Cultura Brasileira
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CULTURA BRASILEIRA - ANOS 50
A NOVA CULTURA DE MASSA: CINEMA E RDIO NOS 1950
No final dos anos 1940, o Brasil era um pas recm-democrazido e que sonhava em se
tornar moderno e industrializado. As divisas acumuladas ao longo da Segunda Guerra,
durante a qual o Brasil foi um importante fornecedor de produtos para os aliados
(sobretudo agrcolas e de matria-prima industrial), tinham rapidamente se esgotado, sem
que o pas tivesse entrado num estgio industrial superior. A volta de Getlio Vargas ao
poder, reeleito pelo voto popular em 1950, consolidou uma nova forma de poltica de
massas: o populismo. A partir de ento, os diversos nveis do poder poltico, exercido com
o sustentculo de partidos organizados em escala nacional (os mais importante eram o
PSD Partido Social Democrtico -, o PTB - Partido Trabalhista Brasileiro o - e a UDN -
Unio Democrtica Nacional), tinham como Interlocutor o povo, visto pelas lideranas
como um todo orgnico e sem conflitos. Ainda que hesitasse em consolidar uma
democratizao efetiva das grandes decises polticas nacionais, o nacionalista de Getlio
Vargas prometia libertar o pas do subdesenvolvimento, realizando uma poltica de
industrializao com base em grandes empresas estatais, como a Eletrobrs, a Petrobrs
e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico, criadas durante o seu governo.
Um ano antes da eleio de Getlio Vargas (ptb), na qual ele derrotou os seus adversrios
do psd e da udn, houve uma outra eleio bastante disputada: a de "Rainha do Rdio". Se
o cargo no era to fundamental para os destinos da nao, como o de presidente da
Repblica, a eleio movimentou as paixes populares tanto quanto a eleio presidencial.
O concurso de "Rainha do Rdio" havia sido reorganizado em 1948 pela Associao
Brasileira do Rdio e, naquele ano, a cantora Dircinha Batista havia sido eleita. Mas foi em
1949 que a coisa pegou fogo. A favorita da Marinha, Emilinha Borba (Emlia Savana da
Silva Borba), jovem cantora de origem pobre do subrbio do Rio de Janeiro, perdeu a
eleio para a paulista Marlene (Vitria Bonaiutti de Martino). Na verdade, a eleio era
feita a partir da compra de cupons, parte integrante das populares revistas de rdio da
poca, e a Antrctica, empresa de refrigerantes, comprara os cupons para a eleio da
cantora Marlene. Os fs das duas cantoras, ambas contratadas da Rdio Nacional, a
maior emissora da poca, iniciaram uma rivalidade histrica, amplamente estimulada plos
meios de comunicao e que at hoje lembrada plos mais velhos. Emilinha Borba s
viria a ser eleita em 1953, depois de uma ampla mobilizao de seu f-clube, que
conseguiu reunir um milho de votos. Mas, como e por que uma simples eleio simblica,
embora comercialmente importante para a carreira das cantoras, conseguia movimentar
tantas paixes? A resposta pode estar na importncia que o rdio tinha na vida das
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massas urbanas
A sociedade brasileira, sobretudo as cidades do Rio de Janeiro e So Paulo, assistia a um
considervel processo de urbanizao desde as primeiras dcadas do sculo xx. Mas foi
na segunda metade dos anos 1940 que este processo se intensificou, mantendo ndices
impressionantes at os anos 1970. Obviamente, no se pode falar de urbanizao no
Brasil, sem citar dois fenmenos correlatas: migrao (do norte para o sul e do interior
para a capital) e industrializao. Os migrantes, seja das reas rurais do Centro-Sul seja
do Nordeste como um todo, se tornaro a base social das novas camadas populares
urbanas, somando-se aos descendentes dos escravos e ex-escravos e imigrantes
europeus, que desde o final do sculo xk constituam boa parte das camadas populares
das capitais brasileiras. Para todo esse conjunto heterogneo de populao que fornecia
os contingentes de mo-de-obra para as indstrias que se instalavam no pas, o rdio
tinha um papel fundamental. Ele era fonte de informao, de lazer, de sociabilidade, de
cul-lura. Estimulava paixes e imaginrios, no s individuais, mas, sobretudo, coletivos.
Mas no se pode dizer que o rdio era um fenmeno apenas das classes populares
urbanas e que na dcada de 1950 chegaria aos camponeses com maior intensidade. At o
final dos anos 1950, ele cia uma pea obrigatria em quase todos os lares, dos mais ricos
aos mais pobres. Fenmeno de massa desde os anos 1930, base da expanso da rica
cultura musical brasileira, a radiodifuso sofreu 11 m grande processo de massificao a
partir do final da Segunda guerra Mundial. Na segunda metade dos anos 1940, o rdio se
consolidou como fenmeno cotidiano, ligado cultura popular urbana, veiculando
principalmente melodramas (novelas) e canes. A partir de 1945, a Rdio Nacional
massifica os chamados programas de auditrio, um gnero que trazia para o rdio a
participao direta das massas e que consolidou a vocao popular desse meio de
comunicao, potencializando ainda mais a paixo em torno do veculo. Definitivamente, a
batalha iniciada nos anos 1930 plos moralistas c educadores mais sisudos, por um rdio
educativo, veiculador tanto de uma cultura superior europeizada quanto da cultura
nacionalista folclorizada, estava perdida. As paixes populares, o gosto musical mais
simples e a busca por lazer por parte da maioria da populao haviam triunfado, at
porque coincidiam com os interesses dos empresrios por trs desse meio de
comunicao. Da, compreende-se por que, em torno de 1948, consagrou-se entre as
vozes mais preconceituosas da imprensa a expresso de "macacas de auditrio", para
qualificar o novo pblico radiofnico das empregadas domsticas, negras e pobres, que se
manifestavam ruidosamente diante de seus dolos.
