Cunha, Euclides da - À Margem da História

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Margem da Histria - Euclides da Cunha

Margem da Histria Euclides da CunhaIntroduo

Foi Coelho Neto, grande amigo de Euclides, que o induziu a editar seus livros na Editra Lello, de Portugal. O xito editorial do autor de Livro de Prata (pelo assunto e pelo estilo) o animou a aconselhar seu colega da Academia prestigiosa casa do Prto. A morte inesperada de Euclides, porm, as naturais dificuldades para os necessrios contactos com editres e a falta de afinidade dos portuguses com a temtica euclidiana fizeram com queas seguintes edies de Contrastes e Confrontos e Margem da Histria se epaassem cada vez mais e no tivessem a indispensvel assistncia direta do Autor, ou de revisores afetios matria. Margem da Histria (obra pstuma que s saiu um ms aps a morte do escritor) vem em sua 1 edio -provvelmente pela falta de uma reviso final de Euclides -eivada de erros e descuidos. Graas ao zlo de seus editres, as edies seguintes se apresentam mais corretas e melhor revistas. Sendo crescente entre ns o intersse pela obra euclidiana e dada a importncia dos livros para a perfeita compreenso da problemtica do Autor, impunha-se fssem eles editados entre ns, na nossa ortografia e sob nosso cuidados revisrios. Graas aos entendimentos da Editra Lello Brasileira, de So Paulo, conseguindo autorizao da Editra Lello, do Prto, e com o estabelecimento de textos feito pelo Sr. Dermal Monfr, temos agora (como iniciativa da editra nacional em comemorao ao Ano Euclidiano) os dois livros editados no Brasil. Margem da Histria compe-se de quatro partes: Na Amaznia, Terra Sem Histria (7 captulos, sbre essa regio), Vrios Estudos (3 captulos, assuntos americanos), Da Independncia Repblica (ensaio histrico) e Estrlas Indecifrveis (crnica). O livro apresenta, bem ntidas, quatro constantes da personalidade cultural de Euclides: o cultor da lngua e verdadeiro esteta da linguagem, o ensasta e o humanista brasileiro. No h preciosismo no falar euclidiano; h, sim, o rigorismo da palavra exata. Seu vocabulrio riqussimo, tcnico e profissional quando necessrio, era-lhe o instrumento prprio para captar tdas as sutilezas da realidade e expor o logicismo de seu raciocnio de investigador e a lucidez do intrprete. Nas palavras densas, carregadas de emoes e evocaes, dispostas numa estruturao sinttica de ritmo veemente, que se torna frmito de vida e poesia, temos a prpria autenticidade de Euclides, numa linguagem que bem tropicalmente brasileira, no transbordamento fenomenolgico de formas, sons, calor e luz. Se nOs Sertes le foi mais 1

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improvisado e por isso mais grandiloqente e espetacular, agora ei-lo mais equilbrio e maturidade. O captulo Judas Ahsverus (que nasceu inteirio como um bloco de beleza) continua sendo uma das melhores pginas da lngua portugusa. O esprito cientfico de Euclides, sempre estudando e sumariando os assuntos (formado na juventude conforme o esprito da poca), dado a hipteses e prefiguraes muitas vzes discutveis, extravasa-se na insopitvel vocao ao ensasmo, exigindo-lhe conhecimentos e pesquisas, para que se torne mais lcido, mais penetrante, melhor intrprete. Por isso achamos que h necessidade de uma iniciao cultural para se sentir e compreender Euclides. No estranhamos ser le um escritor pouco popular. Sua irrefrevel tendncia interpretao fisiolgica dos fenmenos naturais mostra-se atravs de uma vibrao romntica e idealstica, fazendo surgir, dos algarismos e teorias, sua figura inigualvel de artista. Euclides inesgotvel. Por mais que se queira defini-lo e caracteriz-lo, ainda se descobrem novas veredas e magnficas perspectivas que escaparam delimitao... Seu tema central a ptria e a gente brasileira. NOs Sertes o objetivo ltimo o homem; n"Amazonia, o tema principal a terra. Seu nacionalismo mais se prende preocupao do bem comum e da denncia das estruturas desequilibradas de nossa sociedade. J de algum tempo era sua inteno escrever um "segundo livro vingador". Deveria referir-se Amaznia, acusando os descasos pela terra e o desprzo pelo homem. Deveria chamar-se Paraso Perdido. No o completou, porm, e alguns de seus captulos constituem a Terra Sem Histria, que abre ste volume. So, no entender de alguns euclidianos, as mais expressivas e belas pginas de Euclides. Quando, em 1904, escreveu a Jos Verssimo sbre sua ida ao Acre (como Chefe da Comisso de Reconhecimento das Nascentes do Rio Purus) confessa o intento: "Aquelas paragens, hoje, depois dos ltimos movimentos diplomticos, esto como o Amazonas antes de Tavares Bastos; se eu no tenho a viso admirvel dste, tenho o seu mesmo anelo de revelar os prodgios da nossa terra". Seu desejo era mostrar os aspectos fsicos e as riquezas essenciais da exuberante regio. "Alm disso, se as naes estrangeiras mandam cientistas ao Brasil, que absurdo haver no encarregar-se de idntico objetivo um brasileiro?" O grande rio teve o intrprete altura. Conhecer melhor a Amaznia aqule que ler as pginas de Terra Sem Histria. No smente a geografia descritiva que o empolga; so suas transfiguraes no tempo. O mesmo crtico da caatinga, dOs Sertes, aqui o arrebatado revelador do sistema hidrogrfico da (ainda hoje) desordenada regio. E se o sertanejo antes de tudo um forte, 2

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o seringueiro, um tipo de lutador excepcional. Devido, porm, ao egosmo desenfreado dos patres opulentos, o homem ali "trabalha para escravizar-se". Se nOs Sertes a denncia fica mais como um alerta, aqui Euclides mais objetivo e recomenda leis trabalhistas (isso em 1906...) para que "salvemos aquela sociedade obscura e abandonada". Enquanto Contrastes e Confrontos est recheado de estudos e ensaios que so o desdobramento ou a complementao dOs Sertes, ste outro em nada a les se assemelha, a no ser pelo mesmo tema da integrao nacional -atravs da penetrao na Amaznia -e o mesmo desvlo pelo sofrido homem de nossa ptria, o que faz de Euclides da Cunha um dos primeiros e mais ardorosos cultores do humanismo brasileiro. Continuam aqui suas preocupaes e seus intersses pelos problemas americanos, principalmente os referentes Amrica do Sul. Isso em 1904. Se os tivssemos acompanhado e estudado com igual dedicao e cuidado, hoje teramos uma alinaa latinoamericana melhor e mais eficientemente estruturada e, conseqentemente, uma vida econmica e social mais condinzente com nossas possibilidades e riquezas. O historiador Euclides tem, no esbo Da Independncia Repblica, um ensaio cuja leituradeve ser obrigatria mesmo para os especialistas no assunto. lcido e original na interpretao do evoluir de nosso processo histrico-social. O livro termina com um captulo que parece chamar a ateno para os cus indecifrveis, assuntoque hoje seria o ponto alto das pesquisas cientficas, nas penetraes espaciais. poesia, cincia e confisso do agnstico diante do infinito desconhecido e sua nsia de decifr-lo... Os euclidianos brasileiros, exultantes, muito tm a agradecer Lello Brasileira S.A., pelo retrno dstes dois filhos prdigos...

Oswaldo Galotti Grmio Euclides da Cunha, de So Jos do Rio Pardo

I Parte Na Amaznia, Terra Sem Histria Impresses Gerais

Ao revs da admirao ou do entusiasmo, o que nos sobressalteia geralmente, diante do Amazonas, no desembocar do ddalo florido do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, antes um desapontamento. A massa de guas , certo, sem par, capaz daquele terror a que se refere Wallace; mas como todos ns desde mui cedo gizamos um Amazonas ideal, 3

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merc das pginas singularmente lricas dos no sei quantos viajantes que desde Humboldt at hoje contemplaram a hilia prodigiosa, com um espanto quase religioso -sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior imagem subjetiva h longo tempo prefigurada. Alm disto, sob o conceito estritamente artstico, isto , como um trecho da terra desabrochando em imagens capazes de se fundirem harmoniosamente na sntese de uma impresso empolgante, de todo em todo inferior a um sem nmero de outros lugares do nosso pas. Tda a Amaznia, sob ste aspecto, no vale o segmento do litoral que vai de Cabo Frio Ponta do Munduba. sem dvida, o maior quadro da Terra; porm chatamente rebatido num plano horizontal que mal alevantam de uma banda, feio de restos de uma enorme moldura que se quebrou, as serranias de arenito de Monte Alegre e as serras granticas das Guianas. E como lhe falta a linha vertical, preexcelente na movimentao da paisagem, em poucas horas o observador cede s fadigas de monotonia inaturvel e sente que o seu olhar, inexplicvelmente, se abrevia nos sem-fins daqueles horizontes vazios e indefinidos como o dos mares. *** A impresso dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva, esta: o homem, ali, ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido -quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salo. E encontrou uma opulenta desordem... Os mesmos rios ainda no se firmaram nos leitos; parecem tatear uma situao de equilbrio derivando, divagantes, em meandros instveis, contorcidos sem "sacados", cujos istmos a reveses se rompem e se soldam numa desesperadora formao de ilhas e de lagos de seis meses, e at criando formas topogrficas novas em que stes dois aspectos se confundem; ou expandindo-se em "furos" que se anastomosam, reticulados e de todo incaractersticos, sem que se saiba se tudo aquilo bem uma bacia fluvial ou um mar profusamente retalhado de estreitos. Depois de uma nica enchente se desmancham os trabalhos de um hidrgrafo. A flora ostenta a mesma imperfeita grandeza. Nos meios-dias silenciosos -porque as noites so fantsticamente ruidosas -, quem segue pela mata, vai com a vista embotada no verdenegro das flhas; e ao deparar, de instante em instante, os fetos arborescentes emparelhando na altura com as palmeiras, e as rvores de troncos reilneos e pauprrimos de flres, tem a sensao angustiosa de um recuo s mais remotas idades, como se rompesse os recessos de uma daquelas mudas florestas carbonferas desvendadas pela viso retrospectiva dos gelogos. Completa-a, ainda sob esta forma antiga, a fauna singular e monstruosa, onde imperam, pela corpulncia, os anfbios, o que ainda uma impresso paleozica. E quem segue pelos longos rios, no raro encontra as formas animais que existem, imperfeitamente, como tipos abstratos ou simples elos da escala evolutiva. A "cigana" desprezvel, por ex., que se empoleira nos galhos flexveis das oiranas, trazendo ainda na asa de vo curto a garra do rptil... Destarte a natureza portentosa, mas incompleta. uma construo estupenda a que falta 4

