz, há real-mente uma experiência de êxtase que outra amazona, outra mulher, não conheceu. (2002, p. 14)

Ânfora de figuras negras (British Museum, ca. 550-540 a.C)

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Idêntico procedimento ocorre na cena retratada na famosa “Taça de Munique”:

Na taça, há uma faca tão cravada nessa garganta que já nem se vê. Aqui, Penthesiléa não tem armas e quase não tem peso. A sua túnica esvoaça sob o impulso da paixão. Ela estendeu as mãos e agarra o braço que a vai matando. Não se trata de uma súplica, mas de um entendimento sensual. (2002, p. 14)

Taça ática de figuras vermelhas (Munique, ca. 460-455 a.C.)

Em um esquema circular, a mesma Penthesiléa, embora não nomeada, reaparece nos versos de “Tene me”:

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Fala-se da vertigem do amor E esta, a que cai, Não pede que a sustenham. (2002, p. 19)

No caso de Medeia, o amor é possessão, delírio e desvario. Contudo, no Fedro, Sócrates, pela boca de Pla-tão, argumenta que nem sempre a loucura é um mal, pois ela é muitas vezes inspirada pelos deuses. O ponto alto de sua argumentação consiste em considerar que é no estado de delírio que as sacerdotisas de Delfos e as profetisas de Dódona prestam grandes serviços à Grécia, graças a seus poderes divinatórios. Nessa visão, o delírio é uma bela virtude, uma vez que provém da graça divina. Em Desme-sura,Medeia, que não era sacerdotisa de Delfos nem pro-fetisa de Dódona, representa a encarnação da possessão amorosa, da experiência “terrível” do amor:

A minha história é só a minha história, Pois não existe em mim nem mãe, nem esposa Nem filha de seu pai. Existe apenas O começo do belo e do terrível,(CORREIA, 2006, p. 37)

De modo distinto, ainda que complementar, Per-dição – Exercíciosobre Antígona retoma a tragédia sofo-cliana da irmã que se sacrifica por amor ao irmão. O amor fraterno tal como representado pela figura de Antígona é, segundo alguns estudiosos dentre os quais se destaca Geor-ge Steiner, o suprassumo e a superação do erotismo (STEI-

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NER, 2012, p. 29). O mesmo Steiner argumenta no seu já célebre livro sobre as Antígonas que entre finais do século XVIII e o início do XIX, portanto, na época áurea do Ro-mantismo, as “linhas decisivas do parentesco correm na horizontal, entre irmãos e irmãs. Na construção freudiana, ao contrário, correm verticalmente, entre filhos e pais. O complexo de Édipo é incontornavelmente vertical” (2012, p.162). É assim, pela via freudiana, que Édipo toma o lugar de Antígona, substituindo-a.

Dando sequência à argumentação de Steiner ao analisar o percurso por assim dizer “arqueológico” do mito de Antígona, nota-se que o crítico se detém na “Fenomeno-logia” de Hegel por considerá-la um momento especial da reflexão sobre o referido mito. O estudioso identifica em Hegel a defesa da fraternidade entre irmãos como a mais elevada tarefa ética, pois irmão e irmã estão um diante do outro com a pureza desinteressada da livre escolha huma-na. A afinidade entre eles transcende o biológico e torna-se eletiva (2012, p. 51-52).

Contudo, esta fraternidade, tal como exposta na An-tígona sofocliana, tem sua carga de destruição e aniquila-mento, pois “há amores assim, que matam. Que destroem todo o entendimento”, proclama, no texto de Hélia, um atordoado Creonte.

Aqui chegados, cabe interrogar as razões que têm levado Hélia Correia a recorrentemente retomar, em sua

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obra, temas e motivos gregos, como, aliás, muitos dos seus contemporâneos o fazem. Uma possível resposta é esboça-da por George Steiner, para quem a literatura grega é a pri-meira que reconhecemos e experimentamos enquanto tal. A sua identificação com os mitos é tão imediata e fecunda que a mitologia grega se tornou o centro permanente, o ponto de referência de toda a invenção poética e de toda a alego-ria filosófica posteriores. Os mitos gregos são uma sinopse cuja economia gera variações infinitas, sem que precise, ela própria, de ser reinventada. É o que Heidegger expressa quando afirma que, para o homem ocidental, “o próprio mito é grego” (STEINER, 2012, p. 290).

Talvez não seja por outra razão que Hélia Correia considere a Grécia “a casa” a que sempre se pode e se dese-ja voltar. Trata-se, este retorno, de uma das personificações do amor, o amor à literatura. Tudo somado, seja percebido como daimon, no sentido grego de “espírito”, seja como delírio virtuoso ou possessão maléfica, a potência de signi-ficação da natureza singular e ambígua de Eros permanece como força capaz de gerar, ainda e sempre, tanto os mais luminosos sentidos quanto os mais sombrios. É precisa-mente a esta condição que Giorgio Agamben se refere ao tratar do que chama de “ideia de amor”, fragmento com o qual encerro este texto:

Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para

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o manter estranho, distante, e mesmo inaparente– tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E de-pois, mesmo no meio do mal-estar, dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada. (AGAMBEN, 1999, p.51)

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Trad. João Barren-to. Lisboa: Cotovia, 1999.

CORREIA, Hélia. Apodera-te de mim. Lisboa: Black Sun Editores, 2002.

CORREIA, Hélia. Desmesura – Exercíciocom Medeia. Lisboa: Relógio d´água, 2006a.

CORREIA, Hélia. Dois ofícios chamados literatura. In: FERREIRA, António Manuel; PEREIRA, Maria Eugénia (Coord.). Ofícios do livro. Aveiro: Universidade do Avei-ro, 2007. p. 9-18.

CORREIA, Hélia. Perdição – Exercício sobre Antígona. Lisboa: Relógio d´Água, 2006b.

HORSTER, Maria António; SILVA, Maria de Fátima. Penthesiléa, de Hélia Correia – notas de leitura. Revista Humanitas, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coim-bra, n. 64, 2015, p. 169-192. Acesso em: 18 dez. 2018.

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KAVAFIS, Konstantinos. Poemas de K. Kaváfis. Introdu-ção, tradução e notas de Isis B. da Fonseca. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

PESSANHA, José Américo Motta. Platão: as várias fa-ces do amor. In: NOVAES, Adauto (Org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 134-152.

PLATÃO. Fedro. Trad. Rogério G. de Campos. São Pau-lo: Hedra, 2018.

PLATÃO. O banquete. Apologia de Sócrates. Trad. di-retado grego por Carlos Alberto Nunes. Belém do Pará: Editora da UFPA, 2001.

STEINER, George. Antígonas. Trad. Miguel Serras Perei-ra. Lisboa: Relógio D’Água, 2012.

STEINER, George. La muerte de la tragedia. Trad. En-rique Luis Revol. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica/ EdicionesSiruela, 2012.

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Eurípedes é um dos autores gregos mais conhecidos no mundo. Suas peças utilizaram temas diversos e nelas havia o desafio constante diante de uma sociedade que estava arraigada às suas crenças. De todo seu trabalho, sobreviveram partes das grandes tragédias: 33 obras.

As tragédias gregas se estruturam em ciclos de três peças apresentadas durante três dias: a primeira era trágica (no conceito de movimento, ação), a segunda apresentava a finalização da peça anterior e a terceira, uma piada, ou seja, uma peça cômica a respeito do tema das duas peças anteriores. Algumas dessas peças que sobreviveram continuam ricas aos nossos olhos, permitindo pesquisas diversas e diferentes performances no teatro.

