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nova Economia_Belo Horizonte_19 (2)_267-284_maio-agosto de 2009 Crítica à leitura hayekiana da História: a perspectiva da ação política de Hannah Arendt Angela Ganem Professora visitante do Instituto de Economia da UFRJ Palavras-chave Friedrich August von Hayek, ordem espontânea, ação política, Hannah Arendt, mercado e democracia. Classificação JEL B31. Key words Friedrich August von Hayek, spontaneous order, political action, Hannah Arendt, market and democracy. JEL Classification B31. Resumo Mostrar as limitações da leitura hayekiana da História contrapondo-a à perspectiva teórica da ação política de Hannah Arendt é o obje- tivo deste texto. O artigo tem três partes cons- titutivas: na primeira parte, apresentamos a teoria hayekiana da ordem espontânea como uma ordem racional e leis tão inexoráveis quanto as que ele critica em Marx. Em uma palavra, a ideia do autodesenvolvimento do mercado visto como a única forma possível de organização para as sociedades contem- porâneas. Na segunda parte, mostramos que conceitos caros ao liberalismo estão presentes em autores críticos, como Hannah Arendt, em que o indivíduo através da ação política cons- trói um mundo justo, conciliando liberdade in- dividual com interesses coletivos. Finalmen- te, na terceira parte do artigo, contrapomos os dois autores, mostrando que o antídoto ao totalitarismo e o espaço da liberdade não es- tão no liberalismo ou na lógica do mercado, como advoga Hayek, mas na democracia, co- mo pleiteia Arendt, conceito central do seu edifício teórico e espaço privilegiado da ação política, da liberdade e da justiça. Abstract The purpose of this paper is to demonstrate the limitations of a Hayekian reading of history, comparing it with the theoretical perspective of Hannah Arendt’s political action. The article constitutes of three parts: in the first part we present the Hayekian theory of spontaneous order as a rational order and laws as inexorable as the ones he criticizes in Marx; in other words, the idea of the market’s self-development seen as the only possible way to organize contemporary societies. In the second part we show that concepts precious to liberalism are present in critical authors such as Hannah Arendt, for whom the individual in political action binds himself to the historical construction of a fair world, reconciling individual liberties with collective interests. Finally, in the third part of the article, we compare the two authors, showing that the antidote to totalitarianism, and the space for freedom is not to be found in liberalism or the market’s logic, as Hayek advocates, but in democracy, as Arendt pleads, as the central concept of its theoretical building and privileged space for political action, freedom and justice.

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Crítica à leitura hayekiana da História:a perspectiva da ação política de Hannah Arendt

Angela GanemProfessora visitante do Instituto de Economia da UFRJ

Palavras-chaveFriedrich August von Hayek,ordem espontânea, açãopolítica, Hannah Arendt,mercado e democracia.

Classificação JEL B31.

Key words

Friedrich August von Hayek,spontaneous order, politicalaction, Hannah Arendt, marketand democracy.

JEL Classification B31.

ResumoMostrar as limitações da leitura hayekiana daHistória contrapondo-a à perspectiva teóricada ação política de Hannah Arendt é o obje-tivo deste texto. O artigo tem três partes cons-titutivas: na primeira parte, apresentamos ateoria hayekiana da ordem espontânea comouma ordem racional e leis tão inexoráveisquanto as que ele critica em Marx. Em umapalavra, a ideia do autodesenvolvimento domercado visto como a única forma possívelde organização para as sociedades contem-porâneas. Na segunda parte, mostramos queconceitos caros ao liberalismo estão presentesem autores críticos, como Hannah Arendt, emque o indivíduo através da ação política cons-trói um mundo justo, conciliando liberdade in-dividual com interesses coletivos. Finalmen-te, na terceira parte do artigo, contrapomosos dois autores, mostrando que o antídoto aototalitarismo e o espaço da liberdade não es-tão no liberalismo ou na lógica do mercado,como advoga Hayek, mas na democracia, co-mo pleiteia Arendt, conceito central do seuedifício teórico e espaço privilegiado da açãopolítica, da liberdade e da justiça.

AbstractThe purpose of this paper is to demonstrate thelimitations of a Hayekian reading of history,comparing it with the theoretical perspective ofHannah Arendt’s political action.The article constitutes of three parts: in the firstpart we present the Hayekian theory ofspontaneous order as a rational order and lawsas inexorable as the ones he criticizes in Marx;in other words, the idea of the market’sself-development seen as the only possible way toorganize contemporary societies. In the secondpart we show that concepts precious to liberalismare present in critical authors such as HannahArendt, for whom the individual in politicalaction binds himself to the historicalconstruction of a fair world, reconcilingindividual liberties with collective interests.Finally, in the third part of the article, wecompare the two authors, showing that theantidote to totalitarianism, and the space forfreedom is not to be found in liberalism or themarket’s logic, as Hayek advocates, but indemocracy, as Arendt pleads, as the centralconcept of its theoretical building and privilegedspace for political action, freedom and justice.

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O texto tem como objetivo mostrar as li-mitações da leitura hayekiana da Históriacontrapondo-a à perspectiva teórica da a-ção política de Hannah Arendt. O artigotem três partes constitutivas: na primeiraparte, apresentamos a teoria hayekiana daordem espontânea, em que se sublinha,por um lado, a crítica que o autor faz a umaordem fabricada pela razão e, por outro,os fundamentos da sua concepção de or-dem espontânea do mercado. A partir daí,exploramos as contradições e as vicissi-tudes da teoria da ordem espontânea deHayek, mostrando que, contraditoriamen-te ao seu discurso espontaneísta e, por-tanto, avesso ao desígnio racional, a teo-ria hayekiana serve, em última instância,ao autodesenvolvimento do mercado vis-to como a única forma possível de orga-nização para as sociedades contemporâ-neas. Uma utopia tão racional quanto acrítica ao racional-construtivismo que eleidentifica em Marx.