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tda a decorao interior. Compreende-se bem isto: a Amaznia talvez a terra mais nova do mundo, consoante as conhecidas indues de Wallace e Frederico Hartt. Nasceu da ltima convulso geognica que sublevou os Andes, e mal ultimou o seu processo evolutivo com as vrzes quaternrias que se esto formando e lhe preponderam na topografia instvel. Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta sse encadeamento de fenmenos desdobrados num ritmo vigoroso, de onde ressaltam, ntidas, as verdades da arte e da cincia -e que como que a grande lgica inconsciente das coisas. Da esta singularidade: de tda a Amrica a paragem mais perlustrada dos sbios e a menos conhecida. De Humboldt a Em. Goeldi -do alvorar do sculo passado aos nossos dias, perquirem-na, ansiosos, todos os eleitos. Pois bem, lde-os. Vereis que nenhum deixou a calha principal do grande vale; e que ali mesmo cada um se acolheu, deslumbrado, no recanto de uma especialidade. Wallace, Mawe, W. Edwards, dOrbigny, Martius, Bates, Agassiz, para citar os que me acodem na primeira linha, reduziram-se a geniais escrevedores de monografias. A literatura cientfica amaznica, amplssima, reflete bem a fisiografia amaznica: surpreendente, preciosssima, desconexa. Quem quer que se abalance a deletre-la, ficar, ao cabo dsse esforo, bem cpouco alm do limiar de um mundo maravilhoso. H uma frase do Professor Frederico Hartt que delata bem o delquio dos mais robustos espritos diante daquela enormidade. le estudava a geologia do Amazonas quando em dado momento se encontrou to despeado das concisas frmulas cientficas e to alcandorado no sonho, que teve de colhr, de sbito, tdas as velas fantasia: - "No sou poeta. Falo a prosa da minha cincia. Revenons!" Escreveu; e encarrilhou-se nas dedues rigorosas. Mas decorridas duas pginas no se forrou a novos arrebatamentos e reincidiu no enlvo... que o grande rio, malgrado a sua monotonia soberana, evoca em tanta maneira o maravilhoso, que empolga por igual o cronista ingnuo, o aventureiro romntico e o sbio precavido. As "amazonas" de Orellana, os titnicos curriquers de Guillaume de LIsle e a Mana del Dorado de Walter Raleigh, formando no passado um to deslumbrante ciclo quase mitolgico, acolchetam-se em nossos dias s mais imaginosas hipteses da cincia. H uma hipertrofia da imaginao no ajustar-se ao desconforme da terra, desequilibrando-se a mais slida mentalidade que lhe balanceie a grandeza. Da, no prprio terreno das indagaes objetivas, as vises de Humboldt e a srie de conjeturas em que se retravam, ou contrastam, todos os conceitos, desde a dinmica de terremotos de Russell Wallace ao bblico formidvel das galerias prdiluvianas de Agassiz. Parece que ali a imponncia dos problemas implica o discurso vagaroso das anlises: s indues avantajam-se demasiado os lances da fantasia. As verdades desfecham em hiprboles. E figura-se alguma vez em idealizar aforrado o que ressai nos elementos tangveis da realidade surpreendedora, por maneira que o sonhador mais desensofrido se encontre bem na parceria dos sbios deslumbrados. Vai-se, por ex., com Fred. Katzer a seriar, a escandir e aconfrontar velhssimos petrefactos ou graptlitos numa longa romaria ideal pelos mais remotos pontos nas mais remotas 5

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idades -largo tempo, a debater-se entre as classificaes macias, a enredar-se na trama das razes gregas das nomenclaturas bravias - e de improviso, os dizeres da cincia desfecham num quase idealismo: as anlises rematam-nas prodgios; as vistas abreviadas nos microscpios desapertam-se no descortino de um passado muitas vzes milenrio; e esboados os contornos estupendos de uma geografia morta, alonga-se-lhe aos olhos a perspectiva indefinida daquele extinto oceano mdiodevnico que afogava todo o Mato Grosso e a Bolvia, cobrindo quase tda a Amrica meridional e chofrando no levante as antiqssimas arribas de Gois, ltimos litorais do continente brasilio-etipico que aterrava o Atlntico indo abranger a frica... Segue-se com os naturalistas da Comisso Morgan, e a histria geolgica, a despeito de linhas mais seguras, no perde o trao grandioso, desenvolvendo-se s duas margens do largo canal tercirio que por longo tempo separou os planaltos brasileiros e os das Guianas, at que o vagaroso sublevar dos Andes, no Ocidente, serrando-lhe um dos extremos, o transmudasse em golfo, em esturio, em rio. Ao cabo, ainda atendo-se aos fatos atuais da fisiografia amaznica, restam outros agentes nmio perturbadores da fria serenidade das observaes cientficas.

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Basta mostrar-se de relance que, ainda nos casos mais simples, h no Amazonas um flagrante desvio do processo ordinrio da evoluo das formas topogrficas. Em tda a parte a terra um bloco onde se exercita a molduragem dos agentes externos entre os quais os grandes rios se erigem como principais fatres, no lhe remodelarem os acidentes naturais, suavizando-lhos. Compensando a degradao das vertentes com o alteamento dos vales, correndo montanhas e edificando planuras, les vo em geral entrelaando as aes destrutivas e reconstrutoras, de modo que as paisagens, lento e lento transfiguradas, reflitam os efeitos de uma estaturia portentosa. Assim o Hoang-Ho aumentou a China com um delta, que uma provncia nova; e, ainda mais expressivo, o Mississipi assombra o naturalista, com a expanso secular do atrro desmedido que em breve chegar s bordas da profundura onde se encaixa o Gulf-Stream. Nas suas guas barrentas andam os continentes dissolvidos. Mudam-se pases. Deconstituem-se territrios. E h um encadeamento to lgico nos seus esforos contnuos, onde incidem as grandes energias naturais, que o acompanh-los implica algumas vzes o acompanhar-se o prprio rumo de um aspecto qualquer da atividade humana: das pginas de Herdoto s de Maspro, contempla-se a gnese de uma civilizao de par com a de um delta; e o paralelismo to exato, que se justificam os exageros dos que, a exemplo de Metchnikoff, vem nos grandes rios a causa preeminente do desenvolvimento das naes. Ao passo que no Amazonas, o contrrio. O que nle se destaca a funo destruidora, exclusiva. A enorme caudal est destruindo a terra. O Professor Hartt, impressionado ante as suas guas sempre barrentas, calculou que "se sbre uma linha frrea corresse dia e noite, sem parar, um 6

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trem contnuo carregado de tijuco e areias, esta enorme quantidade de materiais seria ainda menor do que a de fato transportada pelas guas..." Mas tda esta massa de terras diludas no se regenera. O maior dos rios no tem delta. A Ilha de Maraj, constituda por uma flora seletiva, de vegetais afeitos ao meio maremtico e ao inconsistente da vasa, uma miragem de territrio. Se a despissem, ficariam s as superfcies rasadas dos "mondongos" empantanados, apagando-se no nivelamento das guas; ou, salteadamente, algumas pontas de fragueados de arenito endurecido, esparsas, a smo, naamplido de uma baa. luz das dedues rigorosas de Walter Bates, comprovando as conjeturas anteriores de Martius, o que ali est sob o disfarce das matas, uma runa: restos desmantelados do continente, que outrora se estirava, unido, das costas de Belm s de Macap e que se tem de restaurar, hipotticamente, em passado longnquo, para explicar-se a identidade das faunas terrestres, hoje separadas pelo rio, do Norte do Brasil e das Guianas. O Amazonas, entretanto, poderia reconstru-lo em pouco tempo, com os s 3.000.000 de metros cbicos de sedimentos, que carrega em vinte e quatro horas. Mas dissipa-os. A sua corrente trbida, adensada nos ltimos lances de seu itinerrio de 6.000 milhas, com os desmontes dos litorais, que dia a dia se desbarrancam, fazendo recuar a costa que se desenrola desde o Paru ao Araguari, decanta-se tda no Atlntico. E os resduos das ilhas demolidas -entre as quais a de Caviana que lhe foi antiga barragem e se bipartiu no correr de nossa vida histrica - vo cada vez mais delindo-se e desaparecendo, no permanente assalto daquelas correntezas poderosas. Destarte, desafoga-se mais e mais a desembocadura principal da grande artria e acentua-se o seu desvio para o norte, com o abandono contnuo das paragens que lhe demoram a leste e sbre as quais le passou outrora, deixando ainda, nas reas recm-desvendadas dos brejos marajoaras, um atestado tangvel daquele deslocamento lateral do leito, que tem dado aos gelogos inexpertos a iluso de um levantamento ou de uma reconstruo da terra. Porque, na realidade, esta se reconstitui mui longe das nossas plagas. Neste ponto, o rio, quesbre todos desafia o nosso lirismo patritico, o menos brasileiro dos rios. um estranho adversrio, entregue dia e noite faina de solapar a sua prpria terra. Herbert Smith, iludido ante a poderosa massa de guas barrentas, que o viajente v em pleno Oceano antes de ver o Brasil, imaginou-lhe uma tarefa portentosa: a construo de um continente. Explicou: depondo-se aqules sedimentos do fundo tranqilo do Atlntico, novas terras aflorariam nas vagas e ao cabo de um esfro milenrio encher-se-ia o golfo aberto, que se arqueia do Cabo Orange Ponta do Gurupi, dilatando-se desta sorte, considervelmente, para nordeste, as terras paraenses. The king is building his monument! bradou o naturalista encantado e acomodando s speras slabas britnicas um rapto fantasista capaz de surpreender mais ensofregada alma latina. Esqueceu-lhe, porm, que aqule originalssimo sistema hidrogrfico no acaba com a terra, ao transpor o Cabo Norte; seno que vai, sem margens, pelo mar dentro, em busca da corrente equatorial, onde aflui, entregando-lhe todo aqule plasma gerador de territrio. Os seus materiais, distribudos pelo imenso rio pelsgico que se prolonga com o GulfStream, vo concentrando-se e surgindo a flux, espaadamente, nas mais longnquas zonas: a partir das costas das Guianas, cujas lagunas, a comear no Amap, a mais e mais se 7

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dessecam avanando em planuras de estepes pelo mar em fora, at aos litorais norteamericanos, da Gergia e das Carolinas, que se dilatam sem que lhes expliquem o crescer contnuo os breves cursos dgua das vertentes orientais dos Aleganis. Naqueles lugares, o brasileiro salta: estrangeiro, e est pisando em terras brasileiras. Antolha-se-lhe um contra-senso pasmoso: fico de direito estabelecendo por vzes a extraterritorialidade, que a ptria sem a terra, contrape-se uma outra, rudemente fsica: a terra sem a ptria. o efeito maravilhoso de uma espcie de imigrao telrica. A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E o Amazonas, nesse construir o seu verdadeiro delta em zonas to remotas do outro hemisfrio, traduz, de fato, a viagem incgnita de um territrio em marcha, mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez menores, num desgastamento ininterrupto, as largas superfcies que atravessa. No se lhe apontam formaes duradouras, ou fixas. Por vzes, nas arqueaduras de seus canais remansam-se as guas fazendo que se deponham os sedimentos conduzidos e as sementes que acarretam. Ento as faculdades criadoras do rio despontam supreendedoramente. O baixio prestes recm-formado e aflorando superfcie, delineia-se, em contornos indecisos; define-se logo, vivamente; dilata-se e ascende, bombeando levemente nas guas; e na ilha que se gera, crescendo e articulando-se a olhos vistos, apontoada de cabuchos, que se alongam e se retorcem superfcie maneira de tentculos de um prodigioso organismo - desencadeia-se para logo a luta das espcies vegetais to viva e to dramtica que nem lhe faltam no baralhamento dos colmos, das hastes ou das ramagens revltas, estirando-se, enredando e confundindo-se, todos os movimentos convulsivos de uma enorme batalha sem rudos: dos aningais, que consolidam o tijuco inconsistente com a infibratura dos risomas estirados; aos mangues, que os suplantam e repelem para as bordas, em violentos e tumulturios bracejos; aos javaris altaneiros, que por sua vez recalcam os ltimos expelindo-os para as margens apauladas, e senhoreando os tesos consistentes... Assim se erigiu recentemente a Ilha de Cururu, com dois km de rea; e se reconstrem tdas as que se observam acima dos canais de Breves. Mas formam-se para se destrurem, ou desocarem-se incessantemente. As ilhas trabalhadas pelas mesmas correntes que as geraram, desbarrancam-se a montante e restauram-se a jusante, e vo lento e lento derivando rio abaixo, ao modo de monstruosos pontes desmastreados, de longas proas abatidas e ppas altas, a navegarem dia e noite com velocidade insensvel. Por fim, desgastam-se e acabam. A de Urucurituba durou dez anos (1840-1850) merc da superfcie vastssima; e apagou-se numa enchente... O mesmo fato, nas margens. Os litorais do Amazonas mal lhe definem a calha desmedida. So margens que evitam o rio. Ficam-lhe, normalmente, fora das guas, para alm das vastas planuras salpintadas de "lagos de terra firme", que atenuam, feito compensadores, a violncia das caudais, nas cheias. A, num cenrio mais amplo, se desdobra por vzes a aparncia de uma construo, em larga escala, de solo. O rio, multfluo nas grandes enchentes, vinga as ribanceiras e desafoga-se nos plainos desimpedidos. Desarraga florestas inteiras, atulhando de troncos e esgalhos as depresses numerosas da vrzes; e nos remansos das plancies inundadas, decantam-se-lhe as guas carregadas de detritos, numa 8

