Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio...
Transcript of Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho ... 5.pdf · recebeu o Prêmio...
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
1
Aula 5
Análise do Filme
“Morte de um caixeiro-viajante”
O filme “Morte de um caixeiro-viajante”, de Volker Schlondorff,
produzido para a TV alemã, em 1985, e que teve Dustin Hoffmann numa de suas
melhores atuações, fazendo o papel de Willy Loman, é um filme baseado na
peça homônima do dramaturgo estadunidense Arthur Miller (1915-2005),
escrita em 1949. Vista por muitos como uma crítica cáustica do "sonho
americano" de sucesso, ela tornou Arthur Miller e o personagem principal
(Willy Loman), nomes famosos. Foi recebida com críticas entusiasmadas,
recebeu o Prêmio Pulitzer para dramas em 1949 e transformou Miller em uma
sensação nacional como dramaturgo
Através do drama de Arthur Miller, teremos a oportunidade de discutir
problemas candentes da precariedade do trabalho no capitalismo global, como a
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
2
dissiminação da implicação mercantil na relação laboral ou a constituição de
um novo paradigma de trabalhador assalariado: o proletário-mascate, elemento
compositivo do sócio-metabolismo da barbárie.
O envolvimento intenso de homens e mulheres que vivem do trabalho
com a lógica social do mundo das mercadorias, seja nas instâncias sócio-
reprodutivas, enquanto consumidores; seja na instância da produção social,
enquanto trabalhadores assalariados, implica, de forma crucial, sua
subjetividade com o fetichismo da mercadoria. Esta implicação fetichizada com
as coisas tende a desefetivar o ser genérico do homem e, portanto, o ser-
personalidade do homem que trabalha.
É importante salientar um detalhe curioso: Gregor Samsa , personagem
do clássico conto “A Metamorfose” (de Franz Kafka - 1915), que certa manhã
acordou e “achou-se em sua cama convertido num monstruoso inseto”, era um
caixeiro-viajante. Na verdade, o vendedor é um homem que trabalha envolvido
nas teias do fetichismo da mercadoria em sua dimensão candente, com aquilo
consumindo irremediavelmente seu núcleo humano-genérico.
Entretanto, além da discussão desta implicação estrutural do salariato no
capitalismo global, discutiremos através do filme (e peça teatral), um dos
elementos intrínsecos da condição de proletariedade que marca hoje o mundo
do trabalho: a deriva existencial. Ela é composta pela deriva pessoal e a deriva
profissional. Faremos a discussão da natureza da deriva existencial sob a ótica
de uma posição problemática na estrutura de “classe”: os “proletários de classe
média”, trabalhadores assalariados que cultivam a ilusão pequeno-burguesa de
autonomia laboral.
É claro que a análise critica do filme exige uma articulação cuidadosa de
elementos da particularidade de classe dos personagens – “proletários-
mascates de classe média”, com traços de sua singularidade pessoal (é a
singularidade pessoal das individualidades de classe que explicam porque, sob
determinadas condições de exploração do trabalho vivo e força de trabalho, uns
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
3
surtam, e outros, não). É a dialética entre universalidade e particularidade de
classe e singularidade pessoal que é capaz de esclarecer a candente
complexidade ontológica constitutiva das individualidades pessoais de classe,
onde o traço biográfico0-singular explica escolhas individuais e suas
conseqüências no plano sócio-ontológico.
Portanto, nossa análise crítica do filme visa desvelar a totalidade
concreta no interior da qual se insere as individualidades pessoais de classe,
totalidade concreta constituída pelas dimensões da
universalidade/particularidade de classe (capitalismo global e a condição
sociológica dos “proletários mascates”) e a dimensão da singularidade pessoal,
onde elementos da biografia como ontogênese do processo de individuação
pessoal de homens e mulheres que trabalham, e não apenas a inserção sócio-
estrutural na divisão social do trabalho, compõem o quadro explicativo da forma
de ser particular destas individualidades de classes (no caso, os personagens do
filme, com destaque para Willy Loman e seus filhos Biff e Happy).
Ora, se Willy Loman é um “proletário-mascate de classe média”, nem
todo “proletário-mascate de classe média” é Willy Loman – eis o cerne da
singularidade pessoal das individualidades de classe.
É a instância da singularidade pessoal enquanto campo histórico-
singular de ontogênese da individuação de homens e mulheres que trabalham
que explica a constituição da instância pessoal propriamente dita, que não está
desligada da história, mas que, pelo contrário a constitui, embora a história não
seja (como a instância pessoal) produto de escolhas teleológicas conscientes dos
sujeitos (Lukács observa que embora a história seja feita de escolhas humanas
baseadas em posições teleológicas, ela própria – a história – não possui uma
teleologia).
Na medida em que as individualidades pessoais são produtos do
desenvolvimento do ser social, sendo portanto participes de uma sociedade, elas
têm, como substância única, a singularidade pessoal que, enquanto tal, é
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
4
portadora da história humana como síntese de múltiplas decisões alternativas
das individualidades pessoais em condições concretas da vida social.
Uma digressão sobre a natureza do que denominamos de
individualidades pessoais de classe torna-se interessante. Primeiro, pelo caráter
contraditório da denominação (o adjetivo “de classe” tende a negar o
substantivo “individualidades pessoais”). Há uma tensão essencial que constitui
a própria natureza da individuação humana na sociedade de classe.
As individualidades pessoais se constituem no processo de
desenvolvimento da personalidade singular que é a síntese de múltiplas
escolhas ou decisões alternativas feitas no decorrer do espaço-tempo de vida
individual.
Na medida em que se amplia o campo de manobra das possibilidades de
desenvolvimento dos indivíduos humano-sociais, se colocam, cada vez mais, sob
pena de ruina, as decisões alternativas que, enquanto escolhas (ou respostas do
homem que trabalha), formam a dimensão pessoal das individualidades de
classe.
Nesse sentido, a individuação é o lócus da ação das decisões alternativas
singulares que atuam sobre a vida dos indivíduos.
A singularidade do homem singular se forma na síntese dessas múltiplas
decisões alternativas singulares, escolhas que se põem como respostas aos
momentos econômico-sociais, ou no caso das individualidades pessoais de
classe, à condição de proletariedade que emerge com a modernidade do capital.
Nesse caso, vinculamos, desde já, o desenvolvimento pessoal da individualidade
à própria condição de classe social como momento econômico-social da
temporalidade histórica da modernidade do capital.
A morfologia pessoal das decisões alternativas ou escolhas do homem
singular como um ser que dá respostas (como nos diz Lukács), implica a
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
5
apreensão da natureza das perguntas previamente formuladas na interioridade
do homem singular.
Diz Lukács: “O homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na
medida em que - paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção
crescente - ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios
carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los; e quando, em sua resposta
ao carecimento que a provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais
mediações, freqüentemente bastante articuladas. De modo que não apenas a
resposta, mas também a pergunta é um produto imediato da consciência que
guia a atividade; todavia, isso não anula o fato de que o ato de responder é o
elemento ontologicamente primário nesse complexo dinâmico.” (o grifo é
nosso).
Embora as respostas sejam o ato ontologicamente primordial ou o
elemento ontologicamente primário no complexo dinâmico do trabalho que
funda o ser social (o que dura são as respostas dadas), as perguntas
previamente formuladas, oriundas de generalizações sobre seus próprios
carecimentos, constituem a substância da singularidade do homem singular.
As perguntas como generalizações de seus próprios carecimentos (o que
pressupõe um desenvolvimento da linguagem), constituem o campo de
significações e léxico de sentidos que as individualidades pessoais utilizarão
para se apropriar do produto das respostas ou decisões alternativas.
Enquanto animal simbólico, o homem singular se apropria das suas
experiencias pessoais com um conjunto complexo de significações herdadas do
passado ou re-significadas no presente, tanto na particularidade da cultura, no
interior da qual o homem ou a mulher que trabalha estão subsumidos; quanto
na singularidade de sua ontogênese única no grupo familiar primordial - todas
elas marcadas pela condição histórica de classe social.
Assim, pode-se dizer, num primeiro momento, que a singularidade do
homem singular se constitui através das respostas – ou escolhas – onde as
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
6
decisões alternativas são tomadas sob pena da ruina. Enfim, a necessidade ou
carecimentos os impulsionam a escolher entre alternativas concretas. Mas, na
medida em que o homem é um ser que dá respostas, ele é um ser que formula
perguntas. Aliás, ele só dá respostas na medida em que formula previamente
perguntas que generalizem – no plano da linguagem – seus carecimentos.
Portanto, a singularidade do homem singular se constitui não apenas
pelas escolhas que objetivamente ele toma e sua vida cotidiana, mas pelas
perguntas – permeadas por um campo de significações/re-significações e um
léxico de sentidos – que subjetivamente, na interioridade do seu ser, formula no
momento prévio às respostas dadas.
Embora – objetivamente – no plano ontológico, o homem singular seja
em-si, a síntese das múltiplas decisões alternativas tomadas no decorrer de sua
vida pessoal, das mais insignificantes às mais cruciais; subjetivamente – e aqui
trata-se da singularidade do homem singular, ele é também – na mesma
medida – o conjunto herdado (ou apropriado/re-significado) de elementos
simbólico-ideais (ideologias ou utopias) que dão sentido ou significações ao
produto dessas múltiplas escolhas tomadas. Como disse William Shakespeare,
numa de suas peças clássicas – “A Tempestade” (1611), "We are such stuff as
dreams are made on." (isto é, "somos da mesma substância que os sonhos.")
Jean-Paul Sartre, filosofo marxista existencialista, observou, certa vez,
que “o importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos
fazemos do que os outros fizeram de nós”. Isto é, o importante não é apenas o
que somos efetivamente por conta das decisões alternativas tomadas, mas sim
também, o que vamos fazer com aquilo que fizeram de nós, ou seja, como nos
apropriamos – no plano subjetivo-valorativo – daquilo que efetivamente nos
tornamos.
Portanto, no plano da singularidade da individualidade pessoal de classe,
é importante não apenas apreender aquilo que elas são em-si efetivamente, mas
também o que elas pensam (ou imaginam) ser para–si. O que significa, nesse
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
7
caso, levarmos em consideração sonhos, expectativas e utopias de classe, não
apenas no sentido sociológico propriamente dito, mas no sentido profundo que
eles possuem para a interioridade do ser singular em sua unicidade.
Eis a natureza do processo de transformação da singularidade em
personalidade. Na verdade, o homem singular forma a sua personalidade
humana através das respostas dadas por ele, em si e para si, às experiencias
vividas (sem desconsiderar, como salientamos acima, a cadeia de mediações
lingüísticas que constituem as perguntas previamente formuladas que
generalizam seus carecimentos).
Singularidade
Personalidade
É claro que a personalidade, com toda sua problemática, como produto
do desenvolvimento da singularidade do homem singular, é uma categoria
social. Ela expressa um complexo singular que embora não possa ser reduzida à
pura interioridade do sujeito – pois ela é permeada de objetivações sociais –,
possui como elemento mediativo fundamental, no plano da interioridade do
sujeito, a subjetividade em suas instâncias intra-psiquicas (consciencia,
inconsciência e pré-consciência).
Nesse caso, tem-se a interação concreta e complexa entre o que Marx
denominou de objetivação e exteriorização. A primeira (a objetivação), dizendo
respeito a valores sociais introjetados/socializados ou formativos/conformativos
da personalidade humana; a segunda (a exteriorização), dizendo respeito ao
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
8
modo de apropriação pelo sujeito, em sua interioridade singular (mediado
pelas instâncias intrapsiquicas), destas objetivações sociais dadas.
Lukács observou que o desenvolvimento das capacidades humanas não
produz obrigatoriamente aquele da personalidade. Isto é, a objetivação pode
implicar uma interação problemática com a exteriorização. Aliás, o
desenvolvimento da singularidade do homem singular – mediado pelo
desenvolvimento social do capital – tende a produzir personalidades
problemáticas ou personalidades estranhadas cuja mediação intrapsiquica está
subsumida à instancia do inconsciente.
Enquanto categoria histórico-social – e não onto-biológica, como sugere
o freudismo – o inconsciente é uma formação intrapsiquica da exteriorização
que sob o estranhamento do capital tende a aparecer de forma mistificada
(pode-se considerar Sigmundo Freud é o “Adam Smith da Economia Politica da
subjetividade burguesa” – onde, segundo ele, o inconsciente tende a aparecer
como um dado natural do homem e não como uma formação intrapsiquica
histórico-concreta).