A segunda parte mostra que concei-tos caros ao liberalismo, como individualis-mo, liberdade e regras de comportamentojustas, estão presentes em autores críticos,como Hannah Arendt, que, ao consideraro agir autônomo, constitutivo da liberdadecomo a raiz do pensar e do julgar, compro-mete o indivíduo e o faz responsável naconstrução histórica de um mundo justo,

conciliando liberdade individual com inte-resses coletivos. Finalmente, na terceira par-te do artigo, procuramos contrapor as pers-pectivas dos dois autores mostrando que aação política de Arendt coloca em seus devi-dos termos a crítica que Hayek faz ao totali-tarismo. Para além do conformismo presen-te no totalitarismo, Arendt faz uma críticacontundente às sociedades de consumonaquilo que ela traz de mais pernicioso doponto de vista político: a apatia, o desenga-jamento e a alienação. O texto conclui queo antídoto ao totalitarismo e o espaço da li-berdade não estão no liberalismo ou na ló-gica do mercado, como advoga Hayek, masna democracia, como pleiteia Arendt, con-ceito central do seu edifício teórico e espa-ço privilegiado da ação política, da liberda-de e da justiça.

1_ Teoria e ideologiado mercado em Hayek

F. A. Hayek (1899-1973) é consideradocomo uma das maiores expressões teó-rico-ideológicas do neoliberalismo. Suateoria do mercado como uma ordem es-pontânea tornou-se uma das mais impor-tantes referências teóricas da corrente neo-liberal e, sem dúvida alguma, um veícu-lo eficiente de difusão dos fundamentosda doutrina.

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Para Hayek, teoria e ideologia sãoelementos indissociáveis. Ele foi o princi-pal articulador do colóquio que criou a So-ciedade de Mont Pelérin, organização quepresidiu por quatorze anos. Sua preocupa-ção era reunir nomes da Europa e dosEUA para formar uma frente de reabilita-ção intelectual do liberalismo. O colóquiode Mont Pelérin de 1947 tinha como obje-tivo fundamental

“descobrir meios para enfrentar a crisemoral, intelectual e econômica da Europado pós-guerra, construindo um projeto po-lítico-econômico para um povo livre numagrande sociedade”.

Como subproduto desse projeto, defen-dia a ideia de desmascarar os inimigosdessa sociedade aberta e de determinaras causas da crise europeia através deuma crítica contundente ao fascismo e aostalinismo. Embora crítico ao totalitaris-mo nas duas grandes expressões em queesse se apresentou na História do séculoXX, Hayek concentrou-se no “caminhoda servidão’’ instaurado pelo que consi-derou o racional construtivismo de Marxou os dissabores do totalitarismo de umaordem que é fruto do plano ou do desíg-nio de uma classe operária consciente.Hayek constrói sua crítica a Marx con-centrando naquilo que seria o pecado ca-pital da razão: uma razão onipotente ori-

unda da classe operária que transforma-ria a sociedade numa máquina racional,uma razão que é capaz de digerir a pró-pria complexidade e que constrói pela de-liberação de seus sujeitos sociais um de-vir socialista (Hayek, 1973 e 1988).

Contra essa ordem fruto do planoem que bastaria a consciência e a ação re-volucionárias para revelar o novo mundo,Hayek parte de regras espontâneas e advo-ga uma Teoria da Evolução Cultural, quese define por um processo de experimenta-ção dos homens na História e que resultasempre na escolha de regras que reafir-mam incondicionalmente a concorrênciaou a ordem catalítica do mercado, a únicaordem que garante a liberdade e que seconstitui na melhor forma de organizaçãodas sociedades contemporâneas. A palavra“utopia”, associada histórica e genealogica-mente ao socialismo como instauração dealgo novo, foi abraçada por Hayek. Eleafirmava que

“a principal lição que um verdadeiro libe-ral deve reter do sucesso dos socialistas foia sua coragem de serem utópicos. Só assimque poderemos fazer dos fundamentos filo-sóficos de uma sociedade livre algo vivo”(Hayek, 1967).

Para enfrentar o principal inimigode uma sociedade livre, o totalitarismo, nassuas duas versões do século 20, o stalinis-

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mo e o fascismo, Hayek toma como pontode partida uma crítica filosófica ao raciona-lismo construtivista, ou a ideia de uma ordemfabricada, oriunda do desígnio da razão. Suacrítica filosófica se dirige ao racionalismode tradição cartesiana, em que o espíritohumano, através do bom uso de um méto-do rigoroso e universal (ta mathema), atingeverdades absolutas e inquestionáveis, semo recurso de referências empíricas. Comoderivação desse método racional, a açãoorientada por essa razão onipotente tem acapacidade de construir ordens sociais,1 in-dependentemente da História ou da tradi-ção. Da pretensão que ele identificou deque a razão pode criar uma ordem social,Hayek articulou uma segunda crítica: a ser-vidão e o totalitarismo instaurados por essasordens supostamente fabricadas. Segundoo ponto de vista de Hayek, o racionalismoconstrutivista do processo de criação daordem social socialista produziu de suasentranhas uma razão totalitária. A identifi-cação do totalitarismo ao socialismo e oabandono da ênfase na questão fascistamostraram que Hayek estava interessadonão no debate entre totalitarismo versusdemocracia, mas no confronto entre or-dem socialista e ordem social do mercado,ou seja, no confronto em torno de projetosde sociedade. Nesse contexto, afirmou que,contra o totalitarismo ou uma ordem raci-

onal fruto do plano, só um antídoto possí-vel: a ordem liberal do mercado.

A ordem liberal do mercado, paraHayek, está associada à ideia de ordem es-pontânea que tem sua origem, sobretudo,na ordem natural de Adam Smith. Ela é ca-talítica (katallatein), que significa trocar e sepreservar no mito da mão invisível. Sobre aorigem dessa noção na história das ideias ea sua contraposição à ideia de uma ordemracional, fabricada, ele afirma:

Foi numa reação contra o racionalismocartesiano que os moralistas britânicos doséc. XVIII [...] elaboraram uma teoriasocial que faz dos resultados não previstosdas ações individuais seu objeto central,propondo uma teoria geral da ordem es-pontânea do mercado [...].