Alm disso, tambm desde meados dos anos 1940, a vertente mais popular do cinema
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brasileiro consolidava a tendncia das chanchadas musicais, nas quais histrias quase
sempre banais, a esttica carnavalesca e o gosto popular eram a base de produes
baratas, que conseguiam, porm, um espao significativo de audincia, em meio a uma
indstria cada vez mais hegemonizada plos norte-americanos. A maior parte das
produes das companhias mais significativas - Cindia, fundada em 1929, Atlndida, em
1942, e Cinedistri, em!949 - pode ser includa na categoria de comdias ou melodramas
musicais, nas quais o carnaval era uma temtica constante. Quase sempre os filmes
mostravam as peripcias de pessoas simples para conseguir um lugar ao sol no meio
musical, ao mesmo tempo em que ajudavam os casais apaixonados a vencer os
obstculos sua unio. Outra temtica comum, eram as pardias de filmes norte-
americanos famosos, como Sanso e Dalila e Matar ou Morrer. Tipos populares, como
Oscarito, Grande Otelo, Ankito, Dercy Gonalves, Mazzaropi, dividiam as telas com gals,
mocinhas e viles que tentavam imitar o padro esttico dos filmes norte-americanos, ao
mesmo tempo em que mantinham um esprito debochado do teatro de revista brasileiro.
Portanto, o carnaval, o rdio e o cinema, a partir da segunda metade dos anos 1940, eram
os meios culturais plos quais se consolidava uma nova audincia popular, ao mesmo
tempo em que, em torno do rdio e do cinema, surgiam as primeiras formas de indstria
cultural no Brasil, representando contedos culturais vivenciados pelas classes populares,
em meio a um processo de urbanizao crescente.
Veiculada plos dois meios citados, a msica popular tambm sol ria um significativo
processo de mudanas. Se o samba, desde os anos 1930, era aceito como a msica
brasileira tpica, a partir do linal dos anos 1940 ele dividia o espao na programao musi-i
;il tias emissoras de rdio com outros gneros populares. Do nordeste brasileiro, a nova
sensao eram os ritmos danantes, como baio e xote, popularizados por Luiz Gonzaga,
que se consagrou nine o grande pblico do sul com Asa branca, de 1947. Alis, a Ima
contra a seca e pela dignidade do homem do serto era tema constante nesse gnero
musical. Da Amrica Latina, o bolero, sobretudo o bolero mexicano, foi a grande sensao,
hegemnico ao longo dos anos 1950 e que mudou a prpria face do samba - da, a nova
forma do samba-cano, na verdade um nome para o samba "abolerado". O romantismo
exagerado e a solido amorosa serviam de inspirao bsica para as letras desse estilo
musical.
Nas vertentes mais populares do rdio, do cinema, da msica dos anos 1950, configurou-
se determinada face coletiva do povo brasileiro, sntese de prticas, valores sociais e
representaes simblicas e, muitas vezes, puramente ideolgicas. Alguns elementos
dessa sntese so perfeitamente identificveis naquela produo cultural: malcia ingnua,
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senso de humor "natural", esperteza e dignidade diante dos desafios ticos e materiais da
vida, solidariedade espontnea com os mais fracos, romantismo, mistura de crtica sutil e
conformismo diante da ordem social. Estas caractersticas gerais, amplamente percebidas
nos produtos da cultura de massa dos anos 1950, obviamente, no podem ser analisadas
sem as tenses e contradies inerentes. Mas, de uma forma ou de outra, marcaram uma
representao do popular, que atravessar as dcadas seguintes, apesar do surgimento
de outras formas de representar o povo, como veremos adiante.
O popular irrompia sob as mais diversas formas, tanto na poltica como na cultura, sem
necessariamente caracterizar uma relao de "reflexo" da primeira sobre a segunda.
Enquanto a dramtica greve de trezentos mil operrios paralisava So Paulo por 24 dias,
em 1953, as cantoras de origem proletria, Emilinha Borba (1953) e Angela Maria (1954),
ganhavam a consagrao suprema como "Rainhas do Rdio". Os mesmos ouvintes que
choravam diante dos melodramas radiofnicos emocionaram-se com a carta-testamento
de Getlio Vargas, cuja prpria trajetria poltica no fica nada a dever tanto para a
chanchada carnavalesca quanto para as novelas de rdio. Portanto, a cultura era mais
uma lente pela qual a sociedade se representava do que um espelho que refletia a
"realidade" das estruturas econmicas e polticas.
No labirinto de espelhos que constituiu as imagens da cultura popular massificada nos
anos 1940-1950, muitos foram os elementos refletidos e refletores. O real e o imaginrio
se entrecruzaram e a luta pela articulao desses dois elementos e sua inculcao coletiva
tm sido o fermento da histria. O resultado deste processo que analisamos que o Brasil
descobriu, ou melhor, reinventou as imagens sobre o seu povo.
A BURGUESIA E A CULTURA
Sem dvida, as representaes simblicas do popular se adequaram (e, em parte, foram
produto delas) s manipulaes ideolgicas, por parte das elites brasileiras, na construo
de um tipo popular ideal: conformado, mas com vontade de subir na vida, malandro, mas,
no fundo, ordeiro, crtico, porm nunca subversivo. Se por parte das camadas populares
os produtos culturais que veiculavam essas representaes serviam como vlvula de
escape das tenses sociais e polticas que o Brasil atravessava, por parte das elites eram
vistas como uma representao subdesenvolvida, tpica do terceiro mundo provinciano,
produto da mistura das raas e do atraso sociocultural. Nos anos 1950, percebemos uma
contradio crescente no campo da cultura brasileira, que se agravaria nas dcadas
seguintes e expressava os dilemas de uma sociedade excludente, desigual e conflituosa.
Ainda que eventualmente teis, para fins de manipulao ideolgica, para uma boa parte
das elites polticas o povo e os produtos culturais a ele dirigidos eram motivo de vergonha
(sobretudo para a parte da elite ligada cultura e educao). Na viso dessa elite, o
-
problema no era o veculo de comunicao e expresso em si (o rdio e o cinema, por
exemplo) mas os contedos e os tipos humanos veiculados, quase sempre pessoas
pobres, lutando pela vida, ou tipos debochados e cafajestes, malandros que fugiam s
normas de conduta da burguesia. ()s enredos dos filmes e novelas de rdio tambm eram
criticados, na medida em que se apoiavam em temticas consideradas cscapistas e
banais.
Partindo dessa percepo, alguns segmentos da sociedade brasileira passaram a gestar
um outro projeto de cultura, que deveria representar a face civilizada e educada do povo
brasileiro, provando a capacidade tcnica e criativa da nossa sociedade em comparao
com os centros urbanos mais valorizados da Europa e dos Estados Unidos, e com as
formas culturais tidas como superiores, nas vrias reas de expresso.
