Curso de Wicca - Sabats

11
Curso de Wicca - Mito e Magia © Jan Duarte 2003/2004 OS SABÁS O calendário dos Sabás Conforme dissemos, a Roda do Ano é marcada por oito pontos nodais, que reúnem os equinócios e solstícios (auge das estações) e os pontos de transição, ou início de cada uma das quatro estações do ano. Para uma compreensão melhor, vale dizer que o momento que atualmente, no calendário civil, é considerado como o início de cada uma das estações, corresponde realmente ao seu auge. Exemplificando, quando nos reportamos ao início da primavera, comumente, por volta do dia 20 de setembro, este é, na realidade, o equinócio de primavera, ou seja, quando a estação está plenamente estabelecida. Dessa maneira, teríamos a seguinte ordem para os sabás: Data Nome do Sabá Ocasião 02/02 Lughnasad ou Lammas início do outono ± 21/03 Mabon equinócio (auge) do outono 01/05 Sanhaim início do inverno ± 21/06 Yule solstício (auge) do inverno 01/08 Imbolc início da primavera ± 21/09 Ostara equinócio (auge) da primavera 31/10 Beltane início do verão ± 21/12 Litha solstício (auge) do verão Logo de início, preciso ressaltar que a ordem que descrevi acima leva em consideração o suceder das estações no hemisfério sul. A maior parte dos livros de Wicca que encontramos no mercado se baseia no hemisfério norte, uma vez que são escritos por autores americanos ou ingleses, sendo que mesmo alguns autores nacionais defendem que essa ordem deveria ser mantida, por uma questão de "tradição". No entanto, isso é indefensável, se levarmos em consideração que o principal objetivo dessas celebrações é estabelecer um vínculo, uma conexão com os ciclos naturais. Obviamente, não faz nenhum sentido essa conexão com uma natureza diferente da que nos cerca. Conforme citamos no tópico anterior, os quatro festivais que marcam o início real das estações, ou o momento de transição entre elas (Lughnasad, Samhain, Imbolc e Beltane), provém especialmente da tradição celta insular, sendo essencialmente festivais do fogo, ou festivais solares, relacionados principalmente com a figura de deuses como Lugh e Belenus. Conforme nos narra Barry Cunliffe6, no entanto, há relativamente poucas referências arqueológicas diretas a esses festivais, o que impossibilita sabermos com maior segurança como eles se

Transcript of Curso de Wicca - Sabats

Page 1: Curso de Wicca - Sabats

Curso de Wicca - Mito e Magia © Jan Duarte 2003/2004

OS SABÁS

O calendário dos Sabás

Conforme dissemos, a Roda do Ano é marcada por oito pontos nodais, que reúnem os equinócios e solstícios (auge das estações) e os pontos de transição, ou início de cada uma das quatro estações do ano. Para uma compreensão melhor, vale dizer que o momento que atualmente, no calendário civil, é considerado como o início de cada uma das estações, corresponde realmente ao seu auge. Exemplificando, quando nos reportamos ao início da primavera, comumente, por volta do dia 20 de setembro, este é, na realidade, o equinócio de primavera, ou seja, quando a estação está plenamente estabelecida.

Dessa maneira, teríamos a seguinte ordem para os sabás:

Data Nome do Sabá Ocasião02/02 Lughnasad ou Lammas início do outono± 21/03 Mabon equinócio (auge) do outono01/05 Sanhaim início do inverno± 21/06 Yule solstício (auge) do inverno01/08 Imbolc início da primavera± 21/09 Ostara equinócio (auge) da primavera31/10 Beltane início do verão± 21/12 Litha solstício (auge) do verão

Logo de início, preciso ressaltar que a ordem que descrevi acima leva em consideração o suceder das estações no hemisfério sul. A maior parte dos livros de Wicca que encontramos no mercado se baseia no hemisfério norte, uma vez que são escritos por autores americanos ou ingleses, sendo que mesmo alguns autores nacionais defendem que essa ordem deveria ser mantida, por uma questão de "tradição". No entanto, isso é indefensável, se levarmos em consideração que o principal objetivo dessas celebrações é estabelecer um vínculo, uma conexão com os ciclos naturais. Obviamente, não faz nenhum sentido essa conexão com uma natureza diferente da que nos cerca.

