Cultura como objeto de política pública como... · de Cultura, incluindo o presidente do júri,...

27
FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA CULTURA COMO OBJETO DE POLÍTICA PÚBLICA: INTERFERÊNCIA ARTÍSTICA ENQUANTO INSTRUMENTO DE PROVOCAÇÃO Análise das atividades da Companhia Estável de Teatro para compreender a efetividade do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo Bolsista: Rafael Balseiro Zin [email protected] Orientador: Rafael de Paula Aguiar Araújo [email protected] São Paulo Setembro de 2011 FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO III SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA FESPSP 05 A 09 DE DEZEMBRO DE 2011

Transcript of Cultura como objeto de política pública como... · de Cultura, incluindo o presidente do júri,...

FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO

ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA

CULTURA COMO OBJETO DE POLÍTICA PÚBLICA: INTERFERÊN CIA

ARTÍSTICA ENQUANTO INSTRUMENTO DE PROVOCAÇÃO

Análise das atividades da Companhia Estável de Teatro para compreender a efetividade do

Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo

Bolsista: Rafael Balseiro Zin

[email protected]

Orientador: Rafael de Paula Aguiar Araújo

[email protected]

São Paulo

Setembro de 2011

FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULOIII SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA FESPSP

05 A 09 DE DEZEMBRO DE 2011

2

CULTURA COMO OBJETO DE POLÍTICA PÚBLICA – A INTERFE RÊNCIA

ARTÍSTICA ENQUANTO INSTRUMENTO DE PROVOCAÇÃO 1

Análise das atividades da Companhia Estável de Teatro para compreender a efetividade do

Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo

RESUMO

Pesquisas que buscam a efetividade de políticas culturais são benvindas enquanto

objeto de estudo em ciências sociais. Sabendo disso, o presente artigo tem por objetivo

compreender a efetividade do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de

São Paulo, promulgado pela Lei Nº 13.279, de 8 de janeiro de 2002, com a finalidade de

analisar de que modo é aplicada a verba pública nos projetos, bem como entender, através

de um estudo de caso, como é desenvolvido o trabalho de uma companhia teatral analisada

especificamente, além da verificação das formas de impacto no ambiente em que se insere

e quais são os resultados práticos para o grupo populacional envolvido no processo. Com

isso, essa pesquisa busca compreender qual é a visão que o público beneficiado pelo

investimento público tem do programa, possibilitando uma reflexão sobre o fomento atender

ou não as expectativas a qual se dispõe.

PALAVRAS-CHAVE : Políticas públicas de cultura. Lei de Fomento ao Teatro. Arte e Política.

1 Aproveito estas linhas para registrar meus agradecimentos ao Núcleo de Pesquisas em Ciências Sociais da

FESPSP, sob a Coordenação da professora Carla Regina Mota Alonso Diéguez, por julgarem e darem uma

oportunidade para a execução deste trabalho. Em especial ao professor orientador Rafael de Paula Aguiar

Araújo, por acreditar na possibilidade e no desenvolvimento desta pesquisa. Suas orientações e ponderações

aos meus apontamentos textuais trouxeram-me inquietas e constantes reflexões, sem as quais este trabalho não

seria possível. Ao professor Rodrigo Estramanho de Almeida pelas inestimáveis sugestões às minhas primeiras

impressões, apresentadas no II Seminário de Iniciação Científica da FESPSP, em novembro de 2010. Às

professoras Rosemary Segurado, Roseli Aparecida Martins Coelho e Marta de Aguiar Bergamin, pelas sugestões

de leitura e palavras de carinho. Aos colegas de graduação pelo incentivo e paciência. Seus nomes encheriam

estas linhas... Agradeço, acima de tudo, aos moradores do Arsenal da Esperança e a trupe da Companhia

Estável de Teatro, cujas histórias de vida e engajamento fizeram surgir este diálogo entre a arte e a política.

3

APRESENTAÇÃO

Os pensadores frankfurtianos, Adorno e Horkheimer publicaram em 1947 uma obra

intitulada Dialética do Esclarecimento em que, pela primeira vez, utilizaram o termo indústria

cultural. A discussão gira em torno da questão sobre a função que a arte assume como

mercadoria na sociedade capitalista. Segundo os autores, todas as manifestações artísticas

foram submetidas à lógica da produção de mercado e grande parte da cultura popular

deixou de ser a representação viva da identidade de um povo para se tornar algo fantasioso,

representando uma imagem, na maioria das vezes, estereotipada e excêntrica desta mesma

sociedade (ADORNO e HORKHEIMER, 1985). Nesse contexto, a produção artística fica a

mercê das classes dominantes que comandam os veículos de comunicação e os meios de

produção artísticos. Desse modo, uma parcela mínima da população decide o que “merece”

ser publicado, produzido ou preservado tornando-se, assim, detentores da produção do

imaginário de toda uma sociedade (KANASHIRO, 2009).

Dentre todas as formas de manifestação artísticas transformadas em mercadoria na

sociedade capitalista, uma das linguagens que também sofreu profundas modificações foi o

teatro. De acordo com as informações contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais –

PCN, a arte tem sido proposta como instrumento fundamental de educação ocupando,

historicamente, papéis diversos (BRASIL, 1997). Neste ínterim, fica evidente que a cultura e

a arte não podem ser resolvidas como mera mercadoria. Se o capital foge à rotina,

inventando novos produtos ou dando a um produto velho uma nova aparência, nova

utilidade (às vezes ilusórias) ou nova “identidade” (SINGER, 1987), tem-se que, em muitas

vezes, se utiliza dos próprios elementos produzidos pela cultura, para tal. Segundo Luiz

Carlos Moreira (PERRECHIL e PIACENTINI, 2009) – integrante da Comissão de Políticas

Públicas da Cooperativa Paulista de Teatro – a cultura e a arte são necessidades e direitos,

e são deveres do Estado. Nesse sentido, cabe, então, ao Estado, investir na cultura e na

arte como manifestações não mercantis. É importante salientar que esse investimento, na

maioria das vezes, é observado como gasto ou despesa pública, e não como meio de

propiciar as manifestações autênticas de toda uma sociedade com vistas a legitimar a

identidade de um determinado grupo populacional.

No Brasil, as leis de fomento e programas na área das artes e da cultura, como por

exemplo, a Lei Rouanet – Nº 18.313/1991, que restabelece princípios da Lei Nº 7.505, de 2

de julho de 1986 e que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC e dá

outras providências – ou a Lei Marcos Mendonça – Nº 10.923/1990, que dispõe sobre

incentivo fiscal para a realização de projetos culturais, no âmbito do Município de São Paulo

– apesar de investirem verba pública para o incentivo à produção artístico-cultural, não

4

escapam da lógica de incentivo de mercado. Mesmo em se tratando de ligeiros avanços, no

que diz respeito à discussão sobre as políticas públicas de incentivo à cultura, ainda deixam

muito a desejar. Em princípio, elas deveriam ser tratadas como políticas culturais, embora

os governos, nas três esferas da administração, tenham empreendido esforços

consideráveis para convencer a opinião pública, para transferir competências e decisões da

esfera estatal para a privada (KINAS, 2011). Nessa acalorada discussão encontra-se o

Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, criado pelo

movimento Arte Contra a Barbárie2 e transformado em lei através da presença da classe

teatral na Câmara e do apoio do então vereador Vicente Cândido. Na prática, este é o

primeiro projeto que se distancia do discurso neoliberal3. Aprovado em dezembro de 2001 e

promulgado no ano seguinte pela Lei Nº 13.279, de 8 de janeiro de 2002, o programa tem

por objetivo apoiar a manutenção e a criação de projetos de trabalho continuado de

pesquisa e produção teatral visando ao desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da

população ao mesmo. Segundo informações disponibilizadas pelo Departamento de

Expansão Cultural (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2010), o intuito é financiar projetos que

sejam desenvolvidos em diversos espaços públicos desempenhando o papel de

revitalização de áreas degradadas, inaugurando novos espaços teatrais e levando o teatro

às ruas da cidade. Não obstante, as atividades desenvolvidas pelas companhias de teatro

ocorrem em todas as regiões da cidade, tendo como meta levar a atividade teatral do centro

para as regiões periféricas da capital. O valor total máximo estipulado inicialmente em lei

para cada projeto é R$ 400.00,00. Este valor, assim como o total dos recursos anuais do

Programa, é corrigido pelo IPCA4 a cada edição. A título de exemplo, a 19ª edição,

publicada em 14 de junho de 2011 no Diário Oficial da Cidade, dispõe de R$ 2.797.978,10, e

o valor máximo que poderá ser concedido a cada projeto é de R$ 710.446,98. A comissão

responsável pela seleção é formada por três membros indicados por entidades

representativas da categoria teatral e quatro membros indicados pela Secretaria Municipal

de Cultura, incluindo o presidente do júri, que vota apenas em casos de empate.

