Cronos Acorrentado Cultura Historica, Tempo e Memoria nos contos de Joao Guimaraes Rosa

download Cronos Acorrentado Cultura Historica, Tempo e Memoria nos contos de Joao Guimaraes Rosa

of 156

description

Dissertacao de Mestrado de Amanda Teixeira da Silva

Transcript of Cronos Acorrentado Cultura Historica, Tempo e Memoria nos contos de Joao Guimaraes Rosa

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA UFPB CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CCHLA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA PPGH

Cronos acorrentado: cultura histrica, tempo e memria nos contos de Joo Guimares Rosa

Amanda Teixeira da Silva

Orientador: Prof. Dr. Raimundo Barroso Cordeiro Jr. Linha de Pesquisa: Ensino de Histria e Saberes Histricos

JOO PESSOA PB ABRIL 2011

CRONOS ACORRENTADO: CULTURA HISTRICA, TEMPO E MEMRIA NOS CONTOS DE JOO GUIMARES ROSA

Amanda Teixeira da Silva

Orientador: Prof. Dr. Raimundo Barroso Cordeiro Jr.

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria do Centro de Cincia Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraba UFPB, em cumprimento s exigncias para obteno do ttulo de Mestre em Histria, rea de Concentrao em Histria e Cultura Histrica.

JOO PESSOA PB 2011

S586c

Silva, Amanda Teixeira da. Cronos acorrentado: cultura histrica, tempo e memria nos contos de Joo Guimares Rosa / Amanda Teixeira da Silva.Joo Pessoa, 2011. 143f. : il. Orientador: Raimundo Barroso Cordeiro Jr. Dissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA 1. Rosa, Guimares. 2. Historiografia. 3. Cultura histrica. 4. Memria.

UFPB/BC

CDU: 930.2(043)

CRONOS ACORRENTADO: CULTURA HISTRICA, TEMPO E MEMRIA NOS CONTOS DE JOO GUIMARES ROSA

Amanda Teixeira da Silva

Dissertao de Mestrado avaliada e m ___/ ___/ ____com conceito _________________

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Barroso Cordeiro Jnior Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal da Paraba Orientador

______________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Paulo de Morais Rezende Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal de Pernambuco Examinador Externo

______________________________________________________ Prof. Dr. Telma Cristina Delgado Dias Fernandes Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal da Paraba Examinadora Interna ______________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Clarindo Barbosa de Souza Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal de Campina Grande Suplente Externo ______________________________________________________ Prof. Dr. Regina Maria Rodrigues Behar Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal da Paraba Suplente Interna

i

Dedico esta dissertao ao meu pai, Jos Pequeno da Silva.

ii

AGRADECIMENTOS

Esta dissertao , antes de tudo, fruto de minha paixo por Guimares Rosa autor que me revelou o esconderijo da botija da alegria , por isso gostaria de agradecer a esse mineiro de Cordisburgo pela muita poesia e ternura que doou ao mundo. Minha pesquisa no poderia ter se efetivado, no entanto, sem as observaes, indicaes, colaboraes e conselhos de numerosas pessoas, e sem o carinho e o suporte de amigos e familiares. Tentarei agradecer queles que estiveram mais presentes nestes dois anos de travessia: Gostaria de comear agradecendo s instituies e aos professores que possibilitaram a realizao deste estudo: Aos docentes do PPGH/UFPB: professora Regina Clia Gonalves, porque suas aulas de Teoria da Histria foram essenciais para que eu repensasse o meu trabalho; ao professor Antonio Carlos e professora Claudia Engler Cury, a quem recorri sempre que me assolaram as dvidas metodolgicas e o fantasma da ABNT; professora Maria Regina Rodrigues Behar, por toda a sua ateno e solicitude e, especialmente, pelas valiosas observaes feitas durante o seminrio de dissertao e o exame de qualificao. Ao professor Elio Chaves Flores e ao professor Jaldes Menezes, pelas aulas que tanto contriburam para a realizao desta pesquisa. professora Rosa Maria Godoy, cujas consideraes e indicaes foram fundamentais para que eu enxergasse com mais clareza o meu objeto de estudo. Ao professor Damio Lima, por ter compartilhado comigo seus saberes e experincias. Gostaria ainda de agradecer professora Sandra Luna, que teceu, durante o exame de qualificao, crticas e observaes indispensveis para o amadurecimento desta pesquisa. Agradeo tambm secretria do PPGH, Virgnia Kyotoku e, principalmente, ao meu orientador, o professor Raimundo Barroso Cordeiro Junior, por ter me concedido dois bens que me so muito caros: liberdade e autonomia sem, com isso, se esquivar da rdua tarefa de indicar caminhos, corrigir cuidadosamente meus textos e podar os meus excessos. Devo muito aos professores Antonio Paulo de Morais Rezende e Telma Dias Fernandes, que leram atenciosamente minha dissertao de mestrado e contriburam com suas observaes durante a defesa. Agradeo professora Telma tambm pelo acompanhamento durante o estgio docncia, pelas conversas sobre Histria e Literatura e por toda a ateno que me concedeu durante o processo de escrita. Agradeo ao professor Antonio Paulo pela leitura feita com ternura e pelas consideraes preciosas sobre os aspectos tericos deste trabalho.

iii

No posso deixar de mencionar a importncia do apoio financeiro concedido pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) e o Programa de Assistncia ao Ensino do Reuni, pois a bolsa de estudos concedida pelo Governo Federal tornou possvel minha estadia em Joo Pessoa e minha dedicao exclusiva a esta pesquisa durante os dois anos de curso. Devo agradecer ainda Casa de Rui Barbosa e ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), especialmente a Maria Izilda e ao Flvio, pela ateno e pelo cuidado dispensados durante minha passagem por So Paulo. Preciso dizer obrigada s pessoas queridas, que me acompanharam e apoiaram durante a realizao dessa mal-entendida viagem: s professoras que permitiram que eu me apaixonasse pela Histria e compreendesse o valor da pesquisa acadmica: Gilsenaide Alexandre, Sonia Meneses e Renata Marinho Paz. Ao professor Antonio Jos de Oliveira, pela sua generosidade e por ter me ajudado a ter acesso biblioteca setorial da Universidade Regional do Cariri em momento muito urgente. professora Fatiana Carla, por acreditar em meu trabalho. A Jean-Marc Berthou: suas aulas de francs sempre foram, para mim, momentos teraputicos que se confundiam com aulas de histria, poltica e geografia. Agradeo tambm a Michel Macedo, por sempre me fazer rir, e por ter me ajudado a verter o resumo desta dissertao para o ingls. Aos colegas de graduao que torceram por mim e aos companheiros da turma de mestrado de 2009, por terem feito este rduo perodo de estudos mais feliz. Agradeo especialmente a Bernardo Fernandes, Keliene Silva e Vnia Cristina da Silva. Aos amigos Cludio Ferreira, Lydiane Vasconcelos e Robson de Arajo. Agradeo por terem aceitado dividir comigo as alegrias e angstias vividas em terras paraibanas. A Eullia, pela generosidade, pela doura e pelo abrigo em Joo Pessoa nas fases iniciais da minha via crucis. A Edianne Nobre, pela primeira leitura do projeto e pelos diversos textos que me enviou no decorrer da pesquisa. A Italo Bezerra, porque sua alegria trouxe leveza aos momentos de estudo pr-mestrado. A Patrcia Alcntara, amiga muito capaz de bondade: pela primeira leitura do projeto e por todas as conversas. A Lucas Luz, amigo que ganhei por tabela. Obrigada pela amizade e por terem sido, tantas vezes, meus anfitries em Recife. A Jucieldo Alexandre e Simone Pereira: sem a companhia de vocs, tudo teria sido mais difcil. Obrigada por dividirem comigo as preocupaes, as alegrias e o lar. A Jucieldo,

iv

principalmente, por me conduzir pelas tortuosas alamedas da vida acadmica. A Simone, por cuidar de mim quando a sade resolveu abandonar meu corpo. A todos os meus amigos, sobretudo a Lorena Tavares, Jos Eldo Elvis, Ana Lgia Casimiro, Brenna Gomes, Janiely Domingos e Ticiano Duarte, por todo o apoio e por terem me ajudado, durante as viagens que fiz ao Cariri, a furtar o tempo ao tormento. Ao Glauco Vieira, o Frei, vizinhalma: por todos os conselhos, pela companhia constante, pela amizade de tantos anos. Porque dele sempre emanou uma boa-vontade muito sutil, serenizante. Obrigada pela ternura, pelo estmulo, pela energia e pelos cuidados. Obrigada por sempre ter suportado pacientemente minhas conversas sobre Guimares Rosa e por ter me ajudado a forjar imprescindveis descobertas. A Aline Chiarelli e Carol Rodrigues, por todo o carinho, pela calorosa recepo em So Paulo e por me ajudaram a proclamar a palavra de Rosa pelo mundo. A Fernanda Spinelli, minha psicloga favorita: no apenas por ter me apresentado seu Jung em troca do meu Guimares Rosa, mas especialmente pelo seu afeto e pela sua amizade. Ao Rafael Abreu, por tudo o que ele e foi. Por ter trazido a esperana de volta caixa de Pandora que era a minha vida. Ao Erico. "Gosto de voc mais pelo que voc , do que pelo que voc fez por mim...". A todos os meus familiares, especialmente ao meu av, Vandes, e s minhas avs: sem as anedotas sempre humoradas e os frutos e sementes que a av Maria guarda para mim, talvez jamais compreendesse a dimenso potica da sabedoria popular. Sem as histrias de terror e os causos que a av Mund me contava na infncia, eu provavelmente no teria me tornado to interessada pelos assuntos do serto. Ao meu irmo, Pedro, por me ajudar a suportar o mau-hlito da realidade. Porque eu no saberia ser feliz sem as suas ventanias em fubs. Ao meu pai, Buriti de homem: pedra feita para mil anos: porque gostaria que estes meus dois anos de trabalho correspondessem ao menos a um centsimo de tudo o que j fez por mim. minha me, Rosa: por todos os cuidados, por todo o amor e por ter me ensinado a realizar com delicadeza e pacincia mesmo os mais sofridos trabalhos-de-hrcules. Ao Ser-que-Sempre-, Senhor das Esferas, Grande Arquiteto do Universo, verdadeira causa deste trabalho e de tudo o que existe.

v

A estria no quer ser histria. A estria, em rigor, deve ser contra a Histria. (Joo Guimares Rosa)

vi

RESUMO

O objetivo deste trabalho discutir as representaes sobre histria, tempo e memria presentes na literatura de Joo Guimares Rosa. A pesquisa examinou o modo como estes trs elementos aparecem nos contos de Primeiras Estrias e Tutamia Terceiras Estrias. Tambm foram analisadas as entrevistas concedidas pelo escritor mineiro, assim como as cartas trocadas com amigos, parentes e familiares, e as anotaes feitas em dirios, cadernos e estudos para a obra. Esta pesquisa pretendeu demonstrar que a cultura histrica de um indivduo no formada apenas pelo conhecimento escolar ou acadmico, mas por uma ampla gama de saberes e interesses que se situam alm da historiografia e da prpria cincia histrica. A presente dissertao considera que h, na obra de Guimares Rosa, uma constante necessidade de evaso do tempo. O autor critica a histria na medida em que ela privilegia o estudo sobre eventos passageiros e profundamente dessacralizados. A memria se transforma, em sua obra, em recurso literrio cujo objetivo restituir a dimenso sagrada aos acontecimentos. Este estudo se vincula linha de pesquisa Ensino de Histria e Saberes Histricos do Programa de PsGraduao em Histria da Universidade Federal da Paraba, com rea de concentrao em Histria e Cultura Histrica, e pretendeu perscrutar as leituras e experincias que nortearam as declaraes que Guimares Rosa fez, ao longo da vida, contra a histria. Palavras-chave: Cultura Histrica, Histria e Literatura, Guimares Rosa.