Um homem singular submerso, em sua interioridade/exterioridade, nas
formações do inconsciente/valores-fetiches ou sonhos e utopas de mercado,
tende a obstaculizar, em si e para si, o desenvolvimento da sua personalidade
humana. Eis o sentido do estranhamento para Lukács,
Assim, individualidades pessoais de classe tendem, na medida em que
estão subsumidas à “classe” do proletariado ou condição de proletariedade,
negar (no sentido processual), a dimensão pessoal da individualidade. Isto é, o
modo de produção capitalista tende a produzir individualidades
despersonalizadas ou personalidade-simulacros em processo de desefetivação,
cuja resistência – no plano da legalidade da individuação – tende a explicitar-
se, sob determinações, como adoecimento.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
9
Tipos da forma-resistência
Resistência politico-social
Resistência pessoal
A categoria de resistência não é apenas uma categoria politico-social,
mas também uma categoria ontológico-moral, colocando-se, deste modo, como
resistência pessoal à dissolução, no plano da singularidade do homem singular,
do núcleo humano-genérico (trabalho vivo),
Ocorre resistência pessoal porque há – no plano do ser social – um
campo de manobra objetivo de possibilidades de realização concreta do ser
humano-genérico ou desenvolvimento das capacidades humanas. Deste modo, a
resistência pessoal possui um lastro objetivo-concreto dado pela dimensão da
sociedade como promessa onde se coloca – no plano espectral - a riqueza do
possivel (em contraste com a miséria do presente).
Na medida em que a dimensão da sociedade como promessa – a
genericidade em-si do homem – permeia a singularidade do sujeito de forma
ineliminavel, sob as condições do trabalho estranhado e estranhmento social,
ele tende a resistir, consciente ou inconscientemente, à sua degradação
humano-genérica.
O capitalismo, incapaz de realizar a promessa da genericidade humana
em si e para si, tende a potencializar meramente as capacidades singulares, o
que leva ao aviltamento e desfiguração da personalidade do homem. Essa
potencialização das capacidades singulares significa a manifestação de formas
de “personalidades particularistas” (onde o adjetivo “particularista” tende a
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
10
negar o substantivo “personalidade humana”). Assim, emerge o homem
burguês - homem singular particularista, homem despersonalizado em si e para
si.
Lukács observa na “Ontologia do ser social” que o desenvolvimento
capitalista é o momento do desenvolvimento histórico do homem em que se
produzem ou se colocam em si, necesidades sempre mais social.
Uma das necessidades sempre mais social – que se coloca como
carecimento radical – é a necessidade de interação humana, expressa na
socialidade enquanto relação com o Outro como Próximo. O capitalismo tende a
reduzir as necessidades humanas às necessidades reprodutivo-naturais, não
impulsionando-as para uma elevação das individualidade a um plano
compativel com o desenvolvimento das capacidades alcançadas até o momento.
Ora, estão colocadas, objetivamente, como traço ineliminável do processo
civilizatório, necessidades cada vez mais social – necessidades como
carecimentos radicais que são “negadas” pelo capitalismo, no sentido de que ele
as reconhece, ao mesmo tempo que as inverte e as perverte.
Como o sistema do capital é incapaz de integrar, em si e para si, as
necessidades cada vez mais social, isto é, os carecimentos radicais (“radicais” no
sentido de que a raiz é o próprio homem como ser social), o capitalismo as
manipula. Na verdade, a dinâmica da manipulação é explicada pela
necessidade sistêmica do capital tratar com carecimentos radicais ou
necessidades cada vez mais social incapazes de serem intergradas pelo
sóciometabolismo do capital.
A manipulação implica inversão/perversão ou aviltamneto – isto é, o
desfiguramento do que é incapaz de ser integrado no sentido de compor o
sistema de valores da dinâmica social burguesa ou realização das promessas
contidas nos valores vislumbrados.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
11
De fato, pode-se “integrar” as necessidades cada vez mais social ou
carecimentos radicais, cujo núcleo efetivo é a socialidade radical, apenas
reduzindo-as e desintegrando seu contéudo valorativo (o Outro deixa de ser
Próximo e aparece apenas como meio de realização de finalidades
particularistas).
Além disso, na medida em que se mercadorifica (ou aparece como
produto-mercadoria no mercado) opera-se uma suposta integração de
necessidades cada vez mais social. Ora, a forma-mercadoria é a forma
adequada para a manipulação de carecimentos radicais, o que explica porque o
capitalismo manipulatório tinha que assumir a forma do capitalismo
neoliberal onde todo poder é dado ao Mercado.
Portanto, estar alienado, no sentido marxiano, é estar fora do complexo
do ser-homem (do ser social ou do ser-personalidade) que se tornou possivel no
plano do gênrro humano ou genericidade humana em si.
O estranhamento é produto de um deslocamento ocasionado pela
relação-capital que “des-projeta” as individulaidades pessoais de classe para
aquém de suas possibilidades concretas no plano do gênero humano.
Esse deslocamento histórico – que ocorre, portanto no plano da
temporalidade histórica do capital – possui implicações categóricas no plano
das individualidades pessoais de classe (por exemplo, por meio das formas de
desefetivação humano-génerica que se manifestam nos adoecimentos do
homem singular ou ainda por meio do que denominamos de “explicitações
espectrais” de vários tipos que permeiam o imaginário social).
Ora, no filme “Morte de um caixeiro-viajante”, Willy Loman é um homem
singular em processo de deseftivação humano-generica. Loman é o homem
burguês, uma individualidade pessoal de classe imerso na deriva existencial.
Para que possamos compreender a deriva existencial de Willy Loman
torna-se necessário articular elementos da universalidade/particularidade de
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
12
classe (que iremos explorar ao tratarmos do paradigma salarail do proletário-
mascate) com elementos da singularidade pessoal (traços da sua ontogenese
pessoal marcado por situações únicas de uma singularidade obstaculizada por
formações inconscientes que impediam o desenvolvimento da sua
personalidade humana).
Apesar disso, Willy Loman resiste – pessoalmente. Temos no filme de
Volker Schlondorff , vários exemplos de resistências pessoais – com destaque
para Willy e Biff Loman. Menos talvez, para Happy Loman, que escolhe
“integrar-se” ao sistema, manipulando seus algozes. Na medida em que Willy
Loman submerge na deriva pessoal, explicita seus sonhos e utopias pequeno-
burguesas e seus impasses no plano da socialidade e frustração afetivo-familiar.
Ao deslocar-se do complexo do ser-homem ou ser-personalidade, Willy
Loman, como personalidade tipica do drama realista, explicita a miséria social
da sociedade burguesa. A miseria de Willy Loman é a miseria do homem
burguês, embora nem todo homem burguês seja Willy Loman.
O filme começa com Willy Loman dirigindo seu veículo numa noite de
densa escuridão. Ele é um vendedor cansado, que fixa seu olhar adiante,
buscando se orientar na estrada. As viagens tornaram-se um fardo pesado para
Willy Loman. Na cena de abertura, percebemos tão-somente, de imediato, os
faróis do carro. Willy Loman é um caixeiro-viajante, cansado de viagens, prestes
a perder o emprego, e com sérios problemas de relacionamento com o filho mais
velho, Biff, jovem desempregado e sem perspectivas de futuro. Willy Loman
está em franco processo de autodestruição pessoal, imersos em fantasmas do
passado.
A crise do trabalho de Willy Loman explicita a condição de
proletariedade no qual está imerso. A deriva existencial é um sintoma da
despersonalização. Ele não consegue dar uma resposta à desefetivação
humano-genérica posta pelo trabalho estranhado naquelas condições concretas
(talvez porque seja incapaz de formular as verdadeiras perguntas como
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
13
generalizações de seus carecimentos radicais – Willy Loman está implicado com
ilusões pequeno-burguesas e possui uma auto-estima danificada).
Mesmo tendo relativa autonomia em sua atividade de caixeiro-viajante, o
velho Willy Loman, no momento crucial em vai barganhar melhores condições
de trabalho, no trato individual com a chefia, verifica a dureza do mundo do
salariato. É apenas um mero empregado subalterno que deve se submeter as
diretrizes gerenciais.
Como salientamos na aula 2, o modo de produção capitalista surge
constituindo uma condição existencial histórico-particular: a condição de
proletariedade, que é a condição de homens e mulheres despossuidos dos meios
de produção da vida social, ineridos numa relação social de subalternidade
estrutural e obrigados a vender sua força de trabalho. A condição de
proletariedade implica uma série de atributos existenciais das individualidades
pessoais de classe que nela estão inseridas.
Traços existenciais da condição de proletariedade
Subalternidade
Acaso e contingencia
Insegurança e descontrole existencial
Incomunicabilidade
Deriva pessoal e sofrimento
Risco e periculosidade
Invisibilidade social
Experimentação e manipulação
Prosaísmo e desencantamento
Corrosão do caráter
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
14
Sob o capitalismo, o trabalho assalariado é um trabalho heterônomo que
pode assumir a forma de emprego – onde o operário, empregado ou servidor
público obedece a um patrão público ou privado – ou ainda a forma de trabalho
por conta própria, onde o trabalhador é “patrão de si mesmo” (embora esteja
subsumido às condições do mercado).
Tanto a forma-emprego quanto a forma-trabalho por conta própria são
modos de trabalho heteronomo ou trabalho assalariado, na medida em que o
homem que trabalha está subsumido ao capital, seja numa relação de
exploração ou relação de opressão/dominação/espoliação.
Mesmo o “trabalhador por conta própria” que aparece como trabalhador
“autônomo” está efetivamente subsumido às condições do mercado e à lógica do
capital. Ele não deixa de ter um patrão – a si mesmo, obrigado por si a
submeter-se às leis do mercado.
Portanto, a forma-salariato é a forma social da heteronomia do trabalho
sob o modo de produção capitalista. A categoria de trabalho assalariado diz
respeito a todas as formas de subalternidade estrutural do trabalho ao capital,
seja como trabalho assalariado propriamente dito, numa relação de emprego,
seja como trabalho assalariado “excentrico”, numa relação de trabalho por conta
própria
A relação salarial de emprego se caracteriza pela
dependência diante de um patrão, persona do capital (pode ser um
capitalista individual ou um capitalista anônimo). É a forma heterônoma
clássica que constitui o empreendimento capitalista. Caracteriza-se pela
submissão do operário, empregado ou servidor público a uma divisão
hierárquica do trabalho.
A relação salarial do trabalho por conta propria se
caracteriza pela dependência diante de condições de mercado. O homem
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
15
que trabalha por conta própria é “patrão de si mesmo”, submetido às leis
do mercado. Preserva a ilusão de autonomia pessoal e independência
laboral.
O capitalismo em sua origem histórica, enquanto as relações de mercado
não dominavam, em larga medida, o metabolismo social, mantinha espaços de
autonomia laboral para “empreendedores por conta própria”. Nas áreas de
expansão, a idéia de autonomia pessoal possuía efetividade social. Na medida
em que o capitalismo concorrencial dá lugar ao capitalismo monopolista,
estreitam-se os espaços de “trabalho autônomo” e impõe-se as relações salariais
propriamente ditas .
O caixeiro-viajante é um trabalhador-vendedor implicado numa relação
salarial de emprego que possui traços de trabalho por conta própria, tendo em
vista que, em sua origem – e em certos casos – o vendedor de mercadorias era
um trabalhador por conta própria (era o mascate tradicional que comprava e
revendia no mercado).
Mas sob o capitalismo monopolista, a profissão de caixeiro-vajante
altera sua morfologia laboral: ele se torna cada vez mais um empregado das
grande empresa de venda ligada a grupos industriais – torna-se um empregado
de vendas. Apesar disso, preserva os traços do empreendedor “autônomo”
desvinculado do controle intrínseco ao emprego propriamente dito e cujo
talento pessoal torna-se relevante para seu desempenho produtivo.
Na medida em que se desenvolve, o capitalismo mundial torna-se cada
vez mais a sociedade das mercadorias. As individualidades pessoais de classe
tendem a se tornarem implicados de forma intensa (e extensa) com o mundo
das mercadorias, seja nas relações de consumo ou nas relações de trabalho e
emprego. Observou Marx:
“A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista
aparece como uma imensa coleção de mercadorias e a mercadoria individual
como sua forma elementar.” (Karl Marx, O Capital)
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
16
Um dos traços inegáveis do precário mundo do trabalho no século XXI é
a disseminação das implicações laborais de cariz mercantil com o surgimento
de um contingente imenso de trabalhadores vendedores de mercadorias e,
portanto, imersos nas contingências do mercado. Surge o que poderíamos
denominar de proletariado-mascate, um imenso contingente de trabalhadores
assalariados vendedores de mercadorias e prestadores de serviços como
mercadorias dos mais diversos tipos.