Enquanto o principal foco de produo das imagens sobre o povo urbano brasileiro foi o
Rio de Janeiro (cuja cultura de massa sintetizou tipos populares de outros lugares, como a
baiana e o sertanejo), consolidando uma vocao que vinha desde os anos l 920, a cidade
de So Paulo, nos anos 1950, foi o foco da introduo de novos patamares tcnicos (e, em
alguns casos, criativos) de produo para as diversas reas das artes.
Apesar dessa tendncia, no podemos esquecer que foi o cinema paulista que veiculou
um dos tipos populares mais famosos da nossa cultura, o caipira, imortalizado pelo
comediante Amacio Mazzaropi. C) filme que consagrou o tipo caipira foi Candinho (Vera
Cruz, 1954). C) filme conta a histria de um caipira, Candinho, e seu jumento Policarpo.
Os dois, cansados da vida dura do campo, vm para So Paulo, j na poca considerada
uma metrpole assustadora. Candinho se apaixona por uma moa de vida fcil, mas
consegue convenc-la a voltar para o campo, representado como contraponto moral ao
inferno urbano. Apesar de ser uma comdia despretensiosa, o filme idealizava a vida rural
e, nesse sentido, tentava construir uma referncia moral para um mundo de rpidas
mudanas em direo modernidade urbana. Em 1963, Mazzaropi fundou sua prpria
produtora cinematogrfica e seguiu fazendo muito sucesso entre o pblico mais amplo,
com seu tipo caipira ingnuo e frgil diante de um mundo moderno, assustador e
implacvel.
Mas, no geral, a palavra de ordem, em So Paulo, era atualizao cultural, busca de um
compasso com o mundo desenvolvido. Em outras palavras, atualizar as formas,
representaes e tecnologias da produo artstico-cultural, cujo modelo era a "cultura" do
mundo desenvolvido. Na verdade, essas iniciativas de atualizao se concentraram em
trs reas principais: teatro, cinema e artes plsticas. A msica popular continuava tendo
no Rio de Janeiro seu principal loco criativo, cujos meios de comunicao ditavam os
grandes sucessos nacionais. Em So Paulo, o tbc - Teatro Brasileiro de Comdia, a <
-
(tmpanhia Cinematogrfica Vera Cruz e as mudanas no campo das artes plsticas -
criao do masp (Museu de Arte de So Paulo) em 1947, do mam (Museu de Arte
Moderna) em 1948, e da Bienal de Artes Plsticas - so as expresses mais significativas
desse processo. Mas no devemos esquecer que, a partir de So Paulo, surgia um outro
sistema de comunicao de massa, ainda tmido: a televiso (criada em 1950, pelo
empresrio Assis Chateaubriand, o mesmo empresrio por trs do masp). Enfim, no final
dos anos 1940, a abastada burguesia paulista resolveu transformar a hegemonia
econmica de So Paulo em hegemonia cultural, entrando em franca rivalidade com a
supremacia cultural e poltica do Rio de Janeiro. Nesse projeto, forjava-se uma outra
identidade brasileira, mais preocupada em mostrar "modernidade" e sofisticao de forma
e contedo (embora o resultado das obras e produes nem sempre tenha confirmado
esta vontade).
O tbc, fundando pelo industrial Franco Zampari, tinha o objetivo de trazer para o Brasil o
fino da dramaturgia mundial, tanto autores clssicos como modernos consagrados, entre
eles Tenessee Williams, Arthur Miller, J. R Sartre, M. Gorki e Pirandello. Autores
brasileiros tambm foram encenados, com muito sucesso, como Ablio Pereira de Almeida
(Santa Marta Fabril S.A.), Dias Gomes (O pagador de promessas) e Jorge Andrade (Os
ossos do Baro, Vereda da salvao). A proposta bsica do projeto do TBC era "instaurar
o bom gosto" teatral no pblico brasileiro, at ento habituado com as comdias de
costume, levadas ao palco por nomes como Procpio Ferreira e Dulcina de Moraes. Para
garantir o "padro internacional" do tbc, foram trazidos diretores, tcnicos e encenadores
do exterior, sobretudo da Itlia (Adolfo Celi, Ruggero Jacobi, Alberto D'Aversa, Flamnio
Cem, entre outros). Paralelamente, para promover a formao profissional de atores
competentes, foi criada a Escola de Arte Dramtica, por Alfredo Mesquita. No palco do tbc
e nos bancos da ead estiveram grandes atores, como Cacilda Becker, Srgio Cardoso,
Paulo Autran, Maria Delia Costa, Leonardo Villar, Aracy Balabanian, Raul Cortez e
dezenas de outros que se tornaram conhecidos do grande pblico mais tarde, ao serem
contratados pela televiso.
Antes mesmo da fundao do tbc, o Rio de Janeiro viveu uma verdadeira revoluo
teatral, com a associao entre Zbigniew /icmbinski (diretor polons refugiado no Brasil
devido perseguio nazista), Thomaz Santa Rosa (cengrafo) e Nelson Rodrigues
(autor). Em 1943, os trs levaram aos palcos Vestido de noiva, texto de Nelson Rodrigues,
encenado pela companhia teatral Os Comediantes. A pea i raiava da trajetria, dos
desejos e das frustraes de uma mulher, em trs planos distintos e paralelos: a realidade
-
- uma mesa de operao, pois a protagonista, Alade, havia sido atropelada e estava
beira da morte -, a memria - as lembranas da infncia, enquanto agoniza - e a
alucinao a insero de personagens e situaes imaginadas, fruto do seu desejo
reprimido. Os ires planos se fundiam num tratamento muito prximo tragdia grega, com
dilogos fortes, que procuravam traduzir a tenso (caracterstica dos textos de Nelson
Rodrigues) entre a irrupo do desejo e das paixes e os deveres estabelecidos pela
moral familiar e social. Ao longo da segunda metade dos anos 1940 at os anos 1960,
Nelson Rodrigues escreveu textos que se tornariam clssicos, no s da dramaturgia
brasileira, como mundial. Destacamos: lbum de famlia (1946), Senhora dos afogados
(1947), Dorotia (1949), A falecida (1953), Perdoa-me por me trares (1957), Boca de ouro
(1959), Toda nudez ser castigada (1965). Fundindo temas universais com situaes e
tipos humanos caractersticos do subrbio carioca, o polmico Nelson chocou a classe
mdia brasileira, apesar de seu conhecido conservadorismo poltico, pois levava ao palco
temas como incesto, traio, fantasias sexuais, condutas morais desviantes, entre outros
tabus comporta-mentais. Sintomaticamente, o tbc, expresso do ideal de bom gosto da
burguesia paulistana, nunca encenou Nelson Rodrigues.
