Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

download Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

of 15

Transcript of Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    1/15

    CulturaVol. 23 (2006)Ideia(s) de Tempo(s)

    ................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    Jos das Candeias Sales

    Concepo e percepo de tempo e detemporalidade no Egipto Antigo

    ................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    Aviso

    O contedo deste website est sujeito legislao francesa sobre a propriedade intelectual e propriedade exclusivado editor.Os trabalhos disponibilizados neste website podem ser consultados e reproduzidos em papel ou suporte digitaldesde que a sua utilizao seja estritamente pessoal ou para fins cientficos ou pedaggicos, excluindo-se qualquer

    explorao comercial. A reproduo dever mencionar obrigatoriamente o editor, o nome da revista, o autor e areferncia do documento.Qualquer outra forma de reproduo interdita salvo se autorizada previamente pelo editor, excepto nos casosprevistos pela legislao em vigor em Frana.

    Revues.org um portal de revistas das cincias sociais e humanas desenvolvido pelo CLO, Centro para a edioeletrnica aberta (CNRS, EHESS, UP, UAPV - Frana)

    ................................................................................................................................................................................................................................................................................................

    Referncia eletrnica

    Jos das Candeias Sales, Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo ,Cultura

    [Online], Vol. 23 | 2006, posto online no dia 14 Fevereiro 2014, consultado a 12 Fevereiro 2015. URL : http://cultura.revues.org/1282 ; DOI : 10.4000/cultura.1282

    Editor: Centro de Histria da Culturahttp://cultura.revues.orghttp://www.revues.org

    Documento acessvel online em:http://cultura.revues.org/1282Documento gerado automaticamente no dia 12 Fevereiro 2015. A paginao no corresponde paginao da edioem papel. Centro de Histria da Cultura

    http://cultura.revues.org/1282http://www.revues.org/http://cultura.revues.org/
  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    2/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 2

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    Jos das Candeias Sales

    Concepo e percepo de tempo e detemporalidade no Egipto Antigo

    Paginao da edio em papel : p. 19-37

    Que o tempo? Quem que o poderia definir de modo fcil e breve? Quem que opoderia compreender com o pensamento para o exprimir por palavras? No entanto, que hde mais familiar e de mais banal no meio das nossas conversas? Percebemo-lo, sim, quandofalamos dele, percebemo-lo tambm quando ouvimos falar dele ao falarmos com os outros.

    Que , pois, o tempo? Se ningum mo pergunta, sei o que ; se quiser defini-lo a algum quemo pergunte, no sei. No entanto, digo confiadamente que sei, porque, se nada passa, noh tempo passado; se nada acontece, no h tempo fitturo; se nada existisse, no haveriatempo presente. Portanto, aqueles dois tempos, o passado e o futuro, como que existem,

    quando o passado j no existe e o futuro ainda no existe? Por sua vez, o presente, se fossesempre presente e no passasse a passado, no seria j tempo, mas eternidade. (...).

    1

    1 Num primeiro momento, pode parecer estranho iniciar uma reflexo sobre a concepo e apercepo de tempo e de temporalidade no antigo Egipto com uma citao de Santo Agostinho,mas, em muitos aspectos, a essncia da reflexo do autor do sc. IV similar quela que ostericos e os homens do tempo dos faras perfilhavam e sentiam.

    2 A ideia e a definio de tempo e de passagem do tempo vivem, de facto, do concurso dedois vectores distintos, mas complementares: a concepo e a percepo. Aquela, formamais subjectiva de ver e entender os fenmenos, mais voltada para o entendimento racionale compreenso intelectual das noes subliminares, procurando descortinar a finalidade daexistncia humana e a probabilidade de uma existncia (de castigo ou recompensa) post-mortem, suposta e preferencialmente eterna; esta, forma mais objectiva, embora adquiridaatravs dos sentidos, de tomar contacto e conhecimento dos fenmenos, direccionada para a

    sua apreenso e aparente aceitao.3 A primeira forma de encarar o tempo, por ser mais transcendente e metafsica e exigir maior

    inteligibilidade, difcil de definir, sendo objecto de profunda reflexo; a segunda maisfamiliar e mais banal, resultante das prprias vivncias sensoriais da vida corrente, embora,por isso, mais relativa e aparente.

    4 S pela interseco e sobreposio das duas vertentes (concepo/ percepo) se podecompreender o tempo. Como diz Kant, O tempo em si no pode ser percebido. Por isso, nosobjectos da percepo, ou seja, nos fenmenos, deve encontrar-se o substrato que representeo tempo em geral e no qual possa ser percebida toda a mudana e simultaneidade, por meioda relao dos fenmenos com tal substrato.2

    5 Subjacente a esta dicotomia cognoscvel est, porm, a mesma grelha de relao com a

    temporalidade, isto , a considerao de que esta uma unidade articulada composta por trsdimenses justapostas e interinfluenciveis: o passado, o presente e o futuro. Havendo passado,ele nunca se extingue completamente nas configuraes do presente, influindo na direco dasemoes, das estratgias, das condutas dos indivduos, em sentido estrito, e das comunidades,em sentido lato.

    6 Consoante a viso de tempo de uma sociedade, mais dinmica ou mais imvel, assim ostempos passado, presente e futuro adquirem cargas de aco ou inaco distintas. Consoanteo grau de unificao, homogeneizao e integrao das trs dimenses de tempo no seio deuma sociedade, assim essa sociedade responde perante a sua memria, a sua realidade e a suaprojeco de modelos de organizao. , por vezes, em momentos de experincia liminar,momentos conturbados e dramticos, que os traos de analogia entre as trs dimenses dotempo se estabelecem, consolidam e redefinem. E nessas alturas que a temporalidade se tornaeficaz e produtiva, permitindo aos indivduos e s sociedades (re)encontrarem os seus prpriosrumos no devir histrico.

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    3/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 3

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    7 A utilidade do passado deriva normalmente das representaes desse passado (mais prximoou mais remoto) no presente e pela sua assuno, num processo de identificao-rejeio,que se projecta sobre o futuro, fazendo a sntese entre heranas dspares, conscientes ouinconscientes (ideologias, modelos, imagens, prticas, mitos) de que, obviamente, o indivduodepende e agente enquanto membro de uma famlia, de um grupo, de uma comunidade, deuma civilizao.

    8 No catlogo dos modos de agir e das auto-imagens que a temporalidade fornece a uma

    sociedade, a dimenso do futuro desempenha tambm um papel crucial e estruturante, aoconsignar igualmente modelos de actuao para o presente que, em ltima instncia, visamagregar e dar sentido a um conjunto de prticas com o objectivo de um desenlace feliz epositivo, frequentemente transposto para um momento ulterior do tempo e, at, numa outradimenso espacial.

    9 Como diz K. Pomian, (...) o (...) futuro, objecto de preocupao, de projectos, antecipaes,expectativas, esperanas ou angstias, intervm correntemente no presente, ou melhor:constitui uma sua componente, dado que, na sua grande maioria, as actividades de hoje s

    podem dar frutos amanh, ou mesmo ainda mais tarde.3presente , neste sentido, um tempoorientado, dotado de uma direco e de um objectivo.

    A arquitectura temporal egpcia10 No antigo Egipto havia vrias concepes de tempo, obviamente resultantes do sistema

    de referncia em que nos colocarmos para a sua anlise: a CONCEPO CCLICA, aCONCEPO LINEARe a CONCEPO IMVEL ou ESTACIONARIA. A noo epercepo destas trs concepes podia realizar-se de forma integrada ou parcelar, afectando,na prtica, todos os membros da sociedade egpcia, de todas as pocas.A CONCEPO CICLICA de tempo no Egipto antigo (denominada pelo termo

    neheh, )4

    derivava da repetio peridica (desejada eternamente peridica) de uma srie de ritmos

    naturais, externos ao homem, imprescindveis para a boa ordem (maet) do universo e dasociedade. Fundada na observao permanente e continuada desta repetio, percebida, emmuitos casos, de forma sensorial e pragmtica, o que significa de forma a-cientfica ou pr-cientfica, esta concepo resulta do simples facto de se estar no mundo. uma concepoque implica o mundo (mundo fsico, csmico), o envolvente, e que estipula uma perfeitaintegrao, quase sujeio, do Homem nos ritmos e na sequncia dos eventos naturais.