2 O Arte Contra a Barbárie é um movimento atuante na cidade de São Paulo, organizado por diversos grupos de

teatro e demais trabalhadores da cultura. Parte da premissa de que sem financiamento e fomento do Estado não

haverá desenvolvimento do fazer teatral. 3 Acontece que, os projetos elaborados até então, representam uma política de Estado junto à política mercantil,

que é uma política de contenção social. Tem-se uma política pública que privilegia a iniciativa privada, com o

dinheiro público, como por exemplo, a Lei Rouanet que consome 1 bilhão e 200 milhões de reais por ano,

enquanto o orçamento da Funarte, mesmo com a maior verba dos últimos 20 anos definido pelo Ministério da

Cultura, soma um investimento total de R$ 56,8 milhões (FUNARTE, 2011). 4 O IPCA - Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo é o índice oficial do Governo Federal para medição

das metas inflacionarias contratadas com o FMI, a partir de julho de 1999.

5

Atualmente o Fomento ao Teatro em São Paulo está em sua 19ª edição. É

interessante observar que sua continuidade proporcionou ganhos para a população, mesmo

não sendo, ainda, uma política pública mais abrangente, ou melhor, um conjunto de políticas

públicas nos três níveis da administração, que se complementam e formam um sistema de

cultura nacional – como é possível observar em países como a França, Inglaterra e Estados

Unidos. Segundo Pedro Pires (PERRECHIL e PIACENTINI, 2009) – também integrante da

Comissão de Políticas Públicas da Cooperativa Paulista de Teatro – antes do Fomento, o

Estado investia aleatoriamente, quando julgava pertinente. De certa forma, nos últimos

anos, a cada edição tem-se aplicado certa quantia de dinheiro para os projetos, elaborados

por meio de edital, com uma comissão pública para julgá-los. Portanto, o Fomento acaba

desencadeando outros indícios de políticas públicas, muito tênues ainda. A luta travada

entre as diversas comissões que discutem o tema é para que essas políticas se ampliem e

permaneçam no tempo, nos moldes do Fomento, como leis, com uma dotação orçamentária

específica, que possibilite justamente a organização dos artistas em torno de seus projetos

artísticos. Outro ganho observável é a possibilidade que os artistas têm de ampliar, de certo

modo, seu horizonte de trabalho e de pesquisa artística. É nesse sentido que se discute a

necessidade de uma formulação mais incisiva de políticas públicas, as quais, para serem

eficazes, precisam de mecanismos capazes de mapear não somente o universo da

produção, mas também o da recepção nesse terreno. Com isso, é possível afirmar que esse

fato revela a necessidade de não somente levar em consideração o problema, mas também

justifica a importância de se elaborar pesquisas socioeconômicas na área da cultura

(BOTELHO, 2001).

Levando em consideração a discussão apresentada, esta pesquisa propõe um

estudo acerca da efetividade de uma política pública específica, o Programa Municipal de

Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Considerando que o teatro – de acordo

com informações contidas nos PCN – no processo de formação dos indivíduos, cumpre não

somente a função integradora, mas dá oportunidade para que estes se apropriem crítica e

construtivamente dos conteúdos sociais e culturais de sua comunidade mediante as trocas

com os seus grupos, e sabendo-se que, além de desenvolver as capacidades artísticas e

expressivas no plano individual, atua no plano coletivo oferecendo, por ser uma atividade

grupal, o exercício das relações de cooperação, de diálogo, de respeito mútuo, de reflexão

sobre como agir com os pares, de flexibilidade de aceitação das diferenças e aquisição de

sua autonomia como resultado do poder agir e pensar sem coerção (BRASIL, 1997), é

preciso ressaltar esse debate. Vale lembrar que o Programa Municipal de Fomento ao

Teatro para a Cidade de São Paulo, além de salientar estas benesses que o teatro propicia,

presta-se a financiar projetos que desempenham o papel de revitalização de áreas

6

degradadas, inaugurando novos espaços teatrais e levando o teatro às ruas da cidade,

resgatando a realização de manifestações artísticas em espaços públicos.

MÉTODOS DE PENSAMENTO E MÉTODOS DE TRABALHO

A construção do problema da pesquisa

Um dos mais fascinantes meios de expressão humana, a arte, pode ser encarada

como objeto privilegiado de estudos em ciências sociais; seja como alvo de crítica, como

interlocutora ou como mero deslumbramento. Isso porque, arte e sociedade têm uma

relação marcada por embates, aproximações e afastamentos. Segundo Miguel Chaia

(2007), a obra artística carrega qualidades que afetam a percepção do mundo. Como uma

esfera do social, arte e sociedade podem se interpenetrar gerando novas possibilidades de

atuação do sujeito e de configuração estética. Contudo, a sociologia, como toda ciência, é

também uma forma de arte (NISBET, 2000). E qualquer forma de arte considerada séria

preocupa-se, antes de tudo, não somente com a representação, mas também com a

produção das diversas realidades. Nesse sentido, é possível afirmar que o interesse da arte

está em iluminar a realidade e comunicar de algum modo essa luz para os outros. Além

disso, a arte possui um domínio próprio, se constitui como linguagem e como poética

expressiva (CHAIA, 2010). Evidentemente, esse discurso se aplica ao fazer teatral. E

quando se trata de intervenções artísticas, especificamente, ao se utilizarem de elementos

da linguagem teatral, situam-se no universo da arte pública, ou seja, a arte que se inscreve

na paisagem da cidade e da vida em comum, distinta da que é vista em museus. De acordo

com Jacques Rancière (2010), há alguns anos vem se desenvolvendo uma nova forma de

arte pública. Uma arte que intervém em lugares mais ou menos marcados pelo abandono

social e pela violência, e que age modificando a paisagem da vida coletiva no sentido de

restaurar uma forma de vida social. Disso, é possível arriscar dizer que, quando a arte é

observada por determinado indivíduo, surgem interpretações de mundo diferentes daquelas

preconcebidas por este, proporcionando possíveis desvelamentos da vida, sem perca da

própria identidade e sem imposição de verdades absolutas, pois tudo que é proposto ou

apresentado está aberto para a interpretação. Contudo, para que isso aconteça,

o espectador diante de uma encenação, bem como o sujeito diante um fato

existencial, um acontecimento cotidiano, necessita, para interpretá-lo,

imprimir um ritmo próprio, interrompendo o movimento ritmado, tanto da

obra quanto da vida. Todo ato de compreensão, portanto, implica uma

atitude rítmica, que estabeleça espaço e tempo para a efetivação de uma

7

atitude criativa. A compreensão estética de algo que nos diga respeito na

vida (...) se assemelha ao movimento do contemplador na arte

(DESGRANGES, 2006: 31).

Daí, a importância que a arte assume enquanto ferramenta para a compreensão social.

Através de características particulares – tais como a exposição dos dramas sociais, o fato

de suscitar reflexos do cotidiano e recriar universos sociais e simbólicos, tanto da sociedade

como dos seus indivíduos – é possível balizar um estudo que tem como objetivo

compreender como se dá essa interação entre o público e intervenção artística. Estudar o

teatro, portanto, através da perspectiva sociológica, possibilita compreender aspectos da

vida contemporânea e as dificuldades e conflitos que esta apresenta.

Isto posto, é preciso observar tais questões sob uma ótica específica. Se a Cultura é

reconhecida expressamente como um conjunto de direitos do cidadão brasileiro, sendo

responsabilidade do Estado a garantia do pleno exercício da vida cultural e acesso às fontes

da cultura nacional (BRASIL, 1988, art. 215), a efetividade das políticas culturais precisa ser

avaliada. Sabe-se que as políticas públicas são o instrumento para a realização dos direitos

dos cidadãos. Nesse sentido, uma política pública constitui um conjunto de princípios,

diretrizes e normas que assume a forma de benefícios, atividades, programas, serviços e

projetos (LOPES, 2010). O poder público, portanto, em suas três esferas, deve ser o

responsável por promover tais ações. Com isso, a necessidade de políticas públicas efetivas

é fundamental para oferecer determinado tipo de segurança social, possibilitando aos

cidadãos o exercício da autonomia, do empoderamento e do protagonismo. No âmbito

cultural, especificamente, tem por objetivo possibilitar a produção simbólico-material,

propiciando a interação social dos indivíduos e contribuindo para a elaboração dos modos

de pensar e sentir (BOTELHO, 2001). Se a elaboração e aplicação de políticas públicas

subentendem a utilização dos impostos, haja visto que é justamente o Estado quem

coordena a arrecadação destes e, se é requisito haver uma regulação ou elaboração de

instrumentos normativos apresentados como forma de lei, que assegurem a manutenção

dos direitos para que estes possam ser reclamados, é necessária a organização dos

segmentos sociais específicos, que tenham capacidade de pressão e negociação, além de

capacidade de formar a opinião pública. Para que o Estado se desenvolva e as políticas

públicas sejam implementadas, é necessário que o poder Executivo tenha apoio do poder

Legislativo. Por ser uma verdadeira batalha o processo de tramitação, em muitas vezes os

planos perdem fôlego e os projetos não se desenvolvem.