Todos nós nos tornamos vendedores de produtos-mercadoria. Por
exemplo, a epigrafe da peça “O sucesso a qualquer preço”, de David Mammet -
“Always be closing” (algo como “sempre esteja fechando um negócio”) é a
máxima do caixeiro-viajante que expressa a condição do tempo de vida tornado
tempo de trabalho do “proletário-mascate”
Sob o capitalismo global, as implicações laborais de cariz mercantil
assumiram proporções inauditas no seio do mundo do trabalho. O vendedor de
mercadorias ou representante comercial aparece diante de nós,
presencialmente e virtualmente, por meio das novas tecnologias de informação
e comunicação. A atividade de venda confunde-se com o serviço de marketing e
propaganda. Na TV ou Internet nos deparamos com novas mercadorias sendo
exibidas por algum proletário-mascate.
Com a terciarização do mercado de trabalho, ampliaram-se, no setor
formal e informal da economia capitalista, atividades de serviços ligadas às
áreas de vendas. Na verdade, muitos serviços possuem vínculos orgânicos com a
atividade industrial propriamente dita. Os ditos “serviços” são o modo de
manifestação da industrialização universal. Enfim, vivemos hoje, a lógica do
capital industrial sob a forma de uma “sociedade de serviços”.
Diante do sistema do capital imerso numa crise de superprodução e de
subconsumo, a atividade de venda tornou-se uma atividade crucial. Ela tornou-
se uma atividade central no capitalismo mundial em sua fase de crise estrutural,
com a venda se antecipando à produção. Por exemplo, o sistema toyotista
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
17
incorpora o princípio do estoque mínimo e do just-in-time, onde a venda se
confunde com a produção de mercadorias. Deste modo, o mundo do trabalho
tende a assumir a feição de um mundo de vendedores de mercadorias.
A crise do emprego clássico devido a corrosão do estatuto salarial
tradicional do mundo do trabalho, expele um imenso contingente de
subempregados que buscam por meio das atividades de venda ou de prestação
de serviços dos mais diversos tipos, estratégias de sobrevivência pessoal
enquanto individualidades de classe.
A instauração da nova precariedade do mundo do trabalho através da
constituição do “proletário-mascate”, vincula-se às múltiplas determinações no
campo da lógica organizacional da produção capitalista (o toyotismo) ou da
lógica sistêmica do capital com sua crise de superprodução e subconsumo
endêmico.
A venda de mercadorias não é tarefa apenas dos tradicionais
comerciantes ou comerciários ligados diretamente às áreas de venda ou de
prestação de serviço. Ela mobiliza o corpo da empresa, alterando o perfil de seus
empregados. Por um lado, a base operária é “enxuta” por meio de constantes
downsizing industriais. Por outro lado, amplia-se a rede de empregados
administrativos envolvidos direto ou indiretamente com as atividades de venda
e planejamento.
Devido a terceirização, muitos operários e empregados tornaram-se
meros “prestadores de serviços”. Sob a alcunha de “trabalhadores autônomos”,
são verdadeiros proletários-mascates, reproduzindo – na tênue linha de
demarcação entre trabalho produtivo/improdutivo, o trabalho abstrato virtual.
É o caso, por exemplo, dos camelôs e dos trabalhadores que vendem novos
serviços que surgem das necessidades sociais supérfluas originárias do
capitalismo desenvolvido.
Por exemplo, vejamos ainda o caso das atividades dos trabalhadores
bancários, principalmente aqueles ligados ao atendimento do público. O
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
18
bancário tornou-se hoje um executivo de vendas de produtos financeiros do
banco. Inclusive, a remuneração flexível do bancário incorpora uma parte de
comissões de vendas. Ele tornou-se um “mascate financeiro”. É claro que não
possui autonomia pessoal, nem circula pelos espaços sociais (como o velho
mascate de outrora). Entretanto, o bancário está cada vez mais envolvido em
oferecer e vender produtos e serviços financeiros dos mais diversos tipos (de
títulos de capitalização à seguros de vida). Essa atividade cotidiana recorrente
tende a comprometer a subjetividade do trabalho vivo.
É importante salientar que a ampliação exacerbada da implicação
laboral de cariz mercantil se origina de uma sociedade capitalista que se
desenvolve ampliando à exaustão, a mercantilização das relações sociais. Deste
modo, de alguma forma, se a mercadoria e sua lógica fetichizada penetram,
cada vez mais, nos poros sociais, erigindo, em torno de si, uma aura de
necessidade de consumo, precisa-se de alguém para suprir tal necessidade (com
sua respectiva mercadoria). E de repente, de algum modo, em algum lugar, nos
tornamos vendedores de alguma coisa-mercadoria
Ora, o ato de venda é um ato de investimento libidinal. O homem que
trabalha com vendas mobiliza a integralidade da sua personalidade no ato de
venda. Corpo e mente se entregam à realização da forma-mercadoria. A
inversão fetichista (o que é humano se coisifica e as coisas se humanizam) se
transfigura noutra inversão homóloga: a realização da mercadoria é a
irrealização da individualidade pessoal subsumida à condição de classe.
A prática social mercantil, ao tornar-se estruturante da vida cotidiana,
penetra no mundo do trabalho, articulando novas formas de precarização do
trabalho vivo, comprometendo, deste modo, a subjetividade do homem que
trabalha, envolvendo (e manipulando) a subjetividade complexa, na medida em
que o capitalismo do século XXI é um capitalismo desenvolvido que ampliou as
possibilidades concretas de individuação social. Esta é uma das formas de
“captura” da subjetividade do trabalho e um dos nexos mais amplos do
estranhamento que é intrínseco ao sóciometabolismo da barbárie.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
19
Ora, o homem que trabalha com vendas compromete mais ainda a
dimensão subjetiva do trabalho vivo e da sua força de trabalho. Eis o elemento
decisivo da mudança qualitativa da atividade proletária sob o capitalismo
global. Por isso, a ampliação das implicações mercantis não apenas no seio da
esfera de circulação, mas nos próprios interstícios da produção, com uma
produção de mercadorias cada vez mais implicada com a atividade de venda em
si, significa que o capital se apropria, de forma intensa - e qualitativamente nova
- da subjetividade complexa do trabalho vivo. O trabalhador assalariado - ou o
proletário que se diz “prestador de serviço” - está imerso na lógica do produto-
mercadoria.
Nesse caso, a reificação dissemina-se com mais intensidade e amplitude.
Ao vender mercadorias, o trabalhador assalariado ou “prestador de serviço” (o
que denominamos de “proletário-mascate”), vende não apenas um produto, mas
vende a si próprio, a imagem com suas disposições anímicas e afetivas.
Ao incorporar-se na “lógica do produto-mercadoria” por meio da
atividade de venda, o “proletário-mascate” tende a sedimentar um grão de
consentimento à ordem sóciometabólica do capital. O reverso subjetivo da
implicação estranhada é a proliferação das “doenças da alma”, com destaque
para o estresse em suas múltiplas manifestações derivadas. Sob o capitalismo
global, a maior incidência das doenças do trabalho dizem respeito à mente e não
só ao corpo.
Enfim, na época de sua crise estrutural, o capital fechou o cerco à
personalidade viva do trabalho, cuja implicação estranhada reverbera em
sintomas psicossomáticos. Por isso, dissemina-se em nossa época, as mais
diversas formas de literatura de auto-ajuda ou atividades de lazer com
conteúdos de (auto) agressividade. Uma das formas de precarização do trabalho
é a precarização da subjetividade do trabalho vivo com implicações profundas
na sociabilidade social. Ela é um dado objetivo da barbárie social.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
20
A profissão do trabalhador de vendas assume diversas configurações
sociais no decorrer do desenvolvimento capitalista. Por exemplo, um caixeiro-
viajante – como Willy Loman – é o vendedor ou representante comercial ligada
a grandes empresas que ainda guardam o sonho de autonomia pessoal no
processo de trabalho de venda.
Mas, na medida em que se amplia o poder do capital monopolista,
aumenta o controle gerencial sobre a atividade do vendedor. Impõem-se metas e
técnicas de venda. Restringe-se - embora não se possa suprimir - o espaço do
talento pessoal e adota-se novas práticas de manipulação. Nesse momento, o
profissional torna-se um mero empregado (“proletário-mascate”) imerso numa
relação salarial.
A deriva profissional de Willy Loman é, num primeiro momento, a
desilusão do homem que trabalha desefetivado em seus sonhos de ser um
profissional autônomo de sucesso. Enquanto o irmão mais velho, Benjamin
Loman, tornou-se um desbravador das fronteiras de expansão capitalista,
enriquecendo-se com minas de ouro na África (o herói colonizador do
capitalismo em ascensão histórica), Willy Loman escolheu ser um vendedor de
mercadorias, preenchendo assim sua necessidade de interação social por meio
da afirmação pessoal com venda de mercadorias. Tornar-se um caixeiro-viajante
sognifica desbravar um espaço aberto do talento profissional no limite do
trabalho heterônomo, onde seus constantes deslocamentos de cidade em cidade,
distante do olhar disciplinar da chefia criava um halo de autonomia laboral,
além de simular o sonho do pioneiro que desbrava o Novo Mundo (Willy Loman
era empregado da grande empresa de vendas, mas, na origem, mantinha
relações pessoais com a chefia da corporação).
Na sociedade burguesa que emerge sob a crise do processo de
expropriação primordial (e sistêmica) do trabalho vivo, na medida em que
avança o poder social do capital monopolista, abre-se uma tensão crucial entre o
avanço paulatino da condição de proletariedade – com o processo de
proletarização (a transformação de pequenos proprietários da agricultura ou
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
21
comércio ou inclusive profissionais liberais em proletários assalariados) e a
preservação, no plano da consciência social e do processo de socialização dos
pequenos proprietários, do sonho de autonomia laboral, ligada a idéia do
trabalho por conta própria, onde não existe a presença do patrão. É o sonho
pequeno-burguês do pequeno negócio, utopia laboral vinculada a etapas
pretéritas do capitalismo concorrencial, mas sempre reiterada efetivamente, a
cada momento, pelo capital (principalmente hoje devido a crise do emprego
capitalista).
Sob o capitalismo monopolista, torna ilusão passadista o que antes era
mero sonho. A ilusão da autonomia laboral nos casos do trabalho por conta
própria – onde o homem que trabalha é “patrão de si mesmo” - esquece que a
presença do capital se dá através dos constrangimentos de mercado. Muitas
vezes, o “patrão interior”, que está dentro de nós como persona do capital, é
mais exigente – e perverso – que o “patrão exterior”.
Ora, o sonho de autonomia laboral é ideologia-sintoma da
opressão/dominação do capital sobre as individualidades pessoais de classe, que
reagem, no plano contingente (no sentido do modo de resistência pessoal,
tratado acima), elaborando para si, a utopia da autonomia laboral. Por trás
desta ideologia-sintoma, existe o “núcleo racional” da resistência humano-
pessoal à desefetivação do ser genérico do homem.
A “classe” do proletariado é constituída por múltiplas frações de classe
que cultivam determinados valores, ideologias e utopias de classe. As inserções
materiais diferenciadas na divisão social do trabalho, no tocante à ocupação e
qualificação, status e prestígio social, propiciam múltiplos níveis de
consciência social, chegando alguns grupos sociais a terem maiores
possibilidades concretas de consciência de classe em si e para si. Na verdade,
algumas frações do proletariado – com destaque para os “proletários de classe
média” - tendem a cultivar valores, ideologias e utopias pequeno-burguesas.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
22
A origem de classe pequeno-burguesa, no tocante a experiencia de
socialização, contribui para a incrustação de valores, ideologias e utopias
“estranhas” à posição objetiva de classe do proletariado. Por exemplo, um
homem proletário, trabalhador assalariado, operário ou empregado de grande
empresa, filho de família pequeno-burguesa, cuja socialização se deu por meio
da apropriação de valores, ideologias e utopias pequeno-burguesas, tende a
incorporar, valores estranhos à sua posição objetiva presente de classe social
(ele incrustará em seu campo de mediação lingüístico, a visão de mundo
pequeno-burguesa, que irá determinar as perguntas formuladas como
generalizações de seus carecimentos, em face das escolhas como respostas às
decisões alternativas).