vii

ABSTRACT

The study has as objective to discuss the representations of history, time and memory produced in Joo Guimares Rosas literature. The research examined how these three elements appear in the stories of Primeiras Estrias e Tutamia-Terceiras Estrias. We also analyzed his interviews, as well as letters exchanged with friends, relatives and family, and notes recorded in diaries, notebooks and studies for the work. This research aims to demonstrate that the historical culture of an individual is not formed only by the school or academic knowledge, but by a wide range of knowledge and interests that lie beyond the historiography and history itself. This dissertation considers that there is, in Guimares Rosas work, a constant need of evasion of time. The author criticizes the history in that it favors the study on momentary and deeply desecrated events. Memory becomes, in his work as a literary resource whose purpose is to restore the sacred dimension to events. This study is linked to the research line "History Teaching and Historical Knowledge" of Paraba Federal University Post Graduation Program, with a major in History and Historical Culture, and intends to analyze the readings and experiences that guided the statements made by Guimares Rosa, throughout life, "against the story." Keywords: Historical Culture, History and Literature, Guimares Rosa.

viii

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Didracma de Akragas em que aparecem uma guia e um caranguejo ................................ 37 Figura 2 Desenho do caranguejo que encerra o conto Desenredo.................................................. 37 Figura 3 Desenho que corresponde, no ndice de Primeiras Estrias, ao conto A Benfazeja..... 46 Figura 4 Desenho que representa o conto Seqncia no ndice ilustrado de Primeiras Estria .....75 Figura 5 A Roda da Fortuna. Decalque de miniatura do Hortus Deliciarum de Herrade de Landsberg .............................................................................................................................................. 82 Figura 6 Tetradracma ateniense em que aparecem a representao de Athena e de uma coruja ..... 95 Figura 7 Desenho da coruja que encerra o conto Se eu seria personagem...................................... 95 Figura 8 Ilustrao de Lus de Jardim para o conto Os Cimos presente no ndice ilustrado de Primeiras Estrias (1967, Livraria Jos Olympio Editora) ................................................................ 110 Figura 9 Ilustrao de Lus Jardim para Primeiras Estrias feita com base em desenho de Guimares Rosa presente no caderno Regional (E-25) ......................................................................................... 112

ix

SUMRIO

DEDICATRIA ...................................................................................................................................... i AGRADECIMENTOS .................................................................................................................... ii RESUMO ....................................................................................................................................... vi ABSTRACT .................................................................................................................................. vii LISTA DE FIGURAS .................................................................................................................. viii SUMRIO ...................................................................................................................................... ix 1 INTRODUO................................................................................................................................ 1 1.1 Introduo: ecos da travessia ......................................................................................................... 2 2 PASSADO MOVENTE: a cultura histrica de Guimares Rosa .............................................. 11 2.1 O cavaleiro da Rosa do burgo do corao: algumas palavras sobre Guimares Rosa ............... 12 2.2 Estria contra Histria: o ficcional e o verossmil em Guimares Rosa .................................... 26 2.3 Histria de longos ventos: traos da sabedoria potica de Vico no conto Desenredo........................................................................................................................................... 34 2.4 Sombras de outroras coisas: a arte de narrar o passado no conto A Benfazeja ....................... 45 3 O TEMPO FLUI, O HOMEM FLUTUA: marcas do "terror do tempo" nos contos de Guimares Rosa .................................................................................................................................. 58 3.1 - Dilogos com a eternidade: evaso do tempo e averso histria em Guimares Rosa ..............59 3.2 - Um olhar sobre futuros antanhos: ao e pr-destinao no conto "Seqncia" ......................... 73 3.3 - Quando a fortuna ajuda os fracos: manifestaes do fatum na vida do protagonista annimo de Se eu seria personagem ..................................................................................................................... 82 4 O MUNDO MNEMNICO: realidades guardadas em estado de sonho .................................. 99 4.1 As regies amorfas do passado: manifestaes da memria na obra de Guimares Rosa ........ 100 4.2 O avesso do passado: a ficcionalizao de recordaes nos contos As Margens da Alegria e Os Cimos ......................................................................................................................................... 110 4.3 Todos somos amnsicos: marcas do pensamento de Bergson e da reminiscncia platnica em Nenhum, Nenhuma .......................................................................................................................... 121 5 CONSIDERAES FINAIS ..................................................................................................... 130 5.1 Consideraes finais: Cronos e seus caminhos tortuosos ...........................................................131

6 REFERNCIAS .......................................................................................................................... 136

1

1 INTRODUO

2

1.1 Introduo: ecos da travessia

No h ningum, no mundo, que saiba esta estria. Se eu no a contar arbias! (Guimares Rosa)

Encontrei-me com Guimares Rosa pela primeira vez durante a adolescncia. Passeava pela biblioteca quando escutei o chamado de Miguilim e Manuelzo, personagens de Corpo de Baile1. Levei para casa os novos amigos, ansiosa por descobrir a literatura rosiana. A surpresa que tive foi semelhante que tinha encarado meses antes com Virgnia Woolf: no consegui passar da dcima pgina. Admiti, humildemente, que ainda no estava preparada para aquela leitura e resolvi que tentaria retom-la anos depois. Anos depois, buscava informaes na internet sobre uma cano de Chico Buarque (Assentamento, que menciona contos de Guimares Rosa) quando descobri um blog chamado Tutamia. A criadora e mantenedora do blog historiadora e desenvolvia uma dissertao de mestrado2 sobre o ltimo livro de contos escrito pelo autor, Tutamia Terceiras Estrias. Encontrei, graas a Camila Rodrigues, citaes do escritor mineiro que encantavam e enterneciam na mesma medida em que me deixavam perplexa. Decidi enfrentar, pela segunda vez, a aventura de ler Guimares Rosa. Desta vez desisti de explorar os volumes da biblioteca e preferi comprar um de seus livros, assim teria a possibilidade de ler e reler com mais tempo e cuidado. Inadvertidamente, comecei por Tutamia, acreditando que a coleo de contos poderia ser menos hermtica que os livros mais volumosos, compostos por longas novelas (como o Campo Geral em que havia me arriscado anos antes). Infelizmente, eu estava errada. As Terceiras Estrias me pareceram intransponveis desde o incio: aquele parecia ser outro idioma. Conseguia captar a beleza das1

Corpo de baile um calhamao de mais de 800 pginas, composto por sete novelas. Quando foi lanado, em 1956, era constitudo por dois volumes. Em 1960, foi publicado em apenas um volume. Posteriormente, foi dividido em trs volumes autnomos que carregavam o subttulo Corpo de baile: Manuelzo e Miguilim (composto por Campo geral e Uma estria de amor), No Urubuququ, no Pinhm (formado por O recado do morro e Cara-de-Bronze) e Noites do Serto (em que constavam as novelas Do Lalalo e Buriti). Em 2006, a Editora Nova Fronteira lanou uma edio comemorativa do livro em dois volumes, trazendo de volta aquela que fora publicada pela primeira vez em 1956. 2 O ttulo da dissertao de Camila Rodrigues Mos Vazias e Pssaros Voando: memria, inveno e nohistria em Tutamia, Terceiras Estrias, de Joo Guimares Rosa. Atualmente seu blog (http://tutameia.zip.net/) est desativado.

3

plulas de sabedoria e aforismos esparsos entre os contos, mas nada entendia sobre os enredos. No obstante, resolvi prosseguir. Li at o final, mesmo sem compreender a maior parte do que lia. Hoje sei que no fui a nica a sentir esse estranhamento. Na poca, no conhecia ningum que tivesse lido o escritor e no pude compartilhar minhas angstias. Somente anos depois me deparei com a passagem em que o prprio autor afirma que muita gente achava seus livros difceis: Muita gente diz que difcil ler minhas obras. No difcil. E no precisa lerem voz alta, como muita gente que conheo, para assimilar. Basta ler, ler com ateno. Voc pensa que no est entendendo, mas mentalmente est 3.

Continuava maravilhada e confusa quando resolvi reler as Terceiras Estrias. Eu pressentia que havia algo grandioso no escritor mineiro, algo que ainda no conseguira captar. Na segunda leitura, a luz comeou a vir tona e compreendi a importncia da epgrafe de Schopenhauer apresentada j no sumrio de Tutamia: Da, pois, como j se disse, exigir a primeira leitura pacincia, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo se entender sob luz inteiramente outra (SCHOPENHAUER apud ROSA, 1967, p. s/n). Alguns enredos foram se delineando e as plulas de sabedoria se casaram com as estrias. Passei, ento, ao segundo livro, Primeiras Estrias. A partir da, apaixonando-me em progresso geomtrica pela literatura rosiana, li Corpo de Baile, Grande Serto: Veredas, Magma e as obras pstumas, Ave, Palavra e Estas Estrias. Ao cabo de dois anos, tinha dado conta de todos os livros do escritor mineiro que comeara a escrever apenas aos trinta e oito anos de idade, vindo a falecer aos cinquenta e nove. A esta altura, j estava terminando o curso de Histria e as preocupaes profissionais que assolam os graduandos me angustiavam. Nesta poca, eu participava de um grupo de pesquisa interdisciplinar cujos estudos se voltavam para cultura visual, espao, memria e ensino. Pretendia escrever um trabalho de concluso de curso sobre cinema, mas nunca consegui eleger um filme para levar a ideia adiante. Na mesma poca, continuava lendo e relendo os livros de Rosa e desenvolvendo, a cada leitura, interesses novos pelos contos do autor. Pensei em diversas possibilidades de pesquisa sobre a obra do escritor mineiro, mas demorei a me decidir por uma delas.

3

Guimares Rosa fala aos jovens. O Cruzeiro, 23/12/1967. Cf. Cadernos de Literatura Brasileira. Joo Guimares Rosa. Instituto Moreira Salles. So Paulo, n. 20-21, dez. 2006, p. 84.