Se o contexto de debate sobre políticas públicas aponta anacronismos,

ambigüidades e até mesmo lacunas no que diz respeito à gestão cultural, afinal, o que é

relevante discutir? Compreende-se que um caminho possível é avaliar o que já existe. Por

8

esse motivo, esse trabalho busca avaliar, a partir de um estudo de caso, os resultados de

uma política cultural específica para cidade de São Paulo, justamente no que compete à

produção teatral. Isso, pois O Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de

São Paulo tem como objetivo a criação, a execução e o estabelecimento de diversos

coletivos teatrais, cujas metas dizem respeito à reconfiguração do cenário de produção

artística e a integração de grupos populacionais menos privilegiados, tornando possível o

acesso dos mesmos ao teatro. Se, como exposto anteriormente, o teatro, no processo de

formação dos indivíduos, cumpre não somente a função integradora, mas dá oportunidade

para que estes se apropriem crítica e construtivamente dos conteúdos sociais e culturais de

sua comunidade, mediante as trocas com os seus grupos (BRASIL, 1997), para efeitos de

pesquisa, optou-se por estudar uma companhia que, além de desenvolver as atividades

previstas no edital público de chamada de projetos, desenvolva atividades que não somente

oferecem sua produção teatral, mas que, através da crítica, elabore um trabalho de

conscientização cumprindo a função integradora para os envolvidos no processo. Dessa

forma, foi selecionada a Companhia Estável de Teatro como estudo de caso, em

decorrência do projeto Sobreposições, contemplado pela 14ª edição do Fomento, em janeiro

de 2009.

A escolha se deu, pois a Companhia Estável de Teatro é composta por uma trupe

que realiza, atualmente, um trabalho de pesquisa continuada, com vistas a possibilitar, além

da produção artística, maior integração de uma população em situação de rua com a

estética teatral. Em 2010, a companhia foi contemplada pela quarta vez, na 17ª edição do

Fomento. Segundo informações disponibilizadas pelo Departamento de Expansão Cultural,

da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2010), o

primeiro projeto desenvolvido pelo coletivo – 1ª edição do Fomento, de junho de 2002 –

intitulado Amigos da Multidão, elaborou suas atividades no Teatro Municipal Flávio Império.

Lá, foi iniciado um estudo em torno da função do artista na sociedade a partir de pesquisas

teóricas e práticas. Todo o material coletado gerou o espetáculo O Auto do Circo (2005). No

segundo projeto, Vagar Não é Preciso – 8ª edição do Fomento, de janeiro de 2006 – a trupe

já apresentava um maior amadurecimento de pesquisa. A investigação se deu em torno da

luta por trabalho. Com uma série de ações de criação colaborativa, workshops, oficinas e

debates, a Companhia Estável de Teatro provocou interações entre a sua linguagem

estética e os moradores de uma casa de acolhida, pesquisando suas histórias, buscando

recontá-las na poética de um novo espetáculo, permitindo, assim, que a arte fosse

transformada pelo ambiente e o ambiente pela arte. Durante esse período a produção foi de

canções sertanejas à criação de personagens com características próprias dos atores, com

9

aquilo que eles chamam de “potências limites” 5. A busca culminou no espetáculo O Homem

Cavalo & Sociedade Anônima (2009). Nesse meio tempo a companhia encontrou o que,

para eles, hoje parece coerente como linha de pesquisa e desenvolvimento de um trabalho

conseqüente: a intervenção artística junto a uma população em situação de rua.

O projeto, denominado Sobreposições – 14ª edição do Fomento, de janeiro de 2009

– inaugurou uma nova etapa da pesquisa e tem a função não somente de provocar os

moradores do Arsenal da Esperança, mas também de colocá-los em movimento. Para os

integrantes da companhia, os novos questionamentos permeiam a discussão sobre a

ocupação da trupe no albergue, a atuação deles no espaço e sobre as “velhas certezas”.

Hoje, o Arsenal não é o mesmo que era no ano passado. Ele, além da

imponente arquitetura histórica, é composto por gente. Muita. Sempre numa

roda de renovação e substituição. As características gerais dos homens que

estão acolhidos hoje são muito diferentes de outros períodos: hoje são, na

sua maioria, jovens. Muitos tentando se livrar do crack e retomar a vida,

seus empregos e famílias. Essa realidade requer novas formas de propor

uma intervenção artística pertinente e criar um espaço de interlocução,

debate e análise crítica deste mundo dentro e fora de nós. Requer

reinvenção (COMPANHIA ESTÁVEL DE TEATRO, 2009).

O que faz uma companhia de teatro numa casa de acol hida?

“Uma casa que acolhe”. É com esta expressão que o Arsenal da Esperança – em

funcionamento desde 1996 – abre suas portas oferecendo todos os dias acolhida a 1150

homens que se encontram em situação de rua, devido, na maioria das vezes, os problemas

mais comuns desse grupo populacional, tais como a falta de trabalho, moradia digna,

alimentação, saúde e conflitos familiares. “Quem ingressa nesta casa recebe uma acolhida

digna e, sobretudo, a oportunidade de transformar a sua própria condição de vida”

(ARSENAL DA ESPERANÇA, 2010). De acordo com os dados disponibilizados pela

administração do albergue, nesses quinze anos de funcionamento ininterrupto mais de

30.000 pessoas foram hospedadas, mais de 4,5 milhões de atendimentos foram oferecidos

e 12 milhões de refeições foram produzidas e fornecidas. O Arsenal da Esperança encontra-

se num local repleto de construções históricas, onde funcionou a Hospedaria dos Imigrantes

– um conjunto de prédios destinado, desde 1886, a abrigar os recém-chegados imigrantes a

São Paulo. Neste mesmo espaço, o albergue oferece acolhida às pessoas de passagem,

5 O conceito refere-se à capacidade de superação de um indivíduo após contato com a arte produzida, a partir da

experiência coletiva de criação em grupo.

10

que chegam com os seus fardos, seus sofrimentos e seus projetos de vida. E é justamente

nesse espaço que a Companhia Estável de Teatro desenvolve suas atividades.

No atual contexto urbano a discussão sobre a população em situação de rua adquire

grande importância. Ela pode ser melhor investigada se for adotada como referência a

última contagem realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE,

divulgada pela Secretaria Municipal de Assistência Social, da Prefeitura de São Paulo

(2011a). O censo apresentou novas estatísticas que indicam que a cidade “ganhou”

aproximadamente 4.000 novos moradores em situação de rua totalizando 13.666

desabrigados. Esse dado corresponde a um aumento de 57% dessa população nos últimos

dez anos. Em contrapartida, a população do município teve, no mesmo período, um

aumento de 5%, de acordo com a pesquisa realizada pela Fundação Seade e

disponibilizada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (PREFEITURA DE

SÃO PAULO, 2011b). Uma reportagem publicada pela ONG Nossa São Paulo informou que

o “aumento no uso de drogas – principalmente do crack – e álcool, falha em políticas sociais

e desemprego são possíveis explicações” (SPINELLI, CARAMANTE e CASTRO, 2011) para

esse fenômeno. Além disso, nesse contexto existe um agravante. Atualmente, existem

8.200 vagas em 41 albergues disponibilizados pela Prefeitura. Acontece que entre aqueles

que estão em situação de rua, somente 7.079 pessoas (51,8%) dormem em albergues

municipais, enquanto 6.587 (48,2%) pessoas vivem ao relento nas ruas da cidade

(PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2011a).

Para entender quem são os indivíduos pertencentes a essa população faz-se

necessário conceituá-los. Afinal, quem são os indivíduos pertencentes a esse grupo? Com

vistas a uma melhor compreensão, foi utilizado como parâmetro, para fins instrumentais, a

definição presente em Decreto Federal. A Subchefia para Assuntos Jurídicos, pertencente à

Casa Civil da Presidência da República, instituiu a Política Nacional para a População em

Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento

estabelecendo princípios, diretrizes e objetivos a serem alcançados. No parágrafo único, do

Art. 1º, é possível verificar que:

(...) considera-se população em situação de rua o grupo populacional

heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos

familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia

convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas

degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária

ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite

temporário ou como moradia provisória (BRASIL, 2009).