A Companhia Cinematogrfica Vera Cruz tinha uma pretenso ainda maior do que o tbc.
Mais do que formar o gosto do pblico, a ideia era competir com o imprio de Hollywood,
realizando filmes com contedo e nvel tcnico semelhantes ao padro norte-americano.
Enquanto o Rio de Janeiro consagrava o padro das chanchadas para as plateias
populares, a Vera Cruz, instalada num enorme estdio, de 100 mil m2, em So Bernardo
do Campo , queria conquistar o grande pblico mais voltado para os filmes nortc-
americanos. Seus filmes de maior sucesso foram: Caiara (1950), Tico-tico no fub (1952),
que contava a vida do compositor Zequinha de Abreu, SinhMoa (1953), Floradas na
serra (1954) e, principalmente, O cangaceiro (1953), grande sucesso de bilheteria e
vencedor do Festival de Cannes na categoria melhor filme de aventuras. Apesar desses
sucessos, a Vera Cruz acumulou prejuzos crescentes, sobretudo devido s dificuldades
de distribuio dos seus filmes. Em 1954, terminou o sonho hollywoodiano brasileiro, com
a falncia da empresa.
Num circuito cultural diverso, o mundo das artes plsticas, mesmo circunscrito a um
pequeno crculo social, foi fundamental para consolidar um outro fenmeno da cultura
brasileira moderna, massificada nos anos 1960: a tendncia formalista da vanguarda, em
muitos casos prxima abstrao pura, que ser vista como sinnimo de sofisticao e
modernidade por amplos segmentos da elite, cujo impacto inicial se viu nas reas de
arquitetura, escultura e pintura. Destacavam-se as formas geomtricas, consideradas frias
e racionalistas, sem ornamentos decorativos, exageros ou elementos sem funcionalidade
no conjunto da obra.
-
Mas esta busca de uma representao mais contempornea nas artes plsticas convivia
com o culto aos grandes gnios da pintura universal, como Degas, Renoir, Van Gogh, os
quais finalmente tinham espao na cidade, com a ousada criao do Museu de Arte de
So Paulo. Os paulistanos (c brasileiros) j no precisavam viajar para Paris ou Londres
para ver as grandes obras de pintura e escultura. Com o tempo, o Masp se tornou um
espao popular e smbolo da cidade, sobretudo depois da inaugurao da sua nova e
arrojada sede, em 1968, na avenida Paulista. Se o Masp foi criado para ser o espao do
panteo artstico consagrado ao longo dos sculos pela arte ocidental, do sculo xrv at o
final do xk, o mam passou a se dedicar s novas tendncias, assim como um dos eventos
internacionais mais famosos das artes plsticas: a Bienal. A primeira Bienal foi organizada
em 1951, no recm-inaugurado pavilho no Parque do Ibirapuera, cujo prdio, em si, era
uma pea de arte moderna, com seu despojamento e grandes espaos interiores.
SINAIS DE RUPTURA: AS NOVAS VANGUARDAS
A I Bienal de So Paulo, em 1951, comeou a gerar frutos alguns anos mais tarde. O
impacto da obra abstrata do escultor suo Max Bill incrementou a discusso sobre os
caminhos da arte brasileira, na busca de atualizao, em relao s tendncias
internacionais. A partir de uma perspectiva crtica e formalista, tentando radicalizar uma
viso geomtrica e racional das artes e, assim, refletir sobre o papel das artes numa
sociedade marcada plos meios de comunicao de massa e pela indstria, consagrou-se
em 1956, uma proposta esttica radical: o concretismo.
Inicialmente, o movimento concretista se articulou nas artes plsticas, com o Grupo
Ruptura, de So Paulo, consagrando-se pouco depois a partir das experincias poticas
do Grupo Noigrandes: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Dcio Pignatari, que
tambm haviam participado do Grupo Ruptura. Nessa nova proposta, a palavra, como
unidade bsica da comunicao lingustica e potica, passava a ser questionada e, na
perspectiva do movimento, deveria ser fragmentada, decomposta em signos e colocada
numa perspectiva visual e concreta. Por outro lado, a expresso nas vrias artes - poesia,
artes plsticas e, mais tarde, na msica - deveria buscar a abstrao racionalista,
geomtrica, antiintuitiva e incorporar novas tcnicas e materiais - grficos, sonoros,
imagticos - proporcionados pela sociedade industrial e pela nova linguagem da
publicidade, com seus cartazes e efeitos visuais inovadores.
A frieza e o rigor formalista e racionalista do Concretismo foram questionados pelo
chamado Neoconcretismo, um movimento formado inicialmente por artistas do Rio de
Janeiro (Lygia Clark, Hlio Oiticica e o poeta Ferreira Gullar, em sua primeira fase), por
-
volta de 1957. Esses artistas recuperaram o carter simblico e expressivo da arte, sem
abrir mo da pesquisa sobre novas formas.
GNESE DA ARTE ENGAJADA DA ESQUERDA
Aps a Segunda Guerra, o Partido Comunista Brasileiro emergiu como uma das
agremiaes polticas mais prestigiadas plos intelectuais. A luta herica da Unio
Sovitica contra Hitler, bem como a resistncia dos partidos comunistas da Itlia, Frana,
Iugoslvia, entre outros, contra a ocupao alem, acabou por ser decisiva para a derrota
do totalitarismo nazi-fascista. Mas o sonho da convivncia pacfica entre os blocos
capitalista liberal (liderado pelos EUA) e socialista liderado pela ento urss) logo
esvaneceu-se. Hm 1947, tem incio a chamada guerra fria. No Brasil, o governo pr-
americano de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950) declarou o PC brasileiro ilegal e rompeu
relaes com a Unio Sovitica. Depois de um isolamento poltico inicial, entre 1947 e
1953, o Partido Comunista Brasileiro aproximou-se do Partido Trabalhista Brasileiro, de
Getlio Vargas, utilizando-se desta legenda para eleger alguns parlamentares. Mas, de
fato, o pcb teve uma influncia marcante nos meios artstico e intelectual, sobretudo entre
literatos, msicos, jornalistas, e nos meios sindicais, principalmente os de operrios e de
trabalhadores das empresas estatais, como os ferrovirios. Alm disso, no Brasil, a figura
lendria de Lus Carlos Prestes, um militante solto em 1945 depois de dez anos de priso,
aumentava a aura de herosmo e idealismo que cercavam o comunismo brasileiro.