Nesse caso, ocorre uma tensão problemática entre a origem pequeno-
burguesa e a presente condição de proletariedade (o que não significa que, sob
certas circunstancias históricas, o conflito interior não possa ser resolvido pela
atualização da consciência social adequada à classe a qual efetivamente
pertence). Esta é a tensão problemática (e dilacerante) entre passado e
presente, que verificamos na deriva profissional de Willy Loman.
Os Estados Unidos da América se constituíram cultivando, para um largo
extrato do proletariado (e campesinato) europeu e asiático que migrou para este
país nos seculos XIX e século XX, o sonho da liberdade – isto é, o sonho do
pequeno negócio ou pedaço de terra onde homens e mulheres poderiam ser
“patrões de si mesmos”. A saga da colonização ligava-se à socialização pequeno-
burguesa com os valores heróicos do self-made man.
No século XX, o avanço do capital monopolista criou uma tensão
problemática com os valores, ideologias e utopias pequeno-burguesas cultivadas
pelo “sonho americano”. O capital monopolista semeia a proletariedade e nega a
autonomia laboral. No limite, utiliza-se dos símbolos e ideologias do “sonho
americano” para manipular a consciência social, mas a realidade social do big
business se impõe sobre o pequeno negócio e os anseios do little man.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
23
O capitalismo monopolista, que se desenvolve no século XX, amplia a
condição de proletariedade moderna. É constituído pelas grandes empresas
oligopolistas, trustes e carteis que se incrustam no Estado, tornando-o fiel,
como forma politica de si, aos interesses materiais do big bussiness.
A consciência social é convulsionada, por um lado, pelo processo de
proletarização paulatino que tende a transformar a velha pequeno-burguesia
em proletários assalariados. Por outro lado, pela preservação de valores,
ideologias e utopias pequeno-burguesa em camadas sociais proletárias, mas de
origem pequeno-burguesa (velha pequeno-burguesa ) ou novas camadas
pequeno-burguesas vinculadas ao capital monopolista – e portanto imersas
numa proletariedade problemática.
Os sonhos pequenos-burgueses sobrevivem à realidade social do capital
monopolista que se impõe sobre os destinos pessoais. Muitas vezes, eles são
manipulados pelos interesses políticos do grande capital em sua luta social (e
politica) contra a classe do proletariado.
O avanço do processo de proletarização, que significa para largas
camadas sociais de inserção e origem pequeno-burguesas, a perda da pequena
propriedade de comércio ou terra, ou ainda a perda de carreiras ligadas às
“profissões liberais”, possui implicações ideológico-pessoais. Ela se traduz, em
algumas camadas sociais, num desencanto contingente com o mundo burguês,
que se explicita, muitas vezes, na cosmovisão trágico-conformista de fundo
irracionalista.
Ora, a proletarização cria seu caldo de “cultura metafisica”. Ao mesmo
tempo, as novas camadas pequeno-burguesas, que se distinguem da velha
pequena-burguesia por estarem inseridas no mundo social do capital
monopolista, e portanto, viverem uma proletariedade problemática, têm, em si,
a candente contradição entre valores, ideologias e utopias pequeno-burgueses e
a realidade perversa da proletariedade moderna. Oscilam entre um encanto
fetichista com o mundo burguês e suas ilusões de realização pessoal, e o
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
24
desencanto íntimo de cariz contingente e muitas vezes, não-consciente, com o
mundo social do capital e seus fetichismos sociais. O desencanto pequeno-
burguês se traduz em aguda inquietação íntima, recorrente experimentação (e
manipulação) pessoal e deriva existencial (é o caso de Happy, o outro filho de
Willy Loman).
Deriva Existencial
Deriva Profissional
Deriva Pessoal
Willy Loman vive uma deriva existencial que se manifesta pela deriva
profissional e deriva pessoal. Uma é parte da outra. Trabalho e vida são
atividades fragmentárias interconectadas na ordem burguesa.
A deriva profissional caracteriza-se pela explicitação, no plano da
consciência pessoal, da alienação do produto e do processo de trabalho. A
deriva profissional da nova pequeno-burguesia ocorre quando os interesses
profissionais, permeados da auto-ilusão da autonomia laboral, entram em
choque com as prerrogativas materiais do capital.
Na verdade, a idéia de profissão, sob a ótica pequeno-burguesa, é
permeada de sonhos de autonomia (e liberdade) pessoal, que se depara – sob
certas circunstâncias - com a divisão hierárquica do trabalho e a redução do
trabalho intelectual à trabalho material, no sentido de trabalho heterônomo,
vazio de conteúdo, explicitando a subalternidade estrutural do trabalho vivo (e
força de trabalho) ao capital.
Willy Loman vive em seu drama trágico, uma deriva profissional,
quando percebe que é obrigado a se submeter às determinações impessoais da
chefia da empresa que quer lhe aposentar compulsoriamente. A tragédia de
Willy Loman no plano profissional é se recusar a aceitar que possui um
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
25
emprego, sendo ele mero empregado subalterno do capital. Loman possui um
tipico orgulho pequeno-burguês em resistir à máquina impessoal da
modernidade salarial. A deriva profissional é a perda irremediável de vínculos
com seu passado de sonhos de sucesso e autonomia laboral.
Por outro lado, a deriva pessoal se caracteriza pela alienação de si e dos
Outros. A deriva pessoal do homem pequeno-burgues é a percepção (e auto-
percepção) da perda (ou deterioração) de seus laços íntimos com Outros como
Proximos e consigo mesmo. É a dimensão da auto-alienação do homem que
trabalha, alienação de si e dos outros, onde o Outro primordial são os filhos,
verdadeiros vínculos com a futuridade.
A deriva pessoal do caixeiro-viajante Willy Loman é marcada por
conflitos familiares com o filho Biff. Nesse caso, temos a perda de vínculos com
sua futuridade pessoal, com Willy tornando-se incapaz de ver reproduzidos no
filho primogênito (Biff Loman), os caros valores de sucesso profissional que ele
alimentou por toda a vida. Na verdade, o fracasso de Biff é também o fracasso
pessoal-profissional de Willy Loman.
Willy Loman é um homem proletário pequeno-burguês convulsionado
pelo passado e presente. Está em pleno processo de desefetivação humano-
genérica. Passado e presente habitam o mundo íntimo de Willy Loman. Todos
nós dialogamos com espectros do tempo passado ao enfrentarmos o tempo
presente. Diante da alienação crucial que o assola no tempo presente, Willy
mobiliza, em sua deriva existencial, espectros do tempo passado (como seu
irmão Ben, que é menos sintoma de degradação mental, e mais expressão dos
conflitos íntimos do homem pequeno-burgues diante da percepção e auto-
percepção da sua irremediável condição de proletariedade).
A abertura do filme “Morte de um caixeiro-viajante” mostra Willy Loman
chegando em casa, carregando duas malas pesadas, depois de mais uma viagem
de negócios. É um homem proletário em crise – na verdade, homem proletário
imbuído do espirito burguês. Mesmo assim, ele diz para a esposa Linda: “Está
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
26
tudo bem”. Mas depois, chega a dizer: “Estou cansado”. E logo adiante: “As
palmilhas estão me matando”. Willy não conseguiu dirigir seu carro. “De
repente saí da estrada. Esqueci que dirigia. Cinco minutos depois estou
sonhando de novo”, diz ele.
Willy Loman não está apenas com cansaço físico, mas torna-se evidente
um agudo stress mental. Começa a divagar, submergindo no passado. É um
homem proletário à deriva. O tempo presente tornou-se mera factualidade
estranhada.
Willy Loman não dialoga – sua fala é puro monólogo. É mais um sintoma
da despersonalização do homem que trabalho (a incomunicabilidade). Por isso,
Willy Loman sonha acordado. Diz ele: “Pensei em algumas coisas. Coisas
estranhas”.
A mulher Linda é a voz da razão familiar. Ela se preocupa com a saúde de
Willy. Diz ela: “Sua mente trabalha muito e é ela que importa”. Na verdade, o
trabalho de caixeiro-viajante sufoca Willy. É o elemento causal crucial na sua
desefetivação humano-genérica. É o trabalho de vendedor que o faz viajar toda
semana, afastando-o da família – as viagens são desgastantes. Linda diz: “Mas
você tem 60 anos. Não pode viajar toda semana.” E observa: “Não há motivo
para você não trabalhar em Nova York”.
A questão principal é que Willy precisa evitar as viagens e ficar em Nova
York. Naquela idade, ele não tem mais condições de executar suas tarefas de
caixeiro-viajante. Após tantos anos dedicados à empresa de vendas, não
encontra o reconhecimento necessário da chefia para lhe preservar a saúde de
trabalhador. Eis a explicitação do seu trabalho estranhado.
Ora, a natureza do trabalho estranhado de Willy Loman se manifesta com
intensidade no ocaso de suas forças fisico-espirituais. Aos 60 anos, Willy
Loman, submerso em sua deriva existencial, quase faz um balanço de vida. Diz
ele: “Levei uma vida para pagar uma casa. E não há ninguém para viver nela”.
Nesse momento, expressa o desencanto com a vida de trabalho e acumulação de
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
27
bens familiares. Eis o nexo causal entre trabalho estranhado , deriva existencial
e desencanto pessoal-familiar.
O velho caixeiro-viajante sente que não realizou nada na vida pessoal. Eis
o sintoma do desencanto existencial. Linda procura consola-lo: “Sempre
deixamos algo de lado na vida”. Mas o marido retruca: “Algumas pessoas
realizam algo”. Ora, Willy Loman sente um vazio pessoal. Consumido pelo
trabalho estranhado no decorrer de sua vida vivida, de repente, ele se encontra
diante do deserto da sua existencia pessoal-familiar.
Willy Loman está imerso num complexo de alienação que o afasta do ser-
homem ou ser-personalidade: primeiro, ele está alienado dos produtos do
trabalho (as mercadorias que vende são capitais-mercadoria da empresa em
que trabalha); depois, está alienado do processo de trabalho (ele é obrigado a
viajar para locais indicados pela empresa, cumprindo tarefas de venda,
provavelmente com metas a serem cumpridas). Nisso investe seu talento
pessoal, cultivando ilusões de autonomia laboral; além disso, ele está alienado
de si mesmo - embora se identifique com a profissão de vendedor, com o tempo,
ela se tornará um fardo de vida, devido o cansaço e stress mental. O trabalho
estranhado consome o trabalho vivo como dimensão de sua genericidade
humana. Para as profissões que implicam o talento pessoal, esta dimensão da
alienação – a alienação de si mesmo - manifesta-se, no decorrer do tempo,
como auto-percepção de irrealização na vida pessoal. Finalmente, Willie está
alienado dos Outros – os outros familiares como Próximos, mulher e filhos que
cresceram com o pai distante, viajando em trabalho de vendas. Uma dimensão
da deriva pessoal de Willy Loman decorre da fratura relacional com seu filho
Biff e a completa indiferença para com seu outro filho Happy.
Willy Loman é um homem proletário implicado com as coisas. A mulher
Linda apresenta-lhe as contas do lar: conserto de peças da geladeira, prestação
de máquina de lavar e aspirador de pó, conserto do teto e carburador do carro –
enfim, gastos elementares do proletário pequeno-burguês para manter um
padrão de “classe média”. Diz ele: “Se os negócios não melhorarem, estou
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
28
perdido”. Mais uma vez, sua vida pessoal-familiar remete ao trabalho
estranhado.
Na família Loman, só Willy e Happy possuem emprego. Entretanto, o pai
parasse ser o único provedor do lar – a mulher executa trabalho domésticos,
cuidando da casa (eis o modelo de lar fordista); Happy, embora tenha emprego,
está afastado de casa e Biff, que largara os estudos, está desempregado.
Mas Willy Loman, o homem que trabalha, possui uma singularidade
pessoal que limita o desenvolvimento da sua personalidade. Ele é um vendedor
inseguro de si. É a dimensão da singularidade do homem singular. Diz ele: “O
problema é que as pessoas não me levam a sério. Eles riem de mim. Eles passam
e nem sou notado”.
A mulher Linda que sempre procura consola-lo, diz que ele ganha muito
bem por semana. Mas o velho caixeiro-viajante deixa claro mais um traço de seu
trabalho estranhado: o tempo de trabalho consome quase todo seu tempo de
vida. Diz que trabalha 12 horas por dia. “Para outros é mais fácil. Não sei
porque”, diz Willy. Mas isto é como ele percebe os outros a partir do fardo
pessoal que carrega. Talvez não seja tão fácil assim para os outros também
Percebemos que Willy Loman possui baixa estima como profissional de
vendas – como salientamos é um traço da sua singularidade pessoal: “Eu falo
demais. Um homem deve falar pouco. Charley fala pouco e eles o respeitam.