Os moradores em situação de rua, em sua grande maioria, estão fora do mercado de

trabalho, do acesso à moradia, à educação, à saúde, do convívio familiar. Aquém das

11

estatísticas que contrariam essa situação surgem interpretações imediatistas que os

classificam como “excluídos”, “almas penadas”, “inúteis”. Ser indistinguível, ser vítima, estar

fora dos padrões de civilidade, ser parcialmente atendido pelos serviços públicos, ter

direitos, ser desempregado; todos estes são movimentos tanto para homogeneizar quanto

para diferenciar os moradores em situação de rua (JUSTO, 2008). Essa realidade é

característica do processo de exclusão social que existe no Brasil neste início de milênio. A

exclusão social tem origens econômicas, mas caracteriza-se, também, pela falta de

pertencimento social, falta de perspectiva, dificuldade de acesso à informação e perda de

auto-estima (COSTA, 2005). Assim, eis que se coloca a importância de compreender esse

grupo populacional.

Esse panorama começou a alterar-se a partir do final da década de 1980 e início dos

anos noventa com a Constituição Federal de 1988, que considerou os direitos sociais como

direitos fundamentais de todo cidadão, e com a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS),

que regulamentou os artigos 203 e 204 da Constituição Federal, reconhecendo a

Assistência Social como política pública (COSTA, 2005). Ainda assim, nos últimos anos,

concretizaram-se poucas iniciativas públicas destinadas a essa população. É dessa

configuração que iniciativas como o Arsenal da Esperança se apresentam para o poder

público como forma de diminuição do problema, sendo reconhecida, inclusive, com o

certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Resolução 231 CNAS, de

24/10/2000), Utilidade Pública Federal (Decreto 50517/61, de 03 de julho de 2000), Utilidade

Pública Estadual (Decreto 45471, de 28 de novembro de 2000) e Utilidade Pública Municipal

(Decreto 41132, de 13 de setembro de 2001). Portanto, esse espaço aberto para que as

organizações da sociedade civil assumissem propostas solidárias de atendimento precisa

ser observado. Apesar das tratativas de cunho assistencialistas a qual se dispõe, o espaço

também assume novas características ao comportar atividades contempladas por outra

política pública, neste caso, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de

São Paulo.

Sabe-se que as relações sociais nas grandes cidades destacam-se pelo seu

antagonismo. Nesse contexto, o fundamento psicológico responsável por evidenciar o

caráter das individualidades se dá pela intensificação da vida nervosa. Os indivíduos

tornam-se cada vez mais e mais atribulados e são obrigados a sobreviver sob a lógica da

produção. Com isso, não se dão conta de um fenômeno histórico cada vez mais presente na

sociedade. Segundo Simmel (2005, p. 577),

os problemas mais profundos da vida moderna brotam da pretensão do

indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência

12

frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura

exterior e da técnica da vida.

Dessa maneira, a personalidade urbana fica cada vez mais caracterizada pela

reserva, pela desconfiança, pela apatia e pela insolidariedade. Esses novos fenômenos se

dão, pois nas cidades existe uma constante transformação que enaltece a liberdade dos

indivíduos em relação aos grupos sociais as quais pertencem. A globalização e o avanço

tecnológico têm gerado conseqüências negativas, configuradas na reprodução de

desigualdades sociais e na falta de garantias sociais para grande parcela da população

(COSTA, 2005). A desigual distribuição de bens sociais, a discriminação, o desrespeito às

diferenças, a incerteza, a involução de valores não são anomalias, mas constituintes do

pensamento globalizado e do processo econômico em curso.

(...) o tipo de habitante da cidade grande — que naturalmente é envolto em

milhares de modificações individuais — cria um órgão protetor contra o

desenraizamento com o qual as correntes e discrepâncias de seu meio

exterior o ameaçam: ele reage não com o ânimo, mas, sobretudo com o

entendimento, para o que a intensificação da consciência, criada pela

mesma causa, propicia a prerrogativa anímica (...). Essa atuação do

entendimento, reconhecida, portanto como um preservativo da vida

subjetiva frente às coações da cidade grande, ramifica-se em e com

múltiplos fenômenos singulares (SIMMEL, 2005, p. 578).

Fica claro, portanto, que a situação dos moradores em situação de rua se deu, não

somente pelo que Simmel chama de “preservativo da vida subjetiva”, mas, pelo descuido do

poder público que, integrado ao processo de globalização, não propiciando condições de

sobrevivência para tais indivíduos, fez com que enfraquecessem seu poder de ação,

fazendo-os assumir uma existência anímica. A justificativa mais comum, obviamente não

oficializada, parte do princípio: “deixa pra lá, sempre foi assim!”. Neste amplo e complexo

campo discussão, é possível observar o resultado desse processo, estampado nas ruas e

calçadas da cidade de São Paulo. Esse fenômeno necessita ser revisto e requer novas

possibilidades de intervenção. Nesse sentido, ou se ataca o agente da causa, ou se ataca

os efeitos. Evidentemente, a primeira opção se faz mais coerente. E é justamente nela que a

Companhia Estável de Teatro intervém. É justamente nesse ambiente conturbado, onde a

personalidade urbana caracteriza-se pela reserva, pela desconfiança, pela apatia e pela

insolidariedade que o Arsenal da Esperança se coloca como uma possibilidade.

Qual é, então, a ligação de uma companhia de teatro com uma casa de acolhida?

Nos projetos desenvolvidos pela Companhia Estável de Teatro os integrantes da trupe

utilizam-se constantemente da palavra interferência, pois é justamente o que pretendem no

espaço. Mas, afinal, como interferem na casa? O convite que fazem é para que os

13

moradores participem das atividades desenvolvidas, com um olhar mais próximo. Segundo

Nei Gomes6 (2009), discorrendo sobre a pretensão da Companhia em estimular debates,

“(...) as ações de nosso projeto são falas; ouvidas e assistidas (...). Esperamos aprofundar

contato com troca de saberes e idéias sobre o que geram nossas ações”. Nesse sentido, o

que pretendem é também potencializar a fala do outro lado. Pensando nas contradições

que, em geral, colocam os integrantes da Companhia em desacordo para o debate e que ao

mesmo tempo se prestam muito mais para colocá-los em movimento, as peças são

polifonias, construções em multiplicidade e diversidade. Tudo acontece coletivamente. Os

integrantes da Companhia Estável de Teatro entendem que o processo de criação “dá corpo

a uma nova organização de trabalho dentro deste coletivo, responde a estímulos poéticos e

metafóricos com história e realidade, aprimora processos técnicos de criação e linguagem e

inaugura outros novos (GOMES, 2009).

O trabalho da Companhia Estável de Teatro tem como referência os ensinamentos e

a estética elaborada por Bertold Brecht. Essa forma de teatro, influenciada pela teoria

marxiana, analisa a dialética inerente às relações entre “senhor e criado” e,

concomitantemente, procura elucidar aspectos da sociedade de classes (ROSENFELD,

1966). Através de uma exposição didática e divertida, a Companhia apresenta suas peças

utilizando-se dos recursos do teatro épico. A razão inerente a esse fazer teatral decorre dos

objetivos didáticos que possibilitam a apresentação de um palco capaz de esclarecer o

público a respeito da sociedade em que vive e, principalmente, o dever de transformá-la. O

homem é, sem dúvida, determinado pela situação histórica, contudo, pode, por sua vez,

determiná-la. Tomando dessa forma, o teatro, assim como essa obra múltipla que nele se

concentra, também de modo especial, abre sobre o mundo novas maneiras de se pensar a

sociedade. Produto de um coletivo em combinação e luta, é também sempre o produto

imediato de um específico coletivo humano, onde a ação do sujeito encontra seu espaço na

luta e no acordo com outros sujeitos (PASTA, 1986). E é essa forma de pensar e agir que

faz o estudo de caso, utilizando a Companhia Estável de Teatro como referencial, ser

elementar para a compreensão da efetividade do Programa de Municipal de Fomento ao

Teatro para a Cidade de São Paulo.

No que compete ao avanço nas discussões sobre as políticas públicas, portanto, é

possível observar que falta uma visão orgânica para a área cultural, pois isso implica

conhecer a divisão do trabalho que a lei e os costumes estabelecem entre governo e

iniciativa privada em matéria de políticas sociais. Nessa matéria, é indispensável distinguir

6 Ator integrante e arte-educador em uma das oficinas realizada pela Companhia Estável de Teatro no Arsenal

da Esperança.

14

aquilo que, em cada região ou localidade, está sendo suficientemente bem resolvido, seja

pela indústria cultural, ou por manifestações espontâneas da população, e aquilo que, com

base em critérios defensáveis, o governo deve encorajar (DURAND, 2001). São esses

processos que, em grande parte, dilatam socialmente as práticas amadoras, entendidas

como o viveiro em que germinam e se consolidam as trajetórias que levam ao

profissionalismo em teatro, em artes de um modo geral, e outras expressões culturais.