4

O aspecto que mais me chamava ateno na literatura de Guimares Rosa era o conflito entre o tempo e a eternidade, que eu percebia estar fortemente presente em sua obra. Alm disso, eu sentia certa identificao com os personagens e isso aumentou meu desejo de estreitar laos com o autor numa pesquisa de flego, que resolvi realizar na ps-graduao. Para isso, no entanto, me faltavam todas as ferramentas: no possua nenhuma leitura acerca das relaes entre Histria e Literatura, no conhecia ningum que pudesse me orientar e no sabia em que linha de pesquisa e programa de ps-graduao encaixar meu trabalho. Mais: achava minha proposta de pesquisa pouco histrica e por isso fiquei bastante confusa sobre as possibilidades de desenvolv-la. No cogitei perscrutar elementos sociais na obra de Rosa, mas tentei dar ateno aos aspectos transcendentes de um serto que no era composto apenas pela seca, pela misria e pela desigualdade, mas tambm pela fantasia, pela poesia e por questionamentos metafsicos. Minha primeira ideia, ento, foi estudar as concepes de tempo e histria no serto. O que pensariam sobre esses temas os sertanejos analfabetos ou semianalfabetos, que cultivavam o hbito de contar as histrias aprendidas com os mais velhos e que viveram durante dcadas afastados da industrializao e dos grandes meios de comunicao (especialmente a televiso)? Queria responder a essa indagao a partir dos personagens de Guimares Rosa que, para mim, representavam este homem desprovido da cultura letrada, mas detentor de saberes semeados por sculos atravs da cultura oral. Desenvolvi meu projeto de pesquisa neste sentido e fui aprovada na seleo de mestrado da UFPB. Durante o curso, porm, a partir das leituras realizadas e de conversas com professores e colegas, percebi que a proposta possua diversas inconsistncias tericas. Primeiramente, notei que os sertanejos de Guimares Rosa viveram num tempo e num espao diferentes daqueles que me interessavam (embora ainda houvesse semelhanas entre ambos). Em segundo lugar, seria necessrio estudar bastante sobre apropriao cultural (para analisar o modo como Guimares Rosa, um homem erudito, se apropria da fala de homens simples e a transfigura numa linguagem reinventada), exerccio terico que se acumularia diante de todos os outros que eu tinha que enfrentar (precisava compreender como tm se estruturado as relaes entre histria e literatura, teria que ler trabalhos de diferentes campos do conhecimento acerca da obra de Guimares Rosa e era necessrio ainda investigar a forma como os historiadores vm tratando as questes do tempo e da memria e a maneira como os homens comuns vem essa questo etc.). Em terceiro lugar e mais importante , era

5

necessrio levar em conta que a maior parte dos personagens no existia efetivamente: eram criaes do autor, um homem instrudo, que havia seguido carreira como mdico e diplomata, e que, apesar de ter nascido no serto e t-lo usado como cenrio para seus escritos, interpretava o pensamento de seus habitantes de uma maneira muito especfica, e provavelmente carregava uma viso diferente daquela que os prprios sertanejos teriam de si mesmos. Assim, depois de novas leituras, de conversas com meu orientador, Prof. Dr. Raimundo Barroso Cordeiro Junior e, especialmente, a partir do seminrio de dissertao promovido pelo programa de ps-graduao em Histria da UFPB (quando tive a oportunidade de receber as crticas e sugestes feitas pela professora Dra. Maria Regina Rodrigues Behar sobre o meu trabalho), surgiu a possibilidade de estudar a cultura histrica de Guimares Rosa, ou seja, a relao que Guimares Rosa mantinha com a histria e, consequentemente, sua relao com o tempo e a memria. Desta maneira, voltei ao tema que mais me instigava com a certeza de sua legitimidade terica no campo histrico. Neste momento nasceu o estudo que deu origem a esta dissertao, e que tem como objetivo investigar as especificidades das noes de histria, tempo e memria nos contos de Guimares Rosa. Levando em conta as mais recentes e acaloradas discusses sobre o contedo narrativo da escrita historiogrfica, discorro brevemente tambm sobre as aproximaes e os distanciamentos entre literatura e histria. Esta pesquisa se insere na rea de concentrao do Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal da Paraba na medida em que se destina a estudar as manifestaes da cultura histrica (ou seja, das representaes da Histria concebidas inclusive por nohistoriadores). O trabalho se inscreve ainda na linha de pesquisa denominada Ensino de histria e saberes histricos, pois, ao se debruar sobre a maneira como se constitui a necessidade de narrar, interpretar, representar e compreender o passado na obra de Guimares Rosa, pretende fornecer subsdios para que os historiadores percebam que a cultura histrica do autor apesar de estar intimamente ligada ao saber historiogrfico tem forte relao com outras inspiraes (em que pesem suas leituras esotricas, msticas e religiosas). Assim, possvel notar que as concepes de histria de no-historiadores recebem influncias mltiplas e por isso frequentemente se distanciam bastante das ideias que os historiadores possuem acerca do prprio ofcio.

6

Meu estudo toma como fontes prioritrias os contos de Guimares Rosa publicados entre 1962 e 1967, alm de entrevistas, anotaes em cadernos e cadernetas, estudos para a obra4 e cartas trocadas entre o autor e seus amigos, familiares e tradutores. importante salientar desde j que os contos foram chamados pelo prprio autor de estrias, em contraposio Histria rigorosamente cientfica ou mesmo histria que remete, de qualquer forma, ao acontecido. O desafio aqui proposto o de investigar o quanto se pode falar de Histria partindo dessas estrias supostamente insubordinveis nossa disciplina (que, por sua vez, acredita estar distante da fantasia e ser filiada somente lgica, essa megera cartesiana). Tentei selecionar passagens dos contos e depoimentos de Rosa que iluminassem minha compreenso acerca do que o escritor pensava sobre os temas da histria, do tempo e da memria. Utilizo ainda como fontes os prefcios de Tutamia, seguindo as indicaes de Afrnio Coutinho, que afirma:

Nos dois ltimos livros, publicados em vida do autor, Primeiras estrias e Tutamia, Joo Guimares Rosa romperia com a narrativa longa, com o plot delineado e adotaria a narrativa de flagrante, de estados mentais, emocionais ou episdicos, mas a sua experimentao no sistema lingstico continua, s vezes mais exacerbada do que antes, e (...) precisamente em Tutamia, que nos daria a chave de todo o seu processo criador, atravs de prefcios-ensaios, dignos de um exegeta. (COUTINHO, 2004, p. 251)

Alm dos quatro prefcios de Tutamia, existem mais duas grandes chaves de compreenso da obra de Rosa: em primeiro lugar, as cartas trocadas com seus tradutores e, em segundo lugar, os livros encontrados em sua biblioteca. As missivas revelam aspectos antes encobertos de seus textos e os livros apontam algumas das influncias que podem ser encontradas em seus escritos. Infelizmente, as cartas publicadas no incorporam informaes sobre as Terceiras Estrias, pois o autor faleceu antes que o livro fosse traduzido para outros idiomas. Os livros da biblioteca de Guimares Rosa foram inventariados por Suzi Frankl Sperber em seu estudo Caos e Cosmos: leituras de Guimares Rosa. A partir das obras ali

4

Este material est disponvel no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros IEB/USP. Infelizmente, passei pouco tempo em So Paulo e no pude explorar com profundidade toda a riqueza do arquivo, que tambm cuida da correspondncia ativa e passiva, da biblioteca e de grande parte dos originais manuscritos e datiloscritos do autor. Existem ainda algumas cartas e cadernos (em nmero bem reduzido) na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Tambm visitei este arquivo, embora tenha utilizado com mais frequncia as informaes encontradas no IEB.

7

encontradas e dos grifos e comentrios feitos s suas margens, possvel perceber algumas particularidades dos pensamentos do autor. Meu objetivo foi desenvolver uma investigao que no abarcava um evento, um acontecimento ou um fenmeno histrico propriamente dito. A preocupao dessa pesquisa de cunho essencialmente terico. Pretendo pensar sobre a complexidade das relaes entre o homem, o tempo e o passado, utilizando os contos de Joo Guimares Rosa como meios para desenvolver essa reflexo. Durval Muniz de Albuquerque Jr., em Histria: a arte de inventar o passado, afirma queO recurso Literatura, no como fonte histrica no sentido de manancial de informaes a serem extradas pelo pesquisador meticuloso, mas como lugar de boas perguntas acerca de um problema, como lugar de fecundao do pensamento, um dos melhores exemplos de como pode o historiador pensar com a Literatura e no contra ela (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 17).

Assim, acredito ser possvel encontrar nos contos de Rosa no apenas um manancial de informaes que seriam extradas e cotejadas com outros documentos, mas um lugar de onde podem partir boas perguntas acerca da importncia que a memria e o passado assumem no apenas no ofcio do historiador, mas na obra de um literato que mesmo sem dominar as tcnicas da Histria, no deixou de pr em dvida as particularidades de nossa cincia. Gostaria de ressaltar que levei em conta tambm as pesquisas de outros estudiosos acerca da obra rosiana e que, no desenvolvimento da crtica das fontes literrias, procurei identificar tambm as contradies do discurso de Guimares Rosa. Acredito que na obra de Joo Guimares saltam aos olhos a importncia conferida memria, ao tempo e ao passado. Os escritos do autor esto repletos de personagens cujas vidas s tomam sentido a partir do momento em que conseguem recordar, reconhecer ou compreender o passado. Embora o autor tenha escrito tambm poemas, novelas e um romance, optei por trabalhar com os contos. Kathrin Rosenfield defende que[...] no mundo onde [Rosa] nasceu e escreveu o serto no existe a forma essencialmente prosaica e urbana do romance (...) G. Rosa pertence, portanto, no obstante sua inovao, a uma tradio narrativa brasileira que tende forma do conto. (ROSENFIELD, 2006, p. 37).

8

Segundo a autora, o conto aparece no Brasil, mais do que em qualquer outro pas, como um enxerto artstico num costume poderoso: o do relato conversacional (2006, p. 37). Chiara di Axox5, em sua dissertao sobre o misticismo na vida e na literatura de Guimares Rosa, defende a proximidade entre o escritor e Benjamin, que afirma que o conto o primeiro conselheiro das crianas porque o foi outrora da humanidade, vive ainda secretamente na narrativa. O primeiro verdadeiro narrador e continua a ser o do conto (BENJAMIN, 1992, p. 49). No entanto, possvel entrever os temas da memria e do tempo tambm no nico romance de Rosa, Grande Serto: Veredas e em algumas novelas de Corpo de Baile, tais como Uma Estria de Amor e Cara-de-Bronze. Filsofos, telogos, cientistas sociais e literatos j se ocuparam em pensar sobre o tempo. Creio ser essencial a existncia de historiadores que se interessem pela matria de seu conhecimento, por isso me dedico a essa tarefa. importante deixar claro que este no se pretende um trabalho filosfico, mas terico. Em concordncia com Arstegui, acredito que a teoria uma questo diferente da filosofia. Decididamente, o historiador no pode exercitar a funo do filsofo, mas preciso advertir uma vez mais, teorizar sobre a Histria funo do historiador. (ARSTEGUI, 2006, p. 87). A teoria a malha que possibilita Histria emboscar em si mesma o que no ela prpria (NORA, 1993, p. 10). a partir dela que se torna possvel a compreenso de que memria e histria no so uma coisa s, mas que ambas possuem semelhanas e interpenetraes na medida em que combatem o esquecimento. Alfredo Bosi afirma, em Cu, inferno, queEm Guimares Rosa, o que cinge cultura popular um fio unido de crenas: no s um contedo formado de imagens e afetos, mas, principalmente, um modo de ver os homens e o destino. (...) A sua narrativa, que parece a tantos ardidamente moderna e at mesmo experimental pela ousadia das solues formais, realiza, com as artimanhas da linguagem, uma nova traduo do pensamento arcaico-popular. (BOSI, 2003, p. 37)

O prprio autor, em carta a Joo Cond, ao justificar a escolha do interior de Minas Gerais como terreno em que localizou as histrias de Sagarana, diz que seus contos so parbolas e assinala a funo do destino em sua obra: porque o povo do interior sem5

Chiara de Oliveria Carvalho Casagrande di Axox procurou mostrar em sua dissertao de mestrado intitulada Sob o Tapatrava de Guimares Rosa: misticismo na vida e na obra de Joozito que os elementos msticos encontrados na obra do escritor mineiro permeavam tambm sua vida. Para isso, a autora serviu-se de cadernos de anotaes pessoais, correspondncias, entrevistas e relatos de amigos e parentes. Dentre outras coisas, apontou trechos de livros msticos e religiosos grifados pelo autor.