    11 A primeira marca desta regular cadncia do tempo apurada pela sucesso/ alternncia dodia e da noite. Longe de se fixarem na rotao da Terra em torno do seu eixo, os antigosEgpcios acreditaram na aco divina como sustentadora dessa cadncia. O simples facto douniverso estar ordenado com essa alternncia era j expresso da vontade divina.5No Egipto,as divindades influenciavam o curso da histria e do tempo.6

    12 Momento dramtico da existncia quotidiana, a noite era concebida como um perodo de pugnacsmica entre R e o seu arqui-inimigo, a gigantesca serpente Apopis, onde, depois de todasas ameaas do caos (isefet) e de todas as manifestaes isefticas susceptveis de frustrarem oequilbrio do cosmos, a ordem acabava por imperar, com a vitria do deus-solar sobre as trevas

    e o nascimento resplandecente do Sol de cada nova manh. 7As 12 seces do percurso solarnaAm-Duat com as suas profundas cavernas e os seus hostis habitantes eram estncias onde

    se travavam batalhas decisivas de uma guerra nunca terminada.8 A viagem nocturna da barcado Sol no mundo subterrneo era um momento limite do estar no mundo de cada Egpcio.

    13 Pela absoluta igualdade das horas do dia e das horas da noite (12 horas cada ciclo), os Egpciosdemonstravam que tinham plena conscincia da equiparao e equivalncia existente entre asforas da ordem e da desordem e que a supremacia da ordem s se verificava se, paralelamente,se cumprissem os ritos e os rituais litrgicos apropriados em todos e em cada templo do Alto

    e do Baixo Egipto.9

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    4/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 4

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    14 A serpente das trevas, manifestao-sobrevivncia do caos primevo, era indestrutvel, a suahostilidade contnua e permanente e o triunfo solar meramente temporrio e, ainda porcima, dependente de actos indirectos praticados no universo fechado dos templos (hut netjer,moradas do deus), por homens especializados, delegados-tcnicos da liturgia.

    15 A vida individual de cada Egpcio, independentemente da sua camada social, era, logicamente,afectada directamente pela alternncia dia/ noite, uma vez que, em regra, o labor/ aco e odescanso/ repouso estavam directamente relacionados com cada um destes ciclos ecolgicos

    do dia e da noite e ajustavam-se bem ao ritmo biolgico dos indivduos. O dia (12 horas dociclo diurno) era a unidade de medida do tempo de trabalho.10O tempo individual (biolgico)ajustava-se ao tempo colectivo (solar).

    16 A dualidade temporal dia/ noite correspondia, alm das oposies luz/ trevas, aco/ descanso,a dualidade astral natural de referncia, Sol/ Lua, os luminares do cu. No por acaso quea Lua (divinizada como Tot)11era o vigrio do Sol-R. A constncia da rotatividade astralprovava tambm a adequao dos ritos praticados e garantia a absoluta ordenao dos Cosmos.

    17 Outra marca da concepo cclica de tempo a sucesso/ substituio das estaes do ano.O movimento orbital da Terra em redor do Sol era apreendido de forma indirecta e empricacomo a sucesso peridica dos trs grandes momentos do calendrio: as estaes (ter) Akhet

    (perodo da inundao), Peret (poca das sementeiras) e Chemu (poca das colheitas).12 O

    tempo solar egpcio puramente cclico.18 Trs estaes de quatro meses cada, num total de 12 meses de 30 dias cada. Dentro

    do ciclo anual de 360 dias, cada sub-ciclo de 120 dias representava uma etapa de umpercurso sequencial, eternamente renovado; sempre igual (porque era um tempo eternamenterecomeado), mas nunca o mesmo em cada ocorrncia (porque o meio natural eraperpetuamente imprevisvel). O volume da inundao, as pragas que se abatiam sobre asculturas, o tamanho das searas, a quantidade de cereal ceifado eram variveis imprevisveisde uma mesma equao natural anual.

    19 Esta sequncia temporal dentro de um ciclo, repetitivo, constante , por excelncia, o tempo docampons, daquele que pauta a sua existncia laborai segundo os ritmos da prpria Natureza,que se submete e aceita a ordem da Natureza. Mas tambm o tempo da administrao (local,regional e central) que supervisiona as actividades agrcolas, que inspecciona a programaodas rotinas, que estipula e recolhe os impostos. O tempo das estaes o tempo do quotidiano,o tempo do trabalho, o tempo dos impostos, o tempo da fiscalidade.

    20 Se a alternncia dia/noite se materializava pela aco divina, a sucesso das estaes era aprova inquestionvel da proteco e do favor dos deuses sobre a terra do Egipto. Com oadequado trabalho humano, a constncia da Natureza podia ser benfazeja para a sociedadeterrestre. Essa era a vontade dos deuses. Por isso, estes, no incio dos tempos, ensinaram aagricultura, os ofcios e as artes aos humanos.13

    21 A sucesso das estaes era testemunho desse pacto no tempo entre deuses e homense, simultaneamente, a garantia da continuidade da sociedade humana, desejavelmente emabastana e prosperidade. O ciclo das estaes inclua as fases tambm elas cclicas dagerminao, crescimento e morte das plantas, manifestaes naturais facilmente perceptveis

    nos campos egpcios.22 O ciclo das estaes sustentava a organizao regular de vrias das grandes festividades

    egpcias, a maioria relacionada com a celebrao dos ritmos da Natureza, como a festa deOpet, a Bela Festa do Vale (ambas realizadas em Tebas em honra de Amon), a da vitriade Hrus (celebrada em Edfu, em honra de Hrus), a Festa da Boa Reunio (festejada emDendera, em honra de Hathor) e a festa de Khoiak (dedicada a Osris, em Abidos).

    23 As grandes festividades anuais, que se podiamestender por vrios dias, eram manifestaesnicas para recordar e inculcar os momentos essenciais dos mitos tradicionais das respectivasdivindades honradas. Eram momentos de comemorao, onde a memria permitia areactualizao constante dos elementos idiossincrticos e identitrios da sociedade egpcia.

    24 Era tambm uma excelente oportunidade para cada divindade exercer as suas funes

    oraculares, durante a sua "sada" em procisso, respondendo s vrias questes colocadas pelosfiis.

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    5/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 5

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    25 Eram momentos ureos do ano, repetidos todos os anos, que permitiam a excepcionalaproximao do povo da imagem divina que abandonara as profundas sombras do naos (ondes o fara ou o seu delegado podiam penetrar), o que, assim, conferia a estas festas um carcterde culto pblico, massivo e at ldico inaudito.

    26 A Festa de Opet comeou a celebrar-se na XVIII dinastia. Realizava-se uma vez por ano,no segundo ms da estao deAkhet, ou seja, durante a inundao anual do rio. Podia durarde duas a quatro semanas. As imagens da trade tebana (Amon, Mut e Khonsu) eram levadas

    em barca de Karnak at Luxor para reafirmarem a divindade do fara.27 Desde o Imprio Mdio, a Bela Festa do Vale, durante dez dias, coincidia com o segundo

    ms da estao Chemu, ou seja, com o dcimo ms do ano solar (que, no Imprio Novo,coincidia com o incio do Vero), aquando da poca das colheitas. As barcas portteis datrade de Tebas saam tambm de Karnak, por entreoferendas de flores, para visitar os templosfunerrios de Tebas oeste e os templos dos faras mortos e divinizados (Vale dos Reis). Nestefestival, o mundo dos vivos e o dos mortos uniam-se. Os vivos faziam oferendas aos seusdefuntos e comiam, cantavam e danavam, celebrando assim as alegrias da existncia terrena.Era, sob todos os aspectos, uma "bela festa" (pa heb nefer) que se realizava ciclicamente novale (en painet), reafirmando anualmente a unio entre vivos e mortos, entre fara e deuses.

