Cultura Global e Identidade Individual

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  • 309Cultura global e identidade cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 20, p. 309-312, outubro de 2003

    MATHEWS, Gordon. Cultura global e identidade individual. Bauru: EDUSC, 2002. 414 p.

    Nicole Isabel dos ReisMestranda, Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil

    O que um lar? Quem somos ns neste mundo? Essas so as inda-gaes que basicamente norteiam as quatrocentas pginas da obra do an-troplogo americano Gordon Mathews. Esses questionamentos sodescontrudos e fragmentados em inmeros outros a respeito do que significacultura hoje tanto para o senso comum como para mundo acadmico daantropologia e como as pessoas entendem quem so culturalmente.

    A principal ferramenta usada por Mathews para problematizar a ques-to da identidade cultural o conceito de supermercado cultural global:como pensar em culturas nacionais quando uma boa parcela da populaomundial, diariamente, escolhe aspectos da sua vida nas prateleiras de umsupermercado cultural global? As opes de escolha disponveis a todos soinmeras: tratando-se de comida, por exemplo, pode-se comer ovos e baconno caf da manh, lasanha no almoo e sushi no jantar; como entretenimen-to, pode-se ouvir jazz, samba, reggae e salsa; no campo da religio, pode-se escolher entre se tornar cristo, budista, sufi ou ateu.

    A tenso entre pertencer a uma cultura nacional e ser um consumidordo supermercado global apresentada com a etnografia de trs grupos:artistas japoneses tradicionais e contemporneos; americanos em busca dereligio, cristos e budistas; e intelectuais de Hong Kong procura de umaidentidade aps um evento histrico recente, a devoluo de Hong Kong China.

    Essas etnografias se guiam por indagaes aparentemente simples, masque evocam a dificuldade de se colocar identidades nacionais em categoriasestanques: o que no mundo japons? (Ou americano? Ou chins?).

    No primeiro captulo, Sobre os Significados de Cultura, Mathewsinicia com um panorama geral do conceito de cultura em antropologia e suasinmeras significaes, desde seu aparecimento no sculo XIX, passandopelos evolucionistas, Franz Boas, Ruth Benedict e Clifford Geertz, at aespcie de mal-estar contemporneo no uso do conceito por alguns antro-plogos. Seu objetivo fazer um contraponto entre o conceito clssico decultura como o modo de vida de um povo e o conceito mais contemporneo,

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    Nicole Isabel dos Reis

    que trata cultura como as informaes e identidades disponveis no super-mercado cultural global. Para ele, a oposio fundamental entre esses doisconceitos seria de que o primeiro coloca cultura como formada pelo Estado,e o segundo, como formada pelo mercado. A questo volta-se para comoos grupos etnografados formulam suas identidades culturais entre os princ-pios contraditrios de Estado e mercado, que tm inculcados em suas men-tes. Assim, ele apresenta uma teoria fenomenolgica da formao culturaldo eu, focada em como os eus entendem a formao cultural de suasidentidades. Essa formao colocada como acontecendo em trs diferen-tes nveis. Um primeiro nvel, extremamente profundo, aceito semquestionamento, e que est abaixo do nvel de conscincia (algo similar aoconceito de habitus). Um segundo nvel, intermedirio, que o autor chamade shikata ga nai, uma expresso japonesa que significa no h nada queeu possa fazer a respeito, e que o nvel no qual fazemos o que devemosfazer enquanto membros da sociedade, gostando ou no: parar no sinalvermelho, ir escola, trabalhar para viver. So as presses sociais sobre oeu, e dentro delas ou contra elas que, conscientemente, se luta para moldarseu prprio caminho. O terceiro nvel, bem mais superficial, o do super-mercado cultural global, e o nvel no qual as pessoas sentem que tmabsoluta liberdade de escolha (que no absolutamente livre, mas feita apartir de um catlogo de opes disponveis para determinada classe so-cial, gnero, etnia, formao). Cultura como modo de vida de um povoestaria nos dois primeiros nveis, e cultura como leque de opes, noterceiro. Mathews encerra o captulo colocando em questo o conceito deidentidade, problematizando o que significa uma escolha dentro do super-mercado cultural e apresentando brevemente e justificando sua escolha dosgrupos estudados.

    Os trs captulos que se seguem, dedicados aos japoneses, americanose chineses, formam a maior parte do livro. A etnografia foi realizada emvrios momentos, tanto no Japo como nos Estados Unidos e em HongKong, e fundamentalmente baseada em entrevistas longas, com cerca de120 informantes.