9

convenes, poses d melhores personagens de parbolas: l se veem bem as reaes humanas e a ao do destino... (ROSA, 2001b, p. 25). Deste modo, o universo do escritor mineiro se harmoniza com o universo da cultura popular. Concordo com Jos Maria Martins quando diz que apesar de Guimares Rosa tanto mergulhar no trgico, na dor, na maldade absurda, predomina o otimismo e a alegria. O efeito psicolgico da leitura de seus textos sempre para cima (MARTINS, 1994, p. 56). Acredito que uma das utilidades das narrativas de Rosa mostrar o sofrimento como travessia, como algo necessrio para a chegada ao momento de epifania 6, em que a vida se transforma e se pode compreender que todos os acontecimentos tm um porqu, uma razo de ser: o momento que Aristteles chamaria de anagnorisis.7 Para Walter Benjamin, a narrativa[...] tem sempre em si, s vezes de forma latente, uma dimenso utilitria. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugesto prtica de qualquer maneira, o narrador um homem que sabe dar conselhos (...). O conselho tecido na substncia viva da existncia tem um nome: sabedoria. A arte de narrar est definhando porque a sabedoria o lado pico da verdade est em extino (BENJAMIN, 1992, p. 200-201).

Desta maneira, percebo em Guimares Rosa algo do narrador descrito por Benjamin. Ao buscar, no substrato popular, maneiras de ver, sentir e representar o mundo, o autor funde a cultura iletrada e a prpria erudio, apresentando em sua obra numerosas possibilidades de compreender a vida atravs do passado. A presente dissertao est estruturada de maneira que o leitor se afaste lentamente do universo temtico e categorial da histria para adentrar o universo de Guimares Rosa. Se os primeiros captulos trazem baila a discusso sobre semelhanas entre o esforo de guardar o passado empreendido por certos personagens de Guimares Rosa com os esforos inerentes ao mtier dos historiadores, os dois ltimos estabelecem mais precisamente as distines. preciso advertir, no entanto, que Rosa empreende esse movimento de distanciamento e aproximao da histria o tempo todo e que nem sempre conseguiu fugir das concepes modernas de tempo, memria e histria que afirmava desprezar.6

Talvez seja interessante notar que este processo que se inicia no sofrimento e finda com a epifania frequentemente utilizado nas narrativas crists que pretendem demonstrar a trajetria de seus heris. 7 Anagnorisis , nas tragdias gregas, o momento em que um personagem faz uma descoberta decisiva. O termo significa reconhecimento e, na Potica de Aristteles, representa a sada da ignorncia e, consequentemente, a tomada de conscincia por parte do heri.

10

O segundo captulo deste trabalho composto pela apresentao do autor e pela contextualizao de sua obra. Tento ainda indicar a importncia de sua literatura nos cenrios nacional e internacional, o papel que o serto desempenha em seus escritos, a ligao do escritor mineiro com a histria e a poltica do pas e os princpios estticos e filosficos que norteavam a criao de seu universo ficcional. Ainda no segundo captulo, apresento rapidamente os estudos sobre a literatura rosiana que contriburam para o desenvolvimento desta pesquisa. Busco tecer tambm uma breve discusso acerca das relaes entre Histria e Literatura para que seja possvel iniciar a investigao em torno de uma cultura histrica prpria do escritor, que chamarei aqui de cultura histrica rosiana. O terceiro tpico do segundo captulo trata da presena da sabedoria potica (conceito cunhado por Vico) no conto Desenredo; j o quarto tpico do mesmo captulo tem como objetivo compreender a relao entre mito e Histria em A Benfazeja e destacar o papel que a Histria representa como mestra da vida neste conto. No terceiro captulo, inicio a discusso sobre as diversas temporalidades presentes na literatura rosiana, assinalando de antemo que a obra de Guimares Rosa parece instituir a todo o momento uma tentativa de evaso do tempo. Para confirmar essa anlise, desenvolvo o estudo dos contos Seqncia e Se eu seria personagem. Ambos apresentam como foco a existncia do destino, das obras da Providncia Divina e da condenao a uma histria regida pelos astros ou pela Fortuna. No quarto e ltimo captulo, estudo os contos As Margens da Alegria. Os Cimos e Nenhum, nenhuma com o objetivo de compreender a forma como Guimares Rosa retrata a memria em seus escritos. Investigo o mtodo de transfigurao das lembranas pessoais e anotaes mantidas pelo escritor em obras literrias. Desenvolvo um estudo sobre a evaso do tempo e da realidade atravs do culto memria e do retorno a um passado mtico ou a uma vida esquecida. Defendo que este tema aparece estritamente ligado, na obra do autor, s suas leituras msticas e filosficas, especialmente s influncias advindas de Plato e Henri Bergson.

11

2- PASSADO MOVENTE: A CULTURA HISTRICA DE GUIMARES ROSA

12

2.1 - O cavaleiro da Rosa do burgo do corao: algumas palavras sobre Guimares Rosa

J. Guimares Rosa ainda no existe. A bom entendedor o digo. Por ora s um rascunho. (Guimares Rosa)

Para descortinar o universo de Joo Guimares Rosa preciso, antes de tudo, que se conhea o autor. Ele nasceu em 27 de junho de 1908, na pequena Cordisburgo, cidade mineira onde passou a infncia e para onde retornava durante as frias escolares da juventude. Segundo o prprio escritor, sua obra est estritamente ligada ao fato de ter nascido no serto. Graduou-se como mdico, mas desistiu da medicina para seguir carreira de diplomata. Foi cnsul-adjunto em Hamburgo, na Alemanha, em 1938. No pas, conheceu Aracy Moebius de Carvalho 8, que viria a ser sua segunda esposa. Permaneceu na Alemanha at o rompimento diplomtico do Brasil com aquele pas durante a Segunda Guerra Mundial (1942). Trabalhou ainda em Bogot e Paris. Faleceu em 19 de novembro de 1967, no Rio de Janeiro, trs dias depois de ser agraciado com o ttulo de imortal pela Academia Brasileira de Letras (a posse fora adiada por quatro anos porque o escritor acreditava que morreria quando assumisse a cadeira9). A obra de Guimares Rosa composta por apenas oito livros10 (Estas Estrias e Ave, Palavra foram organizados e publicados postumamente, em 1969 e 1970, e seu livro de poemas, considerado pelo prprio autor como uma obra menor, foi editado somente em 1997). Rosa comeou a escrever tardiamente; no entanto, sua obra extraordinria tema dos8

Aracy era chefe da seo de passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo e conseguiu vistos para que numerosos judeus entrassem ilegalmente no Brasil durante o governo de Getlio Vargas. Depois da circular secreta de 1938, que restringia a entrada de judeus no pas, ela passou a conseguir os vistos para judeus atravs de um simples estratagema: deixava de colocar nos passaportes o J que os identificava. Com isso, salvou a vida de um grande nmero de famlias, recebendo a alcunha de O Anjo de Hamburgo. a nica mulher homenageada no jardim dos Justos entre as Naes no Museu do Holocausto, em Israel. Na poca em que Aracy conseguia os vistos para judeus, Rosa era cnsul adjunto em Hamburgo e a apoiava na arriscada empreitada. 9 Os Cadernos de Literatura do Instituto Joo Moreira Salles sobre Guimares Rosa citam uma passagem da matria Viagens imaginrias O serto e as veredas de Guimares Rosa, publicada na Revista Manchete em 20 de julho de 1991: Se tomar posse, eu morro (...). Que pena no ser como num jogo de futebol. Quando acaba, os jogadores esto a salvo, entram no buraco e somem (Cf. Cadernos de Literatura Brasileira. Joo Guimares Rosa. Instituto Moreira Salles. So Paulo, n. 20-21, dez. 2006, p. 88). O escritor sofria de hipertenso e problemas cardacos, por isso imaginava que no suportaria a emoo de ser admitido na ABL. 10 Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956) posteriormente dividido em trs volumes: Manuelzo e Miguilim, No Urubuquaqu, no Pinhm e Noites do Serto , Grande Serto: Veredas (1956), Primeiras Estrias (1962), Tutamia Terceiras Estrias (1967), Estas Estrias (1969), Ave Palavra (1970) e Magma (1997).

13

mais variados estudos. importante ressaltar que sua fico surgiu no rastro da literatura regionalista, mas se afastou dela ao optar por temas universais e desenvolver um estilo de escrita espantosamente original. Walnice Nogueira Galvo apresenta em seu premiado Mnima Mmica11

, um ensaio

especfico sobre o Regionalismo e a obra rosiana. Segundo a autora, esse movimento literrio poderia ser dividido em trs fases: a primeira nasceu na esteira do Romantismo e tambm foi denominada de Sertanismo, pois trazia o interior do Brasil para o centro da fico. A segunda fase do Regionalismo surgiu no influxo do Naturalismo (e em reao ao Romantismo) e perdurou at quando o Modernismo passou a contestar seu localismo e particularismo, bem como a reneg-lo e critic-lo como literatura de baixa qualidade, provinciana e equivocada em seus propsitos de dar a conhecer o Brasil (GALVO, 2008, p. 99). Na dcada de 1930 surgiu um terceiro Regionalismo, marcado pela influncia do romance social norte-americano e tendo como caracterstica principal certo neonaturalismo que se empenharia em denunciar a injustia, a iniqidade e o preconceito (GALVO, 2006, p. 100). O mestre desta literatura engajada seria mile Zola, autor fortemente criticado por Guimares Rosa durante entrevista concedida ao crtico alemo Gnter Lorenz. Os autores vinculados a esse filo produziam, segundo Walnice Nogueira Galvo, uma literatura mais fcil de ser assimilada que aquela que viria a ser produzida pelas vanguardas; foi na trilha iniciada por esses autores que nasceu o terceiro Regionalismo brasileiro, vindo do Nordeste e por vezes produzindo uma safra de fico ao rs do cho (GALVO, 2006, p 108) e aspirando a documentrio. contra essa literatura que a obra de Guimares Rosa se interpe. A fico rosiana se destaca pelas ousadias lingsticas; pela forte assimilao do pensar e falar popular, sertanejo e interiorano; pela criao de neologismos e pela proposta de libertao da lngua portuguesa. Paulo Rnai expe, no prefcio de Primeiras Estrias, parte do processo de criao de Guimares Rosa. Para ele, o escritor mineiro, apesar de ter feito sua apario na literatura como escritor regionalista, no adotara[...] nenhuma das trs tcnicas disposio do regionalismo: servir-se da linguagem regional indistintamente em todo o livro, restringi-la fala das personagens, ou substitu-la integralmente por uma linguagem literria, convencional. A quarta soluo, adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e processos da lngua popular infiltrarem o estilo expositivo

11

O livro Mnima Mmica Ensaios sobre Guimares Rosa, de Walnice Nogueira Galvo, ganhou, em 2009, o Prmio de Melhor Ensaio, concedido pela Fundao Biblioteca Nacional.