    28 Os festivais dedicados a Osris celebravam-se, em Abidos, durante o ms de Khoiak (quarto

    ms do calendrio egpcio), ainda durante a estao Akhet. Momento anunciador da riquezapotencial do campo, a festa celebrava anualmente a fertilidade da natureza e, por associao,a ressurreio dos defuntos no Alm.

    29 Eram feitas vrias estatuetas de barro misturados com gros de cereal com a forma de Osris(chegaram-nos os moldes destas estatuetas) que eram depositadas nos tmulos ou enterradas.As estatuetas de "Osris vegetante" germinavam e testemunhavam o eterno renascimento daNatureza.

    30 Tal como acontecia nos outros festivais com outro deuses, a imagem de Osris era retirada dotemplo na sua barca porttil e saa solenemente em procisso. Acompanhavam-na as barcasde dois outros deuses intimamente associados a Osris: Khentamentiu e Sokar.

    31 A Festa da Boa Reunio, como rito de fecundidade destinado celebrao da renovao daNatureza, decorria no ms de Epifi. A deusa de Dendera saa do seu santurio para ir ao de

    Edfu visitar o seu esposo divino (durante quinze dias) e assim conceber o deus Harsomtus,Hrus unificador do Duplo Pas (uma variante de Hrus) que, meses depois (ms Farmuti),"nascia" nos mamtnisi, tanto em Dendera como em Edfu. A "reunio" dos esposos fora "boa":produzira um filho unificador do Egipto. Anualmente, este rito festivo garantia a eterna ordemdo Cosmos.

    32 O tempo circular subjacente organizao destes festivais faz de cada um deles um momentode recomeo, de regenerao, de reorganizao e de reintegrao das foras csmico-naturais.14A recorrncia das festas no anula os seus efeitos, antes ajuda a produzi-los, areproduzi-los.

    33 O tempo da festa religiosa um tempo sagrado, diferente da temporalidade profana que oprecede ou que lhe sucede (a durao temporal ordinria); um intervalo de tempo sagrado

    e tambm um tempo mtico, ao reenviar de forma consistente e repetida para um arqutipomtico, situado num tempo primordial.15 por isso que se diz que a repetio dos arqutiposdenuncia o desejo paradoxal de realizar uma forma ideal, o arqutipo, na prpria condio daexistncia humana, de se achar na durao sem lhe suportar o peso, quer dizer, sem sofrer a

    sua irreversibilidade.16

    34 O fenmeno anual da inundaoera outro momento-chave da concepo cclica de tempovigente entre os antigos Egpcios. Nos meses de Estio, a inundao do Nilo trazia vida eesperana aos habitantes do vale.17UmHino ao Nilo (personificado no deus Hapi, a incarnaodivina da inundao anual), encontrado em esteias de Gebel Silsila, datado do Imprio Novo (c.1310 a.C.), autntico clssico da poca ramssida, reza de forma enftica sobre a generosidadeda inundao do rio:

    Viva o deus perfeito ( ...) Hapi ( ...), alimento e proviso do Egipto, que permite a cada umviver com o seu ka; no seu caminho h abundncia, os alimentos esto nos seus dedos e, quando

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    6/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 6

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    regressa, todos os homens ficam alegres. (...). Hapi que faz viver o Duplo Pas; os alimentosvm existncia quando (a sua cheia) engrossa e todos os homens lhe obedecem. (...).

    18

    35 Embora, em termos histricos, o fenmeno das cheias do Nilo s tenha sido cientificamentepercebido como resultado das chuvas que, em Maio e Junho, caam nos altos planaltosabissnios quando, no sc. XIX, uma srie de exploradores chegaram ao Lago Vitria (JohnHanning Speke em 1858 e Henry Stanley em 1874) e ao Lago Alberto (Richard Francis Burton

    em 1857 e Samuel Baker em 1864) e descobriram as fontes do Nilo,19 a percepo do

    fenmeno da subida das guas em territrio do Egipto a partir de meados de Tot (19 de Julho)deu aos Egpcios antigos um momento cclico para o incio do seu ano civil, embora o incio

    preciso da cheia variasse, contudo, de um ano para outro e de um lugar para outro. 20Era oincio da estaoAkhet, a estao da cheia do rio.

    36 Antes da fertilizao das terras do Vale propriamente dita, a inundao moldava o quotidianodos homens: aos vrios nveis da administrao estava acometida a peridica tarefa de ordenara limpeza de valas e canais de irrigao, a preparao e reparao das represas e diques, aorganizao eficaz da mo-de-obra disponvel, no fundo, a superviso das infra-estruturas eda fora de trabalho que permitiriam, bem utilizadas e conjugadas, a prosperidade econmicado pas. O ano de trabalho dos camponeses comeava justamente quando a gua das cheiasdo Nilo invadia os canais ressequidos.

    37 Durante e aps este perodo da inundao, os camponeses deviam, ento, drenar as margenspantanosas do rio, estender a superfcie das terras cultivveis, limpar os canais de irrigao(met-) para aproveitar ao mximo as guas, (re)construir pequenas barragens, diques ebarreiras de conteno (denit e merit, respectivamente) e canais, retirar areias e impurezastrazidas pelos ventos do deserto para os campos frteis e irrigar mo as parcelas de terrenomais elevadas com um chaduf ou cegonha (introduzido no Imprio Novo) ou com recipientessuspensos de um jugo.21

    38 O simples estar no mundo no permitia a ningum alhear-se do mundo envolvente ea cadncia regular do fenmeno da inundao, to visvel e sensvel, remetia os vivospara a azfama empenhada do quotidiano, em que sobrevivncia era, amide, sinnimo deobservncia e respeito pelos ritmos naturais.

    39 A importncia das inundaes para a vida colectiva egpcia, resultante da sua regularperiodicidade, estimulou paralelamente o desenvolvimento da tcnica e das cincias. Nesteparticular, merecem destaque os nilmetros: instalao destinada a medir e registar o nveldo Nilo. Construdos em locais estra tgicos do curso do rio, apresentavam uma escala(em cvados e subunidades do cvado) que indicava a altura das guas em cada pocado ano. O controlo do nvel das guas e a comparao com os valores de anos anteriorespermitia percepcionar as flutuaes do caudal, prever a colheita e os recursos disponveis, ouseja, no fundo, planear a prosperidade (ou escassez) da produo. A comparao de vriasmanifestaes anuais da ordem csmica atravs da escala nilomtrica era encarada comofactor de sondagem e previso para o ano agrcola-econmico em curso. Era uma tentativade controlar a imprevisibilidade do tempo natural. Numa economia agro-hidrulica como aegpcia tais previses eram, como facilmente se compreende, essenciais: do seu grau de rigordependiam todas as vidas do Vale do Nilo.