Conforme citamos no tópico anterior, os quatro festivais que marcam o início real das estações, ou o momento de transição entre elas (Lughnasad, Samhain, Imbolc e Beltane), provém especialmente da tradição celta insular, sendo essencialmente festivais do fogo, ou festivais solares, relacionados principalmente com a figura de deuses como Lugh e Belenus. Conforme nos narra Barry Cunliffe6, no entanto, há relativamente poucas referências arqueológicas diretas a esses festivais, o que impossibilita sabermos com maior segurança como eles se davam originalmente. Na verdade, no Calendário de Coligny, datado do século I a.C. e principal referência arqueológica à divisão celta do tempo, estão indicados apenas os festivais de Beltane e Lughnasad, o que parece indicar que, nessa época, os velhos costumes já estavam sendo abandonados na parte mais civilizada do mundo celta. No entanto, por remeterem diretamente à tradição celta - e dessa forma ter uma certa "ligação ancestral" com os fundadores - esses quatro festivais são denominados, na Wicca, de Grandes Sabás.

Os quatro outros festivais (Mabon, Yule, Ostara e Litha) - os Pequenos Sabás - parecem ser simplesmente um amálgama de diversas tradições de ritos equinociais e solsticiais, com elementos tirados de ritos nórdicos e de outras tribos bárbaras da antiga Europa, bem como de outras tradições não-européias, como a própria Páscoa judia. Como já citamos, festivais

Page 2: Curso de Wicca - Sabats

marcando os equinócios e solstícios são ritos cuja antiguidade é imensa, e são comuns a quase todas as sociedades agrícolas ao redor do mundo.

Para sermos exatos, é difícil precisar em que momento começa a haver uma sistematização desses festivais dentro da Wicca. No primeiro livro de Gardner, "Bruxaria Hoje", há referências aos sabás mais ou menos nos moldes das "reuniões de bruxas" descritas pela Inquisição, mas apenas uma breve alusão a uma cerimônia específica, em verdade um Yule, ao qual o autor teria assistido7. Obras posteriores, no entanto, como o "Oito Sabás Para Bruxas", do casal Farrar8, já trazem uma imagem acabada do que seriam essas cerimônias, o que reflete certamente a forma como as idéias de Gardner foram sendo consolidadas e outras fontes folclóricas foram incorporadas à doutrina, ao longo das décadas de 1960 e 1970, principalmente.

De qualquer maneira, vale ressaltar que, embora dentro da Wicca haja uma tentativa de resgate dos valores originais associados a essas cerimônias, elas não são, de forma alguma, estranhas ao nosso próprio calendário civil ou mesmo àquelas datas que, comumente, associamos à cristandade. Pelo contrário, tanto os sabás quanto as festas religiosas que se integraram à tradição cultural do Ocidente possuem uma base folclórica comum e significados semelhantes. O que ocorreu, na realidade, foi uma incorporação ou ainda uma "releitura" sob a ótica cristã, de datas, ritos e festividades "pagãs", como veremos a seguir.

Yule, o Solstício de Inverno

O sabá comemorado na noite mais longa do ano é o sabá do renascimento. É interessante reparar que essa época do ano, para inúmeras religiões nascidas de civilizações agrícolas, está associada ao nascimento de seu deus-solar, de alguma forma. A verdade é que a associação do renascimento à noite mais longa do ano é bastante natural, posto que ela é o ápice da estação fria e, a partir desse momento, os dias começarão a alongar-se e a natureza progressivamente se revitalizará.