Faço piadas demais. Sou baixo. Sou uma figura cômica. Preciso superar isto.
Talvez não me vista bem.”
Mas enquanto a mulher o consola dizendo que ele é o mais bonito, Willy
Loman, diante do espelho, divaga e pensa na amante casual (logo depois, como
um contrapeso à consciência de culpa, elogia sua mulher, Linda, dizendo que
ela é ótima e uma grande companheira)
Ora, a presença da amante serve para explicitar outro aspecto da
profissão de caixeiro-viajante – a solidão das viagens. Ele diz: “Sinto-me só,
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
29
sobretudo quando as vendas vão mal e não há com que falar. Sinto que nunca
mais venderei. Não sustentarei você, nem ajudarei os rapazes.” Finalmente,
observa: “Vou me redimir” (provavelmente, a consciência de culpa o consome
intimamente – o que mostra que o homem burguês Willy Loman possui traços
de um anti-herói kafkiano).
Aos poucos, Willy Loman vai indicando os elementos compositivos do
processo de trabalho do caixeiro-viajante, traços característicos que
contribuíram para sua deriva existencial. Como homem singular e
individualidade pessoal de classe, Willy Loman é um vendedor de baixa-estima,
apesar dos anseios e sonhos de sucesso que marcaram sua vida pessoal.
Inseguro de si, possui carecimentos íntimos de reconhecimento e atenção (gosta
de contar piadas e fala demais. Considera-se baixo e talvez, feio).
Estilo de Trabalho do caixeiro-viajante
Longas jornadas de trabalho (12 horas de trabalho)
Constante trato interpessoal
Talento pessoal para convencimento e respeitabiidade
Remuneracão vinculada a desempenho nas vendas
(salário por peça)
Freqüentes viagens de venda Vida solitária em
quartos de hotel
Pouco contato familiar
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
30
Linda, como mãe e trabalhadora do lar, sente nostalgia dos filhos
pequenos, quando estavam sob seus cuidados no lar. Biff e Happy, crescidos, se
afastaram mais de casa, deixando-a sozinha. O marido Willy, com suas
freqüentes viagens de negócios, contribui também com a solidão de Linda. Mas
ela é uma mulher trabalhadora do lar, bem-resolvida consigo mesma.
Um detalhe: enquanto Linda tem nostalgia com os filhos, Willy lembra-se
do Chevy vermelho, que comprou em 1928, ano de prosperidade comercial,
pouco antes da Grande Depressão em 1929. O Chevy vermelho, ícone da
civilização fordista, o faz lembrar daquela época (Linda diz: “Algo deve te-lo
feito lembrar”). Willy observa, lembrando-se do filho: “Como Biff o lustrava”. E
diz: “O vendedor não acreditou que ele tinha rodado 128 mil km” (o Chevy 1928,
carro da Chevrolet lançado com US$ 50 de descontos em 1928, desbancou a
liderança de vendas do Modelo A, da Ford, líder de vendas até então. Com o
Chevy 1928 a Chevrolet conseguiu, pela primeira vez, passar da Ford em
vendas).
Mas Willy Loman – sempre implicado com valores pequeno-burgueses,
quer saber se Biff está ganhando algum dinheiro. Linda se interroga: “Como ele
ganharia algum dinheiro?”. Esta é a preocupação de Willy com Biff: saber se ele
se tornou um homem produtivo. Loman é um homem proletário implicado com
valores-fetiches.
Pai e filho discutiram e estão com relações estremecidas. Willy diz: “Ele
esconde algo. Ele se tornou sombrio”. No decorrer da narrativa percebemos um
estranhamento entre pai e filho. De repente um tornou-se estranho ao outro.
Diz o pai: “Quando ele era jovem, eu pensei: ‘É bom viajar, ter diversos
empregos. Mas passaram 10 anos e ele nem ganha US$ 35 por semana.” Na
verdade, Biff , o filho, não conseguiu se tornar um homem de sucesso (como o
amigo Bernard). Frustrou o pai que via nele a projeção de seus anseios de
sucesso e autonomia laboral. A mãe observa que Biff está se encontrando. Willy
retruca: “Não se encontrar aos 34 anos é uma desgraça.” E vocifera: “Biff é
preguiçoso. Vagabundo”. A mãe compreende Biff: “Ele ainda está perdido”.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
31
O velho caixeiro-viajante tem uma aguda frustração com o filho: “Biff
Loman perdido?. No maior país do mundo, um jovem bonito se perde.” Ele não
compreende como isso possa ocorrer. É algo tão trágico quanto a sua deriva
profissional de caixeiro-viajante. Mas Willy está num conflito íntimo. Na
verdade, Biff é parte de si, uma parte de si estranhada. Diz que Biff é vagabundo,
mas logo a seguir, observa que ele é trabalhador: “Biff não é preguiçoso. Vou
arranjar um trabalho de vendedor para ele.” Ora, Willy não consegue não se
projetar no filho Biff. Quer vê-lo realizar seus sonhos frustrados. Quer que Biff
se torne um homem de sucesso (como Thomas Edson ou B.F. Goodrich). Diz:
“Muitos começaram tarde. Eu aposto no Biff”.
A insatisfação visceral de Willy Loman não é apenas com as viagens de
trabalho como caixeiro-vaijante ou o desemprego do filho Biff. Por um
momento, ele expressa insatisfação com a degradação da vida urbana e o
crescimento dos prédios de apartamentos – ele explicita sua cosmovisão
pessimista quase exalando um anti-capitalismo romântico: “Ficamos presos,
tijolos e janelas; janelas e tijolos.” Lamenta não ter mais espaço de vida: “A rua
está cheia de carros. Não há mais ar puro. A grama não cresce mais. Não
consigo plantar cenouras, Prédios de apartamento deviam ser proibidos.”
O velho caixeiro-viajante lembra dos dois lindos Olmos onde Biff
brincava de balanço e que foi cortado: “Deviam prender quem cortou as árvores.
Destruíram o bairro”. Novamente, ele se refugia no tempo passado: “Penso cada
vez mais nesses dias”. É o sintoma de deriva existencial.
O tempo passado é tempo dourado: “Era época de lilás e glicínia As
peônias desabrochavam. E os narcisos. O perfume nos quartos.” Indignado,
Willy Loman apenas constata traços fenomênicos da miséria do capital. A partir
de sua consciência ingênua, atribui a degradação da vida urbana ao crescimento
da população: “É o que destrói o país. A população saiu de controle. A
concorrência é enlouquecedora.”
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
32
Mas a inquietação existencial é também do filho de Willy Loman. Biff
vive uma deriva existencial, mas por outros motivos. Elelamenta: “Sempre fiz
questão de não desperdiçar minha vida. E tudo o que fiz foi desperdiça-la.” É a
percepção da vida pessoal estranhada onde intenção e resultados se excluem.
Ele é um homem perdido e incapaz de se integrar no mundo de sucesso
idealizado pelo pai (o que explica o conflito candente entre ele e Willy).
Biff foge do padrão social do homem fordista – casado e provedor do lar
com um emprego regular (como o amigo Bernard iria se tornar). Na verdade,
Biff tornou-se um homem perdido no limbo dos sonhos da velha pequeno-
burguesia. Diz ele: “Talvez devesse me casar. Me fixar em algo. Talvez seja o
meu problema. Sou como um menino. Não sou casado, não trabalho. Sou como
um menino”.
Na medida em que não se insere no padrão salarial vigente, imerso em
empregos precários, incapaz de se fixar em algo, Biff quase que reproduz – no
auge do fordismo (a peça de Arthur Miller ocorre no pós-guerra quando os EUA
se tornaram economia capitalista industrial afluente), o drama dos jovens
adultos proletários do capitalismo flexível, incapazes de se inserirem em
empregos fixos e regulares, renunciam a serem provedores do lar. São homens
infantilizados pela logica do capital em sua fase estrutural. Tornam-se eternos
meninos.
O diálogo entre os irmãos Biff e Happy Loman, são elucidativos das
angústias e dilemas existenciais que lhes perseguem. Primeiro, percebemos que
Biff – como o pai Willy – vive um processo de deriva existencial. Antes, Biff era
um rapaz extrovertido, cheio de vida e bem-sucedido com as mulheres. Mas
algo mudou. Happy observa: “Você me ensinou tudo sobre mulheres.” Enquanto
Biff era desenvolto em suas conquistas amorosas, Happy era tímido. O que
percebemos é que, aos poucos, na medida em que cresce, Biff se amarra em seus
fantasmas interiores e inquietações sobre seu futuro profissional.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
33
Há um desalento progressivo ligado a valores da vida burguesa que ele
não compartilha e que constituem exigências do mundo social em que vive. Biff
não se ajusta à idade madura, que exige dele os requisitos de um “homem
produtivo” e “homem de sucesso”. Pelo contrário, ele vai aos poucos se
perdendo e entrando em conflito com o pai. Happy pergunta: “O que aconteceu,
Biff? Onde está o humor, a confiança? O que há…?”.
Primeiro, Biff demonstra preocupar-se com a atitude do pai para com ele:
“Por que papai caçoa de mim? Tudo que faço, ele faz careta.” O irmão observa:
“É porque você não tomou rumo ainda. Não es estabeleceu. Há algumas coisas
que o deprimem”. Happy acredita no irmão: “Se você começar, há um futuro
para você”.
Mas Biff não acredita em si. Numa passagem magistral do filme, ele diz:
“Não sei qual é o futuro. Não sei o que devo querer”. E explicita sua insatisfação
intima com a lógica social que organiza o mundo do trabalho na sociedade
burguesa: “Passei sete anos após o colégio procurando trabalho. Expedidor,
vendedor. Todo tipo de serviço. É algo medíocre Pegar o metrô durante o
verão. Viver controlando estoque e telefonando. Vendendo e comprando?.
Sofrer 50 semanas num ano para aproveitar duas, quando o que se quer é
estar fora de casa, sem camisa…E sempre tentar superar o colega. E é assim
que você constrói um futuro?”.
Ora, Biff demonstra se insurgir contra o estilo de vida e trabalho da
sociedade do salariato, vida social medíocre, estúpida, rotinizada, meramente
mecânica no dia-a-dia. Ele não aceita a condição do trabalho assalariado como
sofrimento que consome a fruição da vida, vida de si e vida com os outros. Ele
critica a concorrência alucinada com os colegas de trabalho, o mundo da farsa e
trapaça pessoal. E se interroga com lucidez: é assim que você constrói o futuro?”
O diálogo entre Biff e Happy explicita uma crítica mordaz à sociedade
burguesa, principalmente no tocante ao trabalho estranhado que se manifesta
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
34
na incapacidade de dar a homens jovens e audazes, como Biff Loman, uma vida
plena de sentido.
Biff pergunta a Happy: “Você é feliz? Você é bem-sucedido. É feliz?”.
Happy – cujo nome em inglês, significa ironicamente “feliz”- diz: “Não”. Biff não
entende. Ganha bem, mas não é feliz. “Por que não?”, pergunta ele. O irmão diz:
“Só espero o gerente de merchandising morrer.” Enfim, ele “torce” pela morte
do colega de trabalho para ocupar seu lugar.
Happy parece adotar aquilo que Biff acabara de criticar no estilo de
relação pessoal do trabalho estranhado: a predação do Outro - “Sempre
tentando superar o colega”. Ora, o trabalho estranhado instiga um tipo de
relação interpessoal que é a negação do Outro como próximo. É o cerne da
manipulação sistêmica que caracteriza o metabolismo social do capitalismo
global. O fetichismo social interverte o Outro em mero objeto de predação. É a
sociedade da manipulação e da farsa.
Mas Biff, como o pai, é um sonhador. Talvez seja uma dimensão da sua
resistência pessoal (enquanto o pai está imerso no tempo passado, Biff sonha
com o tempo futuro). Sonha em ir com o irmão Happy para o Oeste:
“Acharemos uma fazenda. Criaremos gado. Usaremos os músculos. Precisamos
de espaço aberto.” Eis o ideal da autonomia laboral cultivada pelo pai Willy
Loman. O pequeno-burguês precisa de espaços abertos.
Os filhos socializados no ambiente pequeno-burguês sentem necessidade
intima de”espaços abertos”. O mundo do salariato os sufoca. Entretanto, Biff e
Happy dão respostas diferenciadas à necessidade de liberdade pessoal.