    40 A inoportuna escassez da cheia anual (Nilo baixo) ou o desastre de um excessivo caudal degua (Nilo alto) eram desordens hipotticas ou reais que recordavam a todos que a misriae a destruio eram irms da prosperidade e da abundncia e que o castigo divino pairavasempre sobre a sociedade terrestre, em geral, e sobre o simples campons, em particular.22

    41 Como diz Ricardo A. Caminos, Le phnomne naturel de la monte et de la baisse du Nilse produisait avec une rgularit prvisible, chague anne, et toujours la mme poque. Cequi n'tait pas toujours identique, c'tait le volume de la crue, la hauteur des eaux, qui taitcruciale, car elle amenait soit la hndiction soit la catastrophe.23

    A CONCEPO LINEAR de tempo no antigo Egipto (denominada pelo termo

    djet, )

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    7/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 7

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    pode apreender-se atravs de dois vectores: o cosmos e o indivduo. Quando aplicada aocosmos, a concepo linear faz de cada dia uma repetio activa, isto , projectada para ofuturo, da "Primeira Vez", ou seja, do momento da criao original do universo, quando aindano existia morte, nem mal, nem clera, nem desordem,24 quando ainda no tinha sido

    anunciado o nome de qualquer coisa.25

    42 De acordo com numerosos relatos mticos egpcios da criao, o universo viera existnciaquando o deus Sol, nascido de si mesmo (kheper djesej), independentemente do seu nome

    especfico, emergiu do Nun, a massa aquosa primordial que tudo cobria antes da Criao, eoriginou todas as formas de vida existentes, incluindo, obviamente, os Humanos (remet).

    26

    43 Este excepcional e memorvel momento fundador que os Egpcios chamavamapropriadamente "Primeira Vez" (sep tepi, sp tpy), anterior prpria criao, fora do tempo,assinalou a passagem do Caos para o Cosmos em variadssimos aspectos: das trevas para aluz, do Nada para o Tudo, do No-ser para o Ser, do nico para o Mltiplo, da desordem(isefet) para a Ordem (maet), do inerte para o movimento, do silncio para o som, da ausnciade tempo para o tempo definido.

    44 A criao do mundo, ao instituir a Ordem e as suas potncias (Sia, intuio organizadora,Hu, Palavra criadora, e Heka, Magia operante), relegou as foras do Caos para segundoplano. A partir de ento, essas foras e os seus agentes passaram a espreitar continuamente a

    organizao do universo, tentando interromper/ romper com a maet estabelecida.45 A criao transporta em si o grmen do declnio. A criao no um acto nico e definitivo.

    Deve e pode ser continuamente actualizada e regenerada. O passado uma constanteconstruo e uma reinterpretao do presente e tem um futuro que parte integrante esignificativa dessa construo/ reinterpretao.

    46 Para regular o funcionamento do universo tornou-se imprescindvel que na sociedade humanase estabelecessem ritos e rituais que deviam ser continuamente observados para evitar oregresso s origens pr-maticas. Neste sentido, o rito uma repetio constante, actualizadae activa da "Primeira Vez". O tempo do rito um tempo da recordao, da conservao.

    47 O nico oficiante legtimo da liturgia, o fara, ou os seus delegados-tcnicos do culto, ossacerdotes (eles prprios especialistas e guardies do tempo e da memria), no faziam maisdo que garantir que o dinamismo do rito estivesse sempre activo. Pretendiam, dessa forma,

    evitar que a criao se extinguisse, que o Sol casse na Terra, que o Caos se instalasse de novo.27

    48 A manh de cada novo dia era, pois, uma repetio da "Primeira Vez", pois o nascimentodo Sol, qual reapario do demiurgo, como princpio criador activo, reactualizava e repetiaa criao original. Os ritos dirios celebrados nos espaos mais recnditos dos templospermitiam articular as trs dimenses da temporalidade: o passado (a "Primeira Vez"), opresente (o momento da reevocao pelo rito) e o futuro (o objectivo do cumprimento dosritos). Como diz Erik Hornung, Le monde se comprend partir de ses origines. (...) le seulfait de revenir aux origines du monde (...) permet un ternel, un dpassement des crises..28

    49 O tempo do rito, apesar de recuperar uma ideia de recomeo e de viver de acordo comessa ideia, linear justamente porque se projecta para o futuro; o exerccio da liturgia s secompreende e justifica com esta direco/ orientao de futuro e de porvir. o futuro queconfere um sentido ao rito e ao prprio tempo. O tempo linear egpcio aplicado ao Cosmos,como a histria, est submetido a um telos, um fim, um termo, um desenvolvimento pleno.

    50 Ao lidar com a aco divina, com o mundo dos deuses demiurgos e organizadores do universo,o tempo do rito um tempo teolgico, um tempo divino. Alis, a civilizao egpcia retiradesta concepo uma grande quota da sua atraco e do seu fascnio.

    51 Quando aplicada ao indivduo, a concepo linear ou rectilnea a que se encontra subjacentee que rege a durao da existncia e da experincia humana terrestre ou, dito de outra forma,

    a que superintende actividade humana no tempo atribudo vida no Aqum.29

    52 Os antigos Egpcios concebiam o ciclo da existncia como dois momentos distintos ou comoo resultado da conjugao de dois sub-ciclos: o ciclo da vida humana terrena (efmero,transitrio) e o ciclo da vida extraterrena (eterno, infinito).30 Enquanto o ciclo da vida humana

    terrena, que os Egpcios designavam como ahau, que podemos traduzir por durao de vidado homem ou (perodo de) durao da vida humana, comeava com o nascimento do

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    8/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 8

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    indivduo (ponto zero) e terminava com a sua morte, o ciclo extraterreno iniciava-se com o seure-nascimento ou regenerao no Alm e, com os devidos cuidados e preparativos mgicos(textuais e iconogrficos), concebia-se como eterno, infinito.

    53 A primeira etapa do ciclo da existncia passada no Aqum obedecia, deveras, a umaconcepo linear e dinmica de tempo: o indivduo era concebido, nascia, crescia, envelheciae inexoravelmente morria.31O tempo de vida (tempo dos nascimentos, dos desenvolvimentos,dos declnios e das mortes) era, obviamente, um fluxo contnuo, com a sua multiplicidade,

    variabilidade e irreversibilidade. Era um tempo aberto, percebido de forma universal edinmica, feito de uma srie de mudanas encadeadas, concatenadas, na medida em que cadafase, numa situao normal, era um momento transitrio, projectado para a frente, para omomento seguinte do tempo.

    54 Nesta sucesso articulada da temporalidade individual intervinham e justapunham-sediferentes tempos complementares, concorrentes e at antagnicos (o tempo dos antepassados,o tempo dos pais, o tempos dos irmos, o tempo dos filhos tempos colectivos), sendoconstante e comum a todos eles a fatal degenerescncia e desintegrao mortal de todos osorganismos. A irreversibilidade do tempo sequencial fazia dele um tempo de desgaste, deruna, de consumio.

    55 O prprio fara, ao fim de 30 anos de reinado (30 anos era a durao de uma gerao) estava

    desgastado e consumido pelo exerccio do poder, necessitando de realizar uma festa (heb-sed)para obviar debilidade e fragilidade das suas foras fsicas e metafsicas, ou seja, para ceder

    o lugar a um novo rei, ainda que incarnado na mesma figura humana.32

    56 O tempo linear , pois, uma percepo que nasce da auto-conscincia individual (tempoindividual) e das relaes interpessoais esboadas e vividas em sociedade (tempos sociais)e um processo de desgaste em que o indivduo, alm de estar no mundo, est com omundo (com os outros). O tempo do indivduo cruza-se com o tempo da sociedade ou vice-versa. O prprio ciclo das estaes interage com a sucesso linear do tempo de durao davida humana terrena, instituindo-se em significativo referente temporal.

    57 As autobiografias que nos chegaram do antigo Egipto so uma expresso literria da acodo tempo de vida. O auto-retrato elogioso do morto, com o seu nome, ttulos e aces maisdestacadas, qual histria curricular pessoal, enfatiza na sucessodos acontecimentos aqueles

    que maior glria conferem ao autobiografado.33 uma concepo em que o tempo lineare cumulativo.