No hemisfério norte, o solstício de inverno ocorre próximo ao Natal cristão. Aliás, Janet e Stewart Farrar9 usam mesmo o termo natal, ao invés de Yule. Essa data, em especial, foi uma das mais sincretizadas pela cristandade, já que podemos afirmar que a "data de nascimento" de Jesus foi convencionada para se ajustar ao solstício. Basicamente todos os símbolos associados ao Natal têm origem pagã e refletem justamente aqueles elementos naturais que permanecem vivos ao longo do inverno, ou que mantém os homens durante esse período. Assim, temos o pinheiro, que se conserva verde durante o inverno, e as frutas secas, as nozes e outros alimentos, bastante calóricos e de fácil conservação.

A celebração do Yule pode parecer dúbia, por se situar numa época do ano que incita ao recolhimento, principalmente nos lugares de clima mais frio, e ser também a alegre celebração do nascimento do Deus. No entanto, deve-se ter em mente que ela é o início de uma fase de recuperação e crescimento, e é justamente isso que se saúda: a chegada do auge do período de estagnação, numa concepção cíclica, representa que o seu fim igualmente chegará.

Um antigo costume reza que as cinzas da fogueira acesa na noite do Yule devem ser espalhadas pelos campos, o que nos traz justamente o espírito dessa celebração: o calor, simbolizado pela fogueira, está prestes a retornar e, ao espalhar as cinzas dessa fogueira, a idéia é que o sol venha fertilizar a terra, na primavera vindoura. A troca de presentes parece trazer, igualmente, a idéia de fortalecimento do espírito de coletividade, o compartilhar das reservas para a superação da fase de privações10.

Imbolc

Page 3: Curso de Wicca - Sabats

Como vimos anteriormente, os solstícios e equinócios marcam o auge das estações, apesar de serem atualmente considerados como o início destas. Assim, o sabá Imbolc comemora a chegada da primavera e o final do inverno. Temos ainda as noites mais longas que os dias, mas o ciclo de aquecimento, a metade clara do ano, já começou.

O Imbolc é um festival do fogo, representando o Deus que começa a crescer e, com o seu calor, prepara a fertilidade da terra. Há relatos de que, entre os celtas insulares, era uma data dedicada à deusa Brigid (posteriormente cristianizada como Santa Brígida), divindade do fogo, comemorada com procissões onde os participantes portavam tochas. Tradicionalmente, também, fazia-se nessa época a limpeza ritual dos locais de culto, simbolizando que as reminiscências negativas do ciclo anterior deviam ser apagadas, para que um novo ciclo de vida possa se instalar.

Em relação a este sabá, várias considerações interessantes podem ser feitas. Da deusa Brigid diz-se que teria nascido exatamente ao nascer do sol, e uma grande torre de chamas teria se elevado aos céus do topo de sua cabeça. Diz-se também que sua respiração traria nova vida para os mortos. Eis aqui claras alusões ao retorno do sol, após o inverno. É interessante também notar que aproximadamente nesta data os Astecas celebravam o seu ano-novo, onde vemos mais uma alusão a um período de reinícios. A alegria pelo final do inverno também transparecia nas Lupercalia romanas, que vieram depois dar origem ao Carnaval.

Comemorado no hemisfério norte a 2 de fevereiro, essa data ficou marcada para a cristandade como a purificação de Maria - a idéia da limpeza ritual, que se reflete no Brasil em festas como a da Lavagem do Bonfim, que ocorre aproximadamente na mesma época - e como a apresentação de Jesus no Templo (a idéia do deus-solar que deixa a infância), em mais uma tradução cristã dos ritos pagãos. O cristianismo associou igualmente a figura de Iemanjá (cuja festa acontece no Brasil em 2 de fevereiro) à Maria. Levando-se em conta que tanto Iemanjá como a deusa celta Brigid eram associadas pelos povos que as cultuavam a rios locais, esse é um interessante paralelo.