Abordagens e procedimentos da pesquisa

Sabe-se que o interesse por um determinado problema de pesquisa, a perspectiva

que se coloca para formulá-lo e, o mais importante, a escolha dos instrumentos de coleta do

material a ser analisado, não acontece por acaso. É necessário, portanto, evidenciar o fato

de que uma pesquisa dessa natureza traz consigo um engajamento relativo às questões que

colocam em xeque o caráter político da arte. De acordo com Miguel Chaia (2010),

vemos hoje um grande número de ativismos artísticos e estéticos, artistas

que perambulam por favelas, por bairros pobres e formam o seu campo de

atuação ali. Nesses casos, a arte se constitui na construção de uma trama

coletiva no qual o estético passa a servir para agregar as pessoas sob uma

determinada direção de sociabilidade mais complexa, mais sofisticada, mais

humanizada.

Desse princípio, abre-se uma via que permite reflexões acerca da inserção sociopolítica do

sujeito no mundo através de uma possível construção de consciência crítica, quando em

contato com uma intervenção artística.

Para Maria Isaura Pereira de Queiroz7, os indivíduos somente podem existir em

coletividades. Essas formas de convívio, em consequência, são necessariamente sociais e,

portanto, pressupõem conflitos. E isso vale tanto para os pesquisadores no momento de

execução da pesquisa, quanto para os demais sujeitos pesquisados. Essa relação entre

observador e observado pressupõe o entroncamento entre elementos objetivos e subjetivos

dos dois lados. Contudo, é justamente essa relação entre a objetividade que a pesquisa

requer e os elementos subjetivos intrínsecos ao objeto proposto, que tornam possível o

encontro de informações que o método de análise estatística por si somente não permitiria

encontrar. A respeito dessa proposição, Maria Isaura Pereira de Queiroz recorda que

a existência dessa associação fundamental entre objetividade e

subjetividade foi durante muito tempo desconhecida; supunha-se, isso sim,

7 Professora Emérita da Universidade de São Paulo. Departamento de Sociologia da FFLCH/USP. Centro de

Estudos Rurais e Urbanos – CERU.

15

que eram contraditórias, tão incompatíveis que em surgindo uma, a outra

apagava (QUEIROZ, 1999: 13).

Sabendo disso, por outro lado, sabe-se que as políticas públicas são objetos de

discussão há algum tempo e que o debate ganhou força a partir do processo de

redemocratização brasileira em 1988, aproximadamente. Todavia, para um estudo acerca

da efetividade de uma política cultural é preciso, antes de mais nada, definir o que se

compreende por efetividade. A Agenda 20128 utiliza como referência os conceitos de

eficácia, eficiência e de efetividade adotados pelo Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD) e do Banco Mundial (BIRD) para a avaliação de políticas públicas.

É constituída por um conjunto de ações estratégicas traduzidas em metas. A cada uma das

metas estão associados indicadores de desempenho cujos resultados são mensurados e

publicados semestralmente, permitindo o controle da evolução das políticas públicas e das

prioridades de investimentos da atual gestão durante o período de quatro anos, entre 1º de

janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2012. Portanto, esse método de análise foi

considerado como referência para a execução desta pesquisa.

O montante dos estudos que culminaram no Programa Municipal de Fomento ao

Teatro para a Cidade de São Paulo não teve grandes modificações, após a promulgação da

Lei Nº 13.279. Ou seja, uma vez estabelecidas as diretrizes, diversos grupos teatrais foram

contemplados, mas pouco se sabe acerca do real impacto das atividades elaboradas em

cada caso. Mesmo sabendo que existem os relatórios que as próprias companhias

desenvolvem – até porque, é o parâmetro que a Prefeitura de São Paulo tem para avaliar se

é pertinente ou não continuar com o fomento – do ponto de vista sociológico, ainda existem

lacunas. Além disso, é preciso ressaltar que a escolha da Companhia Estável de Teatro não

se deu de forma aleatória. Chegou-se a ela após a análise dos projetos contemplados pelo

Fomento, da 1ª edição de junho de 2002, até a 16ª edição, de janeiro de 2010. Vale

mencionar que as edições 19ª, 18ª e 17ª não foram consideradas, pois os projetos

aprovados estão em andamento, fato este que impossibilita a realização de um estudo mais

abrangente. Desse modo, fazendo uso de ferramentas metodológicas qualitativas, foi

possível empregar, além da revisão bibliográfica necessária ao desenvolvimento dos

conhecimentos teórico e empírico, as técnicas da observação participante e da aplicação do

questionário de entrevistas.

8 Programa de Metas da Cidade de São Paulo, encaminhado pela Prefeitura de São Paulo à Câmara Municipal

em 31 de março de 2009. Detalha as ações prioritárias, objetivos e as metas que permitirão o monitoramento por

parte dos cidadãos das políticas públicas municipais.

16

A observação participante: o contexto da pesquisa n o campo

Ao longo de 2010, a trupe de atores da Companhia Estável de Teatro realizou

diversas apresentações para os moradores do Arsenal da Esperança. Os espetáculos são o

resultado dos debates e criações coletivas realizados pelo grupo ao longo de cada projeto.

Contudo, para uma abordagem mais específica optou-se nesse estudo pelo

acompanhamento das apresentações do espetáculo O Homem Cavalo & Sociedade

Anônima. Isso porque, de todos os espetáculos elaborados pela Companhia este é

rigorosamente épico. Desde a escolha e o modo de exposição do tema – fábula

fragmentada e repleta de solos narrativos – até os expedientes a partir dos quais o

espetáculo vai se desenhando no tempo e no espaço e no local de apresentação (Arsenal

da Esperança), repleto de homens recolhidos (MATE, 2011). Desse modo, em todas as

visitas realizadas a Casa, com a preocupação de ser o mais fiel possível as particularidades

encontradas, procurou-se evidenciar, em primeiro lugar, o espaço. Em seguida, as pessoas

– os atores sociais presentes no percurso. E, mais adiante, as regras de comportamento

percebidas no ambiente – as relações sociais, os modos de agir, as atitudes, entre outros.

O Arsenal da Esperança carrega características típicas de uma casa de acolhida. O

conjunto de edifícios é composto por diversos quartos, alguns enormes, outros mais

singelos, que mantêm em seu interior beliches e mais beliches, onde os moradores

descansam durante a noite. O ponto forte é a grande área de convivência que se localiza na

parte central do albergue. Nela está instalada uma fonte com uma pedra que jorra água

contendo o seguinte dizer: “Só a bondade desarma”. O fato de ser uma casa mantida por

padres católicos de origem italiana faz com que o lema da casa seja o amor ao próximo e a

solidariedade para com os demais seres humanos. No entanto, um verdadeiro exército de

homens caminha de um lado para o outro tornando a agitação na casa constante. Um fato

que chama bastante a atenção é o modo como o andar sem rumo dentro do albergue

acontece. Esses homens mantinham um olhar distante, mergulhado em pensamentos soltos

ou lembranças de um passado trágico. Dificilmente olham-se uns aos outros. Até porque, a

rotatividade é muito grande entre os que ficam, os que não agüentam o peso das regras

impostas e, até mesmo os que, sem muita sorte, não voltam devido a brigas,

aprisionamento, ou mesmo morte. Esse distanciamento inibe o fortalecimento das relações

entre os abrigados.

Passado esse primeiro momento de reconhecimento participativo no local, logo nas

primeiras observações verificou-se que, além dos moradores da casa, estavam presentes

diversos outros espectadores que não faziam parte do grupo de acolhidos. E isso causou

estranheza, a princípio, pois, se o discurso da trupe coloca o despertar do senso crítico dos

17

moradores, a partir das apresentações, o fato de haver “estranhos” concorrendo ao mesmo

espaço poderia intimidar a aproximação dos albergados. E foi justamente o que aconteceu.

Contudo, o interesse maior estava em perceber como aqueles homens recebiam o que

viam. Isso porque, a maneira como demonstravam interesse pelos movimentos dos atores

variava e muito. Alguns, sentados nos bancos espalhados pelo espaço, nem se importavam

com o que estava acontecendo. Outros chegavam a circular pelo ambiente ao ponto de, em

vários momentos, transitarem entre as composições de cenas que estavam sendo expostas.

Mas nem os atores, nem os demais moradores se incomodavam com essa atitude.

O espetáculo, naquele espaço, repleto de alusões aos homens cavalos forma uma

reificada sociedade anônima. Todos os movimentos das personagens são revestidos por

marcas impressas nos moradores do Arsenal, impregnando as preocupações, os corpos, os

interesses, os modos de fazer e as ressignificações estético-sociais de um trabalho que

parece buscar um espectro de interlocução que transcende o exclusivamente estético

(MATE, 2011). Fato curioso é que, conforme as apresentações seguiam aumentava a

manifestação dos poucos moradores que assistiam. Ora riam, ora gritavam, ora xingavam,

ora saiam de perto. Mas uma coisa era evidente: a interferência da trupe, de um modo ou de

outro, alterava o ritmo da casa. Aqueles rostos perdidos no tempo e no espaço

transformavam-se em sorrisos. Compreendendo ou não o que se passava, alguns

albergados sentiam o que estava acontecendo com entusiasmo; algo que destoava do ritmo

cotidiano do Arsenal. Entretanto, os comportamentos dos grupos eram bastante diferentes.