A origem da idéia está na filosofia moralbritânica do séc. XVIII de Mandeville.Mas o seu desenvolvimento completo sóacontece com Montesquieu (que sofre in-fluência de Mandeville), e em particularde David Hume, Josiah Tucker, AdamFerguson e Adam Smith, este último afir-ma que uma mão invisível conduz o ho-mem a servir a um fim que não faz partede suas intenções [...], aliás, a percepçãomais profunda do objeto de toda teoria so-cial (Hayek, 2007, p. 162-164).

A ordem espontânea de Hayek, co-mo a de Smith, é o resultado de ações não

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1 Hayek identifica aonipotência da razão noracionalismo cartesiano e nasconsequências diretas que eleextrai desse método: a açãoracional é aquela inteiramenteconhecida e demonstrável pelarazão, e as realizações doshomens são produtos de seuraciocínio. Em suas palavras:“A razão do homem por si sótorná-lo-ia capaz de construir asociedade em novos moldes”(Hayek, 1973, p. 4).

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intencionais. Uma espontaneidade que estámuito distante da concepção neoclássica deuma ordem do mercado ditada pela razão.Para Hayek, o modelo neoclássico é umavariante do racional construtivismo e ele aidentifica em três planos: no indivíduo au-tointeressado, detentor de uma razão cal-culadora, cujas escolhas, produto de umaprevisão racional ou de um desígnio inten-cional, acarretariam como resultado eco-nômico uma ordem do mercado racionalequilibrada, estável e ótima. No teórico-modelizador que aspira demonstrar mate-maticamente a superioridade do mercadoe, finalmente, no político ou no governo queaspiram que o Estado corrija os efeitos ne-fastos do mercado. A mesma concepção deonipotência da razão que dita a racionalidadeilimitada do indivíduo e a arrogância do mo-delizador dão alimento a uma fragilidadeimperdoável dos neoclássicos: a ideia de queé possível não apenas demonstrar o merca-do, como corrigi-lo, reformá-lo, alterandoa distribuição natural da renda (Ganem,1996). Uma interferência que significa paraHayek negar ao mercado o seu desenvolvi-mento espontâneo e dar passos, com essasintervenções, em direção ao socialismo.

O indivíduo é o ponto de partida dateoria hayekiana; as regras, o elemento es-truturante; e a ordem espontânea, a sua re-sultante. O indivíduo, fundamento da or-

dem, é um homem livre, ignorante e segui-dor de regras. A liberdade entendida comoa essência da aventura humana é a liberda-de negativa, concepção do direito liberalou a garantia pela lei da ausência de coer-ção exercida por outrem. A ignorância, a-tributo até então desqualificado das teoriasortodoxas, fornece novos elementos à raci-onalidade e abre para novos domínios teó-ricos como o da sociologia, em que as re-gras têm papel estruturador na inteligibi-lidade das ordens sociais. O indivíduo ha-yekiano tem conhecimento limitado, in-completo e fragmentado ante um mundocomplexo, que ele sabe que jamais será to-talmente desvelado. A ordem espontâneaé, portanto, para ele uma categoria opaca,inacessível à razão. Como ela não é cons-truída por ninguém, não pode ser recons-truída mentalmente, caracterizando-se porser uma estrutura transcendental que ex-pressa uma multiplicidade de fins distintose incomensuráveis de todos os seus mem-bros individuais (Hayek, 1974). O elevadonúmero de variáveis presentes nos fenô-menos sociais impossibilita o conhecimentode todas as circunstâncias que envolvem aação dos indivíduos, o que confere uma na-tureza complexa aos fenômenos sociais, nãosujeita a simplificações e reducionismos.

Os homens, agindo livremente numprocesso aberto de experimentações, tateiam,

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entre erros e acertos, como num proces-so popperiano do conhecimento movidopor conjeturas e refutações. No objetivode adaptar-se às circunstâncias, fazem usodo conhecimento que dispõem, ainda quelimitado. Através de um conhecimentotácito, o homem experimenta, aprende eseleciona as melhores regras de compor-tamento justas, abstratas e gerais que oguiam nesse mundo complexo. Essas re-gras hayekianas emergem nesse quadro deignorância e sabedoria, incerteza e sele-ção. O indivíduo, no seu atuar cego, des-conhece o resultado coletivo, mas esseconhecimento tácito confere ao indivi-dualismo de Hayek uma natureza com-plexa, uma boucle auto-referencielle, na ex-pressão de Dupuy, ou a ideia de umaligação do sujeito a ele mesmo, via o social(Dupuy, 1992).

Avesso ao racionalismo construti-vista de origem cartesiana, Hayek se identi-fica com o racionalismo crítico popperianocom suas proposições constantemente re-novadas, sua humilde correção de erros esua consequente provisoriedade do conhe-cimento. Sua teoria joga novas luzes aoconceito de racionalidade, problematiza aquestão do conhecimento, além de trazeras regras para o centro teórico, fornecendoum elemento importante para a inteligibili-dade da ordem social. Com isso, estabelece

um fino diálogo com a heterodoxia, reno-vando e tornando accessível o discursoteórico do mercado no século XX.

Essa ordem espontânea auto-orga-nizada é regida por regras abstratas. Garan-tidos os fundamentos da ordem, a concor-rência engendrará a riqueza, o bem-estarsocial e a justiça das greats societies. O papeldo governo nesse quadro é fazer respeitaro fundamento lógico de uma sociedade li-vre, isto é, entender que a diferença deoportunidades está relacionada com as efi-cácias individuais do processo de desco-berta constituído pelo mercado. O intentode tornar as oportunidades de indivíduosiguais produz injustiças. Para evitar os efei-tos nefastos do racionalismo construtivis-ta, Hayek sugere que o Estado garanta osdireitos negativos do cidadão: somente asregras de um governo que favorece o fun-cionamento catalítico do mercado aumen-tariam as chances de todos.