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colmatagem plenamente generalizada. Baixam as guas e nota-se que o terreno cresceu; e alteia-se de cheia em cheia, aprumando-se as "barreiras" altas, exsicando-se os pantanais e "igaps", esboando-se os "firmes" ondeantes, para logo invadidos da flora triunfal... at que num s assalto, de enchente, todo sse delta lateral se abata. Numa s noite (29 de julho de 1866) as "terras cadas" da margem esquerda do Amazonas desmoronaram numa linha contnua de cinqenta lguas. o processo antigo, invarivel - patenteando-se ainda no diminuto raio da nossa histria. As ribanceiras a pique da antiga costa do Paru, onde apareceram aos condutcios de Orellana as amazonas lendrias, reduzem-se hoje a um baixio degredado, visvel apenas nas vazantes excessivas. A inconstncia tumulturia do rio retrata-se ademais nas suas curvas infindveis, desesperadoramente enleadas, recordando o roteiro indeciso de um caminhante perdido, a esmar horizontes, volvendo-se a todos os rumos ou arrojando-se ventura em repentinos atalhos.Assim le se precipitou pela angustura afogante de bidos num abandono completo do antigo leito, que ainda hoje se adivinha no enorme plaino maremtico ganglionado de lagoas, de Vila Franca; ou vai, noutros pontos, em "furos" inopinados, afluir nos seus grandes afluentes, tornando-se ilgicamente tributrio dos prprios tributrios; sempre desordenado, e revlto, e vacilante, destruindo e construindo, reconstruindo e devastando, apagando numa hora o que erigiu em decnios -com a nsia, com a tortura, com o exaspro de monstruoso artista incontentvel a retocar, a refazer e a recomear perptuamente um quadro indefinido...

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Tal o rio; tal, a sua histria: revlta, desordenada, incompleta. A Amaznia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilizao distante. Desde os primeiros tempos da colnia, as mais imponentes expedies e solenes visitas pastorais rumavam de preferncia s suas plagas desconhecidas. Para l os mais venerveis bispos, os mais garbosos capites-generais, os mais lcidos cientistas. E do amanho do solo que se tentou afeioar a exticas especiarias, cultura do aborgine que se procurou erguer aos mais altos destinos, a Matrpole longnqua demasiara-se em desvelos terra que sbre tdas lhe compensaria o perdimento da ndia portentosa. Esforos vos. As partidas demarcadoras, as misses apostlicas, as viagens governamentais, com as suas frotas de centenares de canoas, e os seus astrnomos comissrios apercebidos de luxuosos instrumentos, e os seus prelados, e os seus guerreiros, chegavam, intermitentemente, queles rinces solitrios, e armavam rpidamente no altiplano das "barreiras" as tendas suntuosas da civilizao em viagem. Regulavam as culturas; puliam as gentes; aformoseavam a terra. Prosseguiam a outros pontos, ou voltavam -e as malocas, num momento transfiguradas,

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decaam de chfre, volvendo bruteza original. J nos fins do sculo XVIII, Alexandre Rodrigues Ferreira, ao realizar a sua "viagem filosfica", pela calha principal do grande rio, andara entre runas. Na Vila de Barcelos, capital da circunscrio longnqua, antolhara-se-lhe, tangvel, a imagem do progresso tpicamente amaznico, naquele presuntuoso Palcio das Demarcaes -amplssimo, monumental, imponente -e coberto de sap! Era um smbolo. Tudo vacilante, efmero, antinmico, na paragem estranha onde as prprias cidades so errantes, como os homens, perptuamente a mudarem de stio, deslocando-se medida que o cho lhes foge rodo das correntezas, ou tombando nas "terras cadas" das barreiras... Vai-se de um a outro sculo na inaturvel mesmice de renitentes tentativas abortadas. As impresses dos mais lcidos observadores no se alteram, perptuamente desenfludas pelo espetculo de um presente lastimvel contraposto iluso de um passado grandioso. Tenreiro Aranha em 1852, ao erigir-se a provncia do Amazonas, assumiu a sua direo, e numa resenha retrospectiva diz-nos do extraordinrio progresso que se perdera, referindo-se a "manufaturas primorosas", a uma indstria extinta em que "o algodo, o anil, a mandioca e o caf tiveram cultura tal que dava para o consumo sobrando para a exportao; e assim as fbricas de anil, as cordoarias de piassaba, de fiao, tecidos e rdes de algodo, de palhinha ou de penas; as telhas e alvenaria; as de construo civil e naval, com hbeis artistas, fazendo aparecer templos, palcios, ou possantes embarcaes..." Recua-se, porm, exatamente um sculo, a buscar o perodo decantado -e num grande desapontamento observa-se, luz do relatrio feito em 1752 por outro insigne governador, o Capito-General Furtado de Mendona, que a "capitania estava reduzida ltima runa..." Assim se desconchavam os pareceres, agitando idnticos desnimos. Ou ento se harmonizavam de modo impressionador no firmarem a mesma decadncia das gentes singulares. Em 1762 o Bispo do Gro-Par, aqule extraordinrio Fr. Joo de S. Jos serfico voltaireano que tinha no estilo os lampejos da pena de Antnio Vieira -depois de resenhar os homens e as coisas, "assentando que a raz dos vcios da terra a preguia", resumiu os traos caractersticos dos habitantes, dste modo desalentador: - "lascvia, bebedice e furto." Passam-se cem anos justos. Procura-se saber se tudo aquilo melhorou; abrem-se as pginas austeras de Russel Wallace, e v-se que alguma vez elas parecem traduzir, ao p da letra, os dizeres do arguto beneditino, porque a sociedade indisciplinada passa diante das vistas surpreendidas do sbio -drinking, gambling and lying bebendo, danando, zombando - na mesma dolorosssima inconscincia da vida... Assim, essa indiferena pecaminosa dos atributos superiores, sse sistemtico renunciar de escrpulos e sse corao leve para o rro, so seculares; e surgem de um doloroso tirocnio histrico, que vem da"Casa do Paric" "barraca" dos seringueiros. Compulsai os nossos velhos cronistas, com especialidade o imaginoso Padre Joo Daniel, e avaliareis o travamento de motivos fsicos e morais que h muito, ali, entibiam os caracteres. E lde Tenreiro Aranha, Jos Verssimo, dezenas de outros. Nestes livros se espalham, fracionadas, tdas as cenas de um dos maiores dramas da impiedade na Histria. Depois h o incoercvel da fatalidade fsica. Aquela natureza soberana e brutal, em pleno

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expandir das suas energias, uma adversria do homem. No perptuo banho de vapor, de que nos fala Bates, compreende-se sem dvida a vida vegetativa sem riscos e folgada, mas no a delicada vibrao do esprito na dinmica das idias, nem a tenso superior da vontade nos atos que se alheiem dos impulsos meramente egosticos. No exagero. Um mdico italiano belssimo talento - o Dr. Luigi Buscalione, que por ali andou h pouco tempo, caracterizou as duas primeiras fases da influncia climatrica -sbre o forasteiro -a princpio sob a forma de uma superexcitao das funes psquicas e sensuais, acompanhada, depois, de um lento enfraquecer-se de tdas as faculdades, a comear pelas mais nobres... Mas neste apelar para o clssico conceito da influncia climtica esqueceu-lhe, como a tantos outros, influxo porventura secundrio, mas aprecivel, da prpria inconstncia da base fsica onde se agita a sociedade. A volubilidade do rio contagia o homem. No Amazonas, em geral, sucede isto: o observador errante que lhe percorre a bacia em busca de variados aspectos, sente, ao cabo de centenares de milhas, a impresso de circular num itinerrio fechado, onde se lhe deparam as mesmas praias ou barreiras ou ilhas, e as mesmas florestas e igaps estirando-se a perder de vista pelos horizontes vacios; - o observador imvel que lhe estacione s margens, sobressalteia-se, intermitentemente, diante de transfiguraes inopinadas. Os cenrios, invariveis no espao, transmudam-se no tempo. Diante do homem errante, a natureza estvel; e aos olhos do homem sedentrio que planeie submet-la estabilidade das culturas, aparece espantosamente revlta e volvel, surpreendendo-o, assaltando-o por vzes, quase sempre afugentando-o e espavorindo-o. A adaptao exercita-se pelo nomadismo. Da, em grande parte, a paralisia completa das gentes que ali vagam, h trs sculos, numa agitao tumulturia e estril. ***

Como quer que seja, para a Amaz nia de agora devera restaurar-se integralmente, na definio da sua psicologia coletiva, o mesmo doloroso apotegma -ultra equinotialem non peccavi -que Barlaeus engenhou para os desmandos da poca colonial. Os mesmos amazonenses, espirituosamente, o perceberam. entrada de Manaus existe a belssima Ilha de Marapat -e essa ilha tem uma funo alarmante. o mais original dos lazaretos -um lazareto de almas! Ali, dizem, o recm-vindo deixa a conscincia... Mea-se o alcance dste prodgio da fantasia popular. A ilha que existe fronteira bca do Purus, perdeu o antigo nome geogrfico e chama-se "Ilha da Conscincia"; e o mesmo acontece a uma outra,semelhante, na foz do Juru. uma preocupao: o homem, ao penetrar as duas portas que levam ao paraso diablico dos seringais, abdica s melhores qualidades nativas e fulmina-se a si prprio, a rir, com aquela ironia formidvel. que, realmente, nas paragens exuberantes das heveas e castilloas, o aguarda a mais