Seria necessário, portanto, dar mais atenção às coisas que certamente teriam parecido

extravagantes de início. Constatou-se que, em cada um desses grupos, ao agirem uns em

relação aos outros e em relação a estranhos, as diferenças se evidenciavam. Essas

diferenças percebidas em suas atitudes, nos modos com os quais cada grupo se relaciona

com as regras de comportamento preestabelecidas, na linguagem que cada qual se utiliza,

na indumentária característica de cada segmento, foram todas fundamentais para se ter

uma primeira impressão com vistas a perceber e compreender o outro. Tanto entre os

grupos separadamente quanto entre os integrantes de um mesmo grupo, em particular.

O roteiro de entrevistas: da elaboração do question ário à sua aplicação

Passada a etapa da observação participante, foi preciso elaborar o roteiro de

entrevistas para obtenção de dados específicos. Ele foi estruturado em quatro temas

principais, que serviram como norte para a construção do questionário: 1. A identificação do

morador; 2. A relação do morador com o Arsenal da Esperança; 3. O primeiro contato do

morador com o teatro; 4. A relação do morador com o campo artístico. Dessa maneira, o

18

primeiro tópico atenta-se à identificação do entrevistado. Nele encontram-se questões que

traçam um perfil do morador, tais como: idade, naturalidade, estado civil, nível de

escolaridade, profissão e, principalmente, se o morador enfrenta algum tipo de dificuldade

em sua permanência no albergue. O segundo tópico tem por objetivo investigar a relação do

albergado com o Arsenal da Esperança. Nele, existe uma primeira questão que visa saber

se é a primeira vez em que o morador habita o local. A partir dela foi possível discorrer para

as demais questões que dão conta de obter informações referentes ao tempo em que o

morador habita o albergue, há quanto tempo se encontra em situação de rua, os vínculos

familiares (se mantém ou não), os motivos que o levaram ao Arsenal e a visão que o

entrevistado possui de lá. Esse tópico é importante, pois possibilita compreender o grau de

sociabilidade do morador, a ponto de saber por que hoje se encontra em tal situação. Já no

terceiro tópico foram propostas questões referentes ao primeiro contato do morador com a

apresentação teatral. As perguntas realizadas nesse momento serviram como um divisor de

águas, afinal, para os albergados que nunca tiveram contato com esse tipo de apresentação

as impressões poderiam ser as mais variadas possíveis. As questões tinham por objetivo

saber: qual a impressão que os moradores tiveram ao se deparar com a apresentação; o

que eles pensam sobre a presença dos atores em seu local de moradia; o que eles pensam

sobre o trabalho da Companhia no Arsenal; caso respondessem que o trabalho apresentado

é arte, que tipo de arte seria; a quantidade de apresentações contempladas pelo

entrevistado; e como os moradores vêem a presença de outras pessoas (como público) que

não são habitantes do Arsenal, assistindo também a apresentação. Com esses dados foi

possível coletar informações suficientes para esclarecer os principais questionamentos. No

entanto, faltaria saber como se a relação entre os albergados e o campo artístico. No quarto

e último tópico foram evidenciadas, portanto, a relação do morador com a arte. Para isso, as

questões tinham por objetivo saber se aquelas pessoas já haviam tido algum contato com

arte; em caso afirmativo, como se deu esse contato; se o entrevistado já teve vontade de

realizar algo do tipo, ou fazer alguma coisa relacionada à arte; qual a impressão que teve

pelo fato da apresentação ser realizada em um espaço aberto e na passagem de todos; se

ele foi convidado para apresentação; se gostaria de fazer parte desta apresentação; se já

assistiu alguma apresentação em um espaço fechado e como foi a experiência. Além disso,

havia três questões que foram consideradas ponto central para a análise: “você já ouviu

falar de intervenção artística?”; “o que você achou da experiência que teve aqui? Por quê?”;

e “esse tipo de apresentação pode trazer alguma coisa para sua vida?”. Essas questões

seriam o diferencial para se alcançar uma análise mais contundente a respeito do tema de

investigação.

19

Finalizado o processo de construção do roteiro de entrevistas foi possível, enfim,

aplicar os questionários. Desse modo, é preciso esclarecer que todas as entrevistas foram

realizadas no próprio Arsenal da Esperança, antes, durante e após as apresentações. As

entrevistas foram aplicadas com moradores com idades e histórias de vida bastante

diversas, mas que tinham um destino em comum: o fato de habitarem o albergue. Vindos

de diferentes regiões do país, adotou-se como parâmetro de escolha dos entrevistados o

fato de terem assistido ao menos uma apresentação da Companhia Estável de Teatro. Com

isso, foi possível estabelecer uma análise preliminar que refletiu sobre questões que

poderiam comprovar ou negar a hipótese levantada. Desse momento em diante, tendo

coletado as informações necessárias para uma análise mais precisa, tornou-se possível a

construção de um quadro que apresentasse, de forma comparativa, a disposição e a

sistematização dos dados obtidos. Em outras palavras, foi possível elaborar um quadro que

contivesse os dados das relações interpessoais estabelecidas após cada apresentação,

visando compreender como os moradores do albergue se inserem nessa estrutura de

apresentação artística e como objetivam em suas práticas e discursos a “interiorização da

exterioridade” (WACQUANT, 2007).

ANÁLISE E RESULTADOS DA PESQUISA

Análise preliminar: algumas constatações

Realizadas as visitas aos domingos, ao todo, foram nove entrevistas feitas com

moradores dos mais diversos. A primeira constatação feita foi a média de idade entre os

entrevistados, 40 anos, sendo que o mais novo tem 22 e os dois mais velhos 65 anos. Do

montante, oito são naturais do estado de São Paulo e apenas um é da Bahia. Além disso,

dos nove pesquisados, sete estavam pela primeira vez no Arsenal da Esperança; os outros

dois já tinham passado pela Casa em outras situações. Todos os entrevistados não

possuem um vinculo empregatício formal e a grande maioria perdeu o contato familiar.

Importante observar que em cada caso existe um tipo de dificuldade enfrentada por eles.

Dificuldades essas que vão desde problemas de saúde às agressões e conflitos com demais

moradores. Entretanto, quando questionados a respeito das dificuldades enfrentadas em

suas vidas, quase que unanimemente, a resposta foi o preconceito; especificamente o

preconceito em relação a sua condição de albergado.

Ao questioná-los sobre o que pensam em relação à presença da Companhia no

Arsenal, e qual era a opinião deles sobre o trabalho que desenvolvem na Casa foram

obtidas respostas curiosas e bastante variadas: “o grupo está realizando um estágio ou

20

divulgando seu trabalho dentro e por meio do Arsenal”; “não acho nada, não sei o que eles

fazem aqui”; “acho que a Companhia está aí ensaiando e se apresentando para os

moradores com intuito de divertir a gente”. No entanto, um dos entrevistados menciona com

lamento que não há interação entre a Companhia e os moradores e que isso seria

essencial. Essa afirmação apareceu constantemente nos relatos e foi repetida por outros

moradores, mas de uma forma não tão direta. Todos os entrevistados, em alguma medida,

disseram que há um distanciamento entre atores e moradores. Disseram que, apesar de

terem assistido às apresentações, mantinham o olhar à distância, como quem observa de

fora o que ali é feito, sem participar de fato. Com isso, é possível dizer que esse

distanciamento é causado por falhas decorrente do processo de interação, o que culmina

também numa visão negativa de alguns moradores sobre o que ali acontece. Não obstante,

em todas as entrevistas os albergados disseram que encaram as apresentações como uma

forma de distração; algo que acontece ali apenas para entretê-los, já que têm uma vida

repleta de obstáculos. A presença da Companhia é encarada como algo a parte, passível de

distração, mas não de interação. Essa separação entre a Companhia e os albergados pode

ser notada em outro ponto culminante na fala dos entrevistados. Quando perguntados se

foram convidados para as apresentações, todos responderam que não. Apesar de terem

visto alguns cartazes espalhados pela casa, o fato é que nunca eram convidados.

Em relação ao público externo, os relatos mostraram que o fato da Companhia trazer

para o albergue pessoas que não estão em situação de rua é positivo. Isso, num primeiro

momento, faz com que se quebre a barreira existente entre moradores e não-moradores.

Para os entrevistados, a presença de pessoas não albergadas pode contribuir para a quebra

do preconceito e também para elevar a baixa auto-estima que alguns desses albergados

têm em relação a sua atual condição. Porém, ao mesmo tempo em que há essa quebra, a

presença de não-moradores gera uma nova barreira; desta vez em relação ao trabalho da

própria Companhia. Alguns entrevistados disseram que deveria ocorrer maior interação

entre as partes, mas a presença de um público externo faz com que os albergados

mantenham certo distanciamento das atividades propostas. Distanciamento que, em muitos

momentos, se assemelha ao que eles já vivenciam fora do Arsenal e reflete em uma

situação constantemente enfrentada por todos quando são entendidos como indivíduos à

margem da sociedade. Com isso, chegou-se a última questão. Os entrevistados foram

questionados se em algum momento da apresentação aconteceu, ou foi sugerido, algo que

poderia contribuir para a compreensão deles em relação a sua própria realidade. Em

unanimidade a resposta foi “não”.