Nesse ponto, veremos que Hayekextrapola os limites do econômico ou dequalquer disciplina stricto sensu para se colo-car no plano da filosofia social e da teoriada História. Hayek, na sua Teoria da Evo-lução Cultural, afirma que, quanto mais asociedade se torna complexa, mais acerta-das e espontâneas são as regras. Em verda-de, os homens terminam por eleger as re-gras que garantem os meios para servir

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uma variedade de propósitos, ou que sejamaplicáveis a um número desconhecido e in-determinado de casos, ou seja, as regras daconcorrência. Esse processo impessoal einexorável reafirmaria na História o jogocatalítico do mercado, o único capaz deproduzir riquezas.

Embora Hayek advogue que o im-portante é explicar como funciona o pro-cesso sem tentar explicar seus resultadosou predizer o seu curso, numa clara críticaà utopia marxista, o que se constata ao fime ao cabo de sua Teoria da Evolução Cultu-ral é a reafirmação de um processo de au-todesenvolvimento do mercado na Histó-ria. Ainda que não saibamos de antemãoquais são as regras eleitas, as regras da con-corrência são sempre as exitosas. São elasque, no seu entender, reproduzem os fun-damentos do mercado, a forma mais efici-ente de funcionamento das sociedades. E,nesse caso, todas as iniciativas participam daautorrealização do mercado (Ferry, 1994;Ganem, 2006). A essa altura, algumas ques-tões ficam pendentes na sua teoria. Atenho-me a duas que considero pertinentes para oobjetivo proposto. São elas:

1. como justificar que as regras daconcorrência serão sempre as me-lhores, as exitosas, enfim, semsair do campo da espontaneida-de e da não previsibilidade do

curso da História, seu territóriopreferido, para entrar no campode uma necessidade racional?

2. como criticar o racionalismo deMarx, em que ele supostamentebuscaria como um mito racionaldescobrir leis imutáveis e eternaspara a História se ele próprio ree-dita o mito da mão invisível e en-tende o mercado como passado,presente e devir para as socieda-des contemporâneas?

E foi exatamente esse aspecto dainexorabilidade do mercado com a simul-tânea euforia do triunfo da democracia li-beral como a forma final dos governos quealimentou o debate sobre o fim da Históriana década de noventa do século passado.Essa discussão que entrou em quase todosos campos do saber teve como eixo centralfilosófico a ideia da inexorabilidade do mer-cado, processo sem sujeito perfeitamenteilustrado em Hayek. A inexorabilidade domercado significa, em outras palavras, ofim da utopia socialista e a sua substituiçãopela ordem liberal. É como se a humanida-de atingisse o ponto final de sua evoluçãoideológica ou atingisse a forma final dosgovernos humanos com o triunfo da de-mocracia liberal. Hayek, ao fazer uma defe-sa incondicional do mercado como a me-

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lhor forma de organização das sociedadescontemporâneas, deixa claro que a ideolo-gia e a teoria do mercado se realimentam mu-tuamente. Inúmeras consequências ideoló-gicas, comportamentais, éticas e políticaspodemos extrair dessa conjunção. O ani-quilamento da política foi certamente umadas mais graves consequências e uma daspreocupações centrais do pensamento deHannah Arendt, assunto que exploraremosa seguir.

2_ A perspectiva daação política de Arendt

Elegemos a reflexão filosófica da políticae da ação dos homens na história deHannah Arendt não apenas porque po-demos apresentar, ainda que, em linhasgerais, sua densa e provocante contribui-ção, como também porque, com base emseu pensamento, é possível reforçar ascontradições e as incongruências das crí-ticas que Hayek fez a Marx, situando sobnovas bases a crítica ao racional constru-tivismo e ao totalitarismo. A contribuiçãode Arendt não apenas lhe confere autori-dade para criticar os rumos totalitáriosque o comunismo tomou, como servepara desconstruir a leitura hayekiana daHistória e do agir humano no próprioterreno em que Hayek se move. A obra

de Arendt renova o pensar sobre os ho-mens, sua ação e a História e produz umareflexão filosófica de tal envergadura so-bre a História que termina sem esforçocolocando, nos seus devidos termos, ouseja, ideológicos e retóricos, a visão evo-lucionista da história de Hayek.

Para tratar desse assunto, desenvol-veremos, a seguir, três aspectos da obra deHannah Arendt que nos permitirão esta-belecer contrapontos à perspectiva teóricade Hayek, questão a ser tratada com ênfasena última parte do trabalho. Um primeiroaspecto, ponto de partida de ambas as re-flexões, trata da crítica ao totalitarismo e aoracional construtivismo. Um segundo pontoanalisa a importância crucial do indivíduo eda liberdade em Arendt e, finalmente, umterceiro aspecto sublinha a ação do homemna História e serve para mostrar a utopia dademocracia para Hannah Arendt.

A primeira ordem de questão dizrespeito à crítica ao totalitarismo, elementoque chamou a atenção tanto de Arendt co-mo de Hayek, autores contemporâneos,marcados pelo engajamento intelectual epolítico do seu tempo. Como sabemos,Hannah Arendt (1906-1975) é uma filóso-fa sensível às agruras do século XX e nãopassa ao largo do desastre político produ-zido pelo totalitarismo, seja ele fascista, sejaele stalinista, retirando dele lições e conse-

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quências que marcam profundamente a suateoria. Arendt na sua obra faz uma críticavisceral a todas as formas de totalitarismo.No que diz respeito ao nazismo, formula aseguinte questão: que leis da psicologia demassa explicam por que milhões de sereshumanos se deixam levar sem resistênciaàs câmaras de gás? E ela mesma responde apartir de um eixo teórico inegociável, pontode partida metodológico para sua reflexão:o totalitarismo tem como meta determina-da destruir o indivíduo e a sua espontanei-dade. Destruir, portanto, a individualidade,ou assassiná-la, para ser fiel aos própriostermos, significa atingir o seu âmago: des-truir a espontaneidade ou o poder do ho-mem de começar qualquer coisa de novo apartir dos próprios recursos. Os que aspi-ram à dominação total devem, portanto, li-quidar implacavelmente a espontaneidade.A individualidade é intolerável, e o podertotal só pode ser preservado num mundode reflexos condicionados de cachorrospavlovianos, de marionetes que não apre-sentam a menor suspeita de espontaneida-de (Arendt, 1972, p. 265).