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criminosa organizao do trabalho que ainda engenhou o mais desaamado egosmo. De feito, o seringueiro -e no designamos o patro opulento, seno o fregus jungido gleba das "estradas" -, o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: o homem que trabalha para escravizar-se. Demonstra-se esta enormidade precitando-a com alguns cifres secamente positivos e seguros. Vde esta conta de venda de um homem: No prprio dia em que parte do Cear, o seringueiro principia a dever: deve a passagem de proa at ao Par (35$000), e o dinheiro que recebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importncia do transporte, num "gaiola" qualquer de Belm ao barraco longnquo a que se destina, e que , na mdia, de 150$000. Aditem-se crca de 800$000 para os seguintes utenslios invariveis: um boio de furo, uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, um terado, um refle (carabina Winchester) e duzentas balas, dois pratos, duas colheres, duas xcaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carretis de linha e um agulheiro. Nada mais. A temos o nosso homem no "barraco" senhoril, antes de seguir para a barraca, no centro, que o patro lhe designar. Ainda um "brabo", isto , ainda no aprendeu o "corte da madeira" e j deve 1:135$000. Segue para o psto solitrio encalado de um comboio levando-lhe a bagagem e vveres, rigorosamente marcados, que lhe bastem para trs meses: 3 paneiros de farinha de gua, 1 saco de feijo, outro, pequeno, de sal, 20 quilos de arroz, 30 de xarque, 21 de caf, 30 de acar, 6 latas de banha, 8 libras de fumo e 20 gramas de quinino. Tudo isto lhe custa crca de 750$000. Ainda no deu um talho de machadinha, ainda o "brabo" canhestro, de quem chasqueia o "manso" experimentado, e j tem o compromisso srio de 2:090$000. Admitamos agora uma srie de condies favorveis, que jamais concorrem: a) que seja solteiro; b) que chegue barraca em maio, quando comea o "corte"; c) que no adoea e seja conduzido ao barraco, subordinado a uma despesa de 10$000 dirios; d) que nada compre alm daqueles vveres -e que seja sbrio, tenaz, incorruptvel; um estico firmemente lanado no caminho da fortuna arrostando uma penitncia dolorosa e longa. Vamos alm -admitamos que, malgrado a sua inexperincia, consiga tirar logo 350 quilos de borracha fina e 100 de sernambi, por ano, o que difcil, ao menos no Purus. Pois bem, ultimada a safra, ste tenaz, ste estico, ste indivduo raro ali, ainda deve. O patro , conforme o contrato mais geral, quem lhe diz o preo da fazenda e lhe escritura as contas. Os 350 quilos remunerados hoje a 5$000 rendem-lhe 1:750$000; os 100 de sernambi, a 2$500, 250$000. Total 2:000$000. ainda devedor e raro deixa de o ser. No ano seguinte j "manso": conhece os segredos do servio e pode tirar de 600 a 700 quilos. Mas considere-se que permaneceu inativo durante todo o perodo da enchente, de novembro a maio _ sete meses em que a simples subsistncia lhe acarreta um excesso superior ao duplo do que trouxe em vveres, ou seja, em nmeros 12

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redondos, 1:500$000 - admitindo-se ainda que no precise renovar uma s pea de ferramenta ou de roupa e que no teve a mais passageira enfermidade. evidente que, mesmo nste caso especialssimo, raro o seringueiro capaz de emancipar-se pela fortuna. Agora vde o quadro real. Aqule tipo de lutador excepcional. O homem de ordinrio leva queles lugares a imprevidncia caracterstica da nossa raa; muitas vzes carrega a famlia, que lhe multiplica os encargos; e quase sempre adoece, merc da incontinncia generalizada. Adicionai a isto o desastroso contrato unilateral, que lhe impe o patro. Os "regulamentos" dos seringais so a ste propsito dolorosamente expressivos. Lendo-os, v-se o renascer de um feudalismo acalcanhado e bronco. O patro inflexvel decreta, num emperramento gramatical estupendo, coisas assombrosas. Por exemplo: a pesada multa de 100$000 comina-se a stes crimes abominveis: a) fazer na rvore um corte inferior ao gume do machado"; b) "levantar o tampo da madeira na ocasio de ser cortada"; c) "sangrar com machacinhas de cabo maior de quatro palmos". Alm disto o trabalhador s pode comprar no armazm do barraco, "no podendo comprar a qualquer outro, sob pena de passar pela multa de 50% sbre a importncia comprada". Farpeiem-se de aspas stes dizeres brutos. Ante les quase harmoniosa a gagueira terrvel de Caliban. natural que ao fim de alguns anos o "fregus" esteja irremedivelmente perdido. A sua dvida avulta ameaadoramente: trs, quatro, cinco, dez contos, s vzes, que no pagar nunca. Queda, ento, na mrbida impassibilidade de um fel desprotegido dobrando tda a cerviz servido completa. O "regulamento" impiedoso: "Qualquer "fregus" ou "aviado" no poder retirar-se sem que liqide tdas as suas transaes comerciais..." Fugir? Nem cuida em tal. Aterra-o o desmarcado da distncia a percorrer. Buscar outro barraco? H entre os patres acrdo de no aceitarem, uns os empregados de outros, antes de saldadas as dvidas, e ainda h pouco tempo houve no Acre numerosa reunio para sistematizar-se essa aliana, criando-se pesadas multas aos patres recalcitrantes. Agora, dizei-me, que resta, no fim de um qinqnio, do aventuroso sertanejo que demanda aquelas paragens, ferretoado da nsia de riquezas? No o ligam sequer terra. Um artigo do famoso "regulamento" torna-o eterno hspede dentro da prpria casa. Citemo-lo com todo o brutesco de sua expresso imbecil e feroz: "Tdas as benfeitorias que o liqidado tiver feito nesta propriedade perder totalmente o direito uma vez que retire-se." Da o quadro doloroso que patenteiam, de ordinrio, as pequenas barracas. O viajante procura-as e mal descobre, entre as sororocas, a estreitssima trilha que conduz vivenda, meio afogada nomato. que o morador no despende o mais ligeiro esfro em melhorar o stio de onde pode ser expelido em uma hora, sem direito reclamao mais breve. Esta resenha comportaria alguns exemplos bem dolorosos. Fra intil apont-los. Dela ressalta impressionadoramente a urgncia de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esfro do homem; uma justia austera que 13

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lhe cerceie os desmandos; e uma forma qualquer do homestead que o consorcie definitivamente terra.

Rios em Abandono

O gegrafo norte-americano Morris Davis revelou o "ciclo vital" dos rios. Era uma concepo revolucionria; e no houve cientista jungido enfezada geografia descritiva, dominante ainda entre ns, que se no escandalizasse ante o conceito desassombrado do yankee. Mas o antagonismo foi passageiro e frgil. Uma simples monografia, Rivers and Valleys of Pennsylvania, deslocou, de golpe, desde 1889, tda a fortaleza inerte da rotina; e firmou um nvo rumo ao critrio geogrfico, no j apenas pelo associar forma a estrutura dos terrenos, completando os facies inexpressivos das superfcies com os elementos geolgicos, seno tambm esclarecendo a gnese dos mais breves acidentes e descobrindo nas linhas pinturescas da mvel fisionomia da terra a expresso eloqente das energias naturais que a modelaram e sem cessar a transfiguram. Por fim ningum mais estranhou que Morris Davis, impelido aos ltimos corolrios da nova doutrina, se abalanasse a uma espcie de fisiologia monstruosa e descrevesse dramticamente as complexas vicissitudes da existncia milenria dos fartos cursos de guas, mostrando-no-los com uma infncia irrequieta, uma adolescncia revlta, uma virilidade equilibrada e uma velhice ou uma decrepitude melanclica, como se les fssem estupendos organismos sujeitos concorrncia e seleo, destinados ao triunfo, ou ao aniquilamento, consoante mais ou menos se adaptam s condies exteriores. No acompanharemos o genial bigrafo dos rios pensilvnicos no explanar a teoria admirvel, que o caso impressionador de uma entrada triunfante -ou de uma rush atrevida - da imaginao e da fantasia nos remansos da cincia. Baasta-nos notar que ela foi aceita em tda a linha e infrangvel, esteando-se em dados indutivos e seguros. Tdas as caudais, de feito, atravessam perodos inevitveis, de ritmos uniformes e constantes, malgrado a variabilidade do teatro em que se operam: a princpio indecisas, errantes e frgeis, derivando ao acaso, ao vis dos pendores, como procura de um bero em cada dobra do cho, e acumulando-se nos numerosos lagos, incoerentemente esparsos, onde repousam; depois, definidas nas primeiras linhas de drenagem mais estveis e fundas para onde convergem, adensadas, as chuvas, formando-se o aparelho das correntes, reprofundando-se os leitos esboados e iniciando-se com a energia tumulturia das cachoeiras o choque secular com as asperezas da terra, longo tempo; at que, extintos os empeos estruturais, estabelecido um leito e definido um traado, o rio se constitua, com os seus afluentes fixos, um declive contnuo em curvaturas regulares, um talvegue ajustado contextura do solo e diferenciao morfolgica que lhe reflete a um tempo os seus vrios estdios -das cabeceiras onde perduram as guas selvagens do antigo regime torrencial, ao curso mdio que lhe caracteriza a situao presente, e ao trecho inferior, prefigurando-lhe a decrepitude, onde le se espraia repousadamente e constri pela colmatagem das vasas que acarreta com velocidade insensvel, a prpria plancie aluvial em que descansa. 14

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a fase de madureza. O rio est na plenitude da vida, depois da molduragem complexa de todos os relevos. Atinge-a rematando um esfro pertinaz, que por vzes tda a histria geolgica da regio. No houve um ponto em todo o percurso de centenares ou de milhares de quilmetros que le no atacasse, um gro de areia que no removesse, balanceando as escavaes a montante com os aterros a jusante - construindo-se a si mesmo -obediente tendncia universal para as situaes estveis. Adquiriu, por fim, o seu perfil longitudinal de equilbrio, e ste, ainda abrupto nas vertentes, onde a correnteza mxima e o volume mnimo, vem contnuamente amortecendo-se, em sucessivo decair de declive, at ao quase horizontalismo no nvel de base, da foz, onde aqules elementos se invertem, resultando o equilbrio dinmico do sistema da relao inversa entre as massas liqidas e as velocidades que se arrastam. Como quer que seja, desde que alcana ste perodo, todos os elementos do seu talvegue, projetados em plano vertical, desenham-se com a forma aproximada de um ramo de desmedida parbola, de concavidade volvida para as alturas. Assim se traduz geomtricamente um fato mecnico complexo. E bem que a tendncia para aquela figura seja em geral perturbada ou extinta nas camadas de resistncia varivel, onde as rochas desvendadas originam o antagonismo das cachoeiras, inegvel que a curva parablica se delineia nos terrenos homogneos como sendo a forma definitiva da seco longitudinal de todos os rios no remate de suas vicissitudes evolutivas.