A personagem (e peça) mais conhecida de Eurípedes é Medeia, que possui como epíteto seu destino bastante conhecido: “a mulher que matou os filhos”. Essa personagem possui um caráter interessante (como outras personagens euripidianas,

As Medeias – Hélia Correia mergulhada em Eurípedes

Clarissa de Oliveira Coimbra

UniversidadeFederal de Minas Gerais

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por exemplo, em As bacantes) por permitir o σπαραγμός (sparagmós). Esse termo na língua grega indica uma perfeita distorção, destruição, espedaçamento. Essa ação ocorre com os leitores e a plateia dos textos euripidianos. Não há uma personagem principal de Eurípedes que não permita àquele que recebe o texto uma proximidade total (identificação) ou um completo rechaço (distanciamento). Há sempre algo na personagem, seja no que ela diz ou o que ela fez em algum momento que a une ao leitor ou a algo que ele reconhece. É a partir desses aspectos que podemos conectar a produção euridipiana com as peças de Hélia Correia. Hélia Correia é portuguesa e se encontra no contexto moderno, contemporâneo. E por qual razão estaria ela ligada à produção de Eurípedes? A autora criou exercícios teatrais com personagens de peças dele. Esses exercícios partem do sparagmós inicial, no qual a personagem carrega tantas camadas de complexidade quanto podem ser ressignificadas em diversos momentos culturais e históricos. O processo de novos significados de conceitos arraigados nas sociedades ocidentais é uma das possíveis interpretações das peças de Hélia. Para trabalhar esses aspectos de modo mais claro, escolhi a peça Desmesura – Exercício com Medeia. Para compreender a peça de Hélia, precisamos destacar alguns aspectos da personagem de Eurípedes.

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Medeia é uma mulher que nasceu na atual República da Geórgia, por isso é chamada de mulher que fala colco (região da Cólquida). Ligada à deusa Hécate, essa personagem é marcada por uma relação bastante complexa com o herói Jasão: ele se dirige à Cólquida para conseguir vencer um desafio e retornar a Corinto como um verdadeiro herói grego. Busca o velo de ouro para provar sua missão e nesse local encontra Medeia. Ela o ajuda a passar por todas as provas. Em troca, ele se casa com a estrangeira e a leva a Corinto. Quando Medeia é inserida no mundo grego, tudo começa a mudar. Ela é rechaçada por ser estrangeira e seu marido, inserido no conceito de Νόμος, se distancia da mulher, mesmo com o nascimento dos dois filhos. Após saber que seu marido deseja “substituí-la” pela filha do Rei de Corinto, Medeia decide que agirá de modos extremos. E esses modos extremos são explorados por Hélia Correia de modo brilhante. O primeiro dos modos extremos explorados por Correia está ligado ao par “Νόμος” (nomos) e “Φύσις” (phýsis). Esses conceitos estão ligados ao pensamento platônico, mas evoluíram após a reflexão do filósofo grego. Para Platão, o nomos (ideia de ação coletiva, ligada aos valores coletivos e liturgias sociais que tornam o convívio social uma identidade coletiva impressa no ser individual) e a phýsis (ações e reações naturais de tudo o que existe no mundo, aquilo que é esperado da natureza de cada ser

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que possui vida) estavam ligados. De modo ideal, o ser social estaria em coesão com sua phýsis e com o nomos da sociedade na qual está inserido e reproduziria esse nomos de modo coerente (CABRAL, 2013). Após a evolução da sociedade grega, esses conceitos foram se afastando, de modo que a phýsis era agora considerada algo menor, devendo ser dominada em favor do nomos. De modo geral, Medeia é uma espécie de phýsis no mundo grego, já que age seguindo sua própria natureza, mesmo em uma sociedade na qual o nomos determina uma postura oposta. O desenvolvimento de Medeia em contraste com as outras personagens mostra essa diferença entre o nomos e phýsis. Na peça de Eurípedes, há uma distinção maior entre esses dois conceitos. Podemos perceber isso na escolha do autor para o destino dos filhos de Medeia: no mito anterior à peça grega, as crianças são assassinadas pelo povo de Corinto, que está enfurecido com Medeia, um empecilho para os interesses do povo grego, uma estrangeira que apenas estorva com seus filhos bastardos, uma vez que Medeia não se casou em cerimônia oficial com Jasão quando chegou à Grécia. Após envenenar a princesa (ou os pais dela, conforme a variação do mito), o povo se revolta contra Medeia e invade sua casa. Eurípedes concentra a ação de morte nas mãos da mulher, transferindo a phýsis (reação animalesca diante de uma situação grave) para um único ser. Isso

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determina um destaque para Medeia, que permanece uma figura forte após muitos séculos. Podemos realizar a mesma comparação com o nomos de Jasão: ele é um personagem que age de acordo com o esperado para um falso herói homérico: fraco, dependente de Medeia e de suas ações, não sabe como defender a mulher com quem se uniu contra a fúria do povo de Corinto (que a culpa por tudo de mal que ocorre na cidade) e não consegue evitar o fim trágico de seus filhos. Medeia foge e deixa os filhos para trás, Jasão tenta defender sua honra de herói, age conforme o nomos e, ainda assim, falha. Podemos considerar que há nomos e phýsis em todas as personagens (por exemplo, Jasão teria uma phýsis de falso herói). Mas a diferença entre o mito popular e a adaptação de Eurípedes é relevante para compreender o contexto, de acordo com a análise de Michael Ewans:

In the main tradition Medea’s children were murdered by the angry Corinthians, either because they disliked obeying a foreign sorcerceress or in revenge for the death of Creon. […] A minor tradition relates that Medea herself killed them by accident while trying to make them immortal. Page’s argument (1938, xxi-v and xxxi-vi) that the innovation of having Medea murder her children was Euripedes’ has been challenged, but never refuted. (2007, p. 58)

Essa oposição entre a phýsis de Medeia e o nomos de outras personagens é bastante destacada no exercício de releitura

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de Hélia Correia, uma vez que não há uma possibilidade de distinção clara entre as duas ideias para a personagem principal. Essa é uma das muitas inovações de Correia, de modo a tornar o significado de Medeia algo além do já considerado, ou seja, ressignificando a própria ideia geral que se tem desses conceitos. Isso pode ser percebido no modo como a personagem é apresentada nas duas peças: Medeia “aparece” pela primeira vez em Eurípedes ainda como voz e lamento, tanto mediado pela Ama, que aparece primeiro em cena, quanto, em seguida, pela sua própria voz, que é ouvida de dentro da casa, revelando a situação de rechaço social, orquestrada pelo marido Jasão. Na peça de Hélia, Medeia chega suja, molhada e com a escrava núbia nos braços. Hélia transforma a personagem principal em algo maior do que o mito: ao rebaixar a mulher de Cólquida, Hélia a transforma em alguém muito mais aproximada do comum humano e interessante aos olhos de quem observa o texto ou a ação teatral no mundo moderno. O lamento de Medeia em Desmesura está muito mais ligado ao nomos que é negado à personagem. Essa negação passa por ela (ela nega o nomos) e pelo povo (os corintianos negam o nomos a Medeia). Seu sofrimento é maior por não pertencer a lugar nenhum, por sua identidade estar ligada a um passado (que ela destruiu para ajudar o marido) dissolvido e a um futuro incerto. A rejeição a ela, na peça de Hélia, é muito maior, uma vez que não há coesão e apoio das

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personagens femininas, até determinado ponto da peça. A Ama de Eurípedes sente a dor de sua dona e compreende seus infortúnios, apesar de não concordar com suas ações extremas ao saber da decisão de envenenar a princesa de Corinto. Ela é sua confidente e sua conselheira. Melana (que, em Hélia, corresponde à Ama da peça de Eurípedes) possui um papel intermediário, mas não menos afastado de Medeia. O mesmo afastamento ocorre com as outras personagens: Éritra (filha de Melana) e Abar não estão ligadas à Medeia do modo como o imaginário coletivo liga o gênero feminino ao conceito de “desunião”. Essa exploração de conceitos coletivos não ocorre de modo superficial, não representa apenas uma ideia geral de “competição eterna” entre mulheres, mas também uma ausência de empatia e representação ativa de estereótipos femininos. Em uma leitura mais atenta, esses estereótipos representam outros imaginários coletivos, que permanecem fortes na sociedade portuguesa (e ocidental). Esse exercício de exposição das imagens coletivas femininas é bastante relevante, uma vez que transforma o texto sobre Medeia para além de uma “adaptação” ou “releitura” de Eurípedes.