14

e as da lngua elaborada embeberem a linguagem dos figurantes. (RNAI apud ROSA, 1967a, p. xviii-xix).

Guimares Rosa, por sua vez, afirmou em carta a Joo Cond que amava a lngua; porm, no a amava como a me severa, mas como a bela amante e companheira (ROSA, 2001b, p. 24). O autor dizia, ainda, que havia dois componentes igualmente importantes em sua relao com o idioma: o primeiro era o fato de ele considerar a lngua como elemento metafsico e o segundo se referia s singularidades filolgicas do portugus e do espanhol, que, segundo Rosa, tambm seriam formadas por processos de origem metafsica, muitas coisas irracionais, muito que no se pode compreender com a razo pura (ROSA apud LORENZ, 1973, p. 337). A importncia dada pelo escritor mineiro reconfigurao do idioma no o bastante para compreender seu pensamento. A anlise de sua obra no pode ser feita sem que se conhea tambm a viso de Guimares Rosa sobre o tempo e o espao, j que no existe tempo fora do espao, e espao fora do tempo, uma vez que o real o espao-temporal. (MOREIRA, 2007, p.143). Vincenzo Arsillo assinala com muita propriedade, acerca de Grande Serto: Veredas, que o serto rosiano a forma, a figura, a imagem que o tempo pode assumir; , por paradoxo, uma possibilidade nica, uma liberdade da sua expresso. O serto o nico espao ao qual possvel atribuir a plenitude, a totalidade do tempo (ARSILLO, 2010, p. 227). Desta maneira, a necessidade de explorar o serto se impe para que seja possvel sondar o tempo rosiano. necessrio, no entanto, fazer uma pequena digresso sobre a no-vinculao de Rosa com a corrente regionalista, em voga na sua poca. Jos Maurcio Gomes de Almeida esclarece em seu ensaio Da viso realista viso mitopotica: o serto como microcosmo que o serto de Guimares Rosa ganha o valor de um microcosmo, um espao mtico onde vai se desenrolar a aventura humana; ou, utilizando suas prprias palavras, o serto torna-se smbolo e modelo do universo (ALMEIDA, 2006, p. 276). Por este motivo, necessrio apresentar este serto que figurou to intensamente em sua obra e que se distingue do serto de outros escritores. Jos Maurcio Gomes de Almeida apresenta bem as peculiaridades do serto retratado na literatura rosiana. Segundo o autor, na dcada de 1930, o realismo radical de Graciliano Ramos tem como tema as condies de vida precrias de uma regio histrica e geograficamente bem definida. Para Almeida, o propsito de Vidas Secas no o de refletir

15

sobre a condio humana em si, mas sobre as condies concretas de existncia dos viventes do serto, seres perfeitamente situados no tempo e no espao (2006, p. 278) e nisso que reside a maior diferena entre a literatura de Graciliano Ramos e a de Guimares Rosa, que no rejeita a condio regionalista, mas a entende de forma diversa daquela que predominava entre os ficcionistas de 1930. O gegrafo Ruy Moreira afirma sobre Grande serto: veredas algo que pode ser levado em conta tambm em relao a outras obras de Guimares Rosa:[Em] Grande serto: veredas, os homens buscam um mergulho na sua interioridade subjetiva para realizar a fuga simblica das estruturas espaotemporais que amarram objetivamente suas formas de existncia. O peso das determinaes espao-temporais sobre esses personagens e suas tramas de vida tal que com elas sua existncia indissociavelmente se confunde. (MOREIRA, 2007, p.144)

Em Guimares Rosa, o serto afirmado como matriz da criao, mas deve ser entendido como um microcosmo onde vai-se desenrolar a aventura humana (ALMEIDA, 2006, p. 279). Seu intuito era libertar o homem do peso da temporalidade 12. Por outro lado, ele mesmo se inseria e se confundia com o espao que retratou em sua obra: Eu carrego um serto dentro de mim, e o mundo no qual eu vivo tambm o serto13, disse o autor. Por esse motivo, para Walnice Nogueira Galvo, a obra de Guimares Rosa assinala ao mesmo tempo o apogeu e o encerramento do Regionalismo. Para iniciar a discusso, til conhecer o pensamento de Kathrin Rosenfield, que comenta:G. Rosa imprime ao serto e ao sertanejo as marcas de uma experincia metafsica (...). Como a Babilnia bblica, o serto torna-se smbolo de uma travessia capital, ao longo da qual as coisas banais do mundo tendem a verter para dar lugar a algo prximo da viso religiosa: uma compreenso aqum do intelecto. Desligado de reflexes sociolgicas, esse volume imaginrio-mstico do serto um fato novo na literatura brasileira (ROSENFIELD, 2006, p. 49)

12

Guimares Rosa afirma que Gnter Lorenz foi o crtico que mais lhe causou alegria, pois havia escrito e compreendido que em Grande Serto havia liberado a vida, o homem (...) do peso da temporalidade (ROSA & MEYER-CLASON, 2003, p. 42) 13 Viagens imaginrias O serto e as veredas de Guimares Rosa. Manchete, 20/07/1991. Cf. Cadernos de Literatura Brasileira. Joo Guimares Rosa. Instituto Moreira Salles. So Paulo, n. 20-21, dez. 2006, p. 80.

16

Existe ainda uma passagem em que o prprio escritor elucida o significado do serto em sua obra e fala sobre a lngua que nela impera: no do ponto de vista filolgico e sim metafsico, no serto fala-se a lngua de Goethe, Dostoievsky e Flaubert, porque o serto o terreno da eternidade, da solido (ROSA apud COUTINHO, 2003, p. 85-86). Desta maneira, possvel defender que sertanejo, para o Rosa, define antes uma condio de ser, do que um acidente de nascimento, embora isso no exclua, no seu caso, um autntico orgulho com a condio de homem do serto (ALMEIDA, 2006, p. 281). por este motivo que o trabalho aqui desenvolvido no pretende compreender a literatura rosiana como uma representao realista daquilo que o serto e dos fenmenos que l ocorrem. Esta pesquisa tenta produzir uma perspectiva que leve em conta aquilo que o lugar e o tempo que perpassam a obra rosiana parecem significar para o autor o que leva a pensar em vises de tempo e espao bastante diferentes daquelas que imperam no senso comum. Para Walnice Nogueira Galvo, Rosa representa uma sntese e ao mesmo tempo uma superao de duas vertentes: como os regionalistas, volta-se para o interior do pas e pe em cena personagens plebeus e tpicos, mas como aqueles que se dedicavam ao romance espiritualista ou psicolgico, ele se debruou sobre assuntos metafsicos e costeou o sobrenatural, o transcendente (2008, p. 92). Assim, Guimares Rosa surge como um autor que vagueia entre as fronteiras. Esta caracterstica do escritor mineiro foi imprescindvel para que chamasse a ateno de pesquisadores das mais diferentes reas do conhecimento. Segundo Willi Bolle, embora existam inmeros paradigmas de leitura da obra de Guimares Rosa, as anlises preponderantes se polarizaram nos ltimos tempos em dois tipos de estudos: o primeiro constitudo pelas interpretaes esotricas, mitolgicas e metafsicas (BOLLE, 2004, p. 20) e o grupo que se detm nesses temas composto por estudiosos como Consuelo Albergaria, Francis Utza, Kathrin H. Rosenfield e Helosa Vilhena de Arajo. De acordo com Bolle, essas interpretaes constituram at recentemente a tendncia predominante na recepo; o segundo grupo, por outro lado, se deteve em interpretaes sociolgicas, histricas e polticas. Foi inaugurado por Walnice Nogueira Galvo na dcada de 1970 e, a partir de 1990, suscitou novo interesse, dando origem a trabalhos como o de Heloisa Starling 14 e o do

14

Em Lembranas do Brasil - Teoria, poltica, histria e fico, Helosa Starling tenta apresentar, atravs da anlise de alguns personagens de Grande Serto: Veredas, dimenses do cenrio poltico brasileiro que dificultaram a chegada do pas modernidade e democracia.

17

prprio Willi Bolle15. No I Seminrio Internacional sobre Guimares Rosa (1998), inclusive, a mesa temtica Leituras histricas de Guimares Rosa provocou, segundo Bolle, um longo, intenso e polmico debate que parece perdurar polarizando, at hoje, os estudos sobre a obra do escritor mineiro. Apesar do predomnio de temas esotricos, msticos e metafsicos relacionados s duas categorias aqui abordadas, as interpretaes histricas, polticas e sociolgicas no so descartadas. indispensvel mencionar, no entanto, a importncia do trabalho de Suzi Frankl Sperber16, que foi muito esclarecedor na medida em que aventa a possibilidade de que as concepes de memria e tempo em Guimares Rosa estejam intrinsecamente ligadas s leituras filosficas, religiosas e esotricas que influenciaram o autor. Embora Sperber no se detenha sobre a temtica do tempo ou da histria, graas ao seu trabalho vm tona caractersticas da literatura rosiana que suscitam novas interpretaes dos contos aqui estudados. A partir de sua anlise fica evidente a urgncia de considerar reflexes de Guimares Rosa como a que segue:Como eu, os meus livros, em essncia, so anti-intelectuais defendem o altssimo primado da intuio, da revelao, da inspirao sobre o bruxulear presunoso da inteligncia reflexiva, da razo, a megera cartesiana. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e So Paulo, com Plato, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff com Cristo, principalmente. (ROSA, 2003a, p. 90)

Partindo dessa fala de Guimares Rosa ao seu tradutor italiano, fica evidente que seria intolervel desdenhar o peso das leituras esotricas, religiosas e filosficas de Guimares Rosa, bem como sua defesa do primado potico sobre a razo e a lgica. Mesmo sabendo da impossibilidade de perscrutar na obra todas as suas entrelinhas e descobrir, finalmente, quais eram as ideias e sentimentos que animaram Rosa a escrev-la, este trabalho constitudo a partir de um ponto de vista que considera que menosprezar suas afirmaes e procurar ver em seus livros apenas aspectos histricos ou sociolgicos seria deturpar a interpretao da obra de

15

Willi Bolle, em Grandeserto.br: o romance de formao do Brasil, defende a tese de que o romance de Guimares Rosa o mais detalhado estudo de um dos problemas cruciais do Brasil: a falta de entendimento entre a classe dominante e as classes populares, o que constitui um srio obstculo para a verdadeira emancipao do pas. (BOLLE, 2004, p. 9) 16 Caos e Cosmos: Leituras de Guimares Rosa fruto de uma pesquisa de Suzi Frankl Sperber, que teve como objetivo detectar os reflexos das leituras e preocupaes espirituais nos temas e nas ideias de Guimares Rosa. Para tanto, a autora empreendeu vasta e profunda anlise dos livros que compunham a biblioteca do autor e da marginalia (grifos e anotaes feitas nas margens dos livros) encontrada neles.