21

Dificuldades encontradas: novas perspectivas

Ao constatar o modo como os moradores do Arsenal da Esperança percebem as

apresentações da Companhia Estável na Casa, o trabalho tomou novo rumo. As

informações obtidas indicavam outras direções, diferentes da inicialmente apontada. Foi

preciso entender quais eram as dificuldades encontradas pela trupe durante a execução das

atividades e durante as apresentações dos espetáculos. Algo evidente, e que interfere na

análise das entrevistas, é o fato da rotatividade dos moradores ser muito alta no albergue.

Existem muitos que estão lá por algum tempo, mas há os que não agüentam o peso das

regras impostas e voltam para as ruas. Mesmo tomando como critério de seleção dos

entrevistados avaliar somente moradores que já tinham tido contato com alguma

apresentação, ainda sim, o que se constatou foi uma lacuna entre o discurso da companhia

e o real impacto nos moradores. No entanto, esse resultado de modo algum diminui o

esforço empreendido pela trupe. Como o próprio Fomento sugere, o trabalho todo está

inserido num contexto de pesquisa continuada, portanto, abrem-se constantemente novas

perspectivas e a possibilidade de verificação dos métodos de abordagem e de aproximação

do público envolvido. Isso pode ser verificado no seguinte discurso, em linguagem poética,

da Companhia Estável:

Aqui estamos nós numa terra de raízes ligeiras. Não porque se aprofundam

ansiosas, mas porque correm. Isso: correm mesmo, como se tivessem pés.

Movem-se daqui para lá. Mas são raízes. São pessoas desabrigadas,

porém, num abrigo. Então vamos refletir sobre os espaços que ocupamos.

Por onde ando, meu gesto, meu passo, nem sempre deixam uma marca

física, concreta, impressa no ambiente. Mas existem. O que digo nem

sempre ecoa na minha ausência. Mas existe. O que grito, lembro, silencio,

faço, quero, também existe! Espaços subjetivos se perpetuam nas nossas

vivências e nas ruas concretas pelas quais transitamos. Munidos desta

certeza criamos este papel para a tinta dessas vozes que não figuram nos

livros e academias, nem agora e nem no futuro. (...) Agora, ainda ligeiros e

transeuntes propomos documentar as subjetividades, expressas em artes e

olhares. Capturar o pensamento para olhá-lo em pleno vôo, para que ele

seja plataforma para novos vôos. Da mesma forma alguns coletivos teatrais

hoje – dos quais nós, Cia Estável, fazemos parte - temos legitimado (pela lei

mesmo) nosso trabalho de concretizar subjetividades e fazer dos ideais

mais que pura metáfora: ação, arma, dúvida e debate. Que assim seja para

outros então (COMPANHIA ESTÁVEL DE TEATRO, 2011).

22

Implicações da pesquisa: possíveis abordagens

Após alguns momentos de reflexão e revisão do material bibliográfico, foi possível

notar que, antes de tudo, o que acontece nas apresentações faz parte de um processo

comunicacional. Para melhor avaliar essa questão, foi necessário encontrar em novas

leituras outras possibilidades de compreensão. Erving Goffman (2009:16), diz que

(...) na medida em que os outros agem como se o indivíduo tivesse

transmitido uma determinada impressão, podemos ter uma perspectiva

funcional ou pragmática, e considerar que o indivíduo projetou

“efetivamente” uma certa definição da situação e que “efetivamente”

promoveu a compreensão obtida por um certo estado de coisas. (...)

demonstra-se nisso uma assimetria fundamental no processo de

comunicação, pois o indivíduo presumivelmente só tem consciência de um

fluxo de sua comunicação, e os observadores têm consciência deste fluxo e

de um outro.

Além disso, tomando por base o conceito de arte crítica de Miguel Chaia (2007),

observa-se que uma relação básica entre arte e atuação política se estabelece a partir de

uma aguçada consciência crítica do(s) artista(s). Isso permite a um indivíduo, ou a um

pequeno grupo, criar obras baseadas na sensibilidade social, no gozo da liberdade e nos

esforços e pesquisas para o avanço ou a revolução da linguagem. Aqui, unem-se aspectos

formais e questões sociais. Nesse tipo de situação, a arte aparece como forma de

conhecimento e investigação, constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o

mundo e sintetizar a realidade. Daí que, em certos momentos, a produção artística

consegue representar a condição humana, os mecanismos do poder e da economia, ou a

estrutura social na qual o artista está inserido. Dessa maneira, é possível estabelecer uma

relação com a arte quando assume o papel de ação social. Melhor dizendo, quando

assume o papel de ação mobilizadora no ambiente social. Nesse contexto, os atores

utilizam-se da arte como forma de expor idéias e pensamentos de transformação. Vêem na

arte uma forma de aproximação deixando uma livre interpretação aos que com ela têm

contato. Considerando, portanto, o que diz Miguel Chaia (2007),

a arte crítica deixa transparecer os caracteres filosófico, intelectual e

analítico da arte e deve ser remetida diretamente à pessoa do artista,

exercendo um papel que o aproxima do estudioso social e, não raras vezes,

do cidadão combativo. Poder-se-ia dizer que o produto arte não carrega a

intenção política, mas sim a ação do artista produtor é que se aproxima da

política.

23

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse trabalho aconteceram algumas mudanças consideradas

fundamentais para o processo de pesquisa. Quanto mais havia reflexões, e

conseqüentemente ocorriam as investidas a campo, novas perspectivas se evidenciavam

em relação ao objeto – o que, de certa maneira, se tornou algo muito rico, abrindo um leque

de possibilidades de interpretação. Aqui a arte foi tomada enquanto ferramenta de

intervenção. Arte enquanto instrumento de provocação. O intuito é compreender como

determinado tipo de intervenção, se utilizando da linguagem teatral, acontece no espaço

urbano, fora do contexto do teatro clássico, assumindo uma característica de apropriação do

espaço social e permitindo o empoderamento dos indivíduos participantes do processo.

Evidentemente, esse esforço não seria possível sem a criação e implementação do

Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. Ele instituiu a

principal política de cultura de apoio ao teatro que se tem notícia no Brasil. As edições do

Programa enriqueceram o cenário teatral da cidade de São Paulo, tanto pelo

amadurecimento dos trabalhos realizados pelos grupos artísticos já existentes, quanto pelo

surgimento de novos coletivos e espaços teatrais. O aumento da criação e a qualificação

das pesquisas estão associados à ampliação do público e à formação de uma geração mais

crítica de cidadãos e cidadãs (KINAS, 2011).

Durante os últimos nove anos o Fomento beneficiou centenas de projetos artísticos,

dos mais diversos, com investimento público direto, que atendem a uma variedade

considerável de propostas de investigação em linguagem teatral. Centenas de cidadãos e

cidadãs ligaram-se às atividades dos grupos fomentados – seja como espectadores dos

espetáculos, seja como participantes dos projetos desenvolvidos pelas companhias –

aumentando consideravelmente o acesso da população ao teatro. Isso diz muito. Há pouco

mais de dez anos a realidade era outra. Não havia continuidade nos programas de política

cultural, nem em termos nacionais, nem em termos estaduais ou municipais. Hoje esse

cenário mudou. O Fomento tornou viável a produção teatral em uma escala nunca vista.

Esse crescimento está evidenciado pelo surgimento de novos grupos independentes, pela

variedade dos projetos e pela vasta programação teatral da cidade de São Paulo. Embora

as políticas nacionais para a cultura não estejam ainda no mesmo nível de estruturação dos

projetos de São Paulo, os avanços representam novos caminhos a serem perseguidos,

transformando-se em marco para as políticas públicas de cultura e servindo de referência

para movimentos artísticos, gestores culturais e agentes políticos em todo o país. Um

exemplo disso é a discussão que aconteceu no Congresso Brasileiro de Teatro, nos dias 26

e 27 de março de 2011, na cidade de Osasco, em São Paulo. Mais de 150 representantes

24

ligados a movimentos, redes e instituições teatrais de todo o país estiveram reunidos e

aprovaram uma carta que contém diversas decisões de interesse da classe. Um dos itens

do documento revela o interesse da categoria pela aprovação imediata do Projeto de Lei nº

6.722/2010, que institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura –

ProCultura, e a necessidade de implantação de um programa nacional de fomento ao teatro:

o Prêmio Teatro Brasileiro.