Happy, como o irmão, sonha com isso: “As vezes, quero rasgar a roupa no
escritório.” Mas, ao mesmo tempo que possui o sonho de espaços abertos, é
Happy também um homem implicado com os valores da ordem burguesa
concorrencial. Possui auto-estima e anseia ascender no interior desta ordem
competitiva. “Consigo superar qualquer um na loja e tenho de obedecer àqueles
cretinos”. E observa um traço da ordem burguesa competitiva: “Todos são
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
35
falsos. Eu diminuo meus ideais.” Happy quer demonstrar – mais do que o irmão
– que ele pode vencer naquela ordem burguesa e não apenas fora dela. Diz ele:
“Preciso mostrar àqueles arrogantes que posso chegar lá.”
Enquanto Biff sequer tenta enfrentar o trabalho estranhado, recusando-
se a aceitar os termos do jogo da manipulação e farsa burguesa, Happy faz o
contrário – intimamente, é como o irmão: sonha com a autonomia laboral e
com os “espaços abertos”. Mas Happy quer dar uma resposta dentro do sistema,
utilizando-se dos artifícios de manipulação do próprio sistema da ordem
competitiva. Biff diz: “Não fomos educados para ganhar dinheiro. Não consigo”.
Mas o que Happy quer é dar uma resposta à banalização da vida burguesa a seu
modo – dentro da ordem do trabalho e vida estranhadas.
Assim, a formação pequeno-burguesa deu a Biff e Happy um sentido vital
na autonomia pessoal e busca de “espaços abertos”. Mas existe uma
singularidade pessoal em Happy que se contrasta com a singularidade pessoal
de Biff. Embora os dois irmãos tenham nascido e se desenvolvido no interior da
mesma ordem familiar, dão respostas diferenciadas aos seus carecimentos
radicais. Eis o espaço da singularidade do homem singular.
Happy afirma-se dentro da ordem competitiva de mercado, nas relacões
concorrencias no trabalho, predando as mulheres dos concorrentes. “Faço isso
sempre que quero, quando me sinto enojado. Mas é como boliche. Eu derrubo
todas, mas isso não significa nada.” Ora, Happy é um exímio manipulador da
afetividade humana. É seu modo de sublimar – às avessas – o trabalho (e vida)
estranhados. É a vingança íntima contra seus concorrentes. Ele diz: “Vai me
chamar de canalha. Charlotte, a garota de hoje, vai casar em cinco semanas. Ele
quer ser vice-presidente. Talvez eu seja competitivo demais. Mas acabei com ela
e agora não me livro dela. É o terceiro executivo com quem faço isso.. Não é
safadeza? E ainda vou aos casamentos”. Apesar disso, Happy, tal como Biff diz
querer se casar e ter uma garota séria: “Alguém de caráter, substância, como a
mãe.”
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
36
É curioso que Happy contesta o sistema competitivo, explicitando, de
forma cínica, seus artifícios de manipulação, atingindo os concorrentes naquilo
que é um ponto nevrálgico da vida pessoal – a afetividade.
Pode-se conhecer muito da natureza de uma sociedade pelo modo como
seus homens tratam as mulheres. Happy tornou-se um homem cínico – canalha,
competitivo e safado, mas que possui intimamente bons ideais (como seu irmão
Biff). Curiosamente, é por sentir nojo do sistema que ele age - de forma padrão e
com exímio talento – como qualquer integrante do sistema. Esta é a inversão
estranhada que lhe consome a personalidade humana. Com as mulheres, adota
uma afetividade-boliche – “derruba todas, mas isso não significa nada.” É a
manipulação em sua forma cínica. Há uma auto-satisfação particularista
intimamente estranhada.
Willy Loman divaga sobre o tempo passado. É através das divagações
retrospectivas de Willie que organizamos, aos poucos, elementos da sua deriva
existencial. Em seu devaneio passadista, ele acabara de chegar de viagem no
Chevy vermelho. Os filhos treinam soccer. O filho Biff observa: “Sentimos
saudades”. Willy se interroga: “Saudades?”. Biff: “O tempo todo”. E o pai conta
um segredo – a sua utopia pessoal de autonomia laboral. Ele diz que um dia
terá seu próprio negócio e nunca mais sairá de casa. Ele sente o fardo do
trabalho estranhado que lhe afasta da convivência familiar. Para compensar,
promete aos filhos leva-los numa dessas viagens e mostra-los todas as cidades.
Biff diz: “Adoraria ir com você”. Mas as viagens de Willie são viagens de
trabalho e não viagem de férias. Naquela época, pai e filho são amigos.
Willy Loman cultiva valores pequeno-burgueses que entram em conflito
crucial com as determinações do trabalho estranhado. Aos poucos sua vida
íntima (e familiar) torna-se estranhada. O homem de sucesso, segundo Willy, é
aquele que é apreciado e popular. É o que projeta – intimamente – para o filho
Biff. Enquanto isso, o jovem Bernardo, filho de Charley, alerta continuamente
para Biff: “O professor vai reprovar você em Matemática se não estudar”.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
37
Na fase de ascensão histórica do capital, a Educação era garantia de
mobilidade social. Willy Loman, “alienado” da vida familiar e imerso em sonhos
pequeno-burgueses, não se atentou para o desprezo que o filho mais velho dava
aos estudos universitários.
Ora, Willy é um homem que busca uma resposta. A incapacidade de
encontra-la é sintoma de sua despersonalização irremediável. Willy diz sobre
Ben: “Ele é o único homem que conheço que conhece as respostas.” E diz para
Ben: “Espero você há muito tempo. Qual é a resposta? Como conseguiu?”.
Mas o irmão Ben está sempre correndo. Não tem tempo para conversar
com Willy, talvez, do mesmo modo como Willy em toda sua vida de trabalho
estranhado, não teve tempo para conversar com esposa, filhos e inclusive
consigo mesmo. Ben diz continuamente: “Tenho pouco tempo.” Talvez o irmão
mais velho seja um espectro de si. Na verdade, Willy é o homem do monólogo.
Está imerso num particularismo estranhado. O drama da “Morte de um
caixeiro-viajante” é também um drama da incomunicabilidade (um dos
atributos da condição de proletariedade).
O irmão mais velho, Benjamin Loman, é o homem de sucesso no
imaginário de Willy. Ele apresenta Ben para os filhos: “Rapazes! Ouçam isso!
Seu tio Ben, um grande homem!”. Ora, Ben é o espelho que reflete os anseios
pequeno-burgueses de Willy. É aquilo que ele queria ser e não foi. Ben diz: “Eu
entrei na selva aos 17 anos e sai aos 21. Estava rico!”.
Mas o sucesso de Ben não é o sucesso do homem carreirista do trabalho
heteronomo do salariato capitalista, mas sim do homem desbravador, audaz e
empreendedor, com autonomia laboral e dono de seu próprio negócio nas
fronteiras de expansão civilizatória. Um homem de sorte – Ben ia encontrar o
pai no Alasca e em vez disso, chegou na África (“Eu era ruim em geografia”),
onde descobriu Minas de Diamantes. O Alasca é a terra da promissão. Ben diz:
“Preciso avaliar algumas terras no Alasca. Se tivesse ido ao Alasca tudo seria
diferente.” Ou ainda: “Há muitas chances no Alasca. Devia estar lá.”
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
38
É por meio do “espectro” de seu irmão mais velho que conhecemos as
origens de Willy Loman – seus anseios, desejos e sonhos de vida pessoal que,
com o tempo, se frustraram e se perderam no tempo. Por isso, nesse momento
de sua vida, quando a natureza do trabalho estranhado e o estranhamento de
sua vida íntima se explicitam, ele se perde de si e dos outros.
Willy pede ao irmão Ben que fale para seu filhos, do pai, um homem
empreendedor, artesão desbravador de novas oportunidades de negócios,
“patrão de si mesmo”, que utilizava os filhos para vender as flautas que
fabricava. Diz Willy: “Fale do pai! Eles [Biff e Happy] precisam saber de onde
vieram. Só lembro dele com barba grande. Eu estava com a mãe perto da
fogueira, ouvindo música. ” O irmão Ben diz: “Era flauta. Ele tocava flauta.” E
prossegue: “O pai era um homem extraordinário. Saímos de Boston. Ele colocou
a familia na carroça. Ele atravessou o país: Ohio, Michigan, Illinois. Todos os
estados do Oeste. Nas cidades, vendíamos as flautas que ele fabricava. Era um
inventor. Com um aparelho fazia mais flautas numa semana do que alguém
numa vida.” E Willy exclama: “É como eu os crio: ‘durões, populares, versáteis’”.
Encontramos na reminiscência do passado familiar de Willy Loman, os
valores de autonomia laboral que cultivava e a partir dos quais, educara os
filhos. Certa vez, dialogando com o irmão Happy, Biff disse que eles não foram
educados para ganhar dinheiro. Ora, a socialização que Willy Loman deu aos
filhos – uma socialização pequeno-burguesa de cariz tradicional - era uma
socialização inadequada à ordem competitiva emergente nos Estados Unidos da
América do pós-guerra.
Ao confrontar-se com a ordem capitalista urbano-industrial do trabalho
assalariado heterônomo, Biff e Happy “surtavam”, cada um a seu modo, tendo
dificuldades de adaptação à sociabilidade moderna. Submerso em “espectros”
do passado, estranhando o insucesso (e deriva existencial) do filho Biff e
desprezando as artimanhas boêmias – mera “sublimação às avessas” – do filho
Happy, o estranhamento de Willy Loman estende-se à prole familiar.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
39
Num certo momento, Willy disse, espelhando-se no irmão Ben:’”É como
eu os crio: durões, populares e versateis.” Na verdade, tais atributos morais na
ordem competitiva que emergia com o capitalismo urbano-industrial adquiriam
outros significados, tendo em vista que a dureza, popularidade e versatilidade
do homem moderno dizia respeito a ordem do trabalho heterônomo, onde ser
duro poderia significar saber cumprir ordens e ter disciplina meramente
protocolar; e ser popular significava fingir e ser farsante; ou ainda, ser versátil
implicava em ser adaptável às multitarefas estranhadas.
O tio Ben dá uma lição a Biff, após derruba-lo num golpe de mão: “Nunca
brigue com um estranho. Jamais saíra da selva assim”. Em sua ingenuidade
visceral, Willy Loman não conseguira ensinar aos filhos – principalmente a Biff
– as artimanhas da selva (inclusive a selva do mercado), onde a cautela e a
desconfiança é um traço indispensável para a sobrevivência pessoal. De certo
modo, a falsidade das pessoas na ordem competitiva burguesa é um traço de
caráter adequado à selva de mercado.
O velho caixeiro-viajante possuía uma frustração íntima – não ter ido, tal
como o irmão Ben, para a selva da África, desbravar novas terras e conquistar
espaços abertos. Pelo contrário, escolhera trabalhar em vendas como
empregado subalterno. Disse Willy: “Ben, estamos no Brooklin, mas também
caçamos. Temos cobras, coelhos; por isso vim para cá. Biff derruba qualquer
árvore.” Imaginando-se em “espaços abertos”, Willy delirava e incentivava o
filho mais velho a pegar areia e madeira da construção do prédio vizinho –
materiais de construção que valiam muito dinheiro - como se a circunvizinhança
fosse campo aberto a ser desbravado como “terra de ninguém”.
Na verdade, Biff crescera com disposição íntima em furtar. Talvez seja
manifestação de sentimento inconsciente de expropriação contra a ordem da
propriedade privada, ordem competitiva que constrange espaços abertos para o
desenvolvimento humano-generico. Linda, inquieta com as atitudes do filho
Biff, dizia: “Não deixe Biff roubar mais”. Mas Willie tem uma profunda
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
40
despercepção do real – diz: “As cadeias estão cheias de destemidos” e observa
que Biff, um garoto vigoroso, não roubou nada: “Não há nada errado”.
Enfim, Willy Loman é um homem fora do tempo histórico da nova ordem
burguesa que emerge com o capitalismo monopolista. Essa nova ordem
capitalista não exige homens destemidos, mas meramente homens venais,
adaptáveis – muitas vezes, com um toque de esperteza – às disposições
burocráticas da ordem burguesa.
No decorrer do filme, verificamos que Willy Loman vive o drama da crise
profissional e dos impasses na socialização dos filhos – talvez ele se pergunte: o
que aconteceu?. A grande depressão afetou seus negócios de vendas. Charley,
seu vizinho diz: “Meu homem da Nova Inglaterra deu-se mal. Não viu nada por
lá.” Willy diz que não e que sua viagem foi apenas para contatos importantes.