    No captulo sobre o Japo, Mathews questiona as identidades culturaisde tocadores de coto (harpa japonesa), calgrafos, pianistas de jazz, roquei-ros, artistas plsticos, entre outros artistas. So questionadas suas posturasque se inclinam ora em direo manuteno do japanismo no fazerartstico, ora em direo abertura para a ocidentalizao. A manuteno

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  • 311Cultura global e identidade cultural

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    das razes japonesas, assim, pode ser vista como um grilho para o artistaque quer se inserir no cenrio artstico mundial, ao mesmo tempo em quepode ser colocada como s mais um item disposio no supermercadocultural e, assim, como objeto de escolha ou de reinveno.

    Ao falar dos americanos, Mathews concentra-se nas identidades cul-turais dos cristos evanglicos, dos budistas tibetanos e das pessoas quesimplesmente buscam o espiritual. A classificao dos Estados Unidos daAmrica como uma nao crist colocada em xeque com a contraposiode vrios discursos acerca do que seria a verdade religiosa primordial paraos informantes, e sobre como os budistas e as pessoas em busca deespiritualidade exercem e justificam suas opes religiosas baseando-se noideal americano de liberdade de escolha a verdade versus o gosto. Comoos princpios culturais americanos incluem o discurso da busca de felicida-de, o autor coloca que, na realidade, o prprio supermercado cultural global americano: os japoneses podem temer uma ocidentalizao quando muitoinfluenciados por ele, mas os americanos nada tm a temer no sentido deuma completa orientalizao: as religies do Oriente entram como maisum dos produtos do supermercado cultural, escolha do fregus.

    Finalmente, ao falar dos intelectuais de Hong Kong que no sabem qual sua identidade cultural/nacional (hong-konguenses? Chineses de HongKong? Chineses?), Mathews prope a interpretao de um processo recentee que atinge uma gerao especfica de pessoas: aqueles nascidos e criadosem Hong Kong mas que possuem razes chinesas, e que esto confrontadoscom a questo de criar uma identidade depois da devoluo do territrio China. So questionados os processos educacionais, polticos, institucionais emiditicos que influenciam a formao dessas identidades e como os prpri-os informantes interpretam o seu lugar dentro desse jogo de espelhos.

    No captulo final, Procura de um Lar no Supermercado Cultural,Mathews aproxima os trs grupos e demonstra de que forma os diferentespontos de vista dos informantes refletem correntes maiores no mundo dehoje. Assim, o jogo entre as circunstncias especiais de cada sociedade (onvel shikata ga nai) e as escolhas e buscas individuais, (o supermercado) o fator que condiciona a negociao social dos sentidos de identidadecultural dessas pessoas. Mas at que ponto a liberdade de escolha no mera iluso? At que ponto a necessidade de escolha no o prprioshikata ga nai do mundo contemporneo capitalista? O autor discorre

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 20, p. 309-312, outubro de 2003

    Nicole Isabel dos Reis

    sobre as implicaes do capitalismo e da predominncia econmica doOcidente na formao do supermercado cultural.

    Retomando uma discusso do primeiro captulo, no encerramento dolivro Mathews volta s definies antropolgicas de cultura e critica o fazere as preocupaes dos antroplogos contemporneos, argumentando que, seo conceito de cultura ao qual a tradio antropolgica tem se prendido odo modo de vida de um povo, fica cada mais difcil identificar esse modode forma clara num mundo contemporneo fluido e fragmentado. Do mesmomodo, se a antropologia passar a se dedicar ao estudo do supermercadocultural, seu objeto e contedo se tornariam bem obscuros e demasiadosujeitos a modismos. Seria o caso de se criar uma nova base terica paraantropologia? Talvez sim, afirma Mathews, citando as propostas de umanova antropologia, de modernidade e capitalismo comparativos.

    Para ele, a antropologia deve se voltar para o mundo, se tornar cadavez mais acessvel a leigos (pessoas comuns), para manter uma importn-cia e um potencial liberador, j que as questes das quais trata no dizemrespeito somente a quem est no mundo acadmico, mas a todos (ele afirmaque seria necessria uma outra Ruth Benedict para escrever algo do tipoPatterns of Transnational Culture para o nosso tempo).

    E o lar, onde est? Segundo Mathews, no mundo do supermercadocultural no h mais lar particular incontestvel: ele pode ser apenas maisuma construo a partir do prprio supermercado (alm disso, na era daInternet e da conexo universal, no seria possvel deixar o lar: este seriasimplesmente o ponto a partir do qual se acessa o mundo). O lar cultural ficasendo apenas um sonho enquanto isso, querendo ou no, o melhor a fazer banquetear-se no supermercado cultural global.