É possível determinar alguns estereótipos explorados por Correia em Desmesura: Melana é a mulher madura explorada e cujo silêncio demonstra uma situação de aceitação diante de uma condição imposta; Éritra é

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a mulher jovem e inexperiente que deseja alcançar algo relevante (e, por sua inexperiência, está voltada ao único símbolo de poder em sua casa, Jasão); por fim, Abar é subjugada de todos os modos, mas resiste, mesmo que isso custe sua vida. Todas as três mulheres desempenham papéis ligados ao feminino como algo inferiorizado: Melana é inferiorizada por sua condição de escrava; Éritra por sua posição de menor poder do que Medeia; e Abar por ser uma estrangeira escrava, situação mais inferiorizada que a de Melana.

Isso é relevante para compreender a relação entre essas personagens femininas com Medeia, que se mostra bastante complexa. Por exemplo: Abar e Medeia possuem uma relação de poder ambígua, quando deveria ser unilateral. Abar não se importa com sua posição de escrava, não obedece ao que Medeia implora, pede e ordena. Mesmo que isso custe o que ela mais deseja (rever o sol, sentir a luz), Abar não muda sua posição. Medeia precisa mudar a dinâmica da relação com a escrava, realizando uma troca: ela oferece à escrava algo que possa melhorar sua condição física em troca de alguns momentos de conversa em sua língua natal. Com Éritra, a relação é de quase igualdade, uma vez que ambas competem pela atenção de Jasão. Medeia é, nesse ponto, uma escrava de seu desejo de dominar a vontade de Jasão e as características físicas de sua oponente corroboram para o desinteresse

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de seu marido em manter o casamento. A cumplicidade com a Ama desaparece na peça de Hélia, Melana não se compadece com a senhora estrangeira. Medeia vivencia sua desmesura diante do isolamento e da competição, se movimenta para baixo nas relações sociais nas quais deveria se manter por cima (em uma hierarquia) e realiza atos extremos para conseguir o objeto de seu desejo. Então, é possível compreender que há uma desmesura de nomos e de phýsis, desmesura de estereótipo de gênero (extrapolação do gênero) e extrema relação com as questões existenciais, que serão abordadas a seguir. As questões extremas de Medeia estão mais relacionadas a uma profunda desconexão com o que seria o seu ideal do que com alguma crueldade. Por outro lado, Medeia tenta manipular a phýsis e a língua grega de modo a conseguir tudo o que deseja. E esse é um dos motivos de ser temida e de uma dor intensa: na língua harmoniosa e ideal dos helênicos, ela é uma intrusa que deturpa as boas palavras para manipular os outros e não acessa sua língua colca (mais complexa em alguns aspectos) por não haver mais ninguém de seu reino consigo. A protagonista demonstra uma relação dúbia com tudo a seu redor, pois o que orbita em torno de si não possui uma resolução parcial satisfatória. Por essa razão, Medeia é a mesma mulher que movimenta as palavras e a arma que mata os filhos. As questões que atormentam a mulher protagonista de

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Desmesura são dirigidas ao público: ela externa aos outros, invisíveis, o que mais a atormenta. Seu lamento não é velado, sua dor e humilhação (penso na cena na qual ela se apronta para receber Jasão e ele apenas lhe dirige palavras secas) são expostas para todos os que leem ou assistem à ação. Por essa razão, a dor de Medeia, a mulher que está além dos estereótipos, não é ofuscada na peça de Hélia pela representação do assassinato dos filhos. Na peça de Eurípedes há uma movimentação e uma cena específica para a morte dos pequenos, chamados pela mãe para trás do palco e, em seguida, ecoam os gritos dos filhos nas páginas e nas paredes. Hélia encerra a peça com a mulher desolada por ter cometido tal ato. Eurípedes brinca e critica a sociedade grega levando a personagem assassina em uma carruagem dourada de seu avô deus (Hélio), salvando a mulher de um linchamento e de um destino nefasto. A justiça para Eurípedes não é realizada em um universo no qual há a intervenção dos deuses e a crença neles. Hélia desfaz a justiça por meio de uma suspensão precisa: não sabemos o que houve com Medeia e com as outras personagens que sobreviveram. Seu ato é extremo e cruel, mas sua dor também. A desmesura de Medeia é mais profunda para nós (em nosso tempo moderno) diante de uma mulher que destruiu tudo o que desejava e que desfez todas as possibilidades de consegui-lo. Ao usar a desmesura, Medeia pode ser considerada

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aquilo que menos desejava: o estereótipo de estrangeira e bárbara (que no mundo helênico eram quase sinônimos), incapaz de ser uma mulher adequada para um herói. E, na verdade, ela é e não o é. Jasão não é herói como Aquiles ou Heitor, suas ações estão mais ligadas ao caráter de Ulisses (que se aproveitava da boa conversa, inteligência e malícia para conseguir tudo o que desejava). O altivo herói da Ilíada é o almejado por Jasão, mas ele é mais tardio, mais ligado à Odisseia. Por essa razão, Medeia não é uma mulher ideal para um herói elevado, ela é parte desse composto descompassado, incongruente e com mais enganos do que as aparências demonstram. A força de Medeia está, justamente, nessa condição de amálgama: não é apenas o estereótipo de mulher bárbara (aos olhos dos cidadãos de Corinto), não é apenas a senhora feiticeira que a todos vigia (aos olhos das escravas), o monstro que mandou um presente venenoso para a princesa de Corinto (aos olhos do finado rei de Corinto), não é apenas aquela a quem se chama de mãe e desfere golpes dolorosos (aos olhos dos filhos). Medeia não traz somente algo esperado para sua condição (representada pela chuva constante). Há dor, vulnerabilidade, medo da perda e desejo de controle por conhecer a verdade de nada controlar. Medeia teme ser substituída, teme ser deixada para trás e ter de voltar para sua terra natal (na qual nada tem, uma vez que destruiu tudo para ficar com Jasão) ou

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ser assassinada na Grécia. Ela também é uma personagem oprimida por diversos senhores: seu marido, seu reino, os cidadãos de Corinto, e por isso recorre à desmesura. Em um fôlego, Medeia mergulha na loucura e nos leva consigo sem pedir autorização. Por essa razão, suas ações nos ferem e nos deixam mal. Sua incapacidade de aceitar o destino e seguir adiante, deixando o marido e os filhos com a nova pretendida esposa, não é a melhor posição, mas faz parte do desejo humano. Por isso ela é a representante do sparagmós.