18

Guimares Rosa em favor de hipteses de pesquisa baseadas majoritariamente em aspectos realistas. Cabe aqui ressaltar que o anti-intelectualismo (ou antirracionalismo) defendido por Rosa uma caracterstica presente no pensamento do Romantismo alemo, em que a linguagem rende-se ao Sublime, sob o signo do Amor e da Cordialidade, que se afasta do espectro das lutas sociais (ROMANO, 1981, p. 57). Essa preferncia pelo sensvel marcaria o pensamento conservador do sculo XIX. Nesse sentido, Guimares Rosa se parece bastante com Novalis e Schlegel, autores que consideravam a linguagem como um grande poema inacabado em que a humanidade representa a si mesma (Cf. ROMANO, 1981, p. 145). Roberto Romano explica, em Conservadorismo Romntico Origem do Totalitarismo, que os Romnticos tentaram constantemente rumar para fora da histria. Para eles, historiador no seria aquele que apenas reflete a temporalidade superficial e seu lugar, mas sobretudo quem atinge a camada permanente, bela, em germe, que subjaz aos meros acontecimentos (1981, p. 157). Os acontecimentos sociais, assim como os acontecimentos fsicos, se desenrolariam de forma independente da razo e da vontade humanas. Por esse motivo, os poetas se ocupariam no com a Histria mundial, mas com os fenmenos mais prximos e mais insignificantes que lhes propem em reduo uma imagem do vasto mundo (ROMANO, 1981, p. 160). Todos esses aspectos do pensamento Romntico alemo se assemelham s declaraes de Guimares Rosa sobre a linguagem, a razo (ou lgica), a Histria e mesmo sobre o serto, que seria, para o escritor mineiro, uma imagem reduzida do vasto mundo. Antonio Candido afirmou que em Grande Serto: Veredas h tudo para quem souber ler, e (...) tudo forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poder abord-la a seu gosto, conforme o seu ofcio (CANDIDO apud VIOTTI, 2007, p. 14). Esta pesquisa nasce tambm do desejo de mostrar que os contos de Guimares Rosa tm a mesma riqueza simblica conferida a seu famoso romance. A obra rosiana ser abordada neste trabalho conforme os limites do ofcio do historiador, levando em conta que suas estrias falam sobre homens no tempo, mas considerando tambm que o escritor mineiro no tinha a pretenso de construir crnicas sobre sua poca. Joo Guimares Rosa afirma que a palavra arte representa, para ele um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno e lembra que seus contos so Histrias adultas da Carochinha (ROSA, 2001b, p. 24). A partir dessas afirmaes e da leitura dos contos e de estudos acerca da obra de Rosa possvel afirmar que mais que o tempo

19

cronolgico, a eternidade que move suas estrias; infere-se ainda que suas narrativas pouco se preocupam com o valor de documento sobre o passado (no se pretendem crnicas17) e que as lembranas de seus personagens no esto ligadas somente aos fatos ocorridos no mundo profano, mas ao Belo que fora contemplado por cada um dos personagens quando viviam ainda no mundo das Ideias, como ocorre na filosofia de Plato. O que parece permanecer acerca da relao mais profunda entre as histrias de Rosa e a Histria feita pelos historiadores a necessidade de narrar e de atribuir sentido ao passado: a partir dessas reflexes que foi desenvolvido este trabalho, que pretende pensar especialmente sobre a existncia de uma cultura histrica rosiana (que poderia mais adequadamente ser chamada de cultura anti-histrica). Guimares Rosa costumava afirmar com frequncia seu desinteresse pela histria e pela poltica. Num de seus estudos para obras 18, ele transcreveu a seguinte passagem de Felicidade pela Agricultura, de Castilho 19: POLTICA S quando deixarmos de ser polticos, principiaremos a ser bons 20. possvel notar, no entanto, em sua biblioteca e mesmo nas entrelinhas de sua obra, numerosos aspectos destes dois campos da vida que o escritor dizia serem vos.21 Fernando Baio Viotti, em sua dissertao intitulada Cartas de Guimares Rosa a seus tradutores lembra que mesmo que os interesses mais prementes do escritor mineiro no sejam histricos, polticos ou sociais, sua obra est permeada por estes elementos e possvel desentranhar da forma literria s vezes mais, s vezes menos a dimenso social representativa de um povo ou de uma poca. (VIOTTI, 2007, p. 85) O autor oferece uma fonte instigante acerca das impresses de Rosa sobre a Ditadura Militar no Brasil. A citao exposta a seguir consta em carta indita do escritor sua tradutora americana, Harriet de Ons, e versa sobre o grande movimento cvico-militar que livrou o Brasil de Joo Goulart e seus perigosos agitadores:

17

possvel perceber esse descompromisso especialmente nas estrias, j que este trabalho no leva em conta os textos que compem Ave, Palavra, livro em que podem ser encontrados, alm de fragmentos de dirios e um grande nmero de poemas, algumas reflexes de Guimares Rosa sobre eventos que marcaram seu tempo, como a Segunda Guerra Mundial e a morte de John Kennedy. 18 Cadernos em que Guimares Rosa fazia anotaes sobre suas leituras e seu cotidiano, estudava as estruturas das palavras, anotava frases e expresses que seriam posteriormente utilizadas etc. 19 Antnio Feliciano de Castilho, escritor portugus filiado ao Romantismo. 20 EO-018, p. 209. 21 Talvez isto indique, como notou a professora Telma Fernandes durante a defesa deste trabalho, que o escritor no se interessava por um modo especfico de fazer e pensar poltica.

20

E como a Senhora ter acompanhado pelos jornais o grande movimento cvico-militar que nos livrou de J. Goulart e seus perigosos agitadores se desenrolava aqui... Duas coisas me confortam, imensamente, no momento. Sua esplndida performance com o nosso The Little... Donkey. E o fato de a rebelio contra o Governo ter partido do nosso Estado de Minas Gerais, e as tropas que se arrojaram, rpidas e disciplinadas, maciamente, contra o Rio de Janeiro, foram as de Minas: descendo das montanhas, a nossa gente do serto, do Grande Serto, das Backlands. (ROSA apud VIOTTI, 2005, p. 85)

Pode-se perceber nessa citao a grande satisfao de Guimares Rosa diante da tomada de poder pelos militares e mesmo o orgulho pelo fato de a rebelio ter partido do estado onde nascera, Minas Gerais 22. H ainda uma passagem de carta sua ao tradutor italiano em que se refere com certo apreo ao regime militar no Brasil:Desde sua carta, ltima, amiga, boa, data de 12 de maro [de 1964], muita coisa houve, alm do nacional movimento. (...) no dia 3, quando maiores eram aqui a atmosfera militar e o entusiasmo patritico, chegou-me outro telegrama deles [dos editores italianos]... (ROSA & BIZZARRI, 2003. p. 148-149)

As citaes acima fazem parecer que o prprio Guimares Rosa compartilhava desse entusiasmo patritico. De acordo com Viotti,Tais comentrios de Rosa, absolutamente espontneos, revelam como para alm dos compromissos protocolares do Itamaraty, sua adeso ao golpe de 1964 d-se principalmente por simpatia pessoal ao movimento (ou antipatia ao governo Jango), posicionamento direita que lhe ser cobrado em anos posteriores pela intelectualidade brasileira e at mesmo fora do Brasil. (VIOTTI, 2007, p. 86)

Para Viotti, no se deve depreender a partir dessas citaes que o escritor nutria grande interesse por assuntos polticos ou que era um intelectual de direita. Segundo o estudioso, mesmo a simpatia de Rosa ao golpe se assemelharia mais omisso que adeso. No fcil concordar com o autor, pois o pensamento de Rosa parece bastante ambguo: por

22

Em 13 de maro de 1964, Joo Goulart anuncia as reformas de base e apresenta o plano que envolvia mudanas radicais nas estruturas agrria, econmica e educacional do Brasil. Em 19 de maro, a Marcha da famlia com Deus pela liberdade arrasta milhares de pessoas em protesto contra Jango pelas ruas de So Paulo. Em 31 de maro de 1964, tropas de Minas Gerais e de So Paulo saem s ruas. Com vistas a evitar uma guerra civil, Jango deixa o Brasil e se exila no Uruguai.

21

vezes, despreza os assuntos de Estado; noutros momentos, defende ou ataca certos personagens histricos. Com efeito, em entrevista a Gnter Lorenz, Rosa afirmou: A poltica desumana porque d ao homem o mesmo valor que uma vrgula em uma conta. Eu no sou um homem poltico, justamente porque amo o homem. Deveramos abolir a poltica (ROSA apud LORENZ, 1973, p. 333). No Seminrio Internacional Guimares Rosa: Cinqenta anos de Grande Serto: Veredas e Corpo de Baile, por sua vez, o crtico literrio Antonio Candido lembrou uma conversa que teve com Rosa em 1966, quando o escritor mineiro lhe disse que o problema social um falso problema, o nico problema real saber se Deus existe (ROSA apud VIOTTI, 2006, p. 111). Benedito Nunes, no mesmo seminrio, lembrou outra frase de Rosa acerca de suas reais preocupaes: Eu trocaria toda a minha obra por um segundo de certeza quanto imortalidade da alma (ROSA apud VIOTTI, 2006, p. 111). Ora, sabe-se da importncia que o autor dava a seus escritos: para ele, literatura e vida eram uma coisa s. No obstante, ele trocaria tudo que havia escrito pela certeza de que a alma no morre com o corpo: esta seria a nica forma de saber, ainda em vida, que o homem tem acesso eternidade. Esse apelo soberanamente mstico aliado a uma aparente despreocupao social se desfaz, no entanto, em textos menos conhecidos, tais como aqueles que constituem os Dirios de Caa arquivados pelo IEB. Num deles, o narrador encontra uma menina pobre no caminho da caada e no consegue deixar de se preocupar com sua situao econmica:Provavelmente sonhava com um vestido novo, bordado de rendas, todo corde-rosa e macio como o seu corpinho inocente. Olhei para os farrapos que cobriam a carne branca e tive uma imagem sbita, fulgurante do meu pas. O destino dessa criana era, na certa, nunca atingir a adolescncia caso sobrevivesse s molstias, subnutrio e falta de higiene, vegetaria uma existncia marginal, cheia de privaes, pobrezinha e annima como a flor silvestre do serto goiano. 23

O narrador do texto chega a prometer uma boneca para a menina miservel, mas a criana desconhece o significado da palavra boneca, fato que abala o caador sobremaneira:Guardei na retina os traos da menina pobre. Nunca vira uma boneca: isto no me parecia to grave como desconhecer o sentido da palavra. Lembrei-

23

DIRIO DE CAA, I - Julho de 1957 (Cx 14, 12.5, p. 16).