Entre 1947 e 1955, aproximadamente, o Partido Comunista Brasileiro adotou uma doutrina
esttica e uma poltica cultural oficial que ficou conhecida como realismo socialista. Essa
doutrina, nascida na Unio Sovitica em meados dos anos 1930 e ratificada pelo Partido
Comunista da Unio Sovitica no final dos anos 1940 graas atuao de Andrei Jdanov -
por isso, ela tambm foi conhecida como jdanovismo -, forneceu as diretrizes de produo
e difuso cultural do PC at que a morte de Joseph Stalin (1953) e a crtica do prprio
pcus ao stalinismo, feita no seu xx Congresso em 1956, abalassem o seu prestgio. Os
princpios fundamentais dessa doutrina eram os seguintes: a arte deveria ser feita a partir
de uma linguagem simples e direta, quase naturalista; o contedo deveria ser portador de
alguma mensagem exortativa e modelar para as lutas populares; os heris e protagonistas
"do bem" deveriam ser figuras simples, positivas e otimistas, dispostas luta e ao
sacrifcio em nome do coletivo; os valores nacionais e populares, folclricos, deveriam ser
fundidos com ideais humanistas e cosmopolitas, herdados da arte ocidental dos sculos
xvm e xrx.
Apesar de uma expressiva atuao em vrias reas da cultura popular - destacamos a
aproximao do Partido Comunista com as Escolas de Samba do Rio de Janeiro, em 1945
- e erudita, sobretudo entre os compositores da escola musical nacionalista, foi nos
-
campos da literatura e da dramaturgia que os ideais comunistas tiveram maior penetrao.
Importantes nomes, como Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano
Ramos, Dias Gomes, Oduvaldo Vianna (o pai), eram figuras ligadas ao partido. Alm
disso, o pcb tentou desenvolver uma poltica de difuso de romances populares, por meio
da coleo Romances do Povo, baseados nos princpios do realismo socialista, mas que
no teve muito flego.
Porm, o mais importante que tipos e personagens ficcionais criados plos dramaturgos
e escritores, sobretudo Jorge Amado e Dias Gomes, se tornaro parte do imaginrio
brasileiro e, ao longo dos anos 1960 e 1970, invadiro outras artes e meios de
comunicao, como o cinema, a msica e a prpria TV (lembramos que Dias Gomes ser
um dos principais autores de novelas da Rede Globo, a partir dos anos 1970). Portanto,
esse um outro vis formador da cultura brasileira moderna amplamente consagrado,
mesmo sem o carter ideolgico inicial, pela cultura massificada. A galeria de heris
populares (operrios lutadores, camponeses dignos, beatos messinicos, malandros
solidrios e sedutores, prostitutas dignas etc.) era representada em permanente conflito
com coronis autoritrios, polticos corruptos, padres conservadores, burocratas
individualistas e capitalistas usurpadores.
O TEATRO E O CINEMA reinventam o povo
Duas reas de expresso artstica, a partir da atuao de membros e simpatizantes do
pcb, tiveram um papel importante na renovao das artes de espetculo nos anos 1950: o
teatro e o cinema. Se a cultura de massa da poca, como j dissemos, consagrava uma
dada imagem do povo brasileiro, ou seja, os membros das classes populares que
habitavam o campo e a cidade, alguns jovens dramaturgos e cineastas, que atuavam fora
dos grandes esquemas comerciais, desenvolveram algumas variantes dessas
representaes. Surge ento um novo olhar sobre o povo brasileiro, sintetizado na figura
humana do operrio.
No incio dos anos 1940, a crtica cinematogrfica, sobretudo a paulista, se pautava pela
esttica do neo-realismo italiano para criticar a suposta inexistncia do cinema brasileiro. A
criao da Vera Cruz (4/11/1949), em parte uma reao cinematografia carioca
(chanchadas, comdias carnavalescas, filmes oficiais), no deixava de ser uma resposta a
esse suposto vazio.
Mas a esquerda procurava se distanciar do modelo altamente comercial de cinema. Alex
Viany destacou-se como crtico do cinema de estdio brasileiro, defendendo a busca de
um sistema no-empresarial, que falasse sobre a condio do povo brasileiro e sobre a
cultura nacional ameaada pela crescente influncia norte-americana em todos os setores
da vida brasileira. Em torno das ideias dos crticos de cinema do pcb surgiu um conceito
de cinema brasileiro: o capital, o estdio e o laboratrio deveriam ser 100% nacionais; dois
-
teros da equipe tcnica e todos os intrpretes principais deveriam ser brasileiros. Alm
desses aspectos de produo, o filme brasileiro deveria desenvolver um tema nacional,
buscando o homem brasileiro como homem do povo.
Alguns filmes procuraram seguir esse novo paradigma de criao e produo: Agulha no
palheiro (Alex Viany) , Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte (ambos de Nelson Pereira dos
Santos) e O grande momento (de Roberto Santos). Os personagens e as situaes
dramticas eram inspirados no cotidiano do povo brasileiro, suas dificuldades, valores e
esperanas. O filme Rio, 40 graus chegou a ser censurado, tendo sua exibio impedida
durante vrios meses, com a alegao de que exaltava "delinquentes, viciosos e
marginais" e denegria a imagem do Rio de Janeiro, pois retratava um dia na vida de vrios
meninos favelados, vendedores de amendoim, na luta pela sobrevivncia em meio a uma
cidade indiferente aos seus dramas. Era a primeira vez que o cinema brasileiro
representava, de forma to realista e direta, os dramas sociais urbanos. Em 1955, depois
de uma campanha pblica liderada por jornalistas e intelectuais, o filme acabou sendo
liberado. O outro filme do mesmo diretor, Rio, Zona Norte, seguia na mesma linha e
mostrava a vida i l um favelado, compositor de sambas lutando pelo sucesso e
constantemente sendo ludibriado por intermedirios oportunistas que termina morrendo
num acidente de trem.