Essa dúbia relação com a personagem Medeia explica a permanência da peça teatral na história da literatura e o interesse em realizar diferentes diálogos ou exercícios com esse texto. Hélia demonstra uma profunda compreensão do tempo atual em sua adaptação da peça: a escolha do gineceu para a maior parte da peça (local opressor e conhecido pelas mulheres), a escolha das personagens (tanto no caráter físico quanto no psicológico), a decisão de suprimir a cena da morte das crianças, a rápida evolução entre as cenas e os contrastes entre claro e escuro. As mulheres de Desmesura representam tudo o que conhecemos e tudo o que não esperamos conhecer. Por essa razão, a autora portuguesa mergulha em um tempo diferente (grego) e em um tempo atual e leva todos os leitores junto. Esse é um exercício que exige fôlego e força, que exige de todos nós muito mais do que seria apenas uma

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leitura. E, por essa razão, Desmesura pode ser considerado um texto único e multifacetado.

Referências Bibliográficas

CABRAL, João Francisco Pereira. A dicotomia nómos-phýsis no Crátilo de Platão, Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da Antiguidade, Campinas, n. 26, jul. 2009/jun. 2013, Ano XIV/XVIII, p. 111-129. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/cpa/article/viewFile/1488/999. Acesso em: 27 nov. 2018.

CORREIA, Hélia. Desmesura – Exercício com Medeia. Lisboa: Relógio D’Água, 2006.

EURÍPEDES. Medeia. Hipólito. As Troianas. 7ª ed. Tradução de Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1991.

EWANS, Michael. Opera from the greek: studies in the poetics of appropriaton. Reino Unido: Ashgate Publishing Ltd, 2007.

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Os homens estão completa-mente sós: notas sobre a Antígona de Sófocles em Hélia Correia e Hölderlin

Mariana Pereira Guida

UniversidadeFederal de MinasGerais

1 O acontecimento trágico: diálogos, semelhanças e diferenças em tempos diferentes

Este texto propõe uma leitura da obra Perdição – Exercício sobre Antígona, de Hélia Correia, em diálogo com os apontamentos sobre aspectos do trágico levantados por Friedrich Hölderlin nos ensaios “Observações sobre Édipo” e “Observações sobre Antígona”. O poeta alemão, que, como a autora, tomou para si a Grécia Clássica e a fez matéria de sua escrita, para além de uma leitura – nos termos de Hélia, uma dívida – confessada da autora portuguesa, esculpiu com as ruínas gregas legadas ao Ocidente uma Grécia que extrapola o distanciamento contemplativo do observador, ensejando uma concepção trágica do homem que Nietzsche posteriormente desenvolveria em seu O nascimento da tragédia e que fomenta aqui a discussão da abordagem do trágico pela literatura moderna e contemporânea.

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Com efeito, pensar em como os elementos da tragédia elaborados por Hölderlin, poeta cuja lírica e pensamento filosófico coadunam-se de maneira tão singular que atravessam o primeiro romantismo alemão e a teoria do conhecimento kantiana sem a eles se limitarem, são dispostos na versão dada por Hélia Correia a uma das peças que mais reverberou ao longo da literatura, implica em tentar reconhecer como a cesura fundamental na qual o herói trágico encerra-se é configurada em momentos completamente distintos em que, certamente tanto para Hélia como para Hölderlin, dentre as poucas coisas que se mantêm, resta a palavra da poesia.

Quando se trata de revisitar a disseminação da tragédia grega ao longo da literatura ocidental, é sempre forçoso reconhecer, ainda que infindável material teórico, crítico e artístico a seu respeito tenha sido investigado e produzido, nosso alheamento à concepção grega do mundo1. Nesse sentido, cabe lembrar, como o faz Gerd Bornheim (1992, p. 76), não obstante a iluminação que a Poética de Aristóteles, uma das principais – se não a principal – fonte de pesquisas sobre os elementos do

1 Hélia também reconhece a condição de impossibilidade que é estabelecida ao tratar-se da Grécia clássica em entrevista a João Céu e Silva: “É que a Grécia era tão diferente da conceção que se tem dela hoje. Não eram os deuses que mandavam nos seres humanos, a relação é muitíssimo mais complexa e mais humanista”. Disponível em: <http://www.dn.pt/portugal/interior/helia-correia-nao-estou-interessada-em-famas-em-dinheiro-ou-em-admiracoes-4737346.html>. Acesso em: 12 mai. 2017.

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trágico, trouxe e ainda traz sobre o tema, após Nietzsche2, que a associação dos trágicos ao pensamento pré-socrático tornou-se inescapável. Logo, a tentativa de compreender a noção grega de tragédia demonstra-se ainda mais complexa, uma vez que se passa a lidar, então, não apenas com uma percepção do mundo completamente diversa da que nos é habitual, mas também com um modo-de-ser-no-mundo (physis) que nos é obscuro, no qual multiplicidade e unidade, mantendo-se propriamente domínios distintos, associam-se de modo que “as coisas, múltiplas, vêm da unidade e para ela voltam, num processo de gênese e destruição” (BORNHEIM, 1992, p. 77). É sob esta perspectiva, portanto, que Lesky (1996, p. 147-148) caracteriza o contexto em que escreveu Sófocles: “O mundo de Sófocles, e especificamente seu mundo, também está cheio de deuses. Sófocles não procura por trás do acontecer mesmo o seu sentido último. Tudo o que acontece é divino (...)”.

Neste mundo originário do Um-Todo, o poeta é aquele que manuseia a linguagem – substância humana imbuída no curso da dinâmica viva da physis – criando

2 Roberto Machado pontua que, muito embora tenha sido Nietzsche o responsável por dar corpo ao pensamento trágico, atribuindo-lhe um princípio próprio de cognoscibilidade e reconhecendo-o como traço da natureza humana, é Hölderlin o primeiro a, através dele, instaurar uma linha de fuga na lógica platônica manifesta nas interpretações da tragédia de até então. Cf. MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2006. p. 44-45.

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a arte (technê). Entrelaçando ordem e caos, a tragédia sofocliana, em sua condição de apolínea precisão e clareza, estabelece uma relação de contiguidade/ruptura com o mais íntimo da natureza instaurando a condição trágica que Nietzsche, não aleatoriamente, descreve a partir do signo apolíneo do Sol:

Quando, numa tentativa enérgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos ofuscados, surgem diante dos olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras: inversamente, as luminosas aparições dos heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara, são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha. (NIETZSCHE, 1992, p. 63)

Antes mesmo do desenvolvimento dos conceitos de apolíneo e de dionisíaco pelos quais Nietzsche desenvolve sua teoria da tragédia, Hölderlin já demonstrava uma semelhante percepção do trágico, verificada nas empresas não finalizadas do seu Empédocles, nas suas traduções de Édipo e de Antígona e nas Observações sobre as respectivas peças. Segundo Jean Beaufret, esse tumulto aórgico da natureza ligado à ordenação sublime da arte é, para Hölderlin, aquilo que a tragédia tem de oriental, seu caráter genuinamente grego e que, para ele, resumia-se à figura de Apolo, “não um contrário absoluto de Dioniso,

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mas sua mais alta realização como o extremo da força viril”3 (BEAUFRET, 2008, p. 12).