No que se refere ao totalitarismo docomunismo stalinista, Arendt não titubeiae afirma que a tomada de poder de Stalin ea transformação da ditadura do partidoúnico em dominação total transformam asclasses em massa, eliminando paralelamen-

te toda a solidariedade de grupo, condiçãosine qua non para a dominação total.

‘As massas, nos diz Hannah, em As ori-gens do Totalitarismo, [...] não estão liga-das pela consciência do interesse comum,elas não têm lógica específica de classes quese exprime pela perseguição de objetivosprecisos, limitados e acessíveis’. [...] O ter-mo massa se aplica tão somente a pessoasque, seja pelo seu número, seja pela indife-rença, seja por estas duas razões, não po-dem se integrar em nenhuma organizaçãofundada sobre o interesse comum (Arendt,

1972, p. 49).

A aguda crítica ao totalitarismo e adefesa da individualidade e da espontanei-dade da ação humana através da recupera-ção do indivíduo conquanto capacidadepara agir, pensar e julgar com discernimen-to são para a autora os verdadeiros antído-tos e a única possibilidade concreta que oshomens dispõem para barrar projetos tota-litários. Se o totalitarismo significa para oshomens que vivem sob o seu jugo umpensar que não compreende, um agir quese dá mecanicamente e uma incapacidadede julgar, será exatamente na preservaçãoda natureza intrínseca desses elementos apa-rentemente perdidos que será possível es-capar das dicotomias: indivíduo/liberdade,de um lado, e sistema/totalitarismo, de outro.

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Em verdade, para a autora, o homem,diante dos riscos incautos que a ação lheconfere, assusta-se com a possibilidade deviver em liberdade e termina por condenara ação na sua espontaneidade, circunscre-vendo-a à necessidade, a tábua de salvaçãopara a perturbação que a falta de controlesobre o destino lhe traz. Assim consiste acrítica que Arendt procede à concepçãomarxista, ou a noção marxista de fabrica-ção da História. Nos próprios termos:

“Nem a liberdade, nem nenhum outro sen-tido podem ser produtos de uma atividadehumana como a mesa é produto da ativi-dade do marceneiro” (Arendt, 1972, p. 105).

E é através desse argumento que re-side a sua crítica à luta de classes de Marxcomo a fórmula mágica que desvendaria to-dos os segredos da História, na fabricaçãode uma coisa que, tendo um começo e umfim, persegue leis de movimento determi-nadas ao mesmo tempo em que dissolve eaniquila nesse processo as particularidadese os sofrimentos individuais. Para Arendt,num quadro de revolução, supera-se apa-rentemente o conformismo (pelo fato de tersido realizada a revolução), mas a sociedadecomunista pode recair num novo tipo deconformismo em que a liberdade individualé absorvida pela comunidade. O animal la-borans na sociedade socialista não necessa-riamente se ocupa dos interesses públicos;

seu conformismo pode significar se encap-sular nos seus interesses privados. O cam-po da necessidade não necessariamente levaa uma constante politização e à liberdade.Arendt problematiza em torno dos desca-minhos do movimento operário europeu erusso, que abriram mão de sua radicalidadeassim que se viram satisfeitos em suas rei-vindicações econômicas básicas. Arendt afir-ma que o movimento operário no seu mo-mento inaugural

“foi o único grupo no cenário político que,além de defender seus interesses econômi-cos, travou uma luta inteiramente política[...]. Entretanto este papel revolucionáriodo movimento operário está chegando aofim” (Arendt, 1972).

Marx, para a autora, comete o equí-voco de prever que somente a Revoluçãopoderia provocar a decadência do Estado eabrir caminho para o reino da liberdade.Para Arendt, o Estado deve ser preservadoconquanto espaço político resistindo à uni-formização do social ditado pelos interessesprivados. O reino da liberdade contrário àuniformização estaria expresso no confron-to de opiniões presentes numa verdadeirademocracia construída por uma participa-ção política ativa e constante. E o que seriaessa verdadeira democracia? Certamentenada semelhante às democracias represen-tativas fundadas em partidos políticos das

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sociedades de massa em que os partidosfuncionam como especialistas da coisa pú-blica, guardiões de uma liberdade associa-da ao momento do voto. Arendt, em as Cri-ses da República, defende a construção deConselhos, que seriam ilhas da liberdade,verdadeiras bases fundadoras de uma novaforma de governo: a verdadeira Respublica(Arendt, 1973).

É interessante que o eixo Arendtia-no da crítica ao totalitarismo, caracterizadopela perda da espontaneidade e da ação po-lítica, gerando conformismo, termine porlevá-la a uma aguda análise da alienaçãodentro das sociedades capitalistas. Preocu-pada e implicada com a democracia, elaatinge com sua crítica o mercado atravésdo consumismo (que pode acarretar o des-potismo de uma sociedade de massa) e queé o elemento vital de sua forma de repro-dução. Ao defender o modelo político dapolis grega, em que a ação política é a peça-chave da liberdade individual, e sendo res-trita aos cidadãos, ela se preserva de qual-quer manipulação. Arendt lamenta que, nasociedade de massa, no esforço de promo-ver uma uniformização do comportamen-to consumista, ocorre um movimento emdireção ao conformismo, negando a plura-lidade da discussão. De fato, nessa socieda-de o homem garante a sua sobrevivênciano despotismo de uma única opinião, posto

que essa sociedade é guiada pelo “labor”,entendido como produtos de objetos feitospara ser descartados, o que significa um con-sumismo desenfreado, em última análise.

Em A crise da cultura, Arendt nosalerta para:

[...] os traços da psicologia coletiva do ho-mem de massa: seu abandono – abandonoque não é nem isolamento, nem solidão –independente de sua faculdade de adapta-ção; sua excitação e sua falta de critérios;sua atitude voltada para o consumismoacompanhada de uma incapacidade de jul-gar ou mesmo de distinguir, e por trás detudo isto, seu egocentrismo e uma aliena-ção do mundo... (Arendt, 1972, p. 255).