    58 Na mastaba de Kagemni (Sakara norte), dos dois lados da porta de entrada, possvel encontrara biografia deste funcionrio dos ltimos faras da V dinastia (Djedkar Isesi e Unas) e doprimeiro fara da VI dinastia (Teti):

    Le vizir de l'tat Kagemni dit: J'tais favori auprs d'lzzi. Je remplis la tche de fonctionnairede l'tat au temps d'Onnos. Sa Majest me rcompensa trs gnreusement, et quand je vins la Rsidence, Sa Majest m'en rcompensa trs gnreusement.(...) La Majest de Tti, monseigneur, qu'il vive ternellement, me nomma la tte de tout bureau, de tout service horaire dela Rsidence. Sa Majest avait confiance l'gard de toute chose que Sa Majest avait o rdonnde faire, parce que j'tais capable, parce que j'tais apprci auprs de Sa Majest.

    34

    59 Tambm a biografia de Uni, gravada num grande bloco de calcrio colocado na porta da capelada sua mastaba, em Abidos, nos d uma sucesso dos seus feitos ao longo de vrios reinados(Teti, Pepi I e Merenr, todos da VI dinastia):

    Ouni, l'ain dit: J'tais un jeune qui se noua le bandeau (de bachelier) sous la Majest de Tti.Quand ma fonction tait celle d'un directeur de maison de ravitaillement, je fus suprieur desemploys du grand palais. Puis je devins prtre-lecteur, an du palais ancien sous la Majestde Ppi: Sa Majest me nomma dans la fonction dAmisuprieur des prophtes de la ville de sapyramide.(...).Alors que j'tais officier de la grande demeure,porte-sandales,le roi de Haute et deBasse Egypte Mrenr, mon seigneur, qu'il vive ternellement, me nomma prince, directeur deHaute Egypte, au sud d'Elphantine (...), parce que j'tais capable dans l'estime de Sa Majest,parce que j'avais du succs dans l'estime de Sa Majest, parce que Sa Majest avait confianceen moi.

    35

    60 Atravs deste processo, conhecemos os cursus honorum de muitos oficiais, funcionriose administradores egpcios e no obstante as frmulas estereotipadas da construo

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    9/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 9

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    narrativa estamos perante registos de literatura historiogrfica que fazem da sucesso dosacontecimentos de vida a sua principal caracterstica.36

    61 Destinadas a apresentar s divindades do Alm o personagem autobiografado como algumdotado de um carcter e de uma conduta ideais, estas narrativas pretendiam combater e vencer airreversibilidade do tempo sequencial, factual, da vida, fixando para a eternidade os momentosgloriosos, dignos de memria, das carreiras dos imakhu (venerveis, favorecidos, possuidores

    de benefcios ou privilgios).37

    62 Os Egpcios acreditavam tambm que chegar a uma idade avanada era uma beno dosdeuses, que s podia ser lida como uma recompensa pelo bom comportamento durante a vida.Atingir uma provecta idade era, por isso, sintoma de uma vida justa, vivida em harmonia como Cosmos, a Sociedade e os Deuses, e motivo de grande respeito.

    63 No Egipto antigo, era extremamente valorizada a sabedoria e astcia existencial denotada pelosidosos/ ancios (iau ou teni), verdadeiros homens-memria. A experincia de vida conferia aovelho egpcio uma autoridade moral e devia suscitar nos mais novos atitudes de obedinciae at venerao, predispondo-os a seguir os seus conselhos. Como dizia um preceito dosEnsinamentos de Ani: Nunca fiques sentado se estiveres perante um homem mais velho do

    que tu.38

    64 O velho (semesu) era prezado e todos os Egpcios aspiravam a passar com xito todas as fases

    da existncia humana terrena e atingir esse ltimo estdio jubiloso que era a velhice. Inmerostextos egpcios colocam a idade ideal nos cento e dez anos, o limite extremo sonhadopara uma vida perfeita.

    65 Um texto da XV dinastia (c. 1700 a.C.), o conto maravilhoso do mgico Djedi (quarto contonarrado ao fara Khufu por um dos seus filhos, o prncipe Djedefhor), contido no PapiroWestcar ouPapiro n. 3033 do Museu de Berlim, composto um milnio depois dos eventosque supostamente relata, elucidativo a este respeito: Existe um velho de nome Djedi que

    reside na (cidade de) Djedseneferu39

    ( ...). um velho com cento e dez anos que come aindaquinhentos pes, metade de um boi e que bebe, ao mesmo tempo, at ao dia de hoje, cem

    cntaros de cerveja.40

    66 Uma inscrio descoberta em El Assasif, referente a Bakenkhonsu, Primeiro Profeta de

    Amon em Karnak durante 27 anos e mestre-de-obras do templo de Luxor, da XIX dinastia,41

    menciona: Cada nova madrugada d-me um suplemento de felicidade e isto desde que eracriana at ao dia em que a velhice chegou, no interior do templo de Amon, enquanto possoandar por todo o lado e ver com os meus olhos a sua face sagrada. Possa ele recompensar-

    me e que eu esteja sempre de p, feliz, com a idade de cento e dez anos.'42

    67 Nascido c. 1310 e falecido c. 1220 a.C., Bakenkhonsu viveu, de facto, 90 anos, mas comoqualquer Egpcio cnscio da concepo de tempo-tipo para a vida humana terrena desejava

    atingir a idealizada e prestigiada idade de 110 anos.43

    68 Si j'ai obtenu cent dix ans de vie, tels que me les accordait le roi, mes faveurs dpassant(celles des) prdcesseurs, cela provient de ce que j'ai fait la mat pour le roi jusqu' laplace de l'honneur [la tombe].44Quem assim fala, no final da sua obra, Ptahhotep, o vizir

    do fara Djedkar Isesi, da V dinastia, suposto autor de uma das mais clebres Mximas ouEnsinamentos do antigo Egipto.69 O orgulho existencial de Ptahhotep no o fez, todavia, esconder as desditas da velhice. Com

    grande perspiccia e poder de observao descreveu-as tambm no seuEnsinamento: Passamos anos, chega a velhice, vem a fragilidade, a debilidade aumenta. Dorme-se todo o dia, comoas crianas. Os olhos turvam-se, os ouvidos ensurdecem. Com o cansao diminuem as foras;a boca, silenciada, no fala; o corao, vazio, no recorda o passado. Doem os ossos, o bom

    mau, foi-se o gosto. Aquilo que os anos nos fazem mau em todos os sentidos.45

    70 O espectro da degenerescncia corporal, destino de todos os humanos que alcanam idadesmais avanadas, era algo pesado e terrvel para os Egpcios. Do ponto de vista emocional, osEgpcios temiam e rejeitavam o aniquilamento da existncia terrena tanto como qualquer outra

    sociedade. Neste sentido, os Egpcios amavam a vida e odiavam a morte.

    46

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    10/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 10

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    71 Diminudos nas suas faculdades, de carnes flcidas e enrugadas, calvos e alquebrados pelopeso da idade, os Egpcios procuraram obviar a estes traos inevitveis da passagem do tempolinear atravs de uma iconografia idealizada. A sua preferncia quase obsessiva vai para asfiguras da juventude ou da maturidade de homens e mulheres nas pinturas, esculturas e baixos-relevos. Exploradas magicamente, essas figuras esto, porm, ao servio de um outro ciclo daexistncia: a existncia extraterrena.

    72 Atravs da preservao e mumificao dos corpos (khet), os Egpcios acreditavam que era

    possvel reagrupar os vrios elementos fsicos e metafsicos que compunham a personalidadehumana (ka, ba, chut, etc.) e alcanar o re-nascimento no Alm. Os numerosos amuletos e asjias, as frmulas, splicas e oraes de que cada morto se dotava para a viagem de ummundo para outro, de um ciclo da existncia para outro, significam que a existncia era, defacto, orientada por um vector temporal colocado mais frente.47A morte mais no era doque a momentnea disfuno dos elementos, a ruptura que marcara a transio de ciclos devida do indivduo.