O cinema era um dos principais temas em debate nas revistas culturais ligadas ao pcb,
como a revista Fundamentos, mas o teatro no recebia muito destaque. Sintomaticamente,
a base de uma dramaturgia engajada brasileira nasceu de uma ruptura no interior do teatro
burgus, o Teatro Brasileiro de Comdia. No incio dos anos 1950, Ruggero Jacobi e Carla
Civelli saem do tbc e fundam o Teatro Paulista do Estudante (tpe, ligado Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas da usp). Tambm no interior do tbc, surgiu um outro
grupo: o Teatro de Arena, em 1953. O encontro do tpe com o espao do Arena acabar
por "refundar" o Grupo Arena, em novas bases polticas e ideolgicas, por volta de 1957,
sob a liderana de jovens dramaturgos e atores, como Oduvaldo Vianna Filho,
Gianfrancesco Guarnieri e Flvio Migliacio, entre outros. A base filosfica do Arena, j
apresentada no II Festival de Teatro Amador, em 1956, era o princpio de que, para um
verdadeiro teatro popular, era preciso provocar um desentorpecimento do espectador. A
emoo c a identificao provocada pela encenao realista dos dramas sociais e
humanos deveria ser a base do desentorpecimento e da criao de uma conscincia
nacional emancipadora. Portanto, nessa perspectiva, a arte deveria buscar uma expresso
que provocasse emoo, sem se dissolver no melodrama sentimental. O despojamento e
a simplicidade da forma, aliados ao drama humano pungente, seria o contraponto do
melodrama alienado, considerado burgus, pois s representava problemas individuais ou
dramas privados.
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A aplicao desses princpios pde ser vista no grande sucesso teatral do ano de 1958:
Eles no usam black-tie, de Gianfrancesco Guamieri, com direo de Jos Renato. A pea
contava a histria de dramas e conflitos de uma famlia operria, durante a realizao de
uma greve, em que as relaes afetivas, os papis familiares, os projetos individualistas, a
solidariedade de classe so colocados prova pelo desenrolar dos dramticos
acontecimentos. A pea estreou em maio de 1958 e se tornou um grande sucesso de
pblico e crtica, percorrendo vrias capitais brasileiras.
Do contato dos membros do Teatro de Arena paulista com os estudantes cariocas - a pea
estreou no Rio de Janeiro em setembro de 1959 - nasceu a ideia da criao de um Centro
Popular de Cultura. As ideias estticas e as peas realizadas pelo Arena entre 1956 e
1960 sero fundamentais para entendermos uma das principais expresses do
engajamento artstico no Brasil dos anos 1960 e que podemos chamar, genericamente, de
"cepecismo".
Essa agitao de ideias e obras entre cineastas, dramaturgos e atores ligados cultura
poltica comunista, acabou articulando a prpria renovao das estratgias polticas do
pcb. Em maro de 1958 o Partido assumia para si, oficialmente, a tarefa de construir uma
democracia burguesa forte, bem como consolidar o processo de desenvolvimento
industrial brasileiro, de preferncia sob a hegemonia do capital nacional, numa leitura
singular da poltica desenvolmentista desencadeada pelo Plano de Metas de Juscelino
Kubitschek, lanado em 1955. Para o pcb, a tarefa histrica prioritria, mais importante do
que a autonomia e a luta revolucionria especfica da classe operria, era fortalecer a
burguesia nacional e a democracia formal/institucional, numa aliana ttica com a classe, a
princpio, antagnica. Essa viso etapista da histria, quase uma doutrina entre os
comunistas na poca, que colocava a fase democrtico-burguesa como etapa
historicamente necessria para a construo posterior de um movimento revolucionrio de
cunho socialista, foi a base da aliana de classes sociais que sustentou os ltimos anos da
democracia populista, destruda pelo golpe militar de 1964. Como veremos, durante o
golpe a burguesia brasileira no teve dvida: aliou-se aos reacionrios de toda sorte -
latifundirios, capitalistas internacionais, banqueiros - na conteno da crescente
mobilizao popular de camponeses e operrios. A iluso do pacto populista em prol do
desenvolvimento nacional contra o imperialismo, to presente nas artes engajadas,
desvaneceu repentinamente.
TRADIO E RUPTURA NA BOSSA NOVA
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No incio de 1959, o panorama musical brasileiro foi sacudido por um sussurro que virou
um terremoto. Foi produzido por um cantor que, praticamente, sussurrava um doce
balano, acompahado do seu "violo diferente". Era o baiano Joo Gilberto, que desde o
incio dos anos 1950 frequentava os ambientes musicais do Rio de Janeiro, sobretudo a
bomia em torno das boates da Zona Sul, e naquele ano lanou o LP (longplay) Chega de
saudade. A maioria das faixas, mesmo remetendo tradio rtmica do samba, trazia
elementos do cooljazz, sobretudo na maneira contida de cantar, sem ornamentos e com
voz baixa. Imediatamente, o novo ritmo foi apelidado de Bossa Nova, e parecia ir ao
encontro do gosto de um segmento moderno da classe mdia, que havia se ampliado
depois da poltica industrializante de Juscelino Kubitschek.
Com Joo Gilberto, consagraram-se para o grande pblico nomes j conhecidos como
Antnio Carlos Jobim, arranjador, maestro e compositor j respeitado entre os msicos, e
o poeta Vincius de Moraes, j com uma slida carreira literria. Jovens msicos, ainda
estudantes, como Carlos Lyra, Oscar Castro Neves, Roberto
Menescal, entre outros, juntaram-se ao movimento e, em menos de um ano, a Bossa Nova
dominava o ambiente musical mais sofisticado das grandes cidades brasileiras. J no era
mais preciso ter uma grande voz, de estilo operstico, para interpretar as canes
populares. Alm disso, Joo Gilberto havia demonstrado que o violo servia para algo
mais do que realizar o acompanhamento meldico do cantor. Com a batida de Joo
Gilberto, o violo parecia uma verdadeira orquestra: era harmnico e rtmico ao mesmo
tempo. "Um banquinho e um violo" era o lema que traduzia a vontade de sntese, de
sutileza, de despojamento que passou a ser confundida com a boa msica popular
brasileira, moderna e sofisticada. Nas letras tambm se notava uma tendncia sutileza e
conteno na expresso exagerada dos sentimentos, portanto, ao com+trrio dos
boleros mais populares.
claro que a Bossa Nova no foi uma unanimidade. Alis, muita gente no gostava,
principalmente os ouvintes das camadas mais populares, cujo ouvido se adaptara aos
grandes vozeires que faziam sucesso no rdio, como Francisco Alves, Nelson Gonalves,
Angela Maria. A msica brasileira, no incio da dcada de 1960, dividiu-se entre o samba
"moderno" e o samba "quadrado".
Mas o samba moderno, a Bossa Nova, rapidamente ganhou a audincia mais sofisticada,
que at ento ouvia msica erudita e jazz norte-americano. Por outro lado, uma boa parte
dos filhos das classe mdia, que formavam a maioria dos universitrios, passou a se
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interessar por msica popular, a partir do impacto do novo movimento. Se voc tivesse
uma boa ideia, j no era mais preciso fazer literatura, bastava uma boa cano. Ao longo
de 1959, a Bossa Nova ganhou as universidades, no Rio e em So Paulo. Os shows na
Faculdade de Arquitetura e na puc-rj, foram muito impactantes. A imprensa tambm correu
atrs do movimento, estampando manchetes e notcias. A publicidade, que se beneficiava
do novo boom de consumo proporcionado pela poltica de desenvolvimentismo de JK,
tambm no perdeu tempo. Percebendo que a bossa nova tinha uma boa receptividade
junto aos consumidores mais abastados, utilizou-se amplamente do termo para qualificar
os produtos anunciados. O Brasil assistia a uma febre bossa-novista: havia automvel
bossa-nova, geladeira bossa-nova, moda bossa-nova e at o presidente que se retirava do
poder passou a ser chamado de presidente bossa-nova.
Na mesma poca da Bossa Nova na msica, surgia o Cinema Novo. Entre 1960 e 1962,
um grupo de jovens cineastas, entre eles Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra, alm
do veterano Nelson Pereira dos Santos, preconizava a necessidade de um cinema
ousado, em forma e contedo, que falasse do Brasil sem copiar os padres falsamente
hollywoodianos das chanchadas da Atlntida e dos dramas da falida Vera Cruz. Se "um
banquinho e um violo" c-r o lema da nova cano brasileira, o Cinema Novo defendia o
mesmo princpio de simplicidade formal, "uma ideia na cabea e uma cmera na mo",
ainda que no plano temtico, ao contrrio da Bossa Nova, o principal assunto dos filmes
no fosse o Brasil "moderno, urbano c elegante". A maior parte dos clssicos do Cinema
Novo - Ifarmvcnto, Vidas secas, entre outros retratava o Brasil rural, violento, arcaico e
opressor.
Portanto, apesar do mesmo adjetiv - novo - cinema e msica popular tinham universos e
preocupaes diferentes. Se os novos cineastas partiam do princpio de que era
necessrio romper com o passado cinematogrfico brasileiro, na msica a coisa no era
to simples. A vigorosa e (musicalmente) respeitada tradio do samba carioca (base da
msica popular brasileira), que revelou nomes como Pixinguinha, Ary Barroso, NoelRosa,
Dorival Caymmi, Orlando Silva, no era o alvo da crtica dos bossa-novistas. O alvo da
ruptura era o bolero mais passional e exagerado, que fazia muito sucesso no final dos
anos 1950 (e que, alis, nunca deixou de fazer sucesso, mesmo ao longo dos anos 1960 e
1970, em pleno auge da moderna mpb). Assim mesmo, alguns intrpretes mais
sofisticados de bolero, como Maysa e Dolores Duran, acabaram sendo aceitas pela Bossa
Nova. De qualquer forma, para efeito de propaganda e consolidao de um novo pblico
consumidor de msica popular, a ideia de uma ruptura com o passado tinha um bom
marketing. O sonho da modernidade brasileira tinha encontrado a sua trilha sonora.
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Entre 1959 e 1962, a Bossa Nova se consagrou, no tanto pelas suas vendagens de
discos, mas pelo novo status sociocultural que ela proporcionou msica popular
brasileira. Os norte-americanos j no podiam contar com o seu grande reservatrio de
msica latina, papel desempenhado por Cuba at a Revoluo de 1959, e passaram a se
interessar por Bossa Nova no s pela sua qualidade musical, mas pela possibilidade de
ser o novo ritmo-chave do latin jazz, ento em alta no rico mercado daquele pas. Depois
da descoberta por parte dos msicos "jazzistas", que se encantaram com a batida
brasileira, os empresrios no tardaram a organizar concertos nas principais cidades
norte-americanas. O grande evento de 1962, nesse sentido, foi o showno Camegie Hall,
em Nova York. Tambm foi a gota d'gua para acirrar as polmicas em torno do
movimento.
Se para os entusiastas da Bossa Nova, a ida da msica brasileira para os Estados Unidos
significava que o Brasil deixava de ser exportador de sons exticos e se tornava
exportador de um produto cultural acabado (como disse Tom Jobim, em entrevista na
poca), para os crticos do movimento, nacionalistas radicais, o reconhecimento norte-
americano da Bossa Nova era natural, pois o tal do samba moderno no passava de cpia
do jazz. Lembremos que esse debate, nacionalismo versus entreguismo, no era uma
simples questo de gosto. Num pas cada vez mais dividido politicamente e que procurava
sadas para os seus impasses sociais, culturais e econmicos, a arte e a cultura eram
espcies de "laboratrio de ideias", campo de elaborao de projetos ideolgicos para o
Brasil.
A esquerda nacionalista, muito influente nos meios artsticos e culturais e, sobretudo, nos
ambientes universitrios, se dividiu em torno da Bossa Nova. Alguns jovens militantes
reconheciam que cantar a "garota de Ipanema", o "amor, o sorriso e a flor", o "barquinho" e
outras mumunhas mais era o mais bestial sinal de alienao, num pas vitimado pelo
"imperialismo" capitalista (o grande tema dos anos 1950 e 1960) e com uma populao de
mais de dois teros composta por miserveis e subempregados, nos campos e na cidades.
O "olhar Zona Sul" das letras da Bossa Nova, de costas viradas para os morros e sertes
ocupados pela populao mais humilde, inquietava os jovens lderes intelectuais da Unio
Nacional dos Estudantes (une), preocupados em criar uma arte engajada, ou seja, que
representasse os problemas sociais e polticos do Brasil. Mas, paradoxalmente, o jovem
universitrio brasileiro apreciava a musicalidade sofisticada das canes rotuladas de
''bossa nova e, bem ou mal, passava a se interessar por msica popular brasileira, como
algo mais do que lazer diante do rdio. Portanto, para alguns ativistas estudantis no era o
caso de jogar fora a Bossa Nova, mas de politiz-la, trazendo suas conquistas musicais
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para o terreno da arte engajada. Alis, o nascimento de uma Bossa Nova engajada se deu
j por volta de 1960 e 1961. As primeiras msicas consideradas de protesto, "Zelo"
(composta e cantada por Srgio Ricardo) e "Quem quiser encontrar o amor" (de Geraldo
Vandr e Carlos Lyra), traziam alguns elementos de ruptura com o estilo consagrado por
Joo Gilberto, mas mantinham a essncia de sofisticao instrumental, complexidade
harmnica e sutileza vocal, elementos identificados com o movimento. Alis, Carlos Lyra,
considerado membro fundador da turma da Bossa Nova, ser um dos fundadores do
Centro Popular de Cultura da une. Em "Zelo", o personagem que dava nome cano
era um favelado que vira seu barraco ser arrastado morro abaixo numa chuva e s podia
contar com a solidariedade dos vizinhos, tambm favelados: "Todo morro entendeu
quando Zelo chorou / ningum riu nem brincou / e era carnaval" .
Em "Quem quiser encontrar o amor", a prpria forma de falar do amor foi considerada uma
ruptura com o suave mundo das letras de Bossa Nova, ruptura esta sintetizada na
passagem "Quem quiser encontrar o amor / vai ter que sofrer / vai ter que chorar". Alm
disso, a msica foi includa no filme Cinco vezes favela, produzido pelo cpc/une.
Havia ainda um outro problema para a esquerda estudantil e ele se chamava rock'n roll, o
mais novo "produto da invaso imperialista", segundo os padres ideolgicos da poca. O
rock'n roll, para a juventude de esquerda, era o smbolo da alienao poltica e do culto
sociedade de consumo, apesar do ar de rebeldia juvenil que emanava das msicas,
considerada uma rebeldia superficial pela juventude engajada. Embora o rock'n roll j
tivesse alguns anos de vida como gnero musical independente no mercado norte-
americano, a sua entrada triunfal no Brasil se deu por volta de 1959, ou seja, no mesmo
ano de ecloso da Bossa Nova. A fundao do Clube do Rock, no Rio de Janeiro, que
reunia a juventude transviada, sobretudo da classe mdia baixa dos subrbios, alertou os
jovens intelectuais nacionalistas de esquerda. Era preciso criar um gosto por msica
popular brasileira entre a juventude e no era com o samba quadrado e com os boleres
passionais que tal meta seria atingida. Mais um motivo para resgatar a Bossa Nova de sua
alienao e torn-la a base de um novo gosto musical. Mas ela s chegaria s massas se
os jovens msicos olhassem para o povo brasileiro, ouvindo o morro e o serto, incluindo
nos temas poticos e mesmo em alguns parmetros musicais os sons e temas mais
populares. A partir desse projeto musical - e ideolgico - nascer a moderna mpb, em
meados dos anos 1960, representada por Elis Regina, Edu Lobo, Chico Buarque, entre
outros. Por outro lado, os participantes dos clubes de rock, como Erasmo Carlos, Roberto
Carlos e Carlos Imperial, sero os futuros protagonistas da Jovem Guarda. estavam
lanadas as bases para a lendria rivalidade musical da segunda metade dos anos 1960.
O BRASIL NOS ANOS 50: a modernizao capitalista e suas e as suas contradies
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No Brasil, em fins dos anos 1950, para amplos setores da sociedade, era preciso ser
moderno, mas ao mesmo tempo popular. Esse era o dilema da cultura brasileira at o
incio dos anos 1960. Mas os caminhos e as interpretaes do que era ser moderno
variavam conforme os valores estticos, sociais e ideolgicos que informa- v m os artistas
e os ligavam aos outros segmentos da sociedade brasileira.
Para as massas populares, as transformaes socioeconmicas lios anos 1950
consolidaram uma cultura de massa urbana (ou melhor, suburbana), cujos circuitos
culturais eram o rdio e as chanchadas, alm do consumo de uma cultura norte-americana
cada vez mais presente e hegemnica no mercado, desde os anos 1940.
Havia tambm um circuito cultural mais sofisticado, que no chegava a ser uma cultura
erudita, como a msica, a literatura, mas era uma tentativa das elites econmicas,
sobretudo as de So Paulo, de criar uma cultura de massa sofisticada, bem produzida,
altamente profissionalizada e inserida numa esttica internacional. Como exemplo, temos
a experincia da Vera Cruz e o Teatro Braleiro de Comdia. Tambm fazia parte desse
projeto, qual seja, m se ii r o Brasil (e particularmente So Paulo) no circuito cultural dos
pases mais desenvolvidos, iniciativas que no faziam parte do campo da cultura de
massa, mas que visavam aprimorar o gosto mdio da populao brasileira. O Masp, por
exemplo, pode ser compreendido, em parte, a partir deste esprito. Como disse o cineasta
Nelson Pereira dos Santos, So Paulo queria produzir cultura para o mundo, enquanto o
Rio de Janeiro queria produzir cultura para o Brasil.
Como variante dessa busca de aprimoramento e atualizao da cultura brasileira e do
gosto vigente, sobretudo entre as elites artsticas e intelectuais, podemos compreender o
papel das vanguardas dos anos 1950, como o Concretismo. Movimentos como esse
atuavam em reas de pblico menor, como a poesia e as artes plsticas, mas que eram
importantes entre os segmentos sociais mais intelectualizados, considerados formadores
de opinio
Num outro plo, menos preocupados com a forma e mais com o contedo (ou melhor, com
a expressividade das obras), consolidou-se nos anos 1950 uma cultura de esquerda,
engajada, que aglutinou literatos, dramaturgos, cineastas, com o apoio direto e indireto do
Partido Comunista Brasileiro. Com o tempo, em meados dos anos 1950, essa variante da
cultura brasileira deixar de ; gravitar unicamente em tomo do Partido, ganhando pblicos
mais amplos, at politicamente descompromissados, e interferindo na prpria cultura de
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massa (sobretudo no mbito da msica popular e na dramaturgia). A consagrada trajetria
do Teatro de Arena (e do Opinio), da mpb e o impacto do Cinema Novo (menos no
pblico e mais entre artistas e intelectuais) so exemplos contundentes da hegemonia
cultural da esquerda que ir se impor nos anos 60. Nesse novo ambiente cultural, temas
como moderno ou popular, forma ou contedo, nacionalismo ou cosmopolitismo daro o
tom dos debates.