Essa crise da cultura própria da so-ciedade de massa, que maltrata a individua-lidade no sentido de produzir abandono,isolamento, solidão e consumismo, produzo que ela considera o mais grave para a hu-manidade: a alienação expressa na sua inca-pacidade de julgar e de discernir, ficando ohomem suscetível à manipulação.

Sua crítica ao consumismo atinge ocoração do mercado capitalista como for-ma de organização da sociedade e é parti-cularmente atual. São inúmeros os autorescontemporâneos que recorrem a Arendt,como referência teórica crítica, identifica-dos com a sua análise acerca da sociedadeque hoje vivemos: injusta, desprovida de

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valores éticos humanistas e marcada pelamoral do entretenimento e pelo consumis-mo.2 A sociedade de massa dessa great societyleva, segundo a autora, a anulação da cultura,dando lugar à banalização do entretenimen-to e ao conformismo, o que, para HannahArendt, é o elemento central que pode le-var à destruição da humanidade. As conse-quências constatadas pela autora são asmais desastrosas: apatia política, confor-mismo e alienação.

A segunda ordem de questão dizrespeito ao ponto de partida metodológicode sua análise: o indivíduo, por meio daqui-lo que marca a sua potencialidade, a ação li-vre, espontânea e contingente. Todos oselementos se irmanam para recuperar nãoapenas o homem para a vida ativa, mas, so-bretudo para a política, já que ela é o ele-mento constitutivo da liberdade e da capa-cidade de iniciar algo novo, não previstopelos mecanismos causais do mundo. Alémdisso, Arendt não descuida da análise his-tórica e da sua perturbadora contingência.Mesmo seguindo alguns princípios de Kant,Arendt sublinha as diferenças que percebeentre ela e Kant, no que tange à distânciaque existe entre a ciência (regida por con-ceitos, leis e sistemas) e o pensamento (quebusca a significação, a compreensão). En-quanto o compromisso da ciência é com abusca da verdade, o pensamento é como

um diálogo socrático que busca a compre-ensão. O homem, através do pensar, écapaz de transcender, não se sujeita a crité-rios apriorísticos próprios dos cânones ci-entíficos, e sua ação pautada pelo pensa-mento assume os riscos e o medo peranteo desconhecimento dos rumos que o livreagir provoca.

O indivíduo para Arendt age de trêsformas, e é desse entendimento inicial queconsiste uma das chaves para a compreen-são de sua obra. A primeira forma de açãotem sua expressão máxima ligada à liberda-de e ao agir na política e se define por umaação que não tem fim e cujo objetivo finalo homem desconhece. A segunda formade ação é a caracterizada pelo homo faber,que significa a fabricação de uma coisa quetem começo e um fim e, portanto, leis demovimento determinadas.3 Já a terceira for-

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2 Consultar Jurandir FreireCosta, que toma por base Arendtpara tecer uma crítica aoconsumismo e à moral doespetáculo em O vestígio e a aura(Garamond, 2004), além de Aarte de reduzir as cabeças; sobre anova servidão na sociedade ultraliberal(Dufour, 2005) e O império doefêmero (Lipovestsky, 2004).3 Esta noção está intimamenteligada à noção marxista defabricação de História, o que faza autora afirmar que “nem a

liberdade, nem nenhum outro sentidopodem ser produto de uma atividadehumana como a mesa é o produto daatividade do marceneiro” (Arendt,1987, p. 105). E, numa passagemda Condição Humana, elaafirma: “Enquanto a força doprocesso de fabricação é inteiramenteabsorvido e exaurido pelo produtofinal, a força do processo da açãonunca se esvai num único ato, mas aocontrário pode aumentar a medida quese multiplicam as conseqüências”(Arendt, 1981, p. 245).

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ma é ditada pelo animal laborans, que signi-fica o trabalho voltado para a produção deconsumo, o que hoje simboliza a produçãopara o desperdício. Arendt critica a herançamarxista de que o homem só conhece o quefaz e afirma que Marx, ao cancelar a distin-ção entre o operar e o agir, obscureceu opapel da política, um dos três componen-tes fundamentais da vida activa.4 O animallaborans, ao adquirir o estatuto de assalaria-do, procura a subsistência da sua vida e desua família pelo consumo, longe de qual-quer produção técnica e da ação política. Apromoção social pelo labor faz do espaçopúblico um processo de afirmação à sobre-

vivência biológica, circunscrevendo a exce-lência à esfera do labor, conquanto que, pa-ra a autora, a excelência só pode existir naação política e no confronto de opiniões.

A ação, diz Arendt, referindo-se a suaprimeira forma, é a única atividade que seexerce diretamente entre os homens sem amediação das coisas ou da matéria. Na ver-dade, ela corresponde à condição humanade pluralidade e, como expressão inequí-voca da individualidade, carrega consigo afonte do significado da vida humana. Em-bora as ações fugazes e perecíveis da vidapolítica nunca cumpram a sua intuição ori-ginal e desencadeiem alguma coisa que nãopode ser prevista, Arendt, em A condição hu-mana, afirma com contundência que:

“[...] a única forma capaz de realizar fei-tos não é nem a capacidade teórica, nem arazão, mas a faculdade humana de agir,de iniciar processos novos e sem preceden-tes, cujo resultado é incerto e imprevisível,quer sejam desencadeados na esfera huma-na ou no reino da natureza” (Arendt, 1987,

p. 243).