Ostara, o Equinócio de Primavera

O sabá do equinócio de primavera parece ter o seu nome derivado da Deusa Eostre, deusa saxônica da fertilidade, cujos símbolos eram o ovo e o coelho. É portanto, um festival de fertilidade, um festival de plantio, onde se pediam as bênçãos para a germinação das sementes recém-plantadas.

Pela tradição da Roda do Ano, poderia-se dizer que em Ostara anula-se de vez a imagem da Deusa como mãe e do Deus como filho. A face de mãe ou de anciã da Deusa, ou ainda a de criança virginal, que prevaleciam até aqui, é substituída pela face da donzela, pronta a assumir seus atributos sexuais, como a própria terra a ser semeada. O Deus por sua vez, encontra-se aqui na figura do jovem vigoroso, apesar de ainda não apresentar a plena força e maturidade. A duração igual de dias e noites, alcançada neste período, é mais um aspecto a ser levado em conta, visto que pode ser interpretado como o próprio equilíbrio da natureza se restabelecendo. A partir daqui, o Sol e a Terra caminharão juntos, como casal divino.

A festa cristã da Páscoa, que no hemisfério norte coincide aproximadamente com o equinócio de primavera, traz em si símbolos que pertencem tanto às tradições pagãs européias quanto à Páscoa judaica. O simbolismo do ovo e do coelho foi assimilado das tradições pagãs e por isso, hoje, parecem deslocados do ritual cristão, que nesse ponto se assemelha

Page 4: Curso de Wicca - Sabats

mais à imolação do cordeiro, típica da Páscoa judaica. Convém lembrar, no entanto, que os cristãos celebram nesta época a morte e a ressurreição de Jesus (o cordeiro de Deus), e que a lebre é um antigo símbolo de ressurreição. Da mesma forma, diz-se que Jesus morreu como Filho, tendo ressuscitado como Deus - o que tem um inegável paralelo com a situação descrita para o Deus pagão, que nesta época deixa de ser o filho divino da Deusa e torna-se seu futuro deus-consorte.

De qualquer forma, este sabá e o próximo são dos poucos que preservaram, no hemisfério sul, comemorações independentes das datas estabelecidas no hemisfério norte, o que mostra a força das tradições ligadas a eles. O equinócio de primavera, aqui, acontece em setembro, e existem inúmeras comemorações no Brasil nessa época que, de uma forma ou de outra, remetem a antigos ritos pagãos, como o próprio costume de eleger-se nas escolas uma Rainha da Primavera.

Beltane

Beltane representa a transição entre a primavera e o verão e simboliza a consumação da união sexual entre a Deusa e o Deus. Poderia-se mesmo dizer que o verão, estação da frutificação, começa a manifestar-se aqui, para atingir o seu ápice no próximo solstício. Dessa forma, toda a simbologia do Beltane tem, inegavelmente, um cunho sexual. Enquanto em Ostara a fertilidade era apenas palpável e desejada, aqui ela se transforma em ato, representando que o calor do sol penetrou na terra para nela engendrar seus frutos (plantio).

Embora diversos costumes da celebração de Beltane tenham subsistido e sido assimilados pelo ocidente cristão, as celebrações típicas de Beltane, que ocorrem em 1º de maio no hemisfério norte, foram empurradas pela cristandade para o mês seguinte, dando origem às festas juninas. As fogueiras de Beltane subsistiram nessas festas, bem como o costume de pulá-las. Os Maypoles, em torno dos quais dançava-se, tornaram-se os mastros onde colocam-se "bandeiras" dos santos católicos, costume ainda popular no interior do Brasil, e em torno dos quais dança-se a "quadrilha". Esta é, de forma inegável, uma mistura de dança circular com elementos de dança de salão francesa, e há de se notar que o elemento central sobre o qual as "quadrilhas" desenvolvem-se é o casamento. Vale dizer, ainda, que este "casamento", na versão humorística das quadrilhas, não é um casamento consensual, mas sim um casamento obrigado (e geralmente associado a uma gravidez prematura): talvez aqui tenhamos uma lembrança dos ritos sexuais de Beltane, e de uma posterior "moralização", associando o sexo obrigatoriamente ao casamento.