    73 Tal como a noite ou a ocorrncia de uma cheia escassa ou excessiva constituam no mbitoda concepo cclica quebras, rupturas, tentativas isefticas de destruio da ordem pr-inscrita no funcionamento do universo, a morte do homem representava a mais sria ameaa concepo linear de tempo. A morte introduzia uma descontinuidade, uma paragem, na

    sucesso articulada do tempo de vida.74 A ocorrncia da morte pressupe uma vitria temporria do Caos. Mas, ao ser declarado maekheru, justo de voz, no Tribunal do Alm, cada defunto vence a morte, vence o tempo lineare os seus malefcios e recupera a noo de eterna ordenao do mundo.

    75 A hiptese de uma segunda morte ou aniquilamento eterno existia, prefigurada nadevoradora Amut que, ansiosamente, esperava que alguma pesagem do corao se revelasse,para seu gudio, negativa. Comer Amut o corao do morto significaria o triunfo completodo tempo linear e a sua orientao no para um infinito temporal de eternidade mas para aabsoluta finitude e extino.

    76 As constncias do universo do Alm egpcio no desaparecem nunca. Os seres deixam de estarsujeitos ao tempo e s suas manifestaes. Um jovem vigoroso representado n uma pinturaser eternamente jovem e vigoroso. Uma mulher elegante e sensual pintada num baixo-relevose-lo- por toda a eternidade. Uma criana irrequieta e vivaa no perder esses atributos noAlm. O tempo neles no existe. O tempo para eles no existe. 48O tempo do Alm no estsujeito mudana inerente linearidade, no mutvel, nem dinmico: imvel, estticoe fechado.

    77 Esta CONCEPO IMVEL ou ESTACIONRIA do tempo est patente em cadamastaba, em cada hipogeu, em cada templo funerrio, ou seja, nas moradas da eternidade(hut neheh ouper-djet).49 Ao dinamisno do tempo do primeiro ciclo da vida humana terrestrecorresponde a imutabilidade do tempo no ciclo da vida extra-terrena. No Alm, no h passado,nem futuro. S eternidade, infinito, eterno presente (o presente, se fosse sempre presente eno passasse a passado, no seria j tempo, mas eternidade, diz Santo Agostinho).

    78 O sistema de vida do Alm, sendo um sistema fixo, no est submetido ao tempo. Nasceu do

    e no tempo, mas subtraiu-se-lhe; est fora do tempo, visto que este no contribui para a suaexistncia nem para a sua organizao. como se o indivduo estivesse fora do mundo.

    79 O prprio morto, depois de ultrapassar com xito todos os perigos e testes da viagem e dasprovas da Sala das Duas Verdades, entrava num novo estado de existncia: transformava-senum akh, ser transfigurado. Ser um akh um estdio completamente diferente de todosos outros modos de existncia humana j experimentados: adquirem-se qualidades e energiasdivinas, sem se ser, contudo, totalmente igual aos deuses: to be akh, then, was to be aneffective spirit enjoying the qualities and prerogatives of gods, having the capacity foreternal

    life and being capable of influencing other beings.50

    80 Intelectualmente, a civilizao egpcia demonstrou, provavelmente como nenhuma outra,saber reconhecer e aceitar a inevitabilidade da morte, crendo firmemente na sua superao

    no Alm. Esta atitude perante a morte e, logo, perante a vida, talvez o aspecto maisextraordinrio da sua mundividncia.

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    11/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 11

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    81 A vida terrena era, assim, concebida pelos Egpcios como uma etapa preparatria epropedutica de algo ardentemente desejado que era a vida eterna, onde s se conjugavam oselementos agradveis e prazenteiros do Aqum, dispensando os seus desencantos e embaraos,como a tristeza, a misria, a dor, o envelhecimento. Os Egpcios acreditavam que era possvelvencer o tempo. A eternidade egpcia representa a infinitude do tempo, livre de toda e qualquercontingncia limitativa.

    Concluso82 Para a considerao rigorosa da concepo de tempo e de temporalidade no antigo Egipto

    devemos fixar, desde logo, dois patamares de anlise: por um lado, a noo de que o tempono antigo Egipto no era absoluto, ou seja, de que s podemos falar dele e entend-lose estabelecermos como premissa que a sua concepo varia de acordo com o sistema dereferncia a que nos reportemos (como objecto mais conceptual ou mais sensorial); por outro,perceber a temporalidade no antigo Egipto implica atender, simultaneamente, sucesso dosacontecimentos, aos intervalos entre os acontecimentos e durao desses acontecimentos.

    83 Toda a actividade dos Homens no mundo terreno , evidentemente, um fenmeno no tempo,uma vez que esto no mundo e com o mundo, embora concebido e percebido sob duasformas: o tempo sequencial ou irreversvel, que atravessa toda a existncia, baseado numa

    progresso constante e linear, e o tempo cclico, circular ou do anel, que se fecha sobresi mesmo, assente na repetio dos eventos. Um (tempo linear) trabalha para a dissipaoe a desagregao; o tempo da mudana, da alterao. Outro (tempo circular) para arecomposio, para a organizao; o tempo da constncia, da permanncia.

    84 Todo o Egpcio ao longo da sua vida humana afectado pela teia tecida pelo tempo nas suasvrias formas de expresso; sente os efeitos e a influncia dos diferentes tempos. Mas, quaseparadoxalmente ou talvez no ansiou pela anulao dos seus efeitos. O desejo natural dohomem de ter mais tempo para viver desemboca no desejo de um tempo sem fim e, emltima instncia, no prprio desejo de eternidade.

    85 A concepo de tempo e de temporalidade em vigor no antigo Egipto, sobretudo a partirdo Imprio Mdio, quando se verifica a chamada democratizao da esperana de vida no

    Alm, na XII dinastia, com o desenvolvimento das crenas no julgamento dos mortos e ageneralizao dos Textos dos Sarcfagos, promete existncia de um indivduo uma duraomuito superior da sua vida corprea terrena. A eternidade passa a ser um objectivo dasociedade egpcia. O desejo de abolir o tempo generaliza-se.

    86 Aquando da entrada no Alm, o tempo irreversvel e desintegrador da linearidade substitudopor um novo e diferente momento de recomeo, de regenerao, de reorganizao e dereintegrao, onde o tempo imutvel. Nesta dimenso fora do tempo, j no se valoriza asucesso dos acontecimentos, mas sim a sua durao. E esta , segundo a concepo egpcia,ilimitada, eterna. E eternidade , neste sentido, a dilatao do tempo at ao infinito. como se atemporalidade das sucesses e a temporalidade dos ciclos tivessem desembocado na anulaoda temporalidade ou, dito de outra forma, linearidade e circularidade redundam na imobilidade.

    A eternidade egpcia a negao do tempo.

    Notas

    1 Santo Agostinho, Confisses, 11, 14-25.

    2 APUD in Pomian, Krzysztof, Tempo/ Temporalidade, Enciclopdia Einaudi, Volume 29. Tempo/Temporalidade, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, p. 46.

    3 Pomian, K., Ob. Cit., p. 12.

    4 Sobre a terminologia temporal, Cf. Hornung, Erik, L'esprit du temps des pharaons, Paris, PhilippeLabaud Editeur, 1996, pp. 72-74. Vide tambm Taylor, John H.,Death and the afterlife in Ancient Egypt,Londres, The Trustees of the British Museum, 2001, p. 31

    5 Cf. Redford, Donald B.,Pharaonic king-lists, annals and day-books. A contribution to the Study of the

    Egyptian Sense of History, Mississauga, Benben Publications, 1986, p. XVII.6 Cf.Ibid., p. XX.