O sentido da política é a própria realiza-ção da liberdade como nascimento de al-go novo, inesperado e imprevisível.5

Ao criticar a sociedade de massa co-mo sistema que destrói a coexistência daesfera privada com a esfera pública, Arendtchama a nossa atenção para a falta de con-

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4 Para Arendt, poesis é operar,fazer, tecné, enquanto que praxisé agir, substância da política eparte integrante juntamentecom o trabalhode vida ativa. O ato ou o agirem processo possui asseguintes características:1) a ignorância – quando seage nunca se sabe exatamente oque se está fazendo;2) a responsabilidade – ohomem é sempre responsávelpelas conseqüências de se seuato, ainda que não o tenhaprevisto ou desejado;3) a não reversibilidade – ohomem não pode desfazê-lo;4) a infinitude – o processodesencadeado pelo atojamais termina;

5) a não clarividência ou aopacidade – seu significadojamais se revela e finalmente;6) o conhecimento pelamemória – ele só seráconhecido pela visãoretrospectiva do historiador(Arendt, 1972, p. 243).5 Uma das mais recentesbiógrafas de Arendt, LaureAdler, destaca que nessacriação de um mundo novo é oamor que está no centro daação. “O amor em Hannah Arendttriunfa sobre a morte, sempre. Pois opróprio amor cria um mundo novo.E sempre haverá pessoas que seamem. Cada fim da história contémnecessariamente um novo começo”(Adler, 2007, p. 590).

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dições do desenvolvimento daquilo que éessencial na vida humana, que é a pluralida-de de opiniões num espaço público co-mum. Ao afirmar o reino da liberdade noespaço público e democrático, Arendt estános falando de um indivíduo que é livre,humanista, cuidadoso e, sobretudo, corajo-so e implicado com os destinos da polis.

A terceira ordem de questão diz res-peito ao agir dos homens na História. Arendtentende que a História construída com ba-se na ação humana é uma abertura para in-finitas possibilidades. Em verdade, vivemosnum processo que

“não se conhece nem começo nem fim e que,em conseqüência disso, não nos permite nu-trir esperanças escatológicas” (Arendt, 1972,

p. 92).

Essas afirmações de Hannah Arendt nãodeixam de ser perturbadoras e instigan-tes e, talvez por isso, acarretem “certoconstrangimento intelectual que derivada própria natureza de sua obra”.6 Em-bora Arendt questione os objetivos gran-diosos da política no que tange a comoestabelecer uma nova sociedade, ou co-mo fazer uma guerra para acabar com to-das as guerras, ou ainda como assegurar ademocracia no mundo inteiro. Arendt,ao fazer o elogio da política, “salva a espon-taneidade revolucionária, mas não a violência fa-

bricada do projeto revolucionário” (Abranchesapud Arendt, 2002, p. 9).

Entretanto, a questão central é queArendt não perde a esperança no homem ena sua capacidade de julgar e discernir en-tre o bem e o mal e, portanto, de fazer es-colhas desinteressadas e liberadas de seusinteresses privados imediatos. Para a auto-ra, é necessário não perder a esperança daconstrução de um mundo não totalitário eprocurar na própria condição humana a ca-pacidade de abrir, de preservar ou de re-construir um espaço público.7 A liberdade,nesse sentido, só pode ser exercida medi-ante a recuperação e a reafirmação do es-

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6 Sugiro a leitura daintrodução de AntonioAbranches ao livro deHannah: A dignidade da política,Relume Dumará, 2002, emque o autor tece delicada eacurada reflexão sobre acontribuição de Hannah e oespanto e o constrangimentoque seu pensar provoca nosdias atuais. Ler também o livroorganizado por AdautoNovais: O esquecimento dapolítica, em que quase todos osautores citam Hannah Arendtcomo a grande referência dafilosofia política no séculoXX, e ainda o livrocoordenado por Adriano

Correa intitulado Transpondo oabismo: Hannah Arendt entre aFilosofia e a Política, ForenseUniversitária, 2002, em quesão explorados vários aspectosfilosóficos e políticos da obrada autora.7 É dentro dessa perspectivaque Paul Ricoeur entende aobra A condição humana, deArendt: livro de filosofiaantropológica, que tem comoobjetivo construir a resistênciae a reconstrução do espaçopúblico, após o desastre dototalitarismo. Ricoeur, P.,Prefácio da Condition de l’hommemoderne, Calmann-Levy, 1981.

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paço público, pois só no mundo político éque será possível desenvolver a identidadeindividual na comunidade política.8 E é porisso que Hannah Arendt, ao considerar aação política como elemento constitutivoda liberdade e como a raiz do pensar e dojulgar, implica o indivíduo com a polis e ofaz responsável na construção histórica deum mundo justo, capaz de conciliar liber-dade individual com interesses coletivos.

3_ O mercado de Hayek versusa democracia de H. Arendt

As três ordens de questões tratadas naanálise que fizemos de Arendt servem decontraponto à teoria de Hayek. A críticaao totalitarismo, a importância crucial doindivíduo e sua ação na História refor-çam e elucidam as utopias que estão emjogo por detrás desses dois autores: omercado para Hayek, e a democracia pa-ra Arendt.

A crítica que Hayek faz ao totalitaris-mo é tendenciosa porque concentra na-quele que ele considera ser o seu maior ini-migo estratégico – Marx, através do pecadocapital da teoria marxista – a defesa de umarazão onipotente que permitiria à classeoperária transformar a sociedade numa má-quina racional, capaz de construir um devirsocialista. Embora acuse a ambos, o stali-

nismo e o fascismo, de totalitários e produ-tos diretos de ordens que seriam fruto doplano e do desígnio, ele destaca na sua críti-ca a servidão imposta pelo totalitarismostalinista. Já adiantamos essa limitação doautor na primeira parte deste trabalho. Éinteressante, entretanto, mais uma vez su-blinhar que o mesmo eixo filosófico racio-nal-construtivista que ele se utiliza para acrítica ao marxismo permite que se perce-bam as contradições de seu projeto hi-per-racionalista do mercado. Irônica e con-traditoriamente, ele substitui a escatologiamarxista pela utopia do mercado. Esse crí-tico do totalitarismo é no fundo um prisio-neiro da ideia de uma defesa incondicionaldo mercado como a melhor forma de or-ganização para a sociedade.

A crítica de Hannah Arendt a todasas formas manifestas de totalitarismo, emvez de aprisioná-la, atinge diretamente a or-dem social do mercado, colocando nos seusdevidos termos, isto é, ideológicos, a críticade Hayek a Marx. Por que se concentrar nototalitarismo do racional construtivismo daseconomias comunistas, perguntaria ela, sea massificação, o conformismo, a alienaçãoprópria das sociedades capitalistas de con-sumo são elementos devastadores e des-truidores da cultura, transformando o ho-mem num ser rude, bruto, isolado, quaseum ser hobbesiano do estado de natureza?