Os resultados propiciados pela Lei de Fomento são inquestionáveis. No entanto,

como sugere Kinas (2011), se os resultados podem ser considerados globalmente positivos,

é preciso destacar aspectos ainda não equacionados surgidos a partir da implementação da

Lei. Um programa com importantes ambições políticas e organizativas deve se inquietar

com o relativo desconhecimento das suas ações pelo conjunto da população paulistana.

Para remediar esta situação seria preciso ampliar a divulgação do Programa, atingindo a

totalidade dos bairros da cidade através de uma série de ações: mostras ou circulação de

trabalhos teatrais, publicações impressas e pela internet, realização de encontros e

seminários, apresentação e discussão públicas da Lei. Seria preciso, ainda, aperfeiçoar o

controle social sobre o Programa, com o envolvimento efetivo de setores organizados

externos ao campo artístico (KINAS, 2011). Além disso, é preciso salientar a necessidade

de formação contínua da categoria teatral. Sujeitos às instabilidades típicas de uma

profissão que não conquistou plenamente seu direito de estadia, as instabilidades e a

insegurança fazem com que uma parcela significativa de profissionais de teatro busque a

sobrevivência material em outras áreas de atuação. Por esse motivo, a manutenção e

constante acompanhamento do Fomento se apresenta como uma alternativa de

sobrevivência para os trabalhadores do teatro. Kinas (2011) sugere, ainda, que, em virtude

dos resultados obtidos nestes nove anos, seria razoável pretender a ampliação e o

aperfeiçoamento do Programa, aumentando o número de grupos fomentados e o valor dos

recursos, analisando seu impacto social, qualificando as comissões julgadoras, entre outras

ações.

O Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo mostrou

um caminho possível de política cultural que, de fato, assegura a arte e a cultura como

direito dos cidadãos. Em sua breve existência, o Fomento é um exemplo único de ação do

Estado no campo da Cultura. Ele delega aos coletivos de trabalho a liberdade e a autonomia

da formulação poética. Além disso, seu critério de valor é a pesquisa coletiva dos grupos

que se dispõem ao diálogo entre arte e sociedade. Como sugere o texto escrito pelo

movimento Arte Contra a Barbárie (2011) em defesa do Fomento, a lei veio bancar de forma

contínua o trabalho contínuo de coletivos, respeitando suas identidades e propostas,

acreditando na diversidade, acreditando que, a médio e longo prazo, essa é a melhor forma

25

de organizar a produção e construir outras poéticas, possibilitando, dessa maneira, outros

vínculos entre a arte e a política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge

Zahar, 1985.

ARSENAL DA ESPERANÇA. O que é o Arsenal? Disponível em:

http://www.arsenaldaesperanca.org.br. Último acesso em maio 2010.

ARTE CONTRA A BARBÁRIE. Manifesto pela lei do fomento. Disponível em:

http://www.companhiadolatao.com.br/html/manifestos/index.htm#1. Acesso em julho de

2011.

BOTELHO, I. Dimensões da cultura e políticas públicas. São Paulo em Perspectiva. São

Paulo, Fundação SEADE, 2001.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:

Senado, 1988.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:

arte/Secretaria de Educação Fundamental – Brasília: MEC /SEF, 1997.

BRASIL. Decreto-lei nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a

População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e

Monitoramento, e dá outras providências. Disponível em:

http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_civel/acoes_afirmativas/aa_legislacao/aa_le

g_federal. Acesso em março de 2010.

CHAIA, M. Arte e política: situações. In: Arte e política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial,

2007.

CHAIA, M. No fio da navalha. In: ALBUQUERQUE, F. Entrevista com Miguel Chaia.

Disponível em http://revistatatui.com/revista/tatui-6/no-fio-da-navalha-entrevista-com-miguel-

chaia/. Acesso em outubro de 2010.

COMPANHIA ESTÁVEL DE TEATRO. Editorial. In: Revista Território. Demarcando

Pensamentos. Nº 3, ago. 2009.

COMPANHIA ESTÁVEL DE TEATRO. Para o editorial de Território 1. Disponível em:

http://territorioestavel.blogspot.com/2008_05_01_archive.html. Acesso em julho de 2011.

COSTA, A. P. M. População em situação de rua: contextualização e caracterização. Textos

e Contextos. São Paulo, n.4, dez., 2005.

DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo. São Paulo:

Hucitec, 2006.

26

DURAND, J. C. Cultura como objeto de política pública. São Paulo em Perspectiva. São

Paulo, Fundação SEADE, 2001.

FILHO, A. Diretor Antunes Filho critica "teatro de compadres". Entrevista concedida a Valmir

Santos. São Paulo: Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada, 2004. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u48667.shtml. Acesso em julho de 2011.

FUNARTE. Funarte lança 34 editais para premiar mil artistas. Disponível em:

http://www.funarte.gov.br/artes-integradas/r-56-milhoes-para-as-artes/. Acesso em agosto de

2011.

GOFFMAN, Erving. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2009.

GOLDENBERG, M. Estudos de Caso. In A arte de pesquisar: como fazer pesquisa

qualitativa em Ciências Sociais. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

GOMES, N. O que faz um grupo de teatro dentro de uma casa de acolhida?. In: Revista

Território. Demarcando Pensamentos. Nº 3, ago. 2009. P. 7.

JUSTO, M. G. Vida nas ruas de São Paulo e alternativas possíveis – um enfoque sócio-

ambiental. INTERFACEHS – Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio

Ambiente - v.3, n.1, Artigo 4, 2008.

KANASHIRO, M. Estética e Liberdade. Revista Camarim da Cooperativa Paulista de Teatro.

São Paulo, ano 12, nº 44, p.8-9, set. 2009.

KINAS, F. A lei e o programa de fomento ao teatro para a cidade de São Paulo. Uma

experiência de política pública bem-sucedida. Disponível em:

http://www.usp.br/celacc/ojs/index.php/extraprensa/article/view/s-gt2-4/gt2-t. Acesso em

julho de 2011

LOPES, L. Política Pública: para que serve, como conquistá-la? Disponível em:

http://www.rederua.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=163&Itemid=1.

Último acesso em maio de 2010.

MATE, A. Sobre homem cavalo & sociedade anônima. Disponível em:

http://territorioestavel.blogspot.com/2008_10_01_archive.html. Último acesso em maio de

2011.

MILLS, W. A imaginação sociológica. São Paulo. Zahar. 4ª Ed. 1975

NISBET, R. A sociologia como uma forma de arte. In: Plural; Sociologia, USP, São Paulo,

V.7: 111-130. 1ºsem. 2000.

RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Disponível em:

www.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferencias/206.rtf. Último acesso em outubro de

2010.

ROSENFELD, A. A Cordialidade Puntiliana. In: BRECHT, B. O Senhor Puntila e seu criado

Matti. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

27

PASTA, J. A. Trabalho de Brecht: breve introdução ao estudo de uma classicidade

contemporânea. São Paulo. Ática, 1986.

PERRECHIL, A.; PIACENTINI, N. Estudando o Futuro – Entrevista com a Comissão de

Políticas Públicas da Cooperativa Paulista de Teatro. Revista Camarim da Cooperativa

Paulista de Teatro. São Paulo, ano 12, nº 44, p.13-19, set. 2009

PREFEITURA DE SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura. Departamento de

Expansão Cultural. Fomento ao teatro. Disponível em:

http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/fomentos/teatro/. Acesso em

maio de 2010.

PREFEITURA DE SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Assistência Social. Censo da

população em situação de rua. Disponível em:

http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/observatorio_social/pes

quisas/index.php?p=18626. Ultimo acesso em agosto de 2011a.

PREFEITURA DE SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano.

Informações gerais do Município de São Paulo. Disponível em:

http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/dados_estatistic

os/index.php?p=856. Ultimo acesso em agosto de 2011b.

QUEIROZ, M. I. P. O pesquisador, o problema da pesquisa, a escolha de técnicas: algumas

reflexões. In: Reflexões sobre a pesquisa sociológica. 2 vol. Coleção TEXTOS. Série 2, n. 3,

p. 13-24, 1999.

SÃO PAULO (Município). Lei Nº 13.279, de 8 de janeiro de 2002. Institui o "Programa

Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo" e dá outras providências.

Disponível em:

http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/fomentos/index.php?p=7298.

Último acesso em maio de 2010.

SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana vol.11 nº2. Rio de

Janeiro, 2005.

SINGER, P. O Capitalismo: sua evolução, sua lógica e sua dinâmica. São Paulo, Moderna,

1987.

SPINELLI, E; CARAMANTE, A; e CASTRO, L. São Paulo tem 13 mil moradores de rua, diz

censo 2010. Disponível em: http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/node/10193. Acesso em

julho de 2011.

WACQUANT, L. Notas para esclarecer a noção de habitus. In: Revista Brasileira de

Sociologia da Emoção. V. 6 nº 16, abril 2007.