22

me de minha filha, Regina, rodeada de bonecas inglesas, francesas, italianas, espanholas, alems, portuguesas e brasileiras. Confesso que tive vergonha. 24

Este texto mostra, sem dvida, um Guimares Rosa muito mais realista que aquele geralmente estudado. Neste Dirio de Caa, que parece guardar um misto de narrativa ficcional em germe e anotaes baseadas em caadas empreendidas pelo escritor, surge um sentimento de culpa bastante aterrador, que pode ser conferido ao prprio diplomata Guimares Rosa. O sertanejo de Cordisburgo, ao se transportar para um mundo de privilgios, se afastou das reais mazelas do Brasil, a despeito de manter seu encanto pelo saber oral perpetuado pela populao pobre e iletrada do pas. Apesar dessas fissuras na forma e na temtica geralmente trabalhada pelo escritor mineiro, Rosa reconhece o pendor mstico ou metafsico (...) como motor principal das suas invenes (ROSENFIELD, 2006, p. 48). Sobre este assunto, j clssica tambm a listagem do autor sobre os aspectos prioritrios de sua obra, em que ele afirma como apreo de essncia e acentuao, assim gostaria de consider-los: a) cenrio e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafsico-religioso: 4 pontos. (ROSA, 2003a, p. 86-91). A leitura de seus estudos para a obra permite encontrar um esclarecimento sobre a inspirao desta listagem, que remete ao mtodo defendido por So Toms de Aquino para a compreenso do Antigo Testamento:Saint Thomas, auquel il faut toujour en revenir pour bien comprendre la pense de Dante, explique fort clairement que les livres de lAncien Testament doivent tre interprts de quatre manires differentes: dabbord quant au sens historique ou litteral; puis au sense alegorique, em tant que les faits a complis sous lancienne alliance sont la figure de ceux qui devaient saccomplir sur la nouvelle; du sens moral, car de ces faits se dgage une lon ou nous puvons voir trac notre devoir; enfin um sens anagogique dans la mesure ou ces faits peuvent nous rvelr quelque mystre de la glorie eternelle25.

24 25

DIRIO DE CAA, IV (Cx 14, 12.4, p. 12). Traduo nossa: So Toms, a quem preciso sempre recorrer para compreender o pensamento de Dante, explica muito claramente que os livros do Antigo Testamento deveriam ser interpretados de quatro maneiras diferentes: por um lado, sob o ponto de vista histrico ou literal; depois sob o senso alegrico, j que os fatos ligados antiga aliana so a imagem daqueles que iriam ocorrer na nova; sob o ponto de vista moral, pois destes fatos se extrai uma lio em que podemos ver traado o nosso dever; enfim, um senso anaggico, na medida em que esses fatos podem nos revelar algum mistrio da glria eterna. EO-018, p. 189.

23

possvel que este trecho transcrito em francs seja uma citao de algum estudioso de Dante, embora Guimares Rosa no tenha esclarecido a autoria da passagem. Com efeito, posteriormente o mesmo recorte datiloscrito afirma que um texto doit donner lieux au moins quatre interprtations: littrale, allgorique, morale et anagogique cette dernire honre par lui (Dante) 26. Ainda sobre as preocupaes mais ntimas de Guimares Rosa, h um comentrio exemplar de Antonio Callado acerca de algo que ocorreu quando o jornalista carioca e Guimares Rosa passavam uma temporada em Bogot e se desenrolou o levante civil de 1948, conhecido como El Bogotazo (provocado pelo assassinato do lder liberal Jorge Elicer Gaitn). Guimares Rosa teria desaparecido neste perodo. Ao reencontr-lo, Callado teria tecido com o escritor mineiro o seguinte dilogo:Quando ele reapareceu, eu disse: Puxa, Rosa! Onde que voc andou? E ele me respondeu: Estava todo o tempo na residncia do embaixador. A casa ficava no bairro mais chique de Bogot, era enorme e tinha um parque imenso. Mas voc no viu o que aconteceu em Bogot? Puxa, parecia a histria de Augusto Matraga, de tanto que mataram gente... Isso aconteceu no meio da rua, o tempo todo! Foi ento que ele me disse: Ora, Callado, o que tenho que escrever j est tudo aqui na minha cabea. No preciso ver coisa alguma (...). Mas Rosa, olha, eu garanto que voc ficaria impressionado. Foi um espetculo terrvel... O que voc fez durante todos esses dias? Ele disse: Eu reli o Proust. Vejam s! (...) Ignorou a cidade que pegava fogo porque j tinha todas as guerras de que precisava dentro da cabea.27

Como afirmar o engajamento poltico de Guimares Rosa diante de atitudes como essa? O escritor que literalmente se fecha no mundo de luxo e erudio da casa do embaixador em Bogot pode parecer nesta passagem um egosta que nutre interesse pelas coisas mundanas apenas quando elas servem como base para a confeco de seus livros. Essa impresso, no entanto, no deve ser levada a ferro e fogo. Mais frente essa pesquisa apresentar indcios de que o engajamento de Rosa se d no campo da literatura continua no sendo um engajamento poltico, mas a maneira que o autor encontra de servir ao homem e s causas que julga serem justas.

26

Deve dar lugar ao menos a quatro interpretaes: literal, alegrica, moral e anaggica essa ltima honrada por ele (Dante). Traduo nossa. EO-018, p. 185, recorte datiloscrito sem referncia autoria. 27 O presente depoimento de Callado pertence seguinte obra: CALLADO, Antonio. 3 Antnios e 1 Jobim. Depoimentos de Antonio Callado, Antonio Candido e Tom Jobim. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1995, p. 8182. Cf. Cadernos de Literatura Brasileira. Joo Guimares Rosa. Instituto Moreira Salles. So Paulo, n. 20-21, dez. 2006, p. 24-25.

24

O editorial do Jornal do Brasil publicado em 21 de novembro de 1967 (dois dias aps a morte de Guimares Rosa) dava conta dessa especificidade da obra rosiana:Ao contrrio da maioria dos grandes escritores contemporneos, Guimares Rosa era singularmente no-engajado. Das duas grandes fontes da filosofia ocidental Aristteles e Plato era pelo platonismo, pelo neoplatonismo, pelos msticos, pelos contemplativos. No prtico do seu ltimo livro, Tutamia, Rosa respondeu aos que lhe cobravam engajamento dizendo que a estria contra a Histria, isto , a arte do escritor no se deve preocupar com o contingente, com as paixes do seu tempo. Deve procurar inserir-se na eternidade. Isso no significa, muito ao contrrio, que sua extraordinria obra (...) seja um exerccio de esttica.28

Para compreender a importncia que o autor dava sua obra e lngua brasileira, til conhecer este trecho da entrevista concedida a Gnter Lorenz:Cada lngua guarda em si uma verdade que no pode ser traduzida. Sem que eu conhea a Alemanha, a lngua alem me mostra o que poderiam ter sido os alemes, se no tivessem esquecido a intimidade de Goethe com a metafsica da lngua. Mas, quando se conhecem os alemes, o despertar triste. Entretanto, esta experincia pessoal no diz nada contra a sabedoria de Goethe, mas sim contra os alemes modernos. Com Dostoievski e a Rssia ocorre exatamente o mesmo. Amo a lngua russa, a lngua da alma, e tampouco Dostoievski responsvel pelo atual estado da alma russa. Mas minha lngua brasileira a lngua do homem de amanh, depois de sua purificao. Por isso devo purificar minha lngua. Minha lngua, espero que por este sermo voc tenha notado, a arma com a qual defendo a dignidade do homem29.

Essa fala de Guimares Rosa aponta para um sentido oculto na linguagem: ela seria capaz de modificar os homens. A lngua pode dar origem a uma nova espcie de homem. Cada idioma falado pode fazer nascer uma nova espcie de nao, e as caractersticas da lngua devem se refletir nos falantes. Quando a lngua superior queles que a falam, os falantes deixam de incorporar as caractersticas do idioma s suas vidas e isso se reflete na histria das naes. No obstante, a lngua purificada a nica que pode ser falada pelo homem purificado, este brasileiro do amanh 30. Defender a lngua brasileira (Guimares Rosa28

Editorial transcrito para o livro lanado pela Editora Jos Olympio Em memria de Joo Guimares Rosa, que trazia depoimentos de diversas figuras pblicas acerca da obra do escritor mineiro (1968, p. 155). 29 possvel, considerando o contexto histrico (a entrevista foi concedida em 1965), que Guimares esteja se referindo a acontecimentos recentes nas histrias de ambos os pases ao Terceiro Reich e ditadura comunista na Alemanha e na Rssia ao dizer que a alma de cada um desses pases inferior sua riqueza lingustica. (Cf. ROSA apud LORENZ, 1973, p. 344). 30 possvel identificar aqui uma miscelnea de aspectos ideolgicos, inclusive certa proximidade com o Movimento Verde-Amarelo composto pelos membros mais conservadores do Modernismo brasileiro,

25

no se refere lngua portuguesa) defender, segundo o escritor mineiro, a dignidade do homem brasileiro.

Cassiano Ricardo, Plnio Salgado e Menotti Del Picchia, que defendiam que o Brasil deveria eliminar toda a influncia europeia de sua cultura com vistas a encontrar sua verdadeira identidade. Sabe-se que Guimares Rosa admirava Menotti Del Picchia, pois escreveu apresentao elogiosa ao romance Salom (Cf. PICCHIA, Menotti Del. Salom. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editor, 1974). Menotti Del Picchia integrava o Movimento Bandeira que tinha, entre outros objetivos, o de combater os extremismos de direita e de esquerda (no entanto, os intelectuais que o compunham no seguiam esse discurso: defendiam, geralmente, aquilo que viria a se tornar a poltica autoritria de Getlio Vargas). Cabe ressaltar que a poltica cultural do Estado Novo, na tentativa de forjar uma identidade para a nao, procurava valorizar e resguardar a cultura popular e, ao mesmo tempo, estiliz-la. Talvez seja possvel perceber, em Guimares Rosa, traos desse pensamento, na medida em que valoriza arcasmos e o modo de falar do povo interiorano, modificando-o de a partir de sua erudio.

26

2.2 - Estria contra Histria: o ficcional e o verossmil em Guimares Rosa

Sobre o serto no se podia fazer literatura do tipo corrente, mas apenas escrever lendas, contos, confisses. (Guimares Rosa)

Desde Herdoto e Tucdides, at meados do sculo XVI, os historiadores se dedicaram majoritariamente ao estudo de tempos recentes, sempre partindo de observaes feitas por eles prprios ou de testemunhos coletados. A histria era ento narrao do que havia acontecido. Segundo Pomian, somente a partir do sculo XVI, quando a histria se estabeleceu como disciplina na Frana 31, os historiadores passaram a privilegiar a reconstituio do passado atravs de documentos32. Neste perodo predominava a histria poltica, na qual os grandes personagens apareciam como exemplos para aqueles que se interessavam pela arte de governar. A histria j tinha nesse momento funes polticas, morais e de entretenimento. A retrica e os efeitos estticos eram valorizados na escrita do historiador quando foi possvel distinguir dois caminhos diferentes na disciplina: o primeiro levou narrao, criando a histria-arte, e o segundo levou pesquisa, e histria-cincia (POMIAN apud CADIOU, 2007, p.47). As relaes entre Histria e Literatura existem desde a Antiguidade, quando mito e narrativas histricas pouco se diferenciavam. No entanto, com o tempo essas relaes foram relegadas a segundo plano, especialmente no sculo XIX (quando a Histria se institucionalizou como Cincia), e voltaram a se tornar mais fortes apenas a partir da chamada virada lingustica (liguistic turn), no final do sculo XX. A expresso que d nome a essa nova perspectiva historiogrfica foi cunhada para nomear a reviravolta no estudo das humanidades, que deixaram de ter como guia a referncia na realidade para privilegiar a maneira como ela verbalmente trabalhada. (LIMA, 2006, p. 27) Segundo Cludia Freitas de Oliveira,

31

Simultaneamente, os humanistas redescobriam historiadores gregos e latinos, e os italianos trouxeram para a Europa uma nova histria poltica. Para alguns estudiosos, somente na Alemanha do sculo XIX a dimenso institucional da profisso adquiriu suas caractersticas atuais (Cf. CADIOU et al, 2007, p. 10). 32 Houve, evidentemente, excees. Guicciardini, por exemplo, j defendia no sculo XVI o valor dos documentos como fontes histricas e os utilizou fartamente em sua Storia d'Italia. Cf. BIGNOTTO, 2006, p. 4953.