* * * O Purus um dos melhores exemplos. Desenhando-se-lhe o perfil em tda a extenso itinerria de 3210 quilmetros que vai da embocadura no Solimes aos ltimos manadeiros do Ribeiro Pucani, na serrania deprimida e sem nome que separa as maiores bacias hidrogrficas da Terra, chega-se muito aproximadamente quele ramo de parbola. Pelo menos nenhuma outra curva o definir melhor. Demonstra-o ste quadro onde os vrios trechos se sucedem de modo a acompanhar-se em todo o seu percurso a queda regularssima das guas:

SECES

Distncias Diferenas itinerrias (Km) de nvel (metros) 189

Declividade geral

Declive quilomtrico (metros)

Das nascentes ao 117 Curiuja

1/619

1,60

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Do Curiuja Curanja

a

278 304 300 237 233 740

60 49 39 27 20 58 15

1/4500 1/6500 1/7700 1/8700 1/11000 1/12900 1/66700

0,22 0,16 0,13 0,115 0,085 0,077 0,015

De curanja foz do Chandless Do Chandless foz do Iaco Do Iaco ao Acre Do Acre ao Pani Do Pani ao Mucum Do Mucum Solimes

ao 990

A s h um dado vacilante: o que resulta da diferena de nvel nos pontos extremos do ltimo trecho. Deduzimo-lo adotando um mnimo de 18 metros para altura da foz do Purus, sbre o nvel do mar, quando ela certamente maior e mais favorvel, portanto, s nossas concluses. Os demais elementos, devemo-los aos trabalhos de William Chandless e s nossas observaes recentes. Ora, ao mais rpido lance de vistas, e sem que se exija um desenho faclimo, verifica-se que o grande rio, atravessando um terreno homogneo e mais ou menos impermevel, subordinado a um declive que, apesar de diminuto, dominante na vasta planura, onde as chuvas se distribuem com regularidade incomparvel - dos que mais se adaptam s condies tericas indicadas por Morris Davis; e no ultimar a sua evoluo geolgica retrata-se admirvelmente na parbola majestosa de que tratamos h pouco. No estudar o seu regime geral vamos, portanto, com a firmeza de quem discute a equao de uma curva. Assim, considerando o primeiro trecho, aquela declividade de 1,60m por quilmetro, to diversa da que se lhe sucede, de 0,22m, diz-nos para logo, dispensando o exame local, que o verdadeiro Alto-Purus -demarcado oficialmente a partir da bca do Acre, e estendido por alguns gegrafos ainda mais para jusante -principia de fato muito alm, a 3079 quilmetros da foz, na confluncia do Cujar e do Curiuja, os dois tributrios em que le se reparte numa dicotomia perfeita, perdendo o nome e esgalhando-se largamente fracionado pelos mais remotos pontos da sua vasta bacia de captao. Por outro lado, o declive real de mal se aproxima da conhecida relao firmada como o limite mnimo das vertentes torrenciais. Conclui-se, ento, de pronto, que o rio, at no seu ltimo segmento, onde sempre mais difcil e remorada a regularizao dos leitos, est numa fase avanadssima de desenvolvimento. o caso excepcional de uma grande artria, entre as maiores existentes, 16

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capaz de ser navegada nas mais extremas nascentes, durante as cheias que lhe encubram os numerosos degraus das corredeiras porque em tal quadra, admitindo que as guas subam de trs metros numa calha de dez, com aqule declive, que corresponde a 0,0015m por metro, o simples emprgo da frmula de DAubuisson, nos diz que as corrrentes derivaro com a velocidade mxima de apenas 2,20m, fcilmente balanceada por uma lancha veloz. Ora, estas dedues resultantes de breve contemplao de um quadro to expressivo que dispensa o diagrama correspondente, ressaltam, vivamente, s mais incuriosas vistas de observador escoteiro, que ali passe depois de varar a planura amaznica num itinerrio de quinhentas lguas. De fato, o que sobremaneira o impressiona o espetculo da terra profundamente trabalhada pelo indefinido e incomensurvel esfro dos formadores do rio. Chega, depois de trilhar o canyon coleante do Pucani, ao sop das ltimas vertentes; defronta a clivosa escarpa de uma corda insignificante de cerros deprimidos; vinga-lhe em trs minutos a altura relativa de sessenta metros escassos -e no acredita que esteja na fronteira hidrogrfica mais extraordinria do globo, podendo ir de uma passada nica do Vale do Amazonas ao Vale do Ucaili... A altura em que se v no lhe basta a desapertar os horizontes, ou a atalaiar as distncias. inaprecivel. No h abrang-la com a escala mais favorvel dos mapas. E sem dvida jamais compreenderia to indeciso divortium aquarum a to opulentas artrias, se ao buscar aqules rinces, varando, ao arrepio das itaipavas, por dentro das calhas reprofundadas do Cujar, do Cavaljane e do Pucani, o observador se no habituasse a contemplar, longos dias, os mais enrgicos efeitos da dinmica poderosa das guas que transmudaram a paragem outrora mais em relvo e dominante. No lhe importa a inpia de conhecimentos paleontolgicos ou a carncia de fsseis norteadores. Est, evidentemente, sbre a ruinaria de uma sublevao quase extinta, cujo sinclinal le pde reconstruir, prolongando as linhas dos estratos que afloram nos sulcos onde se encaixam aqules ltimos tributrios, denunciando todos na tranqilidade relativa, quase remansados nos intervalos de suas corredeiras (restos de velhssimas catadupas destrudas), a derradeira fase de uma luta em que o Purus, para alongar a sua seo de estabilidade, teve que derruir montanhas. Pelo menos a atividade erosiva e o volume de materiais arrebatados de todos aqules pendores, foram incalculveis, para que as linhas de drenagem se abatessem at aos substrato rochoso e declinasse, como vimos, aos graus apropriados aos cursos navegveis. Apesar disto, a transio para o trecho seguinte ainda repentina. Passa-se da declividade quilomtrica de 4,60m, para a de 0,22m. Mas o nico salto. Da por diante, como o revela o quadro anterior, at ao ltimo segmento extremado pela foz, onde para descer-se um metro se tem de caminhar 66,700, a atenuao dos declives prossegue com uma regularidade perfeita, incluindo o Purus entre as caudais de todo regularizadas, cujo "ciclo vital" progressivo vai cerrrando-se. No aprofunda mais o leito. Os prprios afloramentos de grs (Parasandstein) aparecendo nas vazantes, dispersos entre Huitana e a embocadura do Acre, e dali para cima ainda mais raros at pouco alm do Iaco, reforam a afirmativa, bem que na aparncia a invalidem.

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Restos de antigas corredeiras desmanteladas surgem como testemunhos das eroses primitivas e no provocam, em geral, o mnimo desnivelamento. O pequeno povoado da Cachoeira, que se erige defrontando um trecho tranqilo do rio, tem o mais imprprio dos nomes, expressivo apenas no recordar um acidente perdido em remoto passado geolgico e do qual perduram apenas alguns blocos desordenadamente acumulados em minsculos recifes, e breves "travesses". Ali, como nos outros trechos, o mesmo quadro da terra estirando-se, complanada, pelos quadrantes, ou docemente ondulada denunciando a mais completa molduragem, associa-se aos demais caracteres no sugerir a derradeira fase do processo evolutivo do vale. Um elemento apenas falta: a regularidade na sucesso das curvas de nvel das vertentes imediatas s margens, que se fronteiam. Qualquer seo transversal do Purus representa as mais das vzes uma praia deprimida que mal se alteia vagarosamente at ao rebordo longnquo da plancie pouco elevada, contraposta a uma barranca despenhada, como a da margem oposta bca do Chandless, ou caindo s vzes a prumo, feito uma muralha, como na situao admirvel do Catai. que imutabilidade daquele perfil de equilbrio se antepes a variabilidade da sua planta, em escala capaz de justificar os que o incluem entre os rios "cujos leitos e margens no esto sequer delineados em seus perfis de estrutura definida a assente". Realmente, o Purus, um dos mais tortuosos cursos dgua que se registram, tambm dos que mais variam de leito. Divaga, consoante o dizer dos modernos gegrafos. A prpria velocidade diminuta, que adquiriu e vai decrescendo sempre at ao quase rebalsamento, nas cercanias da foz, aliada inconsistncia dos terrenos aluvianos, formados por le mesmo com os materiaisconduzidos das nascentes, determina-lhe ste carter volvel. s suas guas, derivando em correntezas fracas, falta a quantidade de movimento necessria s direes intorcveis. O mnimo obstculo desloca-as. Um tronco de samama que tombe de uma das margens, abarreirando-se ligeiramente, desvia o empuxo da massa lqida contra a outra, onde de pronto se exercita, menos em virtude da fra viva da corrente que da incoerncia das terras, intensssima eroso de efeitos precipitados. A indecisa arqueadura, que logo se forma, circularmente, se acentua, e, medida que aumenta, vai tornando mais violentos os ataques da componente centrfuga da correnteza que lhe solapa a concavidade crescente, fazendo que em poucos anos todo o rio se afaste, lateralmente, do primitivo rumo. Mas como ste se traou adscrito aos pontos determinantes de um perfil de equilbrio inviolvel, aqule desvio nunca uma bifurcao, ou definitiva mudana. O rio, depois de rasgar o amplo crculo de eroso, procura volver ao antigo canal, como quem contorneou apenas um obstculo encontrado em caminho. O crculo por onde le se alonga tende a fechar-se. De sorte que tda a rea de terrenos abrangidos se transmuda em verdadeira penncula, ligada por um istmo to delgado, s vzes, que o caminhante o atravessa em minutos, enquanto gasta um dia inteiro de viagem, embarcado, para perlongar o contrno da terra quase insulada. Por fim esta se destaca, ilhando-se de todo. No sobrevir de uma enchente o Purus despedaa a frgil barreira do istmo; e retoma, de golpe, o primitivo curso, deixando margem, a relembrar o desvio por onde divagou, um lago anular, no raro amplssimo. Prossegue. Reproduz adiante outros

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meandros caprichosos, completados sempre pela criao dos mesmos lagos, ou "sacados". E assim vai -perptuamente oscilante aos lados de seu eixo invarivel -num ritmo perfeito, refletindo o jogar de leis mecnicas capazes de se sintetizarem numa frmula, que seria a traduo analtica de curioso movimento pendular sbre um plano de nvel. Desta maneira, ali se resolve naturalmente um dos mais srios problemas de hidrulica fluvial. De fato, aqules lagos so verdadeiros diques, funcionando com um duplo efeito: de um lado impedem as inundaes devastadoras, absorvendo os excessos das cheias transbordantes; de outro lado, regulam o regime das guas, durante as grandes estiagens, em que se abrem por si mesmos, automticamente, "estourando", para usar uma expresso local, e restituindo ao rio empobrecido da vazante parte das massas lqidas que economizaram. No se calcula o valor dstes trabalhos colossais da natureza. Revela-no-los bem um confronto expressivo. Os hidrulicos franceses que averbaram em 1856, como pormenor inverossmil, uma subida de 10,90m, das guas do Garona, originando uma das inundaes mais funestas que tm ocorrido na Europa, -certo no compreenderiam a prpria existncia do vasto territrio amaznico convizinho ao Purus (que vale crca de cinqenta Garonas cheios) se soubessem que le se alteia 15 metros na foz, onde tem uma milha de largo, e que dali a montante as guas tufam num crescendo espantoso at 23 metros sbre as estiagens, na confluncia do Acre. No entanto estas enchentes so incuas. A massa lqida, inflada logo s primeiras chuvas, sobe, galgando velozmente as barrancas, e em poucos dias vai bater nos esteios dos barraces eretos nos "firmes" mais altos do terreno... e todo ste dilvio em marcha no acachoa, no tumultua, no se arremessa em correntezas vertiginosas, no enleia as embarcaes torcendo-as nas espirais vibrantes dos remoinhos e no devasta a terra. Difunde-se; extingue-se silenciosamente; perde-se inofensivo naqueles milhares de vlvulas de segurana; e espraiando-se, raso, pelo cho das matas, ou espalmando-se, desafogadamente, em desmarcadas superfcies onde repontam, salteadas, as ltimas ramas floridas dos igaps afogados, vai, ao contrrio, regenerando aquela mesma terra, e reconstruindoa porque a torna de ano em ano mais elevada com a colmatagem perfeita de tda a vasa que acarreta. Assim, em tda aquela planura, o notvel afluente amaznico, serpenteando nas inumerveis sinuosas que lhe tornam as distncias itinerrias duplas das geogrficas, incluise entre os mais interessantes "rios trabalhadores", construindo os diques submersveis que o aliviam nas enchentes -e lhe repontam, intermitentemente s duas bandas, ora prximos, ora afastados, salpintando tdas as vrzeas ribeirinhas, e avultando maiores e mais numerosos medida que se desce, e se amortecem os declives, at a larga baixada centralizada em Canutama onde as grandes guas tranqilas derivam majestosamente, equilibradas, sulcando de meio a meio a vastido de nvel de um mediterrneo esparso.