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    12/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 12

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    7 Cf. Sales, Jos das Candeias, As divindades egpcias. Uma chave para a compreenso do Egipto antigo,Lisboa, Editorial Estampa, 1999, pp. 97-103, 399-402. Note-se que, no Imprio Novo, no Livro das Portase nos Livros do Alm, as figuraes do tempo tm forma de serpentes (Cf. Hornung, E., Oh. Cit., p. 72).

    8 Cf. Quirke, Stephen,Le culte de R. L'adoration du soleil dans l'gypte ancienne, Mnaco, Editionsdu Rocher, 2004, pp. 64-69.

    9 No obstante todas as alteraes e reformas que os calendrios lunar e solar egpcios sofreram ao longodas pocas, o aspecto que se manteve comum a todas elas foi precisamente a diviso egpcia do dia em24 horas (uniu), 12 diurnas (horas de Sol) e 12 nocturnas (horas de obscuridade) Cf. Hornung, E.,

    Ob. Cit., p. 65, e Sales, Jos das Candeias, Calendrio,Dicionrio do Antigo Egipto (dir. Lus Manuelde Arajo), Lisboa, Editorial Caminho, 2001, pp. 165-167. OLivro da Noite, datado do Imprio Novo,descrevia as doze regies que correspondiam s doze horas da noite e que lembram oLivro da Am-Duat.

    10 A questo da durao do dia laborai em sociedades agrcolas como a egpcia estava, logicamente,relacionado com as horas de Sol: do nascer ao pr do Sol. O escuro da noite levava percepodo tempo da noite como tempo inutilizvel.

    11 Como deus-lunar, Tot possua vrios eptetos eloquentes relacionados com a temporalidade, porexemplo Governador dos Anos e Contador do Tempo de Vida. A iconografia desta divindade(antropomorfo, com cabea de bis encimada pelo disco solar e pelo crescente lunar), a sua forma animalde babuno (cynocephalus hamadryas) e o bico recurvado do bis (aluso ao crescente lunar) atestamigualmente a sua associao temporalidade no antigo Egipto (Cf. Sales, J., Ob. Cit., pp. 182-186).

    12 Segundo a concepo egpcia, fra o deus Tot que dividira o ano em trs estaes e em 12 meses,dando o seu nome ao primeiro ms do calendrio egpcio (Cf.Ibid., p. 186).

    13 Sobre o papel e ainterveno dos deuses nas vivncias dos Homens do antigo Egipto, vide Hornung,Erik, Conceptions of god in ancient Egypt, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1982,Id., Les dieux de I'Egypte - Le Un et leMultiple, Monaco, ditions du Rocher, 1986, e Goyon, Jean-Claude,R, Mat etPharaon ou le destin de l'Egypte antique, Lyon, Edition A.C.V., 1998.

    14 Mircea Eliade peremptrio quando alude ao tempo da festa religiosa: Toda a festa religiosa, todo otempo litrgico, representa a reactualizao de um evento sagrado que teve lugar num passado mtico, "nocomeo" (Eliade, Mircea, O Sagrado e o Profano. A essncia das religies, Lisboa, Livros do Brasil,s.d., p. 81). Vide Guilhou, Nadine, Temps du rcit et temps du mythe. Des conceptions gyptiennes dutemps travers le Livre de la Vache Cleste inMlanges Adolphe Guthub, Montpellier, Universit deMontpcllier, 1984, pp. 87-93.

    15 Cf. Id., Tratado de Histria das Religies, Lisboa, Edies Cosmos, 1970, pp. 460, 462, 470. Id., OSagrado e o Profano, pp. 81, 83, 97, 98.

    16Id., Tratado deHistria das Religies, p. 480.17As inundaes de Vero e no de Inverno do Nilo foram um fenmeno que muito intrigou Herdotoquando este, por voltade 450 a.C., visitou o pas. A esse propsito escreveu: (..) o Nilo cobre, nas suascheias, no apenas o Delta mas tambm certas partes dos territrios que se diz pertencerem Lbia e Arbia, a dois dias de marcha de cada margem, mais ou menos. Sobre o regime deste rio nada pudeaprender, nem dos sacerdotes nem de ningum. No entanto, estava desejoso de saber por que motivo oNilo engrossa e transborda a partir do solstcio de Vero, durante cem dias, e, decorridos estes dias, recuae perde caudal, para no ser mais do que um fraco curso de gua durante todo o Inverno, at ao regresso dosolstcio de Vero. A este respeito, nenhum Egpcio foi capaz de me dar a mnima informao, quando euinquiria sobre as foras que do ao Nilo um regime contrrio ao dos outros rios(...). (Herdoto, II, 19).

    18Lalouette, Claire, Textes sacrs et textes profanes de l'ancienne Egypte. 2. Mythes, contes et posie,Paris, Gallimard, 1987, pp. 139, 140. A traduo nossa.

    19 Lembremos que procurar as fontes do Nilo (quaerere fontes Nili) foi, durante muito tempo, usadocomo sinnimo de empreendimento inexequvel.20 A subida das guas estava ligada observao celestial do levantamento helaco da estrela Sopdet(Sirius), a mais brilhante estrela do cu, localizada perto da constelao de Orion. Em Mnfis, o incioda inundao coincidia com a peret sepedet, isto , com a apario matinal de Sirius Cf. Von Bombard,A. S., The Egyptian Calendar, Egyptology at the Dawn of the 21st Century. Proceedings of the EighthInternational Congress of Egyptologists, Cairo, 2000, Vol. 2, History and Religion, Cairo, The AmericanUniversity in CairoPress, 2002, pp. 138, 139; Sales, Jos das Candeias, Calendrio, Dicionrio doantigo Egipto, p. 166. Vide tambm Spalinger, Anthony, Calendars: Real and Ideal in Essays inEgyptology in honour of Hans Goedicke (edited by Betsy M. Bryan and David Lorton), Texas, VanSiclen Books, 1994, pp. 297-208.

    21 Cf. Caminos, Ricardo A., Le paysan, Sergio Donadoni (dir.),.L'homme gyptien, Paris, Seuil, 1992,pp. 21-24.

    22 Cf. Redford, D., Ob. Cit., p. XVII.23 Caminos, R. A., Ob. Cit., p. 20.

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    13/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 13

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    24 Cf. Sauneron, Serge; Yoyotte, Jean, La naissance du monde selon l'gypte ancienne, SoucesOrientales I, Paris, 1959, pp. 43 e ss.

    25 Carreira, Jos Nunes,Filosofia antes dos Gregos, Mem-Martins, Publicaes Europa-Amrica, 1994,p. 55.

    26 Entre as vrias espcies animais e naturais que povoavam a terra, os Egpcios valorizavamparticularmente os seres humanos (Cf. Hornung, E., Ob. Cit., pp. 40, 41).

    27 Cf.Ibid. , p. 43.

    28Ibid., p. 33.29 Como escreve Jos Nunes Carreira, a expresso mais bvia do tempo histrico, representadogeometricamente na linha sem fim, era a vida do indivduo (Carreira, J. N., Ob. Cit., p. 63).

    30 Sintomtico desta concepo, os materiais construtivos das habitaes do quotidiano terreno,incluindo os palcios reais, eram perecveis (adobes, madeira, ramagens, etc.) e os das habitaes eternasda existncia extraterrena eram de pedra ou escavados na rocha (Cf. Taylor, J. H., Ob. Cit., p. 12).

    31 Embora esta fosse a ordem sonhada dos acontecimentos, os antigos Egpcios sabiam que um acidentepodia privar a criana ou o jovem de vida. OEnsinamento de Ani consigna: Ne dis pas "Je suis (trop)

    jeune pour que tu [m'] enlves !" car tu ne connais pas ta mort. La mort vicnt pour prendre l'enfant qui estdans le sein de sa mre, aussi bien que celui qui est devenu un vieillard (Vernus, Pascal,Les sagessesde l'gypte pharaonique, Paris, Imprimerie Nationale, 2001, p. 245).