A adivinhação era igualmente uma prática comum nesse festival pagão, e isso manteve-se na tradição popular, pois é comum acreditar-se que as moças solteiras, nas noites de festa dos santos "casamenteiros", poderão visionar seus "futuros maridos". O método usado para isso, a visualização na água, é hoje basicamente o mesmo daqueles tempos.

Talvez esse deslocamento da data para o mês seguinte tenha origem na tradição celta que proibia casamentos no mês de maio, por ser este consagrado unicamente ao casamento da Deusa e do Deus, ou ainda às uniões sexuais "sem compromisso". Dessa forma, nada mais natural que o mês seguinte fosse dedicado aos casamentos e, posteriormente, aos "santos casamenteiros". Por outro lado, a celebração do casamento divino ficou nitidamente marcado, pois maio é hoje considerado o Mês das Noivas pelos cristãos, bem como é o mês dedicado a Maria (a esposa-divina).

Outro aspecto interessante a ser lembrado é que o 1º de maio é, hoje, comemorado internacionalmente como o Dia do Trabalho. Lembrando-se que o Beltane era um festival de plantio, a associação entre agricultura e trabalho é bastante notável, visto ter sido esta atividade um dos primeiros

Page 5: Curso de Wicca - Sabats

trabalhos organizados do homem, ou mesmo a atividade que introduziu, para a humanidade, a noção de trabalho obrigatório e sistematizado.

Litha, o Solstício de Verão

O dia mais longo do ano marca o auge do poderio do sol. Em Litha, o Deus atinge a maturidade e prenuncia o seu declínio, ao passo que a Deusa, grávida, assume a face da futura mãe. Como no solstício de inverno, o solstício de verão marca uma pausa, um momento de repouso entre as duas metades da Roda do Ano. Aqui, o período não é o repouso forçado pelo inverno, mas sim o repouso prazeroso do verão, o intervalo entre o plantio e a colheita. É de se notar que até hoje, se considerarmos os calendários escolares, teremos férias justamente nesses dois períodos (auge do inverno e auge do verão).

Segundo uma das tradições ligadas ao solstício de verão, esse seria o momento em que o Rei do Carvalho, aspecto do Deus que reinou durante a primeira metade do ano (a fase de crescimento, ou seja, do nascimento à maturidade), seria derrotado e substituído pelo Rei do Azevinho, que governará a outra metade (da maturidade à morte). Há aqui um interessante sincretismo apontado por Robert Graves, conforme citado por Stewart Farrar11: ocorrendo sempre em torno de 20 de junho, no hemisfério norte, a data deste sabá praticamente coincide com o Dia de São João Batista. É interessante notar que, segundo a mitologia cristã, João Batista, o feroz pregador, foi substituído em sua missão por "aquele que veio depois dele", ou seja, o sábio e manso Jesus. Eis aqui, portanto, uma assimilação ou um notável paralelo na doutrina cristã da derrota do impetuoso Rei do Carvalho pelo sábio Rei do Azevinho.

Lammas ou Lughnasad

O Lammas é o sabá que comemora a chegada das primeiras colheitas, juntamente com a chegada do outono. Marca, portanto, a chegada dos primeiros frutos da Mãe-Terra que alimentarão os homens, bem como a transição do Deus-Sol para o papel de protetor e provedor. Convém lembrar que o termo Lammas já é um nome um tanto moderno (e mesmo cristianizado) para esse sabá, motivo pelo qual pode-se dizer que ele foi antes absorvido do que anulado ou sincretizado, mantendo-se vivo entre a cristandade na forma de inúmeros festivais de colheita, em todo o mundo ocidental.