Hélia, que por sua vez é também confessada devedora de Nietzsche (CORREIA, 2012, p. 41), demonstra ser claramente, em sua tríade de tragédias, uma entusiasta de Dioniso. Sua Antígona inicia-se com um ditirambo entoado pelo coro das bacantes4, figuras que incitam a curiosidade da heroína e, em certa medida, também caracterizam sua personalidade ao longo da peça. Curiosamente, é este caráter terrífico que viceja em Antígona que Hölderlin identificará como essencialmente grego – oriental – e que, ao contrário da clareza de exposição moderna, funda sua tragicidade: “a insolência sublime na medida em que a loucura sagrada é o mais elevado fenômeno humano e, aqui, mais alma do que linguagem, ultrapassa todas as outras manifestações (...).” (HÖLDERLIN, 2008, p. 85). Para Hölderlin, de fato, é quando o herói retorna a esta condição de origem – o nativo – que o acontecimento

3 Partindo da carta de Hölderlin a Friedrich Wilmans em que o poeta afirma que Apolo o havia golpeado, Heidegger discorre a respeito da plenitude do fogo apolíneo dos céus que lança o poeta à obscuridade. Cf. Holderlin y la Esencia de la poesia. In: HEIDEGGER, Martin. Arte y Poesía. Traducción y Prólogo de Samuel Ramos. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina S.A., 1988. p. 125-148.4 Cabe notar: retiradas do mito de Penteu por Eurípedes em sua tragédia homônima, As bacantes são, segundo Edward Said, o mais asiático dos dramas áticos justamente por seu teor ritualístico, “sua ligação aos excessos estranhamente ameaçadores dos mistérios orientais”. Cf. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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trágico se instaura, algo muito próximo da separação ontológica descrita por Bornheim (1975, p. 72), o rasgo na natureza humana pelo qual o homem e seu horizonte existencial entram em choque. Isto posto, interessa à leitura aqui sugerida deter-se sobre como este processo desenha-se tanto em Hélia como em Hölderlin.

2. O afastamento dos deuses: a suspensão do tempo

Na sua leitura do evento trágico exposta nas Observações, Hölderlin descreve-o – notadamente sob a influência da moral kantiana, segundo Beaufret (2008) – como o momento decisivo e claramente definido de afastamento categórico dos deuses. Ao retornar à natureza, matéria originária de deuses e homens, o herói estabelece com os deuses um encontro que é também, fundamentalmente, um divórcio inexorável, uma infidelidade de ambas as partes: “o deus e o homem se acasalam, e como, ilimitadamente, o poder da natureza e o mais íntimo do homem se unificam na ira, seja concebido pelo fato de que a unificação ilimitada se purifica por meio de uma separação ilimitada” (HÖLDERLIN, 2008, p. 78). Em Perdição, este encontro é prenunciado, desde o início da peça, na forma de desejo em Antígona; o encontro com o desconhecido, com o insondável fatal do divino que se

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inscreve nas bacantes e em Dioniso, como que chamam a heroína para seu destino em uma ânsia de êxtase que reúne amor e morte: “Será talvez o que elas ouvem no Citéron. O ruído do deus que se aproxima. Um susto, um terror pânico, uma luz deslumbrante que dói, antes que venha a perda da consciência.” (CORREIA, 2006, p. 53).

Para além de caracterizar o motivo central da tragédia, o erro – a amartia – que leva o herói ao choque com o divino (BORNHEIM, 1975, p. 76), em Hölderlin esta cesura assume-se em uma perspectiva mais ampla, que diz respeito ao que aqui tratar-se-á, em falta de melhor denominação, por percepção trágica do mundo. Partindo da premissa de que o conflito trágico lança homens e deuses para uma condição primeira e essencial na tragédia, tem-se que:

Nesse limite, o homem esquece de si, porque está inteiramente no momento; o deus, porque ele é apenas tempo; e ambos são infiéis, o tempo porque vira [wenden] categoricamente em um tal momento, e nele início e fim não mais rimam, o homem, porque neste momento tem que seguir o afastamento categórico, e com isso, em seguida, simplesmente não pode se igualar ao que era no início. (HÖLDERLIN, 2008, p. 79-80)

Primeiramente, é preciso perceber que, das implicações que a separação fatal entre homens e deuses assinaladas pelo poeta alemão, a suspensão do tempo talvez seja a principal para a leitura aqui proposta. Tempo agora

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resume-se ao divino e em muito pouco, ou nada, assemelha-se à convenção espacial que os homens criaram para defini-lo. Destituídos de seu sentido de tempo, os homens contam apenas com o momento que marca essa cesura, e o que lhes resta é a deriva do esquecimento. Na versão de Hélia Correia da peça sofocliana, essa característica é patente não apenas na bizarria cronológica da coexistência de mortos e vivos – que, no caso, torna-se possibilidade – como também na impossibilidade da memória, visto que as personagens se veem constantemente condenadas ao esquecimento. Assim, ao longo de toda a peça, declarações como a de Antígona são correntes: “Acho que fui feliz com Hémon. E no entanto não me lembro do seu rosto. Nem já da sua voz.” (CORREIA, 2006, p. 31).

Em última instância, “esta mistura de espaços corresponde a uma mistura de tempos ou, nas palavras da Ama morta, uma suspensão do tempo no Hades que as faz perder a compreensão das relações de causa e efeito e da própria vida.” (BRANCO, 2008, p. 39). Sair do tempo significa sair da compreensão das coisas, da cognoscibilidade de si. A noção do tempo trágico desenvolvida por Hölderlin, exposta também em Perdição, teria, neste sentido, um caráter ontológico, conforme pontua Steiner:

O próprio tempo, a que o Hölderlin tardio concede uma orientação misteriosa e uma misteriosa energia geradora em estreita relação com a natureza do divino

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– Zeus, Dionisos, Cristo chegando depois deles, são “pais do Tempo” e presidem às revoluções do Tempo – é transformador do texto clássico. Mas não simplesmente transformador no sentido em que podemos sustentar que os sentidos presentes em Sófocles são elaborados, alterados, possivelmente enriquecidos por séculos de recepção hermenêutica, pelos ecos e reflexões que suscitam em obras posteriores. A noção hölderliniana da acção transformadora do tempo é radical e ontológica. (STEINER, 1995, p. 99)

Ainda sobre a condição da cesura como princípio de organização do trágico, Hölderlin pontua que o marco deste momento de separação e imobilização total dos sentidos é a intervenção de Tirésias, o que em Perdição também se repete. Aqui, onde a hybris, a desmesura toma conta dos homens, manifesta-se a compreensão, o sentido5. Em Perdição, não apenas a intervenção de Tirésias marca a virada trágica de que fala Hölderlin, como também a própria disposição espacial da encenação o coloca em um terceiro plano, diferente dos planos dos vivos e dos mortos. Tirésias é, como os outros, homem, mas o lugar de onde ele fala não é o dos homens vivos, nem o dos mortos. Além disso, Tirésias, adivinho e sábio, é aquele que,

5 Merece destaque, ainda, o fato de que Tirésias é um sábio cego, reiterando o princípio pré-socrático do conhecimento que se dá para além da suspensão dos sentidos. Aos homens, então, resta “encontrar um método apto a apreender não o que aparece aos sentidos, mas antes o que lhes escapa e que seja capaz, em última instância, de estabelecer uma conexão entre o sensível e o não sensível.” Cf. MARQUES, M. P.; PEIXOTO, M. C. D.; PUENTE, F. R. O visível e o inteligível. Estudos sobre a percepção e o pensamento na filosofia grega antiga. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 21.

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compartilhando do desvario dos homens após o exílio dos deuses, traz o juízo. A título de provocação, sem apontar respostas, tampouco apresentar caminhos para as mesmas, pergunta-se: seria Tirésias, em Hélia, uma figuração do poeta? Visando fomentar a reflexão sobre o tema, bem como encerrar o cotejo proposto entre o poeta alemão e a autora portuguesa, reproduz-se parte da última fala de Tirésias na peça:

Também as malhas do destino estão abertas. Já não prendem ninguém. Como Antígona e a Ama no seu túmulo, como Creonte no seu trono, os homens estão a partir de agora completamente sós. Ignorarão as outras linguagens. Sentirão o pavor, o frio do universo e nada nem ninguém lhes há-de responder. (CORREIA, 2006, p. 57).