27

Durante o sculo XIX, o lugar que a Literatura ocupava na produo do conhecimento histrico era secundrio e complementar. Secundrio porque a prioridade dada ao historiador em relao aos registros deixados pelos indivduos do passado estava nos documentos confiveis (leia-se, oficiais). Complementar, porque na no disponibilidade destes, restava-lhe recorrer a outros registros. Mesmo se valendo da literatura, o historiador via esta linguagem com certa desconfiana, j que por ter um carter essencialmente fictcio, ela no continha a veracidade que tanto objetivava em suas evidncias. Nesse sentido, o significado que dar o historiador positivista literatura ser o de fonte. Ela vista apenas como documento. (OLIVEIRA, 2003, p. 82).

A literatura, at ento, era tratada predominantemente (principalmente a partir do advento da Escola dos Annales) como fonte. Com o surgimento da virada lingstica, o contedo narrativo da prpria forma como se escreve a Histria passou a ser problematizado. Peter Burke esclarece que, na dcada de 1990, a narrativa histrica tema de pelo menos dois debates:Em primeiro lugar, h a conhecida e longa campanha de oposio queles que afirmam, como Braudel, que os historiadores deveriam considerar as estruturas mais seriamente que os acontecimentos, e aqueles que continuam a acreditar que a funo do historiador contar uma histria. (BURKE, 1992, p. 330)

Consolida-se ento uma discusso sobre a narrativa, sobre sua presena (ou ausncia) na escrita do historiador e as implicaes da advindas. Enquanto alguns defendiam a volta da narrativa, outros declaravam que ela nunca desapareceu; havia ainda quem a tratasse com desdm, no admitindo a validade de sua existncia na escrita da histria, e quem a compreendesse como um discurso cujo princpio de realidade no era maior que o do discurso ficcional. preciso salientar, no entanto, que a maior querela se deu entre os seguidores dos Annales e os integrantes da escola narrativista norte-americana. Nesta discusso esto inseridos historiadores como Lawrence Stone, Hayden White e Carlo Ginzburg, bem como o filsofo Paul Ricoeur, que explica:[...] antes do desenvolvimento da narratologia na esfera da lingstica e da semitica, a narrativa tida como uma forma primitiva de discurso, ao mesmo tempo muito ligada tradio, lenda, ao folclore e finalmente ao mito, e muito pouco elaborada para ser digna de fazer os mltiplos testes que marcam o corte epistemolgico entre a histria moderna e a histria tradicional. (RICOEUR, 2008, p.251)

28

Talvez o nome mais eminente e polmico deste debate seja o de Hayden White, cujas ideias conferiram maior densidade ao problema da aproximao entre a Histria e a Literatura. Cludia Freitas de Oliveira, em Linguagens da Histria, tenta traar um rpido panorama do pensamento de White. De acordo com a estudiosa, White atribui Histria um teor irrefutavelmente ficcional: a narrativa histrica narrativa literria. Nessa perspectiva, a Histria seria muito mais arte que cincia. (OLIVEIRA, 2003, p. 85) Com efeito, White afirma em Teoria Literria e Escrita da Histria que todas as histrias so fices. O que significa, claro, que elas s podem ser verdadeiras num sentido metafrico e no sentido em que uma figura de linguagem pode ser verdadeira (WHITE, 1994, p. 30). Evidentemente, este posicionamento de White gerou celeuma entre os historiadores que acreditam no princpio de realidade e na histria como narrao, interpretao ou explicao daquilo que efetivamente aconteceu. Sem deixar de considerar a relevncia do pensamento de Hayden White que suscitou novas discusses em torno do modo como se escreve a histria e chamou a ateno dos historiadores para a necessidade de uma escrita mais consciente esta pesquisa se inclina na direo da perspectiva de Ginzburg, que declara:Hoje a insistncia na dimenso narrativa da historiografia (de qualquer historiografia, ainda que em diferente medida) se faz acompanhar (...) de atitudes relativistas que tendem a anular de fato qualquer distino entre fico e histria, entre narraes fantsticas e narraes com pretenso de verdade. Contra essas tendncias, ressalte-se, ao contrrio, que uma maior conscincia da dimenso narrativa no implica uma acentuao das possibilidades cognoscitivas da historiografia, mas, ao contrrio, sua intensificao. (GINZBURG, 2007, p. 329)

Depois da exposio deste pequeno quadro acerca das discusses que envolvem Histria e Fico, necessrio explicar que o presente trabalho no se dar no nvel mais abstrato deste debate. A tentativa aqui empreendida no ser a de perscrutar o quanto h de ficcional na narrativa historiogrfica: o objetivo compreender, inicialmente, qual era a cultura histrica de Guimares Rosa e de que forma ela aparece em sua obra. Embora no fosse seu propsito, Guimares Rosa acabou dando muito relevo em sua obra Histria (mais especificamente a certos aspectos da teoria e da filosofia da Histria), bem como s categorias mais caras aos historiadores, o Tempo e a Memria.

29

A literatura rosiana incorporou caractersticas do mito, da lenda e do folclore que acabaram sendo relegadas no s pela historiografia, mas tambm por boa parte dos romancistas modernos. Os contos de Rosa parecem trazer de volta essas narrativas que ficaram bastante abandonadas nos sculos XIX e XX: as estrias33 reunidas em Primeiras Estrias e Tutamia Terceiras Estrias encaminham a pensar nessa direo. Como j foi mencionado, Tutamia possui quatro prefcios que versam sobre a profisso de f do escritor. Um deles, intitulado Aletria e Hermenutica, esclarece o motivo do uso do neologismo estria no lugar da palavra histria. L, o autor explica: A estria no quer ser histria. A estria, em rigor, deve ser contra a Histria (ROSA, 1967b, p. 3). Segundo Gilca Machado Seidinger,A esse respeito, escreveu Rosa para Franklin de Oliveira, que lhe reprovara a abertura bombstica, sob o argumento de que o escritor seria tachado de esotrico ou alienado: E, pois, mudando de prosa: / o A estria contra a Histria, / voc, perjuro de Glria, / acho que no entendeu. / Histria, ali, o fato passado / em reles concatenao; / no se refere ao avano da dialtica, em futuro, / na vastido da amplido. / Trao e abrao. Joo (OLIVEIRA apud SEIDINGER, 2007, p. 382).

Assim, Guimares Rosa explica que o que renega a mera narrao de acontecimentos passados (bastante comum na histria hodiernamente chamada de positivista), em detrimento do que poderia haver de relevante no conhecimento derivado deles. Seria instigante lembrar uma citao de Mircea Eliade que parece se adequar bastante ao pensamento rosiano e elucidar as possveis causas dessa querela contra a Histria:[...] justifica-se, nessa depreciao da histria (isto , dos eventos destitudos de modelos trans-histricos), e nessa rejeio do tempo profano, contnuo, a leitura de certa valorizao metafsica da existncia humana (ELIADE, 2004, p. 7).

No entanto, antes de tratar do destaque concedido por Guimares Rosa aos assuntos transcendentes, preciso apresentar um autor que foi importante para a compreenso da tensa relao entre Histria, poesia e literatura ficcional: o crtico literrio Luiz Costa Lima, que, ao33

De acordo com o Dicionrio Houaiss, o primeiro registro do termo estria remete ao sculo XIII, enquanto sua variao, histria, s surge no sculo XIV. Enquanto a estria se refere narrativa de cunho popular e tradicional, a histria j se vinculava a pesquisa, informao, relato. Deste modo, o termo cunhado por Guimares Rosa no deve ser considerado como um neologismo derivado do ingls (story/history), mas como a retomada de um arcasmo.

30

falar em seu livro Histria. Fico. Literatura. sobre o incio da profissionalizao do historiador, recordou que havia no sculo XIX uma concepo empiricista e documentalista do mtier. A cincia histrica de ento tentava fugir da Filosofia da Histria atravs do escamoteio das teorizaes e, consequentemente, pretendeu abolir de sua constituio a metafsica. Costa Lima sublinha ainda que essa busca pela verdade empreendida pelos historiadores do sculo XIX possua precedente, visto que desde Hertodo e, sobretudo, Tucdides, a escrita da histria tem por aporia a verdade do que houve. Se se lhe retira essa prerrogativa, ela perde sua funo (LIMA, 2006, p.21). O autor cita a valiosa passagem de Aristteles em que o filsofo grego, ao se debruar sobre os contrastes entre o poeta e o historiador, afirmou[...] que o papel do poeta dizer no o que houve realmente, mas o que poderia haver, segundo a origem do verossmil ou do necessrio. Pois a diferena entre o historiador e o poeta no resulta de que um se exprima em verso e o outro em poesia (poder-se-ia versificar a obra de Herdoto, no seria menos uma histria em verso do que em prosa); mas a diferena est em que um diz o que sucedeu, o outro, o que poderia suceder; por essa razo a poesia mais filosfica e mais nobre que a histria: a poesia trata do geral, a histria, do particular. (ARISTTELES apud LIMA, 2006, p. 282)

Guimares Rosa parece concordar com esse pensamento de Aristteles. Para ele, a poesia est acima da Histria (ao menos acima daquela Histria que se guia pela lgica cartesiana e que cortou o cordo umbilical com a metafsica). O autor explica ao tradutor alemo, por exemplo, que em sua obra o plano concreto, documental, o terra-a-terra serve apenas como pretexto para o que realmente importa: a poesia e a metafsica:Sempre que estiver em dvida, jogue o sentido da frase para cima, o mais alto possvel. Quase em cada frase, o sovrassenso 34 avante soluo potica ou metafsica. O terra-a-terra s serve como pretexto (ROSA & MEYER-CLASON, 2003, p. 259).

A partir daqui, possvel comear a vislumbrar os motivos que levaram o autor a afirmar que suas estrias deveriam ser contra a histria e mesmo contra a Histria, com H maisculo, a cincia dos historiadores. Ora, o fato de ser contra algo pressupe o conhecimento do objeto contra o qual o sujeito se interpe. Ento, antes de aprofundar a34

Sovrassenso: sens superpos (senso superposto). EO-018, p. 185

31

indagao sobre o motivo de o autor se colocar contra a Histria, necessrio fazer a seguinte pergunta: qual era a concepo de Histria de Joo Guimares Rosa? A resposta a essa indagao no surge sem que haja algum esforo, mas h indicaes que podem colaborar com a busca. Na biblioteca de Rosa, por exemplo, possvel observar grande nmero de ttulos sobre histria da Europa, do Brasil e de Minas Gerais, mas poucos livros escritos por autores que se dedicaram filosofia da Histria. No entanto, como assinalou Suzi S