Entre os celtas insulares, porém, era conhecido e celebrado como Lughnasadh. Este festival era dedicado ao deus Lugh, deus guerreiro associado ao sol, que teria tido importância decisiva na vitória dos Thuatha De Dannan sobre os Fomorianos (duas tribos míticas que haveriam povoado a Irlanda). Uma das lendas associadas a Lugh conta que ele teria poupado a vida do chefe inimigo Bres, em troca do segredo de arar a terra, semear e colher. Eis aqui, portanto, uma referência direta à agricultura neste festival, mesmo em sua forma mais ancestral.

Aliás, pesquisadores independentes como Louis Charpentier e Juan G. Atienza, no que pesem as críticas que podem ser feitas a um certo diletantismo de seus trabalhos, apontam interessantes paralelos entre a figura de Lugh e numerosas divindades ou "heróis" civilizadores, como, por exemplo, o egípcio Osíris ou o grego Héracles12. Esses autores nos mostram toda uma série de similaridades entre essas divindades solares e sugerem uma ligação destas a uma suposta raça de "contrutores de megalitos" que teriam trazido as técnicas da agricultura à Europa Ocidental. A levar-se em consideração tais hipóteses, não de todo absurdas, teríamos uma forte razão para que este festival fosse um dos que subsistiram mais fortemente nas tradições populares.

Page 6: Curso de Wicca - Sabats

Uma outra tradição ligada ao Lammas era o costume de se atear fogo a uma roda de madeira e fazê-la rolar colina abaixo. Essa prática representava a descida do sol, o encurtamento progressivo dos dias, significando que o Deus entrava em sua fase de decadência.

Mabon, o Equinócio de Outono

O Mabon é o festival da segunda colheita, ou ainda do encerramento da colheita iniciada em Lammas. Aqui se colhiam os alimentos que garantiam o sustento durante o inverno, bem como se sacrificavam aqueles animais domésticos que não resistiriam à próxima estação, consumindo-se ou conservando-se a sua carne. De uma forma geral, pode-se dizer que, apesar da aproximação do tempo de privação, o Mabon seria o momento de maior fartura de todo o ano, estando as colheitas completas e o alimento estocado. Dessa forma, a celebração do Mabon resulta num agradecimento pelas dádivas proporcionadas pela Deusa e pelo Deus no decorrer do ano.

No Mabon, temos novamente o equilíbrio entre o dia e a noite, significando aqui que ambos os aspectos entram em sua fase final. O Deus encaminha-se para a morte próxima, enquanto a Deusa assume seu aspecto de anciã, preparando-se para a jornada no mundo interior, onde passará o inverno aguardando o nascimento de seu filho. Apesar da origem do nome do sabá ser celta, o folclore do Mabon remete à lenda grega de Perséfone, que conta que esta deusa passava metade do ano proporcionando a fertilidade dos campos e outra metade do ano no Hades (mundo interior) em companhia de seu marido. A época do equinócio de outono era justamente o início do período do ano em que ela morava no submundo. Na Grécia, nessa época, eram celebrados os Ritos de Elêusis, talvez o mais importante festival religioso grego, que perdurou por mais de 2000 anos.

Na cristandade, essa data é dedicada ao arcanjo Miguel, considerado pelos cristãos o vencedor de Lúcifer (o portador da luz). É interessante notar que uma das lendas celtas associadas ao Mabon contava que, no equinócio de outono, o deus Lugh (o sol, a luz) era derrotado por seu irmão gêmeo, o deus da escuridão Tanist. De uma maneira ou de outra, surge aqui a idéia da noite sobrepondo-se ao dia.

Samhain

O Samhain costuma ser considerado pela Wicca, hoje, como o sabá mais importante. Se formos buscar razões "tradicionais" para isso, dificilmente as encontraremos, uma vez que, como já dissemos anteriormente, esse festival ao menos era citado no calendário de Coligny, principal referência que temos à contagem do ano celta. No entanto, se formos buscar tais razões no simbolismo específico desta data, sua prevalência talvez se justifique.