3. A percepção trágica do mundo: a permanência da palavra na indigência dos tempos

A fala de Tirésias citada na seção anterior exemplifica claramente o que se procurou, ao longo deste texto, descrever como percepção trágica do mundo em Hélia Correia e Hölderlin. Neste sentido, parece patente em ambos, tanto o que Hélia afirma em A terceira miséria – “Certo é que Atenas se mantém oculta/(...)Certo é que nunca ressuscitará” (CORREIA, 2012, p. 36) – como o que Hölderlin afirma em carta ao amigo Böhlendorff

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em 1801: “para nós, o trágico consiste no fato de nos afastarmos do reino dos vivos, de modo inteiramente silencioso, empacotados numa caixa qualquer, e não sermos devorados pelas chamas que não soubemos amestrar.” (HÖLDERLIN apud FELOWS, 2011, p. 248-249); ou mesmo, ainda, o que Tirésias afirma aos espectadores de Perdição: “E, sentindo-se assim defendidos dos velhos e divinos pavores, suspirarão de alívio. Porque não são e não podiam ser Antígona.” (CORREIA, 2006, p. 22). Em contrapartida, é fato que a dissonância do homem com o mundo que o cerca, o abismo de sentido a que fatalmente ele se vê lançado em sua existência, assemelha-se àqueles mesmos a que Sófocles se referia e, se isso hoje possibilita alguma faísca de entendimento sobre tal condição, é porque estes textos existem, porque eles chegam até nós.

Sobre isso, portanto, retoma-se a menção a Hölderlin feita por Hélia em A terceira miséria:

Para quê, perguntou ele, para que servemOs poetas em tempo de indigência?Dois séculos corridos sobre a horaEm que foi escrita esta meia linha,Não a hora do anjo, não: a horaEm que o luar, no monte emudecido,Fulgurou tão desesperadamenteQue uma antiga substância, essa belezaQue podia tocar-se num recessoDa poeirenta estrada, no terrorDas cadelas nocturnas, na contínuaPerturbação, morada da alegria;(CORREIA, 2012, p. 7)

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Na sequência, excerto do poema de Hölderlin em questão:

(...)Mas, amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato, Vivem ainda, mas lá nas alturas, em outro mundo.Infinita é sua ação ali e aos Celestes parece Importar pouco a nossa vida, pelo muito que de nós [poupam.Pois nem sempre os pode conter um vaso frágil e só De raro em raro o homem suporta a plenitude do divino.A vida é depois sonhar com eles. Entretanto, o erro É útil, tal como o sonho, e a aflição e a noite dão forçasAté crescerem heróis bastantes em berços de bronze, De forte coração como os de outrora, iguais aos Celestes.Hão de vir, trovejantes. Porém, parece-me, por vezes, Bem melhor dormir do que viver assim sem companheiros.O que esperar, que fazer entrementes, ou o que dizer? Não sei: e para que poetas num tempo de indigência?Mas são, dizes, como os sacerdotes do deus das vinhas Que, pela noite sagrada, iam de país em país.Quando, em tempos que nos parecem remotos, [ascenderam Ao céu todos os que tornavam a vida venturosa;Quando o Pai apartou seu semblante do mundo dos [homens E com fundadas razões o luto começou na terra;Quando, celestial consolo, apareceu enfim um gênio Que tranquilo proclamou o término do dia e foi-se –Deixou o coro celeste atrás de si, como sinal De que estivera entre nós e voltaria, certos dons Para que pudéssemos gozar humanamente como antes; Mas o maior, a alegria de espírito, era demais Para os homens: se só aos fortes, que ainda, ainda faltam, [cabe A alegria mais alta, resta ao menos certa gratidão.O pão é fruto da terra, porém a luz o abençoa E do deus trovejante provém a alegria do vinho.Por isso pensamos nos Celestes, que outrora estiveram Na terra e para cá voltarão quando chegar o tempo.

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Por isso celebram os poetas também, em canto grave, O antigo deus do vinho, a quem louvor não soa fútil.(...)(HÖLDERLIN, 1991, p. 169-171)

A leitura comparativa de ambos os textos demandaria uma reflexão ampla e amparada por uma exposição mais expressiva das obras em que se inserem. Não obstante, como ensejo para outras considerações acerca do tema, toma-se, aqui, a leitura de Heidegger sobre o poema de Hölderlin que, sob este aspecto, é pertinente também à apreciação do texto de Hélia:

O tempo permanece indigente, não apenas porque Deus está morto, mas também porque os mortais já não conhecem nem dominam a sua própria mortalidade. Os mortais ainda não estão em posse da sua essência. A morte retira-se para o enigmático. O segredo da dor permanece velado. O amor não se aprendeu. Mas há mortais. Há-os na medida em que há linguagem. Demora-se ainda o canto sobre a sua terra indigente. (HEIDEGGER, 1998, p. 253)

Dessa forma, é sensato afirmar que se assim como a Antígona de Sófocles, vemo-nos hoje legados ao afastamento categórico dos deuses, a uma “terceira miséria”. Recorrer às tragédias, ao início da palavra poética, que em muito se confunde com o início do homem ocidental, significa reconhecer que, a despeito da condição trágica fundamental que encerra a existência humana, a poesia, como nós, ainda sobrevive à indigência.

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A busca direta pelas referências das obras clássicas gregas é uma constante no trabalho desen-volvido por Hélia Correia. O seu regresso ao pas-sado, em especial à tragédia grega, possibilita fazer uma releitura atual das questões do mundo antigo. Em Perdição – Exercício sobre Antígona, a autora portuguesa propõe novos modos de enxergar o mito de Antígona, escrito em sua versão original por Só-focles.

É possível notar, no processo de reestruturação psicológica das personagens feito por Hélia, uma tentativa de adaptação à modernidade dos conflitos vividos pelas personagens femininas da tragédia gre-ga, em especial da personagem Antígona, de forma a mostrar o quanto essas personagens e os conflitos vividos por elas podem ser atemporais. Tal releitura proposta pela autora foi o que impulsionou a análise comparativa das personagens femininas de Perdição e de suas respectivas versões em Sófocles, que será apresentada a seguir.

Perdição – Exercício so-bre Antígona, de Hélia Correia: uma análise das personagens femininas

Naiani Silva Nogueira

UniversidadeFederal de MinasGerais

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1 Ismena

Em Sófocles, à irmã de Antígona, é dado pouco enfoque. Em uma busca constante por apaziguar os âni-mos e atitudes impulsivas de sua irmã, Ismena é caracte-rizada, de certa forma, como uma personagem apagada e sem características marcantes. Até mesmo no momento da trama em que se oferece para morrer junto da irmã, como uma penalidade por não revelar os intentos de Antígona, falta-lhe a vivacidade que transborda desta. A jovem não é influenciada pela obrigação, que guia a mais velha à mor-te, de prestar honras a um de seus irmãos mortos; entre a família e a obediência às leis do homem, Ismena escolhe ficar ao lado de Creonte, o que é, para a irmã, um sinal de desonra:

Ismena – Mas eu não me envergonho de navegar con-tigo neste mar de calamidades.Antígona – De quem é essa obra, são testemunhas o Hades e os que estão debaixo da terra. E eu não prezo quem me ama só em palavras.Ismena – Não me impeças, irmã, de morrer contigo e de purificar o que morreu.Antígona – Não queiras partilhar a minha morte nem faças teu aquilo em que não tocaste. Para morrer, basto eu.Ismena – E que me importa a vida, se tu me deixares?Antígona – Pergunta-o a Creonte, já que com ele te preocupas. (SÓFOCLES, 1984, p. 61)

 