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8 Segundo Celso Lafer, ointeresse maior de Arendt é arespublica e é por isso que,para ela, liberdade não é aliberdade moderna e privadada não interferência, mas simliberdade pública departicipação democrática.Daí para a autora aimportância do nós no agirconjunto. Ação, palavra eliberdade não são coisas dadas,mas requerem a construçãoe a manutenção do espaçopúblico. Celso Lafer, prefáciode Arendt, H. A condiçãohumana, ForenseUniversitária, 1981.

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Essa lógica confina o homem nos seus ter-renos privados e alimenta a ideia de que na-da se pode fazer quando se trata do merca-do: afinal ele é inexorável e, portanto, aprópria expressão do fim da História. Essefatalismo ideológico fragiliza o indivíduo,anula as potencialidades de seu agir con-junto na política e o faz descrente de suacapacidade de irromper algo novo que lhepermita descortinar outras possibilidadesno plano da História.

O indivíduo, como vimos, é o pon-to de partida e peça angular na construçãodos edifícios teóricos desses dois grandesautores do século XX. O animal seguidorde regras de Hayek é o indivíduo que, noexercício de sua liberdade, escolhe regrasatravés de um processo de experimentaçãohumana de acertos e erros, o que garanti-ria, num primeiro momento, uma aberturainfinita de possibilidades. Entretanto, esseindivíduo autointeressado do discurso ul-traliberal hayekiano, que, por uma mágicada mão invisível, produz bem-estar social,é uma peça da sua Teoria da EvoluçãoCultural, em que a História se apresentacomo um processo inexorável de autode-senvolvimento do mercado.

Na verdade, ao selecionar as regrasda concorrência como as necessárias quegarantem a liberdade e a justiça, ele reiterauma concepção da História que segue o

curso natural do mercado como passado,presente e devir. Nesse sentido, ele passasutilmente do campo do espontâneo parao campo do necessário. O indivíduo haye-kiano defende regras de comportamentojustas e fiáveis porque os homens sempreselecionam as regras da concorrência, que,no limite, são as regras necessárias de Ha-yek que garantem a ordem catalítica domercado. Essas regras são válidas, desdeque não firam a ideia de um Estado que ga-ranta a concorrência e se limite às suas fun-ções mínimas, já que qualquer plano ouplanificação nos negócios públicos é pertur-bador da livre iniciativa individual e doexercício das liberdades plenas.

Embora Arendt não tenha criticadodiretamente Hayek, ao sublinhar a impor-tância dos juízos e do discernimento comoelementos cruciais da ação livre, ela é críti-ca com relação às regras da tradição ou àsregras eleitas do comportamento justo, tãocaras ao autor. Poderíamos depreender fa-cilmente de sua análise sobre a crise da cul-tura a seguinte questão: se o homem é ma-nipulado, se ele não compreende e se estámergulhado numa crise moral característi-ca dessa sociedade atual, como podemosgarantir que elegerá regras fiáveis? Para ela,o homem, antes de ser um animal que se-gue regras, é um homem de ação, e essa de-pende de uma boa compreensão e de um

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bom julgamento. Além disso, é a ação polí-tica, sobretudo, a fonte da individualidade ede significação da vida humana. Nela resi-de o significado profundo da liberdade doindivíduo, rompendo muitas vezes com atradição e as regras instituídas, dando inícioa algo novo.

A imposição da lógica do mercadocomo necessária e inexorável, além de ten-tar inibir a irrupção de algo novo, tem umtraço economicista, no sentido em que ten-ta submeter todos os aspectos da vida à ló-gica da eficiência e das tecnicalidades. Anoção de progresso, ao invés de se inspirarem ideias transcendentes, restringe-se a sero resultado mecânico da livre concorrência.A política no sentido arendtiano torna-seinútil neste mundo de mônadas, confor-madas e dominadas pela lógica do merca-do: consumidores vorazes, encantonadosem sua vida privada e distantes dos interes-ses públicos.

A submissão da política à sociedadedo consumo e do espetáculo tem comosua mais pura expressão a apatia e o con-formismo dos cidadãos perante um cursoda História que só aponta um caminho: oautodesenvolvimento do mercado. O ideá-rio liberal, embora valorize o indivíduo e aliberdade, ironicamente termina por con-ceber um indivíduo que encena o que já es-tá predeterminado. Para Arendt, não há

como pensar em liberdade quando o pra-zer da política no espaço comum da vidapública é substituído pelo consumo e pelalógica do mercado. Arendt faz a denúnciado esquecimento da política e afirma que ohomem pensa, julga e é capaz de ação, açãoesta que se constitui no centro nevrálgicode todas as possibilidades humanas, cami-nho aberto para o exercício do confrontode opiniões.

Menos do que adequação, confor-mismo e adaptação do homem à lógica domercado, Hannah supõe a urgência do pen-samento sobre o agir e afirma que o reinoda liberdade só pode ser alcançado no es-paço público e democrático. A democraciaé para Arendt o verdadeiro antídoto contrao totalitarismo e é a utopia que deve substi-tuir a falta de esperança da leitura hayekia-na da História ou ideia do mercado comopassado, presente e devir das sociedadescontemporâneas. Contra o pensamento úni-co e um caminho predeterminado a seguir,Arendt nos apresenta a pluralidade e oconfronto de opiniões, ação e vida dentrode um verdadeiro espaço que contribui pa-ra o interesse público e o engrandecimentolibertário da cidade.

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Referências bibliográficas

Este artigo foi apresentado emversões anteriores no XIEncontro Anual daSociedade Brasileira deEconomia Política e no IICongresso da AssociaçãoLatino-Americana deCiência Política, ambos em2006. Agradeço os comentáriosdos debatedores desses encontrose, especialmente, aos pareceristasde Nova Economia. Os erros eas omissões são meus.

E-mail de contato da autora:

[email protected]

Artigo recebido em julho de 2006;aprovado em maio de 2009.