O Samhain era o ano-novo celta. Num aspecto puramente prático, isto significava que as colheitas estavam encerradas, os animais domésticos guardados em seus abrigos de inverno, e as provisões estocadas. Um ciclo de vida estava encerrado, portanto, e restava aguardar o início do novo ciclo. No aspecto místico, no entanto, esta data é carregada de significações.

Apesar do Samhain ser celebrado como o final do ano, supõe-se que não se comemorava o início de um novo ano até o próximo Yule, haja visto esse período entre os dois sabás ser considerado como sendo um tempo fora do tempo, um período de suspensão da vida, repleto de magia e de perigos. A relação com os perigos do inverno, com o recolhimento exigido nessa estação nos países de clima frio, com a duração das longas noites invernais, é patente. O próprio nome gaélico significa, literalmente, "fim do

Page 7: Curso de Wicca - Sabats

verão", evocando o final dos dias de calor. Assim, o momento de maior fartura relativa, em todo o ano, marcava igualmente o momento de maior comedimento, já que os estoques deveriam durar até a próxima primavera.

Na noite de Samhain, considerava-se que o véu entre os mundos estaria em seu momento mais tênue, possibilitando a comunicação com os antepassados. Lanternas eram acesas e colocadas nas janelas, para guiar os que já partiram até suas antigas casas. As mesas eram postas com lugares extras para os antepassados, e comida era ofertada a estes. A própria celebração do sabá tem a característica de ser um misto de pesar pela morte e alegria pelo renascimento vindouro - refletindo o que seria o momento da morte do Deus solar e do auto-exílio da Deusa no submundo, aguardando o seu retorno.

De uma forma geral há, nesse período de inverno e nas celebrações que surgiram a partir do tema, uma característica geral de inversão, ou de subversão da realidade. Os mortos convivem com os vivos, a autoridade (simbolizada pelo poder divino) está ausente, e assim por diante. No entanto, essas características, que se encontram em todas as festividades (muitas das quais permanecem até hoje) que abrangem o período de novembro à fevereiro, no hemisfério norte, são por si só um assunto por demais extenso para tratarmos dele aqui13.

Nos atendo ao nosso ponto de interesse, essa dualidade do Samhain nos fala justamente do tema central da Wicca, da revelação do mais profundo dos mistérios. O momento da morte do Deus é o momento do conhecimento que ele gera a si mesmo, pois é ele a criança que gesta no útero da Deusa e nascerá no Yule. O simbolismo da perpetuação da vida, da cadeia circular que se auto-sustenta, da natureza que é inextinguível pois está continuamente gerando a si própria, se expressa aqui tanto no plano divino quanto no plano humano. A mensagem passada é: somos eternos pois aqueles que partiram continuam vivos em sua descendência, e poder-se-ia dizer que o encontro com nossos antepassados é o próprio encontro com nossos filhos.

Ecos desse festival estão ainda bastante presentes no imaginário popular. O Dia das Bruxas, o Halloween, tão tradicional nos países de língua inglesa, mostra-nos isso na forma de crianças fantasiadas de seres fantásticos - fantasmas - o que seria uma forma distorcida de se interpretar os antepassados mortos e mesmo, como dissemos acima, de representar as crianças como continuadoras da presença dos que se foram. Além disso, a tradição cristã associou a essa data tanto o Dia de Todos os Santos (01/10) quanto o Dia de Finados (02/10). Pode-se ver nas duas celebrações cristãs o culto aos antepassados, tanto na forma de "santos" - antepassados protetores - quanto na forma direta, ou seja: a reverência aos mortos.