Mas admite depois: “Os negócios vão mal. É terrível”
A crise de negócios expeliu suas angústias com a escolha profissional –
trabalhar em vendas. Mas, ao mesmo tempo, Wily é um homem preocupado
com a socialização dos filhos, Como educá-los? É ao teu irmão Ben que procura.
Disse: “Você é o que preciso. O pai partiu quando eu era pequeno. Nunca falei
com ele. Ainda me sinto inseguro.”.
Talvez esta seja a raiz da insegurança existencial de Willie, insegurança
íntima que se transmite para a educação dos filhos. Diz: “As vezes acho que não
os ensino direito. Como devo ensiná-los?”. Para ele, o irmão mais velho, Ben, é o
modelo de vida. E Ben sempre diz: “Eu entrei na sela aos 17 anos. Sai aos 21. E
estava rico”. Willy exclama: “É o espírito que quero neles. Entrar na selva. Eu
estava certo.”
O filme “Morte de um caixeiro-viajante” trata da crise estrutural do
homem proletário de “classe média”: Willy Loman . É um complexo de crises
objetivas e subjetivas, interconectadas entre si - crises íntimas da
individualidade pessoal de classe, crise dos negócios, crise profissional, crise
existencial e crise de socialização da prole.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
41
No ser de Willy Loman, há uma profunda insegurança existencial que lhe
afeta a auto-estima pessoal (diz ele: “O pai partiu quando eu era pequeno”).
Esse o traço de singularidade do homem singular Willy Loman. Há forças
pessoais inconscientes que obstaculizam seu desenvolvimento humano-pessoal,
afetando sua percepção do real. Na verdade, como homem proletário em
processo de desefetivação humano-genérica perdeu o sentido de realidade. Ele
ensina aos filhos um modelo de vida que não é adequado ao capitalismo
moderno. Por exemplo, o espirito do irmão mais velho, Ben, homem
desbravador, não se coaduna com o mundo das grandes empresas, onde a
subalternidade de caráter é o traço pessoal mais adequado.
Na medida em que se aprofunda a angústia existencial de Willy em
virtude da sua deriva profissional, o caixeiro-viajante se interroga cada vez mais,
como o irmão mais velho Ben conseguiu o sucesso: “Como conseguiu? Qual a
resposta? Preciso falar com você.” Mas, como observamos acima, de forma
recorrente, Ben nunca tem tempo para falar com Willy: “Não tenho tempo” ou
ainda “Não tenho muito tempo”.
Talvez seja expressão da insegurança primordial de Willie, um homem
cujo pai o abandonara quando pequeno. Ao ser demitido por Howard, Willy
chega a sua situação-limite: “Nada dá certo. Não sei o que fazer.” Wi;;ly Loman
é um homem desencontrado com os Outros e consigo mesmo.
No decorrer da tragédia pessoal, Willy Loman é empurrado cada vez mais
para fantasias interiores: do sonho pequeno-burguês tradicional, insustentável
nas condições históricas do capitalismo da grande empresa (que exige outro tipo
de espirito pequeno-burguês - o espirito do homem pequeno-burguês de
espaços fechados de carreira, que cultiva sua falsidade . executando tarefas
medíocres) para a fantasia do empreendedor de caráter, que desbrava novas
terras distantes, como o Alasca. Diz o irmão Ben: “Tem um novo continente à
vista. Deixe a cidade. Só há conversa e processos judiciais aqui. Você pode obter
uma fortuna lá.” E diz ainda: “Há um continente a seus pés. Pode sair rico.”.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
42
Na verdade, o irmão Ben representa para Willy a fuga do real. É a plena
manifestação espectral de sua desefetivação humano-genérica, sintoma íntimo
de sua deriva profissional e deriva pessoal. A crise existencial é a matriz da
crise estrutural de Willy Loman.
Ao mesmo tempo, é por meio das fantasias interiores com o irmão Ben,
que constatamos, na vida familiar de Willie Loman, a socialização inadequada
dos filhos Biff e Happy. Willy cultivou nos filhos valores pequeno-burgueses
defasados. Na medida em que Willy fracassou no sonho profissional – ele
sempre almejou intimamente ser como o irmão Ben – o caixeiro-viajante tendeu
a projetar seus ideais pessoais anacrônicos nos filhos Biff e Happy
(principalmente Biff, o filho mais velho, que seria o que o pai não foi – ora, é
importante ressaltar que Biff não é Willy Loman.).
Bernard, filho de Charlie, é um homem de sucesso – ele se tornou tudo o
que Biff não conseguira ser. Ao encontra-lo no escritório do pai, Willy interroga
Bernard: “Qual o segredo? Por que você? Por que ele [ Biff] nunca conseguiu?”
Esta claro que Willy Loman é um homem que se interroga, buscando
uma explicação para o segredo do sucesso do irmão Ben e de Bernard e as
causas do fracasso do filho Biff (é interessante que Willy Loman jamais se
interroga porque ele – o caixeiro-viajante - fracassou).
Diz Willy para Bernard: “Voce era amigo dele. Tem algo que não entendo.
A vida dele acabou após aquele jogo.” Primeiro, Bernard identifica a causa do
fracasso de Biff na educação – “Ele nunca estudou para nada”. Mas, existe uma
incognita contingente que intriga Bernard : por que Biff não foi fazer a prova de
recuperação? Biff foi a Boston comunicar ao pai a reprovação. Mas quando
voltou de Boston, era um outro homem. Diz Bernard: “Ele foi reprovado e
apagou como se um martelo o atingisse.” E fez a pergunta: “Por que ele se
entregou? Era estranho saber que ele tinha desistido da vida. O que aconteceu
em Boston?”. Willy exclama: “Quer me culpar? Se ele fracassa, a culpa é
minha?”.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
43
Ora, o fracasso de Biff é constituido por um complexo de causalidades
necessárias e causalidad contingentes que constituem sua singularidade
pessoal e que determinam sua individualidade pessoal de classe:
Primeiro, Biff nunca se dedicara aos estudos. Bernard, ao contrário,
investira em seu “capital humano”, ascendendo, deste modo, na vida
profissional. É o homem de sucesso no mundo capitalista em ascensão.
Mas, existe uma causalidade contingente, vinculada à singularidade
pessoal de Biff – por que ele desistiu de lutar pela vida? Enfim, como ele
respondeu àquela situação contingente da vida pessoal.
O evento contingente crucial foi o que aconteceu em Boston, quando Biff
encontra o pai com a suposta amante e discute com ele. Chama o pai de
mentiroso e farsante. Naquele momento, desmancha-se a imagem do pai que
ele cultivava: o pai que lhe ensina o que um homem deve ser. Naquele
momento, Biff, em sua iterioridade, “mata” o Pai, autoridade moral suprema da
ordem familiar. Em seu íntimo, Biff fica indignado por Willy dar “as meias da
mamãe” à amante. Este fato singular detonou o complexo de obstruções intimas
que conduziria Biff à estagnação em sua vida profissional nos próximos quinze
anos.
O trabalho de caixeiro-viajante é um trabalho solitário. De cidade em
cidade, em quartos de hotéis vazios, sem ninguém para conversar. Willy diz para
a amante: “Sinto-me tão só”. Além disso, a singularidade do caixeiro-viajante
Willy Loman, homem inseguro, é marcada por uma angústia primordial – o pai
partiu quando ele era pequeno e nunca falou com ele. Portanto, em sua origem
primordial, é um homem ontologicamente solitário cujo egoísmo decorre da
necessidade intima de se auto-preservar diante do abandono primordial.
Eis o elemento da singularidade pessoal de Willy Loman que obstaculiza
– ao lado do trabalho estranhado e dos valores-fetiches da ordem pequeno-
burguesa que cultiva, o desenvolvimento de sua personalidade humana. Ao
tornar-se caixeiro-viajante, o trabalho intrinsecamente solitário contribuiria
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
44
sobremaneira para sua deriva pessoal. Portanto, não é apenas a dimensão do
trabalho estranhado (a solidão do trabalho) que explica a deriva pessoal de
Willy, mas há também elementos singulares vinculados a sua origem enquanto
individualidade pessoal (o trabalho da solidão).
Willy Loman está – mais uma vez – intrigado: não entende como
Bernard se tornou um homem de sucesso sem que o pai – o amigo Charlie -
nunca lhe dissesse o que fazer ou se interessasse demasiadamente por ele.
Charlie diz: “Minha salvação é que nunca me interessei por algo.” Apesar da
orientação constante sobre como deve ser um homem de sucesso e do interesse
candente por Biff, Willy não conseguira evitar o fracasso do filho.
De fato, as interrogações de Willy Loman decorrem da sua imersão num
complexo de relações fetichizadas – ou intransparentes - consigo mesmo e
com os outros. Enfim, o caixeiro-viajante vive na névoa existencial. Vive
constantemente se interrogando imerso em seu particularismo pessoal. Como
temos salientado, o drama “Morte de um caixeiro-viajante” é quase um
monólogo de Willy Loman. Não conhece a si mesmo na medida em que não
conhece o mundo social em que vive. É um homem alienado de si e dos outros.
Willy pede mais uma vez dinheiro emprestado a Charlie para pagar o
seguro de vida. Charlie pergunta o que está acontecendo. Diz: “Eu lhe ofereci
um emprego”. Mas Willy assevera: “Tenho um emprego”. E Charlie retruca:
“Sem salário.” E afirma: “Que tipo de emprego é esse que não paga?”.
Na medida em que Willy não consegue vender nada, ele perde as
comissões. O emprego de caixeiro-viajante vincula a remuneração à venda dos
produtos. Willy velho e cansado com a idade, quando deveria ter maior conforto
pessoal, tem, ao contrário, seu rendimento salarial decrescido. Vive pedindo
empréstimos ao amigo Charlie. Eis um dos elementos decisivos de sua deriva
profissional.
O diálogo entre Charlie e Willy é deveras interessante. Mais uma vez,
Willy explicita sua candente ingenuidade pessoal. Não conhece o mundo em
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
45
que vive – o mundo do capital como dinheiro, onde o que conta é o valor de
troca e não o valor de uso. A lógica dominante do valor de troca possui
profunda implicação nas atitudes estruturantes da sociabilidade burguesa. Willy
lamenta que tenha sido demitido por alguém cujo nome foi atribuído por ele”:
“Dei seu nome. Dei-lhe o nome de Howard.” Charlie retruca: ”Quando
perceberá que isso não significa nada? Você deu-lhe o nome de Howard, mas
não pode vender isso. A única coisa que tem valor nesse mundo é o que pode
vender. Você é um vendedor e não sabe disso.” Willy diz: “Sempre tentei pensar
de outra maneira. Sempre pensei que se um homem causasse boa impressão,
fosse popular…”. Charlie, atento à lógica do dinheiro como capital que organiza
a vida moderna diz: “Por que todos devem amá-lo? Quem gostava de J.P.
Morgan?. Ele impressionava? Na sauna parecia um açougueiro. Mas com seus
bolsos, era popular. ” Enfim, o que conta é o dinheiro e não atitudes morais.
Após receber o dinheiro para pagar o seguro de vida, Willy observa, antes
de sair: “Engraçado, após todas as estradas e trens, e reuniões e os anos, você
acaba valendo mais morto que vivo.” Finalmente, Willy conseguiu perceber um
traço estrutural do mundo do capital. Entretanto, esta é a conclusão de um
homem que desistiu de lutar pela vida.
Willy se dirige a Howard para dizer que tomou a decisão de não viajar
mais. Está cansado e pretende ficar em Nova York. Lembra a Howard a
promessa que ele - Howard - fizera no Natal de que arranjaria alguma coisa para
ele no escritório. Mas o diretor-chefe diz: “Não consegui pensar em nada para
você”. E prossegue: “Mas você é caixeiro-viajante. Trabalhamos na estrada.
Temos poucas pessoas aqui”. Willy insiste”: “Escute os filhos cresceram. Não
preciso de muito. Se ganhar US$ 65 poderei pagar as contas.” Aos poucos Willy
vai baixando a pretensão salarial com Howard, na medida em que verifica que o
diretor-chefe resiste em aceitar sua proposta – de US$ 65 passa para US$ 50 e
depois para US$ 40.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
46
Utiliza vários argumentos com Howard. Primeiro, apela para
argumentos sentimentais: “Eu estava aqui quando seu pai o levava nos braços.
Quando você nasceu, ele perguntou o que achava do nome Howard.”
Depois, utiliza argumentos de autoridade que decorre da experiência de
trabalho. “Quando eu tinha 18, 19 anos, já estava ma estrada.” E lamenta a
dureza dos novos tempos da profissão de vendedor: “Amizade e personalidade
não contam.” Mas Howard está firme em seu propósito de não conceder a Willy
um lugar no escritório central: “Assim são as coisas”.