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Mas esta formao de lagos ou reservatrios naturais, cuja funo benfica vimos de relance, acarreta inconvenientes de tal porte, que tornam, por vzes, em alguns pontos, quase impenetrvel uma artria fluvial que pelos elementos privilegiados de seu perfil concorre com as mais acessveis navegao regular. Realmente nesse afanoso derruir de barrancas, para torcer-se em seus incontveis meandros, o Purus entope-se com as razes e troncos das rvores que o marginam. s vzes um lano unido, de quilmetros, de "barreira", que lhe cai de uma vez e de sbito em cima, atirando-lhe, desarraigada, sbre o leito, uma floresta inteira. O fato vulgarssimo. Conhecem-no todos os que por ali andam. No raro o viajante, noite, desperta sacudido por uma vibrao de terremoto, e aturde-se apavorado ouvindo logo aps o fragor indescritvel de mirades de frondes, de troncos, de galhos, entrebatendose, rangendo, estalando e caindo todos a um tempo, num baque surdo e prolongado, lembrando o assalto fulminante de um cataclismo e um desabamento da terra. So, de fato, "as terras cadas", das quais resultam sempre duas sortes de obstculos: de um lado o inextricvel acervo de galhadas e troncos, que se entrecruzam superfcie dgua, ou irrompem em pontas ameaadoras, do fundo; e de outro as massas argilosas, ou argiloarenosas que a corrente pouco veloz no dissolve, permitindo-lhes acumularem-se nas minsculas ilhotas dos "torres", ou, mais prejudiciais, nos rasos bancos compactos dos "sales", impropriando a passagem aos mais diminutos calados. No precisamos insistir neste fato. A sua gravidade intuitiva. E considerando-se que le se reproduz em tda a extenso de 480 quilmetros, que vai da embocadura ao Iaco do Curiuja, onde se acumulam cada vez mais aqules entraves, indefinidamente crescentes, chega-se a concluir que o Purus, depois de haver conseguido um dos mais regulares perfis de tda a hidrografia e de aparelhar-se com os melhores elementos predispostos a uma rara fixidez de regime, erigindo-se modlo admirvel entre as caudais mais bem talhadas grande navegao -est, agora, a pouco e pouco perdendo a maior parte dos seus resquisitos superiores, com o progredir de um atravancamento em larga escala, que o tornar mais tarde inteiramente impenetrvel. Dizemo-lo baseando-nos em penosa experincia culminada por um naufrgio. Sobretudo alm da embocadura do Chandless, multiplicam-se tanto stes empecilhos de todo estranhos "tectnica" especial do rio, que em longos "estires", com a profundidade mdia de cinco a seis ps, nas vazantes, onde passariam carregadas as mais poderosas lanchas, mal pode deslizar uma montaria ligeira. Escusamo-nos de exemplificar alongando estas consideraes ligeiras. Notemos apenas que a partir do tributrio precitado at a bifurcao Cujar-Curiuja, o Purus em vrios lugares parece correr por cima de uma antiga derrubada. Vai-se como entre os galhos estonados e revoltos de uma floresta morta. E se observarmos que, alm dos empeos em si mesmas encerrados, estas tranqueiras, rebalsando as guas que se filtram entre os ramos unidos, facilitam a formao de tda a sorte de baixios, compreender-se- em tda a sua latitude o progredimento contnuo dessa obstruo prejudicialssima. 20

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Porque os homens que ali mourejam -o caucheiro peruano com as suas tanganas rijas, nas montarias velozes, o nosso seringueiro, com os varejes que lhe impulsionam as ubs, ou o regato de tdas as ptrias que por ali mercadeja nas ronceiras alvarengas arrastadas sirga nunca intervm para melhorar a sua nica e magnfica estrada; passam e repassam nas paragens perigosas; esbarram mil vzes a canoa num tronco cado h dez anos junto beira de um canal; insinuam-se mil vzes com as maiores dificuldades numa ramagem revlta barrando-lhes de lado a lado o caminho, encalham e arrastam penosamente as canoas sbre os mesmos "sales" de argila endurecida; vzes sem conta arriscam-se ao naufrgio, precipitando, ao som das guas, as ubs contra as pontas durssimas dos troncos que se enristam invisveis, submersos de um palmo -mas no despendem o mnimo esfro e no despedem um golpe nico de faco ou de machado num s daqueles paus, para desafogar a travessia. As lanchas, e at os vapores, que ali vo aparecendo mais a mido, medida que avultam as safras dos cento e vinte opulentos seringais que j se abriram acima da confluncia do Iaco, viajam, invarivelmente, nas quadras favorveis das cheias, quando aqules entraves se afogam em alguns metros de fundo. Sobem, velozes, o rio; descarregam, precipitadamente, em vrios pontos as mercadorias consignadas; carregam-se de borracha; e tornam logo, precpites, guas abaixo, fugindo. Apesar disto, algumas no se forram a repentinas descidas de nvel, prendendo-as. E l se ficam, longos meses -esperando a outra enchente, ou o inesperado de um "repiquete" propcio, invernando paradoxalmente sob as soalheiras caniculares -nas mais curiosas situaes: ora em pleno rio, agarradas pelos centenares de braos das rvores scas, que as imobilizam; ora a meio da barranca, onde as surpreendeu a vazante, grosseiramente especadas, encombentes, com as proas afocinhando, inclinadas, em riscos permanentes de queda; ora no alto de uma barreira, como autnticos navios-fantasmas, aparecendo, de improviso e surpreendedoramente, em plena entrada da mata majestosa. O contraste desta navegao com as admirveis condies tcnicas imanentes ao rio flagrante. O Purus - e como le todos os tributrios meridionais do Amazonas, parte o Madeira -est inteiramente abandonado. Entretanto o simples enunciado dstes inconvenientes, evidentemente alheios s suas admirveis condies estruturais, delata que a remoo dles, embora demorada, no demanda trabalhos excepcionais de engenharia e excepcionais dispndios. O que resta fazer, ao homem, rudimentar e simples. Os grandes, os srios problemas de hidrulica fluvial que ali houve, resolveu-os o prprio rio agindo no jgo harmonioso das foras naturais que o modelaram. E les representam um trabalho incalculvel. O Purus uma das maiores ddivas entre tantas com que nos esmaga uma natureza escandalosamente perdulria. Vejamo-lo, de relance. Tda a hidrulica fluvial parece ter nascido entre os leitos do Garona e do Loire, tais e tantos os monumentos que ali levantou a engenharia francesa. Nunca o homem arremeteu 21

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com tamanha pertincia o brilho com a brutalidade dos elementos. Os romanos transfigurando a Arglia e os holandses construindo a Holanda, emparelham-se bem com os abnegados profissionais que durante um sculo, impassveis ante sucessivos reveses, se devotaram emprsa exaustiva de paralisar torrentes, de atenuar inundaes e de encadear avalanchas, na dupla tentativa de facilitar a navegao e de proteger os territrios ribeirinhos.. E todo sse magnfico esfro em que se imortalizaram Deschamps, Dieulafoy e Belgrand, resuktou em grande parte intil. Intil ou contraproducente. Os primores da engenharia estragaram o Loire. Os diques submersveis ou insubmersveis destinados a salvarem as povoaes, os canais de socorro que se lhes anexavam, as margens artificiais ladeando em dezenas de quilmetros o leito menor das caudais, os enrocamentos antepostos s eroses, as barragens antepostas s correntezas - tinham em geral a durao efmera dos seis meses da estiagem, tal a inconstncia irreparvel daquelas artrias. Por fim engenharam-se estupendos reservatrios alcandorados nos Pireneus, escalonandose por todos os pendores, para armazenar as inundaes. E armazenavam catstrofes rompendo-se-ljes os muros, de onde saltavvam as ondas despenhadas varrendo povoados inteiros... Mas ainda quando estas ruturas dos reservatrios compensadores no formassem os episdios mais dramticos da histria da engenharia, e les pudessem erigir-se estveis e sem riscos, ns, quaisquer que fssem os nossos esforos e os nossos dispndios, jamais os construiramos como no-los construiu o Purus. Considere-se, para isto, ste exemplo. Duponchel, para dar ao Neste -um pequeno rio com a despesa mdia de 25 metros cbicos -um modlo constante, que lhe amortecesse as inundaes, calculou um reservatrio de 300.000.000.000 de litros e recuou antte o algarismo colossal. Ora, o Neste trs vzes menor que o Iaco, que, entretanto, no se inclui entre os maiores afluentes do Purus. Diante dstes dados formidveis pe-se de manifesto que a construo de reservatrios compensadores no grande rio seria o mesmo que fazer um mar; e conclui-se que os existentes, numerosssimos, s suas margens, representam um capital inestimvel e acima dos mais ousados oramentos. Precisamos ao menos conserv-lo. Aproveitemos uma lio velha de um sculo. O Mississipi, que no seu curso inferior retrata o traado do Purus com a exao de um decalque, era, pelas mesmas causas, ainda mais inado de empecilhos, tornando-o quase impenetrvel e em muitos lugares de todo intransponvel. Alguns dos seus tributrios no estavam apenas trancados: desapareciam, literalmente, sob os abatises. No entanto o grande rio, hoje transfigurado, desenha-se como um dos traos mais vivos da pertincia norte-americana. L est, porm, no seu vale, em um de seus afluentes, o Rio Vermelho, um caso desalentador. um rio perdido. O yankee descobriu-o tarde demais. A desmedida 22

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tranqueira, the great raft, exatamente formada como as que esto formando-se no Purus, estira o labirinto de seus madeiros e das suas frondes mortas por 630 quilmetros -e l est, indestrutvel, depois de desafiar durante vinte e dois anos os maiores esforos para uma desobstruo impossvel. Estabelecida a proporo entre aqule rio minsculo e o Purus, entre ns e os norteamericanos, aquilatam-se as dificuldades que nos aguardaro, se progredirem os obstculos apontados, e cuja remoo atual, completando-se com a defesa, embora rudimentar, das margens mais ameaadas pelas eroses, ainda de relativa facilidade. Ao mesmo passo se atenuaro considervelmente as "divagaes" precitadas, que constituem verdadeira anomalia num rio aparelhado de um perfil de estabilidade demonstrvel at geomtricamente, como vimos. De qualquer modo urge iniciar-se desde j modestssimo, mais ininterrupto, passando de govrno a govrno, numa tentativa persistente e inquebrantvel, que seja uma espcie de compromisso de honra com o futuro, um servio organizado de melhoramentos, pequeno embora em como, mas crescente com os nossos recursos - que nos salve o majestoso rio. Von den Stein, com a agudeza irrivalizvel de seu belo esprito, comparou, algures, pinturescamente, o Xingu a um "enteado" da nossa geografia. Estiremos o paralelo. O Purus um enjeitado. Precisamos incorpor-lo ao nosso progresso, do qual le ser, ao cabo, um dos maiores fatres, porque pelo seu leito desmedido em fora que se traa, nestes dias, uma das mais arrojadas linhas da nossa expanso histrica.