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Essa mesma falta de protagonismo é conservada, inicialmente, em Perdição; todavia, não é apenas com a per-sonagem de Antígona que podemos perceber um processo de modernização na adaptação portuguesa. Hélia evoca, também em Ismena, atributos que diferem essa persona-gem da sua versão original e expõe uma faceta de Ismena a qual não somos apresentados na tragédia sofocliana. Ao revelar os atos da irmã ao tio, a jovem não se apresenta solidária pelo castigo que recairá sobre a irmã ou ofere-ce-se para partilhar de seu destino, mas sim revela uma personalidade amargurada e ressentida, o que deixa clara a completa falta de afinidade e o rancor que sente pela irmã, por não se adequar e por ter-lhe roubado Hémon:

Ismena – Não pude demovê-la. Ela nunca escutou con-selhos razoáveis. Só ouve a voz do escândalo. (COR-REIA, 2006, p. 45)

Ismena – Qualquer coisa que tivesse que ser feita. O mesmo me disse ela quando me roubou Hémon. (..)Ismena – Sim. Severa de mais. Foi o que a seduziu. Aí está ela como sempre quis: no centro dos olhares e ar-vorando um ligeiro sorriso de desprezo. (CORREIA, 2006, p. 46)

2 Ama

A figura da Ama, inexistente na história original, ganha destaque na peça de Hélia, que direciona atenção

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especial a essa personagem também em outras adaptações: O rancor e Desmesura. Para Maria de Fátima Silva, a cons-trução, por diferentes autores, da figura da Ama segue um determinado padrão: ela é espontânea e cheia de sabedoria popular, “uma mulher sobre quem os anos pesam já, que acumula a experiência de um longo tempo vivido ao servi-ço de uma mesma família” (SILVA, 2006). É ela, também, quem mais detém o conhecimento do que se passa com a senhora, acompanha-a sempre lado a lado, mesmo que o abismo social entre elas não possa ser ignorado.

A ama em Perdição é tangida pela ambiguidade. Por um lado, é acusada por Eurídice e Ismena de incenti-var as insanidades de Antígona e incitá-la a buscar a mor-te por puro capricho, indo contra a família que ainda lhe resta (“Eurídice: Cala-te! A raiva dela é obra tua! Andas a instigá-la contra nós!” (CORREIA, 2006, p. 27); “Ismena: Ó Ama! És tu! És tu que a tens acicatado contra nós!” (CORREIA, 2006, p. 51)). Em contrapartida, é a Ama quem orienta a jovem heroína e que se mantém ao lado de Antígona ao longo de toda a história. Apesar de ficar claro que é esse seu dever como escrava, ela é, de certa forma, a única que entende a jovem (“Antígona morta – Recor-do-me tão bem das noites do exílio. Os olhos do meu pai deitavam pus. Detestava beijá-lo. Escondia-me até que me passassem os vómitos. / Ama morta – E no entanto gos-taste desses tempos…” (CORREIA, 2006, p. 26-27)).

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É a versão viva dessa personagem quem, apesar de estar tomada pela hipocrisia dos vivos, protagoniza o mo-mento de maior carinho que Antígona recebe na história, em uma lembrança da infância da garota:

Antígona – Como a minha sorte e a de meu pai pudes-sem de algum modo comover-te...Ama – Que dizes tu, menina? Criei-te. Não dormi para te embalar. Mamaste o leite do meu peito, não do dela.Antígona – E isso fez-te ganhar amor por mim?Ama – Eras uma criança remexida. Depois adorme-cias de repente, onde quer que estivesses, encostada aos meus pés. Jocasta enfurecia-se com isso.Antígona – Lembro-me vagamente de que ela me ar-rancava às vezes dos teus braços.Ama – Eu era muito jovem nesse tempo. E punha-me a dançar contigo ao colo. Com Ismena, também. Ela assustava-se. Começava a chorar.Antígona – E eu ria?Ama – Rias muito. Puxavas-me pelo fato. Eu segurava-te nas mãos e dava voltas contigo assim, no ar, como se esvoaçasses. As mulheres avisavam-me de que era perigoso. Mas tu pedias mais. (CORREIA, 2006, p. 24)

 Quanto à versão morta da figura da Ama, esta

apresenta ao leitor, juntamente com a Antígona póstu-ma, comentários de extrema sinceridade, que desvendam toda a hipocrisia dos diálogos dos vivos. Seja para cumprir com uma vingança pessoal por uma vida de sofrimentos e amarguras na condição de escrava, seja porque sentia a necessidade de cuidar de Antígona, é certo que essa figura esteve sempre ao lado da jovem, até mesmo em sua deci-

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são de morrer, e que, onde a história de Antígona tem um fim, necessariamente, a da Ama também finda.

Antígona (morta) – Da tua própria vida, já não carregas nada?Ama (morta) – Não me vês tu ainda como ama? Talvez eu não tivesse mais nada que esquecer...Fui-me vingan-do. E a vingança limpa a alma.Antígona (morta) – Seguiste-me na morte para teres certeza de que eu não recuava.Ama (morta) – Segui-te porque se acabava ali o meu papel. (CORREIA, 2006, p. 51)

 3 Eurídice

Na versão original do mito de Antígona, os lei-tores são apresentados a Eurídice já em um momento fi-nal, no qual a decisão de Creonte em não sepultar Poli-nices e condenar Antígona à morte já apresenta terríveis consequências. Sua primeira aparição ocorre no palácio de Tebas, quando, ao ouvir as notícias sobre a morte do filho, pede que o mensageiro confirme o que de fato aconte-ceu. Na versão sofocliana, a rainha é apresentada com uma personalidade forte e muito reservada. Ao saber sobre o infeliz destino de seu filho, não é acometida por demons-trações públicas de dor, mas isola-se dos demais, o que representa, para o coro, um sinal de mau agouro.

Eurídice, tomada pela tristeza causada pela per-da dos filhos e pelo desgaste da vida de mulher casada,

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busca uma saída para seu sofrimento. Ela responsabiliza Creonte por sua angústia e não vê mais motivos para con-tinuar a viver. A maneira que encontra de salvar-se dessa condição é causando a própria morte (“Mensageiro – A senhora, junto do altar, com a espada afiada, deixa que as suas pálpebras façam trevas; geme sobre o destino glorioso de Megareu, morto outrora, e depois novamente pelo des-te que aqui está; depois invoca as mais terríveis desgraças sobre ti, assassino de teus filhos.” (SÓFOCLES, 1984, p. 94)), ato que se caracteriza como mais uma das desgraças que os deuses prepararam para Creonte como castigo por não cumprir os rituais sagrados após a morte do sobrinho e condenar Antígona à morte:

Tirésias – Convence-te bem de que já não verás cum-prirem-se muitas revoluções sucessivas do Sol, antes de teres dado alguém, saído das tuas próprias entranhas – um cadáver em troca de outro –, em paga de teres ar-remessado lá para baixo quem era ainda cá de cima, e de com desprezo teres encerrado num túmulo uma vida, e de conservares um cadáver que é pertença dos deuses infernais, sem a sua parte de oferenda, sem rituais, sem purificações. (SÓFOCLES, 1984, p. 85)

 

Em Perdição, Hélia apresenta uma dupla faceta dessa personagem, caracterizada pela dicotomia entre a Eurídice mãe e esposa, que cumpre seus deveres para com a sociedade, e a Eurídice mulher, que possui desejos car-nais e participa de rituais obscuros, a fim de saná-los. No papel de mãe, a rainha não se limita apenas a cuidar de seus

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próprios filhos com Creonte, mas também assume para si essa responsabilidade perante as sobrinhas, Antígona e Is-mena, quando Jocasta não mais está presente para criá-las (“Ismena – Eurídice tem sido mais terna e mais atenta do que foi nossa mãe. Cede. Se não por mim, por ela, que o merece.” (CORREIA, 2006, p. 50)). Essa substituição faz de Eurídice a figura responsável pela orientação de Antí-gona sobre a vida adulta de uma mulher, as questões do amor e do casamento:

Antígona – Diz-me. Diz com que enfeites entrançam o cabelo, com que óleos se perfumam. De que modo se deitam, lado a lado com um homem, sobre a pele de carneiro.Eurídice – Falaremos um pouco antes das tuas núpcias. É certo que me cabem as palavras da mãe. (CORREIA, 2006, p. 33)

 

Assim como em sua versão sofocliana, a Eurídi-ce de Hélia também é tomada por uma grande angústia, a da mulher que se frustrou com a vida de casada e que vive presa às amarras da boa mulher da sociedade, que se dedica ao marido, aos filhos, a sua casa, porém não pode expressar seus próprios desejos e personalidade. Todavia, contrariamente à personagem de Sófocles, a Eurídice de Perdição, já muito desgastada da vida de mulher casada, encontra, como caminho para escapar de sua angústia, não a morte, mas sim o culto a Dionísio. No culto junto das demais Bacantes, Eurídice pode deixar de ser mãe e espo-

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sa para dar escape aos seus desejos eróticos e satisfazer-se como mulher, sentindo grande prazer:

Eurídice – E arrasta-nos com ele, faz-nos dançar com os seus seguidores de pés de bode.Antígona – Enfeitiçam e assustam quando passam. Destroem tudo, nessas madrugadas. Mordem as crias, as dos animais e as próprias. Mordem-nas no pescoço e, excitadas pelo sangue, arrancam-lhe os membros. De-voram-nas e riem. São felizes.Eurídice – Ninguém tem culpa disso. É loucura que desce pelas nossas entranhas, mandada pelo deus.Antígona – Sei que as bacantes desfalecem de prazer. Do prazer entre as pernas, que faz ganir, faz estremecer o corpo como em ânsias de morte. As nobres cidadãs espojam-se no lodo. Eis o que me contaram as mendi-gas. (CORREIA, 2006, p. 38)

 

Após ser questionada pela sobrinha eufórica sobre o culto a Dioniso, Eurídice “tenta convencer Antígona de que o que afirma ter visto não passou de um sonho” (SOA-RES, 2006), porém já é tarde demais para a jovem, que busca respostas e fascina-se pela vida adulta das mulheres.

 4 Antígona

 Antígona é, sem dúvidas, a personagem que mais

difere de sua versão original dentre as aqui analisadas. Suas duas versões possuem em comum, todavia, o fato de que a construção da personalidade de ambas é resultado direto de sua vivência no exílio, tratada de maneiras distintas por Sófocles e por Hélia.

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No mito original, a Antígona apresentada ao leitor é uma mulher obstinada e de forte personalidade. Do exí-lio com seu pai, a jovem herdou uma forte ligação com a família e com as tradições, o que a leva a descumprir o édi-to de Creonte. A personagem não possui dúvida alguma sobre sua personalidade ou seus atos, ela sabe que, por ser seu dever, possui a responsabilidade de honrar sua família e obedecer às ordens dos deuses, mesmo que sua irmã não queira acompanhá-la.

De forte personalidade, Antígona sustenta seu embate com Creonte, de modo que esse conflito não abar-ca apenas a disputa entre o feminino e o masculino, mas sim entre as leis divinas e as leis terrestres.

A personagem ama, além de suas honras, a glória que seus feitos rebeldes proporcionam-na, o gigantismo que a acompanhará até seu leito de morte, muito distinto do que, para ela, foi a pequenez de sua irmã por recusar-se a ajudá-la. O fato de Antígona provocar a própria morte pode ser entendido como um último ataque a seu opo-nente, demonstrando que não aceitaria o fim que Creonte escolheu para ela, mas sim que ela própria decidiria pelo seu destino glorioso. Uma última demonstração de sua superioridade, que acabou por ditar o final ainda mais trá-gico da peça:

Ao opor-se ao édito de Creonte e ao sepultar o irmão, Antígona enceta um duplo conflito: com a polis e com Creonte. O conflito de Antígona e Creonte sustenta-se

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na convicção absoluta dos dois contrários sobre a jus-tiça dos seus deveres. Nenhum dos dois oponentes vê as conseqüências de sua extrema pertinácia: o poder da desavença entre Antígona e Creonte ganha o seu pró-prio ritmo, resultando não apenas nas suas destruições, mas também na mortífera influência naqueles que estão por mais perto e que os amam – Hemon e Eurídice.” (MANOJLOVICH, 2008)

 

Já na adaptação feita por Hélia, a Antígona que volta do exílio é uma jovem confusa que não se enquadra no círculo social no qual foi inserida, por ter ficado muito tempo em isolamento. A rebeldia e obstinação pela justiça e pela glória apresentadas na personagem de Sófocles é transfigurada, aqui, em uma espécie de transtorno psico-lógico, fruto de suas experiências no exílio. Antígona, em Perdição, parece muito mais frágil e desorientada do que na sua versão original.

O forte desejo de honrar a família não se apresenta mais como seu conflito central, substituído, agora, pelos traumas de seu tempo de reclusão (“Antígona (morta) – Recordo-me tão bem das noites do exílio. Os olhos do meu pai deitavam pus. Detestava beijá-lo. Escondia-me até que me passassem os vômitos.” (CORREIA, 2006, p. 26)) e pela intensa curiosidade pela vida dos adultos (“Antígona – Ó minha tia, ensina-me a arte das mulhe-res.” (CORREIA, 2006, p. 33)). Antígona tornou-se, nessa adaptação, uma figura ao mesmo tempo frágil, que se vê sempre sozinha, denunciada, principalmente, por sua fi-

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gura póstuma (“Antígona (morta) – Eu estava sempre em riscos de lhe cair nos braços. De lhe pedir que me pegasse ao colo. Queria-lhe mal por isso, à minha tia. Era amá-vel demais.” (CORREIA, 2006, p. 50)), e provocativa, que tenta descobrir, na relação com Hémon, as questões ainda obscuras em sua mente.

A frase “não nasci para odiar, mas sim para amar”, professada pela heroína sofocliana, foi adaptada por Hélia para “será isso o amor?”, capaz de elucidar toda a confusão pela qual a personagem passa. A relação entre o masculino e o feminino, sustentada na versão original, não está mais tão presente  na heroína atual, visto que esta apresenta uma relação da Antígona consigo mesma, da sua tentativa de descobrir-se como pessoa adulta e como mulher. Essa busca, porém, não parece apresentar resultados concretos, o que a leva a continuar suas tentativas de se encontrar e de se livrar de suas angústias, até o ponto em que ela desiste de tentar saber como teria sido seu futuro e opta pela morte.

A figura da Antígona morta, diferentemente da figura póstuma da Ama, não faz comentários com o intui-to de revelar a hipocrisia nos diálogos dos vivos, mas sim uma espécie de análise sobre suas últimas lembranças e de sua vida, como se buscasse a conclusão se a morte teria ou não valido a pena: “É preciso dizer-lhe que não avance mais, que não há glória alguma em tudo isto (...) Mas é

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preciso que ela ouça e compreenda. Este campo de flo-res nauseabundas é tudo o que há depois...” (CORREIA, 2006, p. 55).

Nessa breve análise das personagens femininas em Perdição, de Hélia Correia, foi possível perceber o quanto todas as mulheres aqui analisadas distanciam-se de suas versões originais. Destaca-se a complexidade que Hélia agrega às personalidades e aos conflitos vividos por cada uma delas, fugindo da superficialidade ao realizar a reconstrução dessas mulheres em sua peça, tornando-as mais verossímeis aos olhos da contemporaneidade.

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