Finalmente, Willy utiliza o argumento final: a promessa do pai de
Howard: “Falo de seu pai! Foram feitas promessas aqui.” Mas no mundo dos
negócios do capital, não há espaços para sentimentos, experiências do passado e
promessas de ocasião
Logo que Willy chega no escritório central, Howard pergunta: “Teve
outra crise?”. O que demonstra que não foi a primeira vez que Willy se dirigiu a
Howard para tratar de problemas do trabalho. Na verdade, a deriva profissional
de Willy Loman se arrasta há anos. A situação-limite chegou quando ele
demasiadamente cansado, não consegue mais viajar e explicita-se, ao mesmo
tempo, a deriva pessoal com as reminiscências e impasses familiares na relação
pessoal com o filho Biff..
Foi na época do Natal que Howard disse que arranjaria algo para Willy
Loman no escritório central. Naquela época, ele já percebia que não podia
continuar mais viajando – o cansaço o atormentava depois de quase 35 anos de
trabalho como vendedor, viajando pelas estradas do país. Entretanto, o período
de Natal é ocasião para promessas piedosas que reconfortam a consciência
burguesa atormentada pela dureza dos negócios o ano todo. É uma temporada
de troca de presentes e gestos alvissareiros de doces hipocrisias. O burguês
Howard não poderia deixar de prometer a Willy, na época do Natal, o que mais
tarde não poderia cumprir: “Não consegui pensar em nada para você”.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
47
Willy pede um favor. Diz que nunca tinha feito isso. E lembra a Howard
que foi ele que lhe deu o nome de Howard. O diretor-chefe lhe agradece, mas diz
em seguida que não há lugar para ele ali. “Se tivesse, eu o traria para cá, mas
não tenho.” O apelo sentimental de Willy não comoveu Howard que observa que
isso é um negócio : “Todos precisam de se virar”.
Na verdade, Howard é um escravo do capital. Apenas cumpre o que as
imposições dos negócios o obrigam. Talvez não houvesse mesmo lugar para
Willy no escritório. Para inclui-lo, talvez tivesse que se submeter a gastos extras.
No sistema da concorrência, não há lugar para favor ou concessões pessoais. O
capital pode não perdoar. Como homem de negócio, Howard apenas nada pôde
fazer. Diz ele: “Não posso tirar sangue de pedra”
Willy tenta utilizar o argumento da experiencia do passado para comover
Howard. Conta sua pequena história de vida e história do trabalho, inclusive
dizendo porque optou pela profissão de vendedor.
Diz ele: “Quando eu tinha 18, 19 anos já estava na estrada. Nessa época
eu queria ir para o Alasca. Acharam três veios num mês no Alasca. Eu queria ir.
Queria aventura. Meu pai morou no Alasca. Era um aventureiro. Minha falimia
é destemida. Pensei em ver meu irmão e ficar no Norte. Estava quase decidido a
ir, quando encontrei um vendedor em Park House. Seu nome era Dave
Singleman. Tinha 84 anos. Já tinha vendido em 31 estados. Ele ia para sua sala,
colocava o chinelo verde. Telefonava para os compradores. Nunca saia da sala.
Vendo isso, percebi que vender era a maior carreira do mundo. O que poderia
ser melhor do que ir, aos 84 anos a 20 ou 30 cidades, pegar o fone e ser
lembrado e amado por tanta gente? Ele teve a morte de um caixeiro-viajante.
De chinelo verde, no trem Nova York-New Haven-Boston. Centenas de
vendedores e clientes foram ao funeral. O ambiente ficou triste nos trens por
três meses.”
Willy escolheu a profissão de vendedor – “vender era a maior carreira do
mundo”- não apenas porque lhe dava uma margem de autonomia laboral, mas
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
48
porque que era uma profissão lhe prometia que ele seria lembrado e amado por
muita gente.
No mundo duro da civilização do capital, onde a concorrência,
indiferença, ambição e coragem eram os traços marcantes, a carreira de
vendedor parecia para ele, quando jovem, um lugar paradisíaco No fundo,
Willy não um homem destemido, como pai e irmão que enfrentavam a corrida
do ouro no Alasca. Ele era um homem simples (em inglês: singleman).
Após contar a história de Dave Singleman, ele consegue fazer um juízo
lúcido dos tempos modernos, lamentando a dureza do mundo dos negócios. Na
verdade, trata-se de uma nova época do capitalismo moderno – a época do
capitalismo monopolista, onde a máquina-capital impõe suas prerrogativas
automáticas, abolindo os espaços de iniciativa pessoal, onde alguns valores da
ordem tradicional – como amizade e camaradagem - permeavam as relações de
trabalho e de negócios. Willy diz: “Naquela época havia personalidade nisso.
Havia respeito e camaradagem. Agora, não há piedade. Amizade e
personalidade não contam.”
Enfim, o sistema do capital é o sistema da despersonalização. O ordem
competitiva de mercado impõe isso: despersonalização imposta pelo “sujeito
automático” do capital-dinheiro. Isto é, dinheiro que se auto-valoriza.
Despersonalização significa negar a personalidade, e por conseguinte, amizade
e respeito pessoal. Nega-se (e desefetiva-se) a pessoa humana. Howard apenas
diz: “Assim são as coisas” – as coisas do mundo das coisas-fetiches
Willy apela para a memória do pai de Howard: “Quando Al Smith foi
indicado, seu pai, falo de seu pai, foram feitas promessas aqui!”. Mas o capital
renega a memória (e promessas) da tradição, afirmando tão-somente o tempo
presente e a lógica do capital-dinheiro.
Mais diante Willy observa: “Em 1928, eu tive um grande ano. Ganhei
US$ 170 por semana de comissão. Você jamais ganhou isso. Ganhei US$ 170 por
semana de comissão em 1928. Seu pai me disse. Ele estava nessa mesa, pôs a
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
49
mão no meu ombro.” (um detalhe: em 1928, um ano antes do crack da Bolsa de
Nova York, o capitalismo norte-americana vivia uma exuberancia irracional).
Mas Howard sai da sala para atender alguém. Willy, delirando, conversa
com um espectro do tempo passado que ainda ocupa o mesmo espaço presente:
“Frank, não se lembra do que me disse? Como pôs a mão no meu ombro…”
Inadvertidamente, ele liga o gravador automático de Howard. O delírio do
tempo passado é “abolido” pelo aparato tecnológico do tempo presente.
Willy não se conforma com a indiferença de Howard.: “Trabalho há 35
anos e não consigo pagar o seguro. Não pode chupar a laranja e jogar o
bagaço. Um homem não é uma fruta.” Na verdade, eis a essência do mundo do
capital-dinheiro. Como disse Marx, sob o sistema do capital, o homem não vale
nada, sendo tão-somente uma mera carcaça do tempo.
Ao ser despedido, Willy diz que precisa ganhar dinheiro. Mas Howard,
quase de modo cínico, observa: “E seus filhos? Por que não o ajudam? Não seja
orgulhoso. Diga a seus filhos que está cansado. Voce tem filhos ótimos.” E Willy
exclama: “Não posso depender dos filhos. Não sou aleijado.”
Na verdade, Howard se utiliza de constrangimentos modernos para
excluir um homem da vida ativa; e apela – a título de compensação – para
“recursos previdenciários” da ordem tradicional. Sem dinheiro – Willy sequer
teria uma poupança ou previdência social – seria obrigado a depender da
generosidade dos filhos. Willy se sente um homem aleijado, absolutamente
dependente daqueles que pós no mundo – enfim, um homem fracassado à
enésima potência.
Um detalhe curioso: logo ao chegar na sala de Howard, Willy o encontra
fascinado com um gravador automático. Diz ele: “É a máquina mais incrível que
vi na vida.” E observa: “Comprei para ditados, mas ele tem muitos usos.” (no
filme “Tempos Modernos”, Charlie Chaplin, numa cena de verdadeira ficção-
cientifica, nos apresenta um vendedor automático que emite mensagens
gravadas de propaganda da nova máquina de alimentação oferecida para o
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
50
capitalista, que pretende reduzir, com ela, o tempo - e custos - de trabalho.
Talvez Howard não imaginasse que, um dia, as máquinas automáticas de
propaganda e merchandising – como a TV - iriam tomar o lugar do velho
caixeiro-viajante).
Ora, Willy Loman é um homem solitário. Diz: “Não tenho com quem
falar”; inseguro de si – ao contrário do irmão Ben que desbravou novas terras,
ele contentou-se em morar no Brooklin achando que lá era sua “Terra de
Ninguém”, próxima da vida selvagem, educando os filhos para outro mundo.
Willy Loman é um homem inválido – ao ser demitido por Howard, teve
invalidado toda uma trajetória profissional como vendedor, onde cultivara seu
pequeno sonho de sucesso. A demissão o invalidara. Foi mais um golpe em sua
personalidade à deriva.
O que se coloca, numa das cenas finais do filme, é a idéia de suicídio de
Willy – ele cometeria suicídio, forjando uma morte acidental para que a mulher
e filhos possam ficam com US$ 20 mil dólares da apólice de seguros. Mas o
espectro do irmão Ben, que dialoga consigo, diz que ele é covarde. Falta-lhe
coragem. Willy diz: “É preciso mais coragem para ficar aqui como inválido?”. O
irmão Ben diz que o filho o chamará de covarde, de grande idiota e que o odiará.
Wily fica inquieto, mas não desiste da idéia da solução final.
Willy é um homem proletário que perdeu a percepção de sentido de
realidade. Imagina que seu funeral será concorrido e que velhos amigos
acorrerão ao cemitério com placas estranhas. Lembremos que ele escolhera a
carreira de caixeiro-viajante imaginado que através dela poderia granjear
amizade e reconhecimento – enfim ser lembrado e amado por muita gente. Vã
ilusão! Imaginava que o funeral seria o ocasião para o filho Biff – a quem
sempre procurou impressionar – ver que ele era um homem conhecido. “Ele
verá com os próprios olhos, de uma vez por todas. Ele verá o que sou. Ele terá
um choque”. Pura fantasia! No enterro de Willy só apareceram mulher, filhos, o
amigo Charlie e o filho Bernard. “Onde estão os amigos?”. Perdido na vida,
perdido na morte.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
51
Talvez Willy Loman imaginasse que seu funeral fosse como o de Dave
Singleman, o velho vendedor que lhe inspirou a seguir a carreira de caixeiro-
viajante há muito tempo. Dave Singleman teve a morte de um caixeiro-viajante.
O fracasso de Willie Loman foi irremediavelmente completo – não teve sequer o
funeral de um caixeiro-viajante.
Willy Loman não apenas não sabia quem era, mas também desconhecia
em que mundo social vivia. No mundo do capital não havia lugar para
personalidade, amizade e camaradagem e, muito menos, para piedade . No
mundo dos negócios – a selva do mercado e da corrida do ouro - o que valia
eram os registros do Poder e do Dinheiro. Na verdade, algo obnubilava em
Willy, a percepção de si e dos outros. A adoção de valores pequeno-burgueses
anacrônicos era sintoma de uma inadequação pessoal.
Willy Loman, homem solitário e sozinho no mundo, carente de atenção e
amizade, fizera escolhas na vida baseado em sua personalidade singular.
Desistiu de seguir o pai e o irmão mais velho em suas aventuras destemidas no
Alasca em busca do ouro. Encontrara na carreira de vendedor um espaço para a
amizade e o reconhecimento pessoal, além da possibilidade de autonomia
laboral.
Entretanto, os tempos mudaram – as qualidades humanas que sonhara
para si e para seus filhos, não serviam no mundo administrado dos grandes
negócios Disse Linda: “Um vendedor precisa sonhar. É inerente à profissão”.
Mas o sonho de Willy era inadequado à ordem competitiva do capital
monopolista. Na verdade, seu sonho era uma auto-ilusão. Os registros de seus
“sonhos” do que era ser um homem de sucesso não eram validados pela nova
ordem burguesa do trabalho mecanizado e das personas medíocres e venais do
capital.
Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global
52
Questionamentos
1. Em que medida o capitalismo global dissemina ilusões pequeno-
burguesas? Identifique algumas delas no mercado de ideologias
dominantes.
2. Nas condições sócio-metabólicas do capitalismo global, quais os
elementos que contribuem para a despersonalização do homem que
trabalha?
3. Por que o filho Happy é quase desprezado pelo pai Willy Loman?
Giovanni Alves
(2009)