Um clima caluniado

Na definio climtica das circunscries territoriais criadas pelo Tratado de Petrpolis tem-se includo sempre um elemento curiosssimo, ante o qual o psiclogo mais rombo suplanta a competncia do Professor Hann, ou qualquer outro mestre em coisas meteorolgicas: o desfafflecimento moral dos que para l seguem e levam desde o dia da partida a preocupao absorvente da volta no mais breve prazo possvel. Cria-se uma nova sorte de exilados - o exilado que pede o exlio, lutando por vzes para o conseguir, repelindo outros concorrentes, ao mesmo passo que vai adensando na fantasia alarmada as mais lutuosas imagens no prefigurar o paraso tenebroso que o atrai. Parte, e leva no prprio estado emotivo a receptividade a tdas as molstias. Atravessa quinze dias infindveis a contornear a nossa costa. Entra no Amazonas. Reanima-se um momento ante a fisionomia singular da terra; mas para logo acabrunha-o a 23

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imensidade deprimida - onde o olhar lhe morre no prprio quadro que contempla, certo enorme, mas em branco e reduzido s molduras indecisas das margens afastadas. Sobe o grande rio; e vo-se-lhe os dias inteis ante a imobilidade estranha das paisagens de uma s cr, de uma s altura e de um s modlo, com a sensao angustiosa de uma parada na vida: atnicas tdas as impresses, extinta a idia do tempo, que a sucesso das aparncias exteriores, uniformes, no revela -e retrada a alma numa nostalgia que no apenas a saudade da terra nativa, mas da Terra, das formas naturais tradicionalmente vinculadas s nossas contemplaes, que ali se no vem, ou se no destacam na uniformidade das planuras... Entra por um dos grandes tributrios, o Juru ou o Purus. Atinge ao seu objetivo remoto; e todos os desalentos se lhe agravam. A terra , naturalmente, desgraciosa e triste, porque nova. Est em ser. Faltam-lhe vestimenta de matas os recortes artsticos do trabalho. H paisagens curtas que vemos por vzes, subjetivamente, como um reflexo subconsciente de velhas contemplaes ancestrais. Os cerros ondulantes, os vales, os litorais que se recortam de angras, e os prprios desertos recrestados, afeioam-se-nos s vistas por maneira a admitirmos um modo qualquer de reminiscncia atvica. Vendo-os pela primeira vez, temos o encanto de equipararmos o que imaginamos com o que se nos antolha, numa exteriorizao tangvel de contornos anteriormente idealizados. Ali, no. Desaparecem as formas topogrficas mais associadas existncia humana. H alguma coisa extraterrestre naquela natureza anfbia, misto de guas e de terras, que se oculta, completamente nivelada, na sua prpria grandeza. E sente-se bem que ela permaneceria para sempre impenetrvel se no se desentranhasse em preciosos produtos adquiridos de pronto sem a constncia e a continuidade das culturas. As gentes que a povoam talham-se-lhe pela braveza. No a cultivam, aformoseando-a: domam-na. O cearense, o paraibano, os sertanejos nortistas, em geral, ali estacionam, cumprindo, sem o saberem, uma das maiores emprsas dstes tempos. Esto amansando o deserto. E as suas almas simples, a um tempo ingnuas e hericas, disciplinadas pelos reveses, garantem-lhes, mais que os organismos robustos, o triunfo na campanha formidvel. O recm-vindo do Sul chega em pleno desdobrar-se daquela azfama tumulturia, e, de ordinrio, sucumbe. Assombram-no, do mesmo lance, a face desconhecida da paisagem e o quadro daquela sociedade de caboclos titnicos que ali esto construindo um territrio. Sente-se deslocado no espao e no tempo; no j fora da ptria, seno arredio da cultura humana, extraviado num recanto da floresta e num desvo obscurecido da Histria. No resiste. Concentra todos os alentos que lhe restam para o s efeito de permanecer algum tempo, intil e inerte, no psto que lhe marcaram; mal desempenhando os mais simples deveres; indo-se-lhe os olhos em todos os vapres que descem -e o esprito ausente nos lares afastados, longo tempo, em um exaustivo agitar de apreenses e conjeturas -at que o sacuda, inesperadamente,, em pleno dia canicular, um sbito estremeo de frio, delatando-lhe a vinda salvadora, e por vzes recnditamente anelada, da febre. E uma surprsa gratssima. A vida desperta-se-lhe de golpe, naquela cotovelada da morte que passou por perto. O impaludismo significa-lhe, antes de tudo, a carta de alforria de um atestado mdico. a volta. A volta sem temores, a fuga justificvel, a desero que se

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legaliza, e o mdo sobredoirado de herosmo, desafiando o espanto dos que lhe ouvem o romance alarmante das molstias que devastam a paragem maldita. Porque preciso coonestar o recuo. Ento cada igarap sem nome um Ganges pestilento e lgubre; e os igaps, ou os lagos, espalmam-se nas vrzeas empantanadas como lagunas Pontinas incontveis. Traa-se um quadro nosolgico arrepiador e trgico, num imaginoso fabular de agruras; e, dia a dia, a natureza caluniada prlo homem vai aparecendo naquelas bandas, ante as imaginaes iludidas, como se l se demarcasse a paragem clssica da misria e da morte...

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O exagro palmar. O Acre, ou, em geral, as planuras amaznicas cindidas a meio pelo longo sulco do Purus, tm talvez a letalidade vulgarssima em todos os lugares recmabertos ao povoamento. Mas considervelmente reduzida. Demonstra-no-lo um ligeiro confronto. As Escolas de Medicina Colonial da Inglaterra e da Frana, revelam-nos, pelos simples ttulos, os resguardos com que se rodeia sempre o transplante dos povos para os novos habitats. H esta linha de nobreza no moderno imperialismo expansionista capaz de absolver-lhe os mximos atentados: os seus brilhantes generais transmudam-se em batedores annimos dos mdicos e dos engenheiros; as maiores batalhas fazem-se-lhe simples reconhecimento da campanha ulterior, contra o clima; e o domnio das raas incompetentes o como da redeno dos territrios, num giro magnfico que do Tonquim ndia, ao Egito, Tunsia, ao Sudo, Ilha de Cuba, e s Filipinas, vai generalizando em todos os meridianos a emprsa maravilhosa do saneamento da terra. Da terra e do homem. A tarefa dplice. Aos conquistadores tranqilos no lhes basta o perquirir as causas meteorolgicas ou telricas das molstias imanentes aos trechos recmconsquitados, na escala indefinida que vai das anemias estivais s febres polimorfas. Restalhes o encargo maior de justapor os novos organismos aos novos meios, corrigindo-lhes os temperamentos, destruindo-lhes velhos hbitos incompatveis, ou criando-lhes outros at se construir, por um processo a um tempo compensador e estimulante, o indivduo inteiramente aclimado, to outro por vzes nos seus caracteres fsicos e psquicos que , verdadeiramente, um indgena artificial transfigurado pela higiene. Para isto o colono, ou o emigrante, torna-se em tda a parte um pupilo do Estado. Todos os seus atos, desde o dia da partida, prefixo nas estaes mais convenientes, aos ltimos pormenores de alimentao, ou de vestir, predeterminam-se em regulamentos rigorosos. Dentro dos lineamentos largos das caractersticas fundamentais do clima quente para onde le se desloca, urde-se a trama de uma higiene individual, onde se prevem tdas as necessidades, todos os acidentes e at os perigos da instabilidadde orgnica inevitvel fase fisiolgica da adaptao a um meio csmico, cujo influxo deprimente sbre o europeu vai da musculatura, que se desfibra, prpria fortaleza de esprito, que se deprime. Assim as medidas profilticas, que comeam 25

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inspirando-se no estudo dos fatres fsicos acabam, no raro, prolongando-se em belssimo cdigo de moral demonstrada. De permeio com os preceitos vulgares para o reagir contra a temperatura alta, e a umidade excessiva que lhe abatem a tenso arteerial e a atividade, lhe trancam as vlvulas de segurana dos poros e lhe fatigam o corao e os nervos, criandolhe, ao cabo, a iminncia mrbida para os males que se desdobram do impaludismo que lhe solapa a vida, s dermatoses que lhe devastam a pele -despontam, mais eficazes e decisivos, os que o aparelham para reagir aos desnimos, melancolia da existncia montona e primitiva; s amarguras crescentes da saudade; irritabilidade provinda dos ares intensamente eletrizados e refulgentes; ao isolamento - e, sobretudo, ao quebrantar-se da vontade numa decadncia espiritual subitnea e profunda, que se afigura a molstia nida de tais paragens, de onde as demais se derivam como exclusivos sintomas. Abra-se qualquer regulamento de higiene colonial. Ressaltam mais breve leitura os esforos incomparveis das modernas misses e o seu apostolado complexo que, ao revs das antigas, no visam arrebatar para a civilizao a barbaria transfigurada, seno transplantar, integralmente, a prpria civilizao para o seio adverso e rude dos territrios brbaros. Nas suas pginas, o que por vzes nos maravilha maos do que os prodgios da previdncia e do saber, desenvolvidos para afeioar o forasteiro ao meio, o curso sobremaneira lento, seno o malgro dos mais pertinazes esforos. A Frana na Indochina, de clima quase temperado, despendeu quinze anos de trabalhos contnuos para que sobrestivesse a mortalidade; e, obedecendo aos pareceres dos seus melhores cientistas, renunciou, depois de longas tentativas, ao povoamento sistemtico da frica equatorial. O mesmo sucede no geral das colnias inglsas, alems ou belgas. Basate-nos notar que a estadia regulamentar dos seus agentes oficiais tem o perodo mximo de trs anos. A volta aos lares nativos uma medida de segurana indispensvel a restaurar-lhes os organismos combalidos. Dste modo, a despeito de to grandes sacrifcios e dispncdios, e dos prodgios de engenharia sanitria que transformam a rudeza topogrfica dos lugares novos, formando-se uma verdadeira geografia artstica, o que nles se forma, por fim, so umas sociedades precrias de perptuos convalescentes jungidos a dietas inflexveis e vivendo atravs das frmulas inaturveis dos receiturios complexos. Ora, comparando-se estas colonizaes adstritas s clusulas de rigorosos estatutos -e de efeitos to escassos - com o povoamento tumulturio, com a colonizao gandaia do Acre -de resultados surpreendentes -certo no se faz mister registrar um s elemento para o asserto de que o regime da regio malsinada no apenas sobradamente superior ao da maioria dos trechos recm-abertos expanso colonizadora, seno tambm ao da grande maioria dos pases normalmente habitados. De fato - parte o favorvel deslocamento paralelo ao equador, demandando as mesmas latitudes -no se conhece na Histria exemplo mais golpeante de emigrao to anrquica, to precipitada e to violadora dos mais vulgares preceitos de aclimamento, quanto o da que desde 1879 at hoje atirou, em sucessivas levas, as populaes sertanejas do territrio entre