A celebração dos Sabás

Independentemente do caráter simbólico de cada uma dessas celebrações, ou mesmo do fato que elas possam ser utilizadas como condutoras de um calendário litúrgico, ou seja, como bases para estabelecimento de um culto religioso, há ainda um aspecto que considero fundamental ao nos referirmos aos sabás da Wicca: seu cunho congregatório - como cerimônias de participação coletiva - e, ainda, seu caráter que poderíamos chamar de lúdico.

No Ocidente, acostumamo-nos a um formalismo religioso. É impossível negar que qualquer um de nós é herdeiro do Cristianismo, já que toda a nossa civilização se estabeleceu sobre bases cristãs. Mesmo aqueles raros que, entre nós, não possuíam pais ou avós cristãos, certamente os tinham professando alguma forma religiosa que já foi, ao longo dos últimos séculos, fortemente influenciada pela prevalência civilizatória do

Page 8: Curso de Wicca - Sabats

cristianismo. Dessa maneira, acostumamo-nos a separar o que é divino do que é profano, a separar o que é religião do que é o nosso dia-a-dia.

Nunca é demais dizer que essa não é, em absoluto, uma visão pagã da religiosidade. A crença nos seus deuses, os ritos a eles dedicados, são partes tão corriqueiras da vida de - digamos - um aborígene australiano, quanto qualquer outra de suas atividades. O formalismo excessivo, manifestado através do "tempo para o louvor", da contrição, da subserviência ou mesmo do "temor" à divindade são essencialmente características cristãs.

Se quisermos considerar a Wicca como uma forma de religiosidade pagã, ou ainda (o que seria mais apropriado) como uma forma de resgate de uma religiosidade pagã, adaptada aos tempos atuais, a primeira coisa a fazer é se libertar desse formalismo. Celebrar os sabás não é nem pode ser, de forma alguma, uma prática que incorpora um clima de profunda introjeção e introspecção, para louvar deuses todo-poderosos através de ritos pré-estabelecidos que demonstram nossa submissão e adoração a esses deuses. Se fizermos isso, estaremos apenas estabelecendo uma espécie de corruptela de uma missa católica ou de um culto protestante.

A celebração de um sabá é, antes de mais nada, uma festa. É o momento de congregação de uma determinada comunidade, em momentos específicos do ano, para celebrar seus objetivos comuns e sua integração com a natureza. Na verdade, é o momento de dizer: "estamos juntos, compartilhamos de determinados ideais e estamos felizes por causa disso". Um sabá é uma reunião de amigos e, dessa forma, é o momento de bebermos juntos, de comermos juntos, de trocarmos idéias sobre temas que nos são comuns, de privarmos de uma interação que - como nas reuniões de verdadeiros amigos - chega a ser licenciosa. É a manutenção do ciclo comunitário, daquilo que transcende a existência individual.

Embora possa haver um tema, ou mesmo um momento explicitamente ritual num sabá, isso quando muito pode ser um fio condutor para a celebração, mas nunca o motivo desta. Nesse ponto, tenho visto muito mais sentido em festinhas de Halloween em escolas do que em rituais seriíssimos de "bruxas" vestidas de preto e altamente compenetradas, condoendo-se pela "morte do deus". Estas últimas talvez estivessem mais bem ambientadas em alguma igreja, igualmente vestidas de preto e com um véu sobre o rosto, lamuriando-se em alguma novena na sexta-feira santa.

Por mais que possa soar estranho aos que buscam na Wicca uma "religião", celebrar um sabá, ou participar de um, não é muito diferente de ir a uma festa junina, ou a uma rave, ou a um baile de carnaval: afinal, todas essas manifestações derivam, de uma forma ou de outra, daquelas comemorações que deram origem aos chamados sabás. A diferença está na existência de um objetivo simbólico definido, que deve estar presente - o porquê de celebrar - e da existência de um grupo definido a ser reunido - o com quem celebrar. Satisfeitos estes dois pontos, teremos as condições necessárias para um sabá, deixando para outras ocasiões específicas aquelas reuniões que terão um objetivo "mágico" ou "ritual" mais explícito.