CRÔNICAS DO ENSINO BÁSICO -...

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CRÔNICAS DO ENSINO BÁSICO

Sumário

5 Agradecimentos

6 Editorial

9 Escreva também!

11 B. Eduardo Girotto

14 __________, outubro de 2009 Vitor Machado

17 Daniela Renato Pugliese

19 Da América Latina num disco voador Caio da Silveira

22 Quando a escola perde Malton Andrade

24 Um professor “sincero” demais Eduardo Girotto

27 Ela e Ele Fabrício Seixas

29 Tatuagem do PCC Renato Pugliese

Agradecimentos

Colaboraram para o surgimento desta revista, nas mais variadas formas (no trabalho escolar, nas salas de aula, na escrita e na revisão dos textos, na diagramação e na criação da arte, nas mesas de bar, nos churrascos e nas confraternizações) as seguintes pessoas:

Alan Ribeiro, Arlete Neves, Caio da Silveira, Eduardo Girotto, Gildo Girotto, Leandro Torelli, Magali Rosa, Malton Andrade, Marcia Dalberto, Paula Correia, Priscila Figueredo, Rafael Marcon, Rosiany Augusto e Vitor Machado.

Capa e diagramação: Rafael Marcon

Editor: Renato Pugliese

Impressão: 3Torres Gráfica Rápida

Contato e outras informações: www.cdeb.pro.br

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Editorial.1.CdEB

É com imenso prazer que escrevo esse primeiro editorial da revista Crônicas do Ensino Básico (CdEB), uma publicação que trará textos literários escritos por professores do ensino básico a partir de sua vivência em sala de aula, do cotidiano, das alegrias e das tristezas.

Quem é professor sabe: é na mesa de bar, nos chur-rascos e nas confraternizações que envolvem essa espécie de “profissional” que são conhecidas as histórias mais emocionantes, mais absurdas e mais trágicas, porém as que melhor descrevem o dia a dia de nossa atuação. Na escola todos somos sujeitos: professores, estudantes, demais funcionários e comunidade. Dentre esses não há objeto. O que vivemos dentro da instituição não se apaga jamais.

A ideia da revista surgiu após dezenas de colegas professores aceitarem meu convite para escreverem causos contados e discutidos em situações extra-escolar, em especial quando a razão profissional está parcial ou totalmente substituída pela emoção informal. Este pri-meiro número, experimental, conta com oito crônicas.

Os professores Malton Andrade, Vitor Machado e Eduardo Girotto narram situações que beiram a tragédia, enquanto o professor Caio da Silveira, o Fabrício Seixas e eu aliviamos a tensão com causos voltados para a gratifi-cação, a motivação e a troca de emoções.

Estimo que a periodicidade será semestral, impressa e online (www.cdeb.pro.br), contando com oito crônicas em cada número. As publicações futuras dependerão da colaboração e do envio de textos por mais professores, o que deve ocorrer com suficiência para manter essa quantidade mínima de publicações, visto que histórias para contar não faltam. Aliás, essas crônicas podem ser entendidas como istórias, sem agá, como sugestão

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do Millôr Fernandes, ou como causos, dos que são contados pelo Rolando Boldrin.

PS1: O título é só uma provocação. Vai ter copa e não vai ter aula.

PS2: Os causos transcendem a situação.

Renato PuglieseJunho de 2014

Escreva também!

A previsão de publicação dos próximos números da revista CdEB é para os meses de Dezembro/14 e Junho/15.

Caso você seja ou já foi professor e queira narrar, de forma livre e poética, alguma situação vivida ou conhecida, visite nossa página na web (www.cdeb.pro.br) e escreva para [email protected] que entraremos em contato.

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B.1Eduardo Girotto

1 Publicado originalmente no blog Geogirotto: http://geogirotto.webnode.com/

Aqueles que falam da miséria do mundo sem com-preendê-la deveriam se calar.

Conheci B. em uma escola municipal do Jardim Bancário, Zona Leste de São Paulo. Fazia calor naquela noite. Era o meu primeiro ano como professor de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A turma da sexta série tinha cerca de 40 alunos, muitos deles jovens, com pou-co mais de 16 anos. Agora já não são apenas senhores e senhoras que voltam aos estudos depois de muito tempo. São jovens que, excluídos do ensino fundamental, bus-cam as turmas de EJA. Muitos deles estão em liberdade assistida, motivo pelo qual não conseguiram terminar o Ensino Fundamental na idade adequada.