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a Paraba e o Cear, para aqule recanto da Amaznia. Acompanhando-a, mesmo de relance, pe-se de manifesto que lhe faltou desde o princpio, no s a marcha lenta e progressiva das migraes seguras, como os mais ordinrios resguardos administrativos. O povoamento do Acre um caso histrico inteiramente fortuito, fora da diretriz do nosso progresso. Tem um reverso tormentoso que ningum ignora: as scas peridicas dos nossos sertes do Norte, ocasionando o xodo em massa das multides flageladas. No o determinou uma crise de crescimento, ou excesso de vida desbordante, capaz de reanimar outras paragens, dilatando-se em itinerrios que so o diagrama visvel da marcha triunfante das raas; mas a escassez da vida e a derrota completa ante as calamidades naturais. As suas linhas baralham-se nos traados revoltos de uma fuga. Agravou-o sempre uma seleo natural invertida: todos os fracos, todos os inteis, todos os doentes e todos os sacrificados expedidos a smo, como o rebotalho das gentes, para o deserrto. Quando as grandes scas de 1879-1880, 1889-1890, 1900-1901 flamejavam sbre os sertes adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas semanas de uma populao adventcia de famintos assombrosos, devorados das febres e das bexigas -a preocupao exclusiva dos podres pblicos consistia no libert-las quanto antes daquelas invases de brbaros moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, s carreiras, os vapres, com aqules fardos agitantes consignados morte. Mandavam-nos para a Amaznia vastssima, despovoada, quase ignota - o que eqivalia a expatri-los dentro da prpria ptria. A multido martirizada, perdidos todos os direitos, rotos os laos de famlia, que se fracionava no tumulto dos embarques acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego para o desconhecido; e ia, com os seus famintos, os seus febrentos e os seus variolosos, em condies de malignar e corromper as localidades mais salubres do mundo. Mas feita a tarefa expurgatria, no se curava mais dela. Cessava a interveno governamental. Nunca, at aos nossos dias, a acompanhou um s agente oficial, ou um mdico. Os banidos levavam a misso dolorosssima e nica de desaparecerem... E no desapareceram. Ao contrrio, em menos de trinta anos, o Estado que era uma vaga expresso geogrfica, um deserto empantanado, a estirar-se, sem lindes, para sudoeste, definiu-se de chfre, avantajando-se aos primeiros pontos do nosso desenvolvimento econmico A sua capital -uma cidade de dez anos sbre uma tapera de dois sculos - transformou-se na metrpole da maior navegao fluvial da Amrica do Sul. E naquele extremo sudoeste amaznico, quase misterioso, onde um homem admirvel, William Chandless, penetrara 3.200 quilmetros sem lhe encontrar o fim -cem mil sertanejos, ou cem mil ressuscitados,, apareciam inesperadamente e repatriavam-se de um modo original e herico: dilatando a ptria at aos terrenos novos que tinham desvendado. Abram-se os ltimos relatrios das prefeituras do Acre. Nas suas pginas maravilha-nos mais do que as transformaes sem par que ali se verificam, o absoluto abandono e o completo relaxo com que ainda se efetua o seu povoamento. Hoje, como h trinta anos, mesmo fora das aperturas e dos tumultos das scas, os imigrantes avanam sem o mnimo resquardo, ou assistncia oficial.

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No entanto, as populaes transplantadas se fixam, vinculadas ao solo; o progresso demogrfico surpreendente - e das cabeceiras do Juru confluncia do Abun alonga-se, cada vez mais procurada, a terra da promisso do Norte do Brasil.

* * * O paralelo expressivo. No se compreende a reputao de insalubridade de um tal clima. Evidentemente o que se realizou e se realiza ainda, embora em menor escala no Acre, foi a "seleo telrica", de que nos fala Kirchoff: uma sorte de magistratura natural, ou revista severa exercida pela natureza nos indivduos que a procuram, para s conceder o direito da existncia aos que se lhe afeioam. Mas o processo geral. Em tdas as latitudes foi sempre gravssima nos seus primrdios a afinidade eletiva entre a terra e o homem. salvam-se os que melhor balanceiam os fatres do clima e os atributos pessoais. O aclimado surge de um binrio de fras fsicas e morais que vo, de um lado, dos elementos mais sensveis, trmicos ou higromtricos, ou baromtricos, s mais subjetivas impresses oriundas dos aspectos da paisagem; e de outro, da resistncia vital da clula ou do tonus muscular, s energias mais complexas e refinadas do carter. Durante os primeiros tempos, antes que a transmisso hereditria das qualidades de resistncia, adquiridas, garanta a integridade individual com a prpria adaptao da raa, a letalidade inevitvel, e at necessria, apenas denuncia os efeitos de um processo seletivo. Tda a aclimao dsse modo um plebiscito permanente em que o estrangeiro se elege para a vida. Nos trpicos, natural que o escrutnio biolgico tenha um carter gravssimo. No h fraudes que lhe minorem as exigncias. Caem-lhe sob o exame incorruptvel, por igual, o tuberculoso inapto maior atividade respiratria nos ares adurentes, pobres de oxignio, e o lascivo desmandado; o cardaco sucumbido pela queda da tenso arterial, e o alcolico candidato contumaz a tdas as endemias; o inftico colhido de pronto pela anemia e o gluto; o noctvago desfibrado nas viglias, ou o indolente estagnado nas sestas enervantes; e o colrico, o neurastnico de nervos a vibrarem nos ares eletrizados, descompassadamente, sob o influxo misterioso dos firmamentos deslumbrantes, at aos paroxismos da demncia tropical que o fulmina, de pancada, como uma espcie de insolao do esprito. A cada deslize fisiolgico ou moral antepe-se o coretivo da reao fsica. E chama-se insalubridade o que um apuramento, a eliminao generalizada dos incompetentes. Ao cabo verifica-se algumas vzes que no o clima que mau; o homem. Foi o que suedeu em grande parte no Acre. As turmas povoadoras que para l seguiram, sem o exame prvio dos que as formavam e nas mais deplorveis condies de transporte, deparavam, alm de tudo isto, com um estado social que ainda mais lhes engravescia a instabilidade e a fraqueza. Aguardava-as e ainda as aguarda, bem que numa escala menor, a mais imperfeita organizao do trabalho que ainda engenhou o egosmo humano.

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Repitamos. O sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sbre a qual nunca demasiado insistir: o homem que trabalha para escravizar-se. Enquanto o colono italiano se desloca de Gnova mais remota fazenda de S. Paulo, paternalmente assistido pelos nossos podres pblicos, o cearense efetua, sua custa e de todo em todo desamparado, uma viagem mais difcil, em que os adiantamentos feitos pelos contratadores insaciveis, inados de parcelas fantsticas e de preos inauditos, o transformam as mais das vzes em devedor para sempre insolvente. A sua atividade, desde o primeiro golpe de machadinha, constringe-se para logo num crculo vicioso inaturvel: o debater-se exaustivo para saldar uma dvida que se avoluma, ameaadoramente, acompanhando-lhe os esforos e as fadigas para sald-la. E v-se completamente s na faina dolorosa. A explorao da seringa, neste ponto pior que a do caucho, impe o isolamento. H um laivo siberiano naquele trabalho. Dostoewski sombrearia as suas pginas mais lgubres com esta tortura: a do homem constrangido a calcar durante a vida inteira a mesma "estrada", de que le o nico transeunte, trilha obscurecida, estreitssima e circulante, que o leva, intermitentemente e desesperadamente, ao mesmo ponto de partida. Nesta emprsa de Ssifo, a rolar em vez de um bloco o seu prprio corpo -partindo, chegando e partindo - nas voltas constritoras de um crculo demonaco, no seu eterno giro de encarcerado numa priso sem muros, agravada por um ofcio rudimentar que le aprende em uma hora para exerc-lo tda a vida, automticamente, por simples movimentos reflexos - se no o enrija uma slida estrutura moral, vo-se-lhe, com a inteligncia atrofiada, tdas as esperanas, e as iluses ingnuas, e a tonificante alacridade que o arrebataram quele lance, aventura, em busca da fortuna. Paralelamente, a decadncia orgnica. A alimentao, que a base mais firme da higiene tropical, no lha fornece, durante largos anos, a mais rudimentar cultura. Constitui-se, ao revs de todos os preceitos, adstrita aos fornecimentos escassos de tdas as conservas suspeitas e nocivas, com o derivativo aleatrio das caadas. Sobretudo isto, o abandono. O seringueiro , obrigatriamente, profissionalmente, um solitrio. Mesmo no Acre prpriamente dito, onde a densidade maior das rvores de borracha permite a abertura de 16 "estradas" numa lgua quadrada, tda esta rea capaz de sustentar, de acrdo com a unidade agrcola corrente, cinqenta famlias de pequenos lavradores, requer a atividade de oito homens apenas, que l se espalham e raramente se vem. Calcule-se um seringal mdio, de duzentas "estradas": tem crca de 15 lguas quadradas; e ste latifndio, que se povoaria larga com 3.000 habitantes ativos, comporta apenas a populao invisvel de 100 trabalhadores, exageradamente dispersos. a conservao sistemtica do deserto, e a priso celular do homem na amplitude desafogada da terra.

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Margem da Histria - Euclides da Cunha

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Ante stes lineamentos de um quadro social to anmalo, no apenas opinvel a letalidade do Acre. O que ressalta, irreprimvel, o conceito de uma salubridade capaz de garantir tantas existncias submetidas a to imperfeito regime. Acredita-se at que as caractersticas tropicais meramente tericas, se reduzem aos paralelos de baixas latitudes, de 8 a 11, que interferem a regio; e aquilatando-se a influncia moderadora sem dvida exercida pela estupenda massa de florestas, que a circulam e a invadem, chegase a concluir que ulteriores observaes meteorolgicas, mal iniciadas agora, talvez lhe apaguem nos mapas a isoterma de 25 graus que a smo lhe traaram. Porque a despeito do incorreto e do vicioso do povoamento e da vida, a sociedade recmchegada aclima-se e progride. Ao mais incurioso viajante que perlustre o Purus no escapa a transformao lenta e contnua. O primitivo explorador vai, afinal, ajustando-se ao solo, sbre o qual pisou durante tanto tempo indiferente. As suas barracas desafogam-se nas derrubadas; e j nas praias, que as vazantes desvendam, j nos "firmes", a cavaleiro das cheias, se delineiam as primeiras reas de cultura. Os tristonhos barraces cobertos de flhas de ubuu, transmudam-se em vivendas regulares, ou amplos sobrados de pedrra e cal. Sebastopol, Canacori, S. Lus de Cassian, Itatuba, Realeza, e dezenas de outros stios do Baixo-Purus; Liberdade e Concrdia, nos mais longnquos trechos, com as suas casas numerosas, que se arruam s vzes ao lado de pequenas igrejas, ampliam-se em verdadeiras vilas. So a imagem material do domnio e da posse definitiva. A evoluo , dste modo, tangvel. Delatam-na at os nomes originais, extravagantes alguns, mas eloqentes todos, das primitivas e das recentes fundaes. Na terra sem histria os primeiros fatos escrevem-se, esparsos e desunidos, nas denominaes dos stios. De um lado est a fase inicial e tormentosa da adaptao, evocando tristezas, martrios, at gritos de desalento ou de socorro; e o viajante l nas grandes tabuletas suspensas s paredes das casas, de chapa para o rio: Valha-nos Deus, Saudades, S. Joo da Misria, Escondido, Inferno... De outro um forte renascimento de esperanas e a jovialidade desbordante das gentes redimidas: Bom Princpio, Nvo Encanto, Triunfo, Quero ver!, Liberdade, Concrdi