    32 Cf. Hornung, E.,Ob. Cit., p. 66.

    33 Cf. Sales, Jos dasCandeias, Autobiografias, Dicionrio do Antigo Egipto pp. 128, 129. Videtambm Roccati, Alessandro,La littrature historique sous L'Ancien Empire, Paris, ditions du Cerf,1982.

    34Ibid., pp. 139, 140.

    35Ibid., pp. 191.

    36 Cf. Carreira, Jos Nunes,Literatura do Egipto antigo, Mem-Martins, Publicaes Europa-Amrica,2005, pp. 42, 43. Entre as inmeras biografias ou autobiografias que se poderiam citar so de referenciartambm as de Herkhuf, Pepinakht, Sabni e Mekhu (todos altos funcionrios da VI dinastia, com tmulosrupestres em Qubbet el-Haua, Assuo) que, a par do relato histrico das suas misses oficiais e feitosmais destacados, incluem textos de marcado cariz moralizante Cf. Roccati, A., Ob. Cit., pp. 200-211,214-220.

    37 Pepinakht, por exemplo, que viveu no final da VI dinastia, durante o reinado do fara Neferkar PepiII, foi divinizado no Imprio Mdio, tal a excelncia dos seus comportamentos, segundo a concepo

    moral vigente.38 Cf. Vernus, P., Oh.Cit., p. 248.

    39 Possa o rei Seneferu habitar!. Localidade de Meidum, perto da pirmide de Seneferu (fara fundadorda IV dinastia) Cf. Lalouette, C., Ob. Cit., p. 293, nota 21.

    40 Cf.Ibid., p. 178. Vide tambm Simpson, William Kelly (ed.), The Literature of Ancient Egypt. Ananthology of stories, instructions, and poetry, New Haven/ London, Yale University Press, 1972, p. 22;Lefebvre, Gustave,Ronzans et contes gyptiens de l'poque pharaonique, Paris, Adrien-Maisonneuve,1949, p. 81.

    41 A carreira de Bakenkhonsu iniciou-se sob Seti I e prosseguiu sob Ramss II (Cf. Rice, Michael, Who'swho in Ancient Egypt, London/ New York, Routledge, 1999, pp. 33,34, e Lalouette, C., Textes sacrs ettextes profanes de l'ancienne Egypte. 1. Des Pharaons et des hommes, Paris, Gallimard, 1984,p. 328).

    42 Cf.Ibid., p. 186.

    43 Cf. Rice, M., Ob. Cit., p. 34.44 Vernus, P., Ob. Cit., p. 112.

    45 Cf.Ibid., p. 73.

    46 Cf. Taylor, J. H., Ob. Cit., p. 12.

    47 Sobre as frmulas de passagem nos Textos das Pirmides e nos Textos dos Sarcfagos, vide Bickel,Susanne, D'un monde l'autre: le thme du passeur et de sa barque dans la pense funraire, D'unmonde l'autre. Textes des Pyramides et Textes des sarcophages. Actes de la table ronde internationaleTextes des Pyramides versus Textes des Sarcophages. IFAO 24-26 Septembre 2001 (edites paraSusanne Bickel et Bernard Mathieu), Cairo, IFAO, 2004, pp. 91-115.

    48 Recordemos Franois Daumas que via na arte egpcia un art la mesure de l'ternit e que diziatout l'art religieux et funraire n'est pas autre chose qu'une transmutation de la vie prsent en ternit.(...). L'art gyptien exprime au premier chef la hantise de l'ternel (Daumas, Franois, La civilisation

    de l'gypte pharaonique, Paris, Arthaud, 1977, p. 432).

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    14/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 14

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    49 Apropriadamente, os templos funerrios eram apelidados de templos dos milhes de anos. VideWeeks, Kent, Guide illustr de Louxor. Tombes, temples et muses, Vercelli, White Star Publishers, 2005.

    50 Taylor, J. H., Ob. Cit., p. 32. Recordemos que os Egpcios acreditavam que o universo era habitadopor trs tipos de seres que se podiam interinfluenciar: os deuses (netjeru), os vivos (ankhu) e os mortostransfigurados (akhu) Cf.Ibid., p. 15. Claude Traunecker escreve: Par la mort 1'gyptien franchiradfinitivement la frontire sparant le sensible de l'imaginaire. Il rejoindra le monde des dieux o, aprsavoir retrouv une nouvelle intgrit grce aux rituels funraires, il exercera des pouvoirs nouveaux et

    jouira de facults qui lui taient inconnues (TRAUNECKER, CLAUDE,Les dieux de L'Egypte, 3 ed.,

    Paris, PUF, 1996, p. 24).

    Para citar este artigo

    Referncia eletrnica

    Jos das Candeias Sales, Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo ,Cultura[Online], Vol. 23 | 2006, posto online no dia 14 Fevereiro 2014, consultado a 12 Fevereiro2015. URL : http://cultura.revues.org/1282 ; DOI : 10.4000/cultura.1282

    Referncia do documento impresso

    Jos das Candeias Sales, Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no EgiptoAntigo , Cultura, Vol. 23 | 2006, 19-37.

    Autor

    Jos das Candeias SalesUniversidade AbertaLicenciado em Histria e Mestre em Histria das Civilizaes Pr-Clssicas, Variante de Egiptologia,pela Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Doutoradono Ramo de Histria, Especialidade de Histria Antiga, pela Universidade Aberta, com a teseIdeologia e Propaganda Real no Egipto Ptolomaico (305-30 a.C.). Docente da Universidade Aberta(Departamento de Cincias Humanas e Sociais) na rea de Histria Antiga, onde lecciona disciplinas

    de graduao (licenciatura) e de ps-graduao (mestrado).

    Direitos de autor

    Centro de Histria da Cultura

    Resumos

    Nesta reflexo sobre a concepo e a percepo de tempo e de temporalidade no antigo Egiptoenfatizam-se as vrias formas de encarar o tempo existentes entre os antigos Egpcios, as suas

    diferentes e operantes marcas, regulares e cadenciadas, aplicveis ao Cosmos e ao indivduo e omodo como afectavam, directa ou indirectamente, os comportamentos das diferentes camadasda sociedade egpcia.Alm de, obviamente, conhecer os efeitos e a influncia da passagem do(s) tempo(s), asociedade egpcia destacou-se pela sua particular nsia de superao e anulao desses efeitos.O desejo de abolir o tempo e a ideia de uma apaziguadora eternidade no Alm foram, durantemuitos sculos, objectivos e ideias estruturantes dos seus modos de ser e de estar, quer noplano mental quer no material.

    Conception and Understanding of Time and Timeliness in AncientEgypt

    In this reflection on the conception and understanding of time and timeliness in the AncientEgypt, the various forms that the ancient Egyptians saw time through its different and opera-tive signs, both regular and rhythmic, and applicable to the Cosmos as well as to the individual

  • 7/25/2019 Cultura 1282 Vol 23 Concepcao e Percepcao de Tempo e de Temporalidade No Egipto Antigo (1)

    15/15

    Concepo e percepo de tempo e de temporalidade no Egipto Antigo 15

    Cultura, Vol. 23 | 2006

    himself and the way it affected the behaviour of the different layers of the Egyptian societyare emphasized.Apart from obviously knowing the effects as well as the influente that the passing of time had,the Egyptian society was prominent because of its particular impatience to overcome and clearout those same effects. The desire to abolish time and the notion of a peaceful eternity in theAfter Life were, for many centuries, objectives as well as structuring ideas in their way of lifeand being, be it on a mental or material level.

    Entradas no ndice

    Keywords :cyclical time, linear time, immobile or stationary time, calendar, feasts,annual floodPalavras chaves : tempo cclico, tempo linear, tempo imvel ou estacionrio,calendrio, festas, inundao anual