B. é um desses jovens. No fundo da sala, ele conversa com outros amigos, enquanto tento explicar os fluxos migratórios ocorridos no Brasil nas últimas décadas. Muitos dos que estão ali na sala fazem parte desta es-tatística de migrantes. Alguns chegaram há pouco na cidade de São Paulo e enfrentam a EJA como primeiro estágio para sobreviverem na metrópole. Não é o caso de B., que continua de costas e conversando, pouco se importando com o conteúdo da aula.

A minha pouca experiência como professor, somada a arrogância de um recém-formado me fizeram tomar uma atitude severa em relação à conversa que já não per-mitia que eu continuasse a aula. Pedi que se calasse ou teria que colocá-lo para fora.

Naquele instante, seus olhos me fitaram com uma profunda raiva. A sala toda ficou em silêncio. Senti que os alunos me olhavam e pensavam: “O que este maluco está fazendo? Será que ele não sabe com quem está fa-lando?”. De fato, não sabia. Muito tempo depois descobri

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que B. estava bastante envolvido com o tráfico de drogas na região, informação esta que teria sido muito útil al-guns instantes atrás.

Senti que não devia ter dito aquilo. Mas já não era possível voltar atrás. Optei em fazer a coisa mais sensata que todo professor faz na hora do desespero: repetir o erro. Pedi novamente que se calasse, mas antes que pu-desse terminar a frase, fui interrompido por ele, que veio em minha direção, dedo em riste, perguntando quem eu pensava que era para tratá-lo daquele jeito, se eu não per-cebia o lugar onde estava, que aquele era o seu território. Defendi-me dizendo que também vivia naquele bairro e que conhecia muito bem cada canto dele (não a ponto de saber o perigo que estava correndo). A discussão foi au-mentando, tornando-se um enfrentamento quase físico. Por sorte, a assistente de direção da escola interveio quan-do já estávamos a poucos centímetros de distância. Antes de B. ser retirado da sala, pude ouvi-lo dizer: “o senhor está morto, professor”.

Àquela noite saí da escola com a certeza de que seria a minha última como habitante do planeta Terra. Costumava ir a pé para o trabalho, pois morava a poucas quadras da escola. Tal fato apenas aumentou a minha tensão. Olhava para trás a todo o momento, esperando o desfecho fatal de minha vida tão curta. No entanto, nada aconteceu. B. não apareceu na escola por três meses e neste tempo pensei, sinceramente, que o meu problema tivesse sido resolvido.

Porém, em uma noite fria do inverno paulistano, minha aula foi interrompida novamente, agora por bati-das na porta. Era a assistente de direção com um aviso: o B. estava na porta da escola, transtornado e querendo falar comigo. Tentei dissuadi-la, dizendo que não era a pessoa mais indicada para ajudá-lo, mas foi em vão. Ele exigia falar comigo. Decidi, então, tomar coragem e ir em direção à minha morte.

Como um condenado que caminha no corredor da morte tentando aproveitar ao máximo seus últimos minutos de vida, desci as escadas da escola. Em minha cabeça passaram todas aquelas ideias das coisas que havia deixado de fazer. O mais estranho é que em deter-minado momento só conseguia pensar que precisava pa-gar a conta de telefone que venceria no dia seguinte. Que

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ironia: prestes a morrer, só conseguia pensar na coisa mais estúpida e inimaginável.

Chegando ao final da escada, pude ver a silhueta de B., que estava de costas. Fui me aproximando aos poucos, abrindo um sorriso. Naquele momento só pensava em uma coisa: quem sabe se eu fizesse uma cara amigável, tudo o que ocorrera não fosse esquecido.

De repente, ele se virou. Estava chorando. Vi um pou-co de sangue escorrendo em sua testa e logo percebi que o mesmo vinha de um ferimento do lado esquerdo da cabeça. Não tive tempo de dizer nada. Ele se aproximou e desandou a falar: “Professor, eu fiz uma besteira. Acabei de matar uma mulher. Dívida de droga. Era só para dar um susto. Agora eles vão me pegar”.

Fiquei em silêncio. Não sabia como reagir. Não é sempre que um assassino decide confessar um crime para você. Enquanto minha cabeça tentava se organizar diante daquela situação, as luzes de um carro de polí-cia que acabara de adentrar a escola me chamaram a atenção. Ao vê-la, B. me olhou. Sabia que sua vida estava em minhas mãos.

Eu precisava tomar uma atitude. Naquele instante, nenhum dos textos que li na universidade me ajudaram. Decidi então agir da forma como achava correto. Pedi que B. entrasse na escola e fomos conversar em uma sala reservada. Na periferia, poucas são às vezes em que a polícia é a solução.

Naquela noite, conseguimos entrar em contato com a mãe que há algum tempo o havia expulsado de casa depois que descobriu seu envolvimento com o tráfico. Como uma criança, B. se protegeu no colo da mãe, que também chorava. Conseguimos convencê-lo a passar al-gum tempo com familiares no interior de São Paulo até que as coisas passassem.

Reencontrei-o algum tempo depois. Estava com sua esposa. Havia se tornado meu vizinho. Não trocamos uma palavra sobre o ocorrido. Um aperto de mãos e um olhar foram suficientes para dizer tudo aquilo que tinha que ser dito.

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__________, outubro de 2009Vitor Machado

Então turma, como estávamos falando, a luz.. (rrrzz- sxtrfcssss). Pessoal, silêncio por favor. Leonardo por favor deixe a professora terminar, depois vocês conver-sam. Larissa! Ok? Guilherme... por favor. Jéssica, hoje você decidiu que não vai assistir minha aula, é isso? Desculpe professora. Então, uma pergunta para vocês sobre a luz: o planeta Terra recebe luz de quem? Dosolda-luasol... SOL! Isso, isso mesmo Tayná. Jéssica, por favor. (rrrzzsxtrfcssss). O que o Luiz disse é verdade, em uma noite de lua cheia, podemos perceber [O lobizomem]... não... rs, podemos perceber nossa sombra causada pela lua. Mas a lua, como a gente disse, é uma fonte secundária de luz. Ela reflete a luz que o SOL gera, então a principal fonte de luz do nosso planeta é o Sol. (rrrzzsxtrfcssss). E o Sol é o que? Umaestrela. Isso, uma estrela. Todo mun-do já viu uma noite estrelada? Leonardo e Jéssica vocês estão atrapalhando, não perceberam? Cada ponto... posso falar? Podeprofessoravaidesculpa. Cada ponto deste céu estrelado que vemos são estrelas, bilhões e bilhões só em nossa galáxia... e a maioria delas muito maior que o Sol. Agora uma outra pergunta: alguém aqui já esteve em uma situação na qual você não consegue ver nem a palma da mão na frente do rosto? Eudormindo eueu... hahaha. Sem ser dormindo engraçadinho. Já teve Lucas? Já. Descreve para nós como era o lugar em que você estava. (rrrzzsxtrfcssss). Pessoal, vamos ouvir o Lucas. Jéssica, eu sei que agora você parou de falar, mas poderia ir para o seu lugar, por favor? Diga lá Lucas, vamos prestar atenção. Era na casa do meu tio em Cotia, acabou a luz da cidade toda e não dava pra ver nada... mó cagaço... haha. Seé loco tio. Então, pessoal, olha só......(rrrzzsxtrfcssss). Calma... olha só... o que o Lucas falou. Quando acabou a luz... ou seja... para nós enxergarmos precisa ter uma

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coisa essencial... o que? LUZluz. Isso! Aí que vem a grande pergunta... Jéssica, eu já perdi a conta de quantas vezes chamei a sua atenção... tem certeza que você fez doze anos... que é a mais velha da sala? Não parece. Desculpa. Por favor, comporte-se... sente-se no seu lugar. Vamos lá? (rrrzzsxtrfcssss). ... ok? Olha só, a pergunta... shhhhh pes-soal... Se... Deixa a professora falar caralho! ... shhhh. Se o universo tem bilhões e bilhões de estrelas... e as estrelas soltam luz... então o universo não deveria ser claro e ilu-minado como o dia? (rsxtrfcssss) ... Ou seja. Por que que o universo é escuro? (rrrzzsxtrfcssss). pode crê (rrrzzsx-trfcssss). seilá fudeu (rrrzzsxtrfcssss). A resposta... shhh-hh... pessoal... A resposta para essa pergunta... JÉSSICA!!!! CHEGA!, eu tô tentando dar minha aula e você parece que está me desafiando... custa sentar? Vem aqui. Com licença pessoal... por favor respondam essa pergunta no caderno... discutam... que eu vou vistar depois. Já volto. Vem cá Jéssica, feche a porta por favor. O que que está acontecendo Jéssica? É um problema comigo? Você nun-ca foi assim, do dia pra noite você resolve me desafiar... eu falei com você mais de cinco vezes. Que foi? Desc... professora. Que foi Jéssica? você está chorando... tá tudo bem? Que foi? É q... hhhhh. Calma... calma Jéssica... vem cá... isso, pode abraçar... está tudo bem... ninguém aqui quer o seu mal Jéssica ... a gente fica preocupada... calma... isso. Eu não consigo professora... hhh. O que? Hhhh ss... hhhh sentar. Que foi que aconteceu? Você machucou?... calma... calma... tá tudo bem. Hhhhh não... meu padrasto professora... quando ele chega em casa e minha mãe não tá ele me obriga a d... hhhaaa. Calma... vem cá... E hoje de manhã ele forçou por trás professora... tá doendo muito, eu não consigo... desculpe... dói muito. Meu Deus!... mas isso é crime... a gente precisa fazer alguma coisa... sua mãe sabe? Hhhh sabe... mas ela disse que eu sou vaga-bunda e que quero roubar o marido dela... e ele continua cada vez mais me obrigando...

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...Nós precisamos dar um jeito nisso. O conselho tu-

telar... alguma coisa Jéssica. Vamos no hospital primeiro. Por favor professora, não fala nada pra minha mãe se não ela vai me bater... vai dizer que eu estou mentindo.

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...Não sei Jéssica... você já falou com alguém sobre

isso? Só com a Larissa. Espere aí. Vou pegar minhas coisas, e nós vamos no hospital. Fique calma, vamos ajudar você. Já volto.

... Professora! Professora! O visto!

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DanielaRenato Pugliese

Conheci a Daniela no início de 2008. Ela tinha qua-torze anos e estava no 1° ano do Ensino Médio. Eu era seu novo professor de Física. Ela sentava no fundo da sala, era magra, cabelos lisos e compridos, usava boné e camisa manga longa de flanela xadrez por sobre camisetas bran-cas. Não parecia à vontade quando de uniforme escolar. Costumava sentar-se de maneira desleixada.

Durante as primeiras aulas ela se mostrou participa-tiva, discutia e apresentava soluções de maneira clara e sincera, sem medo de errar. Eu provocava.

Num dado instante de uma aula, ainda no início do ano, ela me chamou de canto e, direta e objetivamente, indagou:

- Professor, você fuma maconha?Poxa, eu fumei durante um tempo e havia alguns

meses não fumava. Ainda assim, corei. Não sabia o que responder. Era meu primeiro ano como professor de Física numa escola da rede oficial do Estado de São Paulo e uma aluna mixuruca, atrevida, desconhecedora da vida, com quatorze anos de idade me desmontou.

Eu sorri, como quem foge à verdade com sorrisos.

“Professor! Semana passada estava com a Débora conversando sobre a Fuvest... lembramos como foi importante aquele slide que você fez em 2009 falando sobre a USP. Tenho absoluta certeza de que sem aquilo não teríamos a noção de que poderíamos passar vindo da escola pública, sendo pobre, sendo fudido etc. rs. Renato, obrigada por aquilo meu, de verdade. Passei em Geografia! Há!”

(Fevereiro de 2012)

Não podia responder que eu fumava, que exemplo seria esse? E ela olhou nos meus olhos, como quem dá dois tapinhas nas costas e disse:

- Não precisa responder, professor. Já entendi.Puta que o pariu! Quando eu tinha quatorze anos eu

era um imbecil. Não sabia diferenciar um dia nublado de um dia ensolarado. Acreditava que o inferno era um lu-gar um pouco abaixo da superfície onde as pessoas más iam sofrer após a morte. Acreditava que o Sílvio Santos era um cara legal e que o Fantástico era o programa de TV mais completo que tinha sido criado. Como pode essa menininha fazer isso comigo?

O curso continuou normalmente ao longo do ano, assim como as coisas continuam nas escolas brasileiras. No entanto, fui percebendo que a Daniela era ímpar.

No ano de 2009 ela já não era uma aluna tão partici-pativa. E eu não era um professor tão motivado. Ela já não respondia às provocações, que se tornaram cotidianas, e eu já não criava grandes euforias. Mesmo assim, por um esforço pela melhoria de qualidade na Escola Pública e pela motivação dos alunos tão desmotivados, assim como dos professores, tinha o costume de preparar uma aula especial sobre o que é uma Universidade Pública, sobre como ingressar, como viver, como conseguir bol-sas etc., e tive a oportunidade de apresentar esses temas à Daniela em 2009.

Eu nem lembrava disso.

Ao passar dos anos, após mudanças de escolas, estudos, trabalhos, relacionamentos e do envolvimen-to com a música, recebi a mensagem citada no início deste texto. O professor tem poder. Ele é foda. Ele pode mudar o mundo.

Fui tomar uma cerveja com a Daniela no fim de 2012 para comemorar seu ingresso na USP e para nos abraçarmos, após três anos sem contato. Foi uma noi-te estranha, eu estava com pressa, sem dinheiro, e ela tinha aula em seguida. Conversamos por trinta minutos. Não nos vimos mais. Nem é preciso, ela já contribuiu com a minha formação.

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Da América Latina num disco voador

Caio da Silveira

Há uns dois anos, mais ou menos, eu me peguei, novamente, na saborosa tarefa de unir os conteúdos das aulas de história à música. Eu sempre fizera isso com as turmas de ensino médio das Etecs, e desta feita resolvi tentar a mesma empreitada com uma turma de uma Etec em Santo André. Essa tarefa sempre me parecera das mais simples, afinal sendo, além de professor de história, um músico, juntar ambas as coisas era para esse que vos escreve um ato de regozijo maior.

Pois bem, em posse do meu surrado violão, no alto de seus senis quarenta e tantos anos, eu entrei na sala numa tarde qualquer com a proposta adequada para aquela aula: “turma, hoje iremos estudar as facetas peculiares da América Latina com uma pequena ajuda da música”.

De prontidão isso provocou certa euforia nos alunos, afinal para muitos seria uma aula diferente, a priori, e para outros tantos – a maioria, creio eu -, uma oportunidade de não precisar fazer muita coisa. Sendo final de semestre qualquer deixa para “relaxar” é sempre bem vinda.

Enfim, prostrei-me diante deles, sentado à cadeira com o violão no colo, e depois de uma breve explicação do que se seguiria, pus-me a tocar a singela, mas po-tente introdução de Fado Tropical, do Chico Buarque. Dali a pouco soltando a voz para acompanhar a melodia e tentando observar a reação dos alunos à minha frente, eu não podia ainda identificar se as expressões que se dirigiam a mim eram tão somente pelo fato de que seu professor estava tocando violão, o que não era lá muito comum para eles, ou se pelo fato de que os obrigava a um tipo de música que exigia um algo a mais daquilo que estavam acostumados. De qualquer maneira foram, aos

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poucos, se adequando a proposta e pareciam se encaixar melhor àquilo.

O Fado Tropical também me impunha uma certa postura musical da qual eu ainda tenho difi-culdades de reagir à altura. Sempre acostumado ao rock mais usual, compositores da envergadura de um Chico Buarque parecem me fitar do alto da montanha. Mas aguentei firme.

Finda a música, palmas e certo burburinho comum em sala de aula se seguiram. Acalmei a meninada e logo in-troduzi a canção seguinte que eu julgava mais apropriada para minha didática musical: A Palo Seco, do Belchior.

Essa canção sempre me fora especial pela maneira muito característica e cheia de energia e coração que aquele cantor cearense de longo bigode entoava. Sem contar a avassaladora força de seus versos únicos que são um pontapé na boca do estômago aos que preferem a luta e o enfrentamento a todas as mazelas sentados na poltrona zapeando os canais da TV pelo controle remoto. Eu me emocionei um pouco mais, e acho que isso ficou visível a todos. Ao final da canção mais palmas e nova falação desenfreada típica de qualquer alunado.

No entanto eu deveria, a seguir, levar a cabo a segun-da parte da tarefa que consistiria em uma atividade de reflexão sobre as canções e a questão da América Latina e tal e, por aí vai! Mas, como de certa forma eu já espera-va, não pude continuar com nada daquilo, pois os alunos queriam que eu continuasse tocando outras canções.

Pois bem, lá fui eu de novo.O que tocar? Por incrível que pareça sempre que me

proponho a tocar para muitas pessoas assim me dá um branco terrível na mente e me esqueço de tudo.

Em questão de segundos houve aquela torrente de pedidos. Toca isso, toca aquilo, toca aquilo outro. Dezenas de pedidos ao mesmo tempo e em sua maioria canções que conflitavam entre si e das quais muitas eu não tinha a menor ideia de como tocar.

De repente alguém por ali tentou por certa or-dem na casa – coisa que eu não estava conseguindo -, e propôs: “professor, toque a música que você mais gosta”. Aí facilitou para mim. Instantaneamente deslanchei, ainda sob alguma confusão, a introdução de SOS, do Raul Seixas.

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Raul era para mim o que mais importava em músi-ca. Sempre foi. SOS era minha canção favorita. Porém, até então, creio que não a havia tocado com tanta fleuma e sentimento como havia feito naquele momento. Não posso explicar isso. Aconteceu. Já havia tocado essa canção para outros tantos alunos em outros tantos mo-mentos. Mas, naquele instante ela pareceu me dominar por completo como não ocorrera em outras ocasiões.

Era como se o tempo houvesse parado.Ao terminar a canção, fui abrindo os olhos lenta-

mente, assim, como que voltando para o mundo real. O silêncio era geral. Todos me olhavam e de alguma maneira se entreolhavam. Alguns instantes e aplau-sos mais acalorados do que para as canções anteriores. Quis eu acreditar que eram para mim. No entanto, sinto que os aplausos foram para as próprias sensações e emoções que a canção em si havia neles despertado.

Algumas canções mais e o mecânico e racional sinal escolar me alertava do término da aula. Fui-me.

Dias depois, semanas talvez, fiquei sabendo através de uma das alunas presentes naquele momento que a canção do Raul fora a predileta da sala e que na aula seguinte à minha a professora fora interrompida de seus objetivos didático-pedagógicos, pois os alunos queriam lhe expressar o que haviam sentido com aquela experiên-cia e com a emblemática SOS do Raul Seixas.

Hoje, um tanto distante eu penso comigo: de fato aquele baiano arretado ainda conseguia despertar nas pessoas o que elas têm contidas dentro de si. Sendo sim-ples, porém, certeiro. Direto ao coração e à mente de quem o ouve.

Como ele escrevera no refrão: “ô, ô seu moço do disco voador, me leve com você pra onde você for...” , acredito que fui nesse tal disco voador para algum lugar espe-cial naquele dia distinto e, pelo menos, alguns dos meus alunos também devem ter ido comigo. Seja para onde quer que esse disco tenha ido.

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Quando a escola perdeMalton Andrade

Em 2004 iniciava meu percurso como professor de uma escola pública, a Escola Estadual Oswaldo Catalano, lecionando Geografia no período noturno. Já no primeiro dia de aula notei uma menina loira, linda, que passava pelo corredor da escola torcendo os pescoços da massa masculina, e também da feminina, admirada. Os cabelos balançando, o olhar, o sorriso, o vermelho nos lábios. Ini-cialmente me encantei pela beleza dela e, coincidente-mente, ao entrar numa sala de primeiro ano do ensino médio lá estava ela como minha aluna.

Lembro-me de ser uma jovem bastante ativa e de alguma forma popular, participativa e interada, dessas que conversam com todos os professores, com todos os estudantes, com inspetores e com quem quer que seja sem medo de ser feliz.

Contudo, depois de um curto espaço de tempo, uns meses talvez, aquela menina não estava mais na escola. Não soube na época o que havia acontecido, o que é bas-tante normal, pois nós professores temos tantas classes para lecionar, tantos alunos, tantas alunas, que muitas vezes nos perdemos e nem damos falta de um ou outro ausente há boas semanas.

Cumprindo a função de vice-diretor da mesma es-cola alguns anos depois, e responsável por uma série de atividades, precisei contratar os serviços de um chaveiro, e soube de um que tinha sua oficina no mesmo bairro, próximo dessa unidade escolar. Após contatá-lo pessoal-mente, ele acompanhou-me para ver o serviço mas, no caminho até a escola disse que não gostava de passar por lá, que ao vê-la ficava muito triste, que esta escola não lhe trazia boas lembranças.

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Curioso, eu lhe perguntei por que. Ele me disse, com os olhos encharcados de lágrimas, que “perdeu” sua filha naquela escola, explicando que no período em que ela es-tudou ali se envolveu com outro aluno e acabou entran-do no famigerado mundo das drogas.

Era a menina de que me lembrava em 2004, enten-dendo então o motivo de seu sumiço.

O pai disse que ela saiu da escola e que vivia em clínicas de reabilitação. Disse ainda que foi até esfaquea-do pela filha, por não querer sustentá-la no vício. Ele não culpava diretamente a escola, mas percebia-se naquele homem uma profunda tristeza ao falar e lembrar da in-stituição escolar. A tristeza do pai que perdeu sua filha.

Encontrei-me com ela e seu filho (talvez um de vários) na mesma escola tempos depois, num dia em que a unidade estava servindo para o serviço eleitoral. Parei um pouco, como quando o tempo para, e me veio a lembrança daquela linda loirinha do corredor. Fiquei a imaginar o que a vida nos reserva. Desejei-lhe boa sorte. É só o que imaginei poder fazer.

Às vezes a sociedade perde.Às vezes a escola perde.Nós perdemos.

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Um professor “sincero” demais 1Eduardo Girotto

1 Publicado originalmente no blog Geogirotto: http://geogirotto.webnode.com/

Trabalhar com alunos do Ensino Médio é um de-safio e tanto para qualquer professor. Nesta idade, os estudantes encontram-se no limiar entre a vida adulta, repleta de compromissos e responsabilidades e a infân-cia. A escola representa ainda um mundo à parte que os esconde dos reais problemas que terão que enfrentar no decorrer da vida. Quando se dão conta disso, o tempo pas-sou e estão no último ano do Ensino Médio. Logo já não terão a escola e os professores para lhes protegerem. E com isso, inúmeras angústias aparecem.

Portanto, ser professor no Ensino Médio pressupõe saber lidar com estes sujeitos, ora cheios de si, ora inde-cisos, inseguros e incapazes de assumir qualquer tipo de responsabilidade. Vivendo sempre diante desta duali-dade, o professor precisa estar atento à sua ação para não cometer equívocos imperdoáveis.

Em 2007, assumi 10 turmas do Ensino Médio em uma escola pública no município de São Caetano do Sul. De repente, deparei-me com a responsabilidade de ensinar geografia para 300 jovens, muitos deles maiores do que eu. Confesso que, de início, tive medo diante da colossal tarefa a qual fui submetido, mas aos poucos o medo foi passando e consegui desenvolver meu trabalho.

Vale ressaltar que os alunos ajudaram muito nes-sa tarefa. Eram extremamente dedicados e inteligentes. Participavam das aulas, questionavam, interagiam. Apesar de dar 30 aulas por semana, para 300 alunos do 3º ano do Ensino Médio, nunca terminava a sema-na triste. Sentia-me cada vez mais instigado a entrar nas salas e discutir com aqueles alunos coisas sobre o mundo em que vivíamos.

2007 foi, de fato, um ano especial. E tinha tudo para

terminar bem, não fosse a situação que passo a relatar. Durante o período de recuperação, decidi ter uma

conversa mais particular e direta com um dos alunos que não havia apresentado um bom rendimento durante o ano. Tratava-se de um aluno considerado por todos os professores como excepcional (inteligente, questionador, dedicado). No entanto, a partir do segundo semestre daquele ano começara a apresentar baixo rendimento, o que culminou na recuperação de final de ano.

Havia uma suspeita para esta queda de desempenho. A partir de determinado momento do ano, o referido alu-no passou a frequentar uma academia de musculação, treinando diariamente. De repente, seu corpo mudou. De garoto franzino que era, tornou-se um misto de Arnold Schwazenegger e Frankenstein. A rapidez des-tas mudanças levantou a suspeita de que o aluno estaria utilizando anabolizantes, prejudicando sua saúde e seu desempenho na escola.

Decidi questioná-lo sobre isso. Antes de lhe entregar a prova de recuperação, convidei-o para uma conversa sincera. Fui me aproximando aos poucos do assunto, para que o aluno se sentisse mais a vontade e contasse a verdade. Porém, apesar de minha insistência, o aluno negava que estivesse utilizando anabolizantes. Tentei por todas as vias que ele revelasse alguma coisa, mas todo o meu esforço foi em vão. Foi, então, que surgiu mais uma de minhas ideias fantásticas.

Enquanto fazia a sessão de interrogatório com o aluno, outro estudante (chamar-lhe-ei de C.) apareceu à porta para dar um recado da direção. Ao vê-lo não hesitei em utilizá- lo como meio de chegar ao meu objetivo com o aluno interrogado. Afinal, C. era um aluno excelente, com ótimas notas e um profundo conhecimento. Além disso, tinha certeza de que C. era gay, assumido e bem resolvido com sua opção sexual. Seria, portanto, um bom exemplo para que o aluno não tivesse medo de assumir o que estava fazendo.

Pedi que C. entrasse na sala e se sentasse ao nosso lado. Expliquei-lhe o que estava acontecendo e, então, dirigi a palavra novamente ao aluno interrogado:

- Você não precisa ficar com medo de assumir as coisas que faz. Está vendo o C.? Ele assume o que é sem ficar preocupado com o que os outros pensam...

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- Assumir o que, professor? – Perguntou-me C., sem entender muita coisa.

- Ora, que você é gay. - Mas eu não sou gay, professor! - Claro que é! ....... E assim terminou o diálogo mais bizarro que já tive

com um aluno. Abismado com aquela situação C., delicadamente,

perguntou-me se já poderia sair. Observei-o ir embora da sala, ainda tentando entender mais uma de minhas ações “magistrais” como professor. Após um tempo, voltei o olhar para o aluno interrogado que se continha para não rir daquela situação.

Desisti de continuar o interrogatório e entreguei a prova de recuperação ao aluno. Enquanto o mesmo se es-forçava, tentando resolver questões sobre a nova ordem mundial e o papel das grandes corporações na economia global, pensava em C. e em sua opção sexual. Mas logo tirei esse pensamento da cabeça, antes que mais uma ideia de sessão interrogatória pudesse surgir...

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Ela e EleFabrício Seixas

Um dia ela chegou como sempre chegava. Sentou-se no fundo e no canto como sempre sentava. Organizou sua lição e o viu. Ele, o professor novo de Física, parecia um aluno, não fossem os excessivos idealismos de uma parte e a ausência destes em outra. Apresentados os nomes ela perguntou a idade dele. A turma riu. Ele en-rubesceu e disse: mas que pergunta indiscreta. Ela riu, ele também. Tenho vinte e três. Ele mentiu. Ela sabia. Ele tinha um ano a menos do que dissera e ela seis. Sabe quando, por uma brisa fortuita do acaso começamos a gos-tar de alguma matéria? Aconteceu com ela e a Física. Não sabia ela que gostava tanto. Ele disponibilizou o email para trabalhos, ela escrevia com dúvidas banais. Ele respondia dissimulado. Ela entregava as tarefas. Erradas elas esta-vam. Ele explicava novamente.

Ela buscou o nome dele no google, descobriu seu blog, seus contos, crônicas e poemas. Ela leu, comentou, descobriu que gostava de poesia também. Ele não gostou dos movimentos. Ela lhe escreveu e pediu que opinasse sobre a qualidade do poema dela. Ela escrevia mal. Ele disse isso. Ela insistiu. Em dezembro o ano se ia. Ele es-tava mal. Ela também. Naqueles dias de recuperação nos quais os saudosos momentos das turmas que se despe-dem paira suspenso no ar e as paredes se entristecem com o silêncio inabitual... ela foi. Não estava de recupe-ração, mas foi. Conversaram o dia todo. Os recuperandos eram irrecuperáveis. Ela lhe olhava na alma. Ele refletia a mirada. Ela parava o olhar grande e negro como se di-gitasse uma mensagem em letras vivas. Mensagem sem palavras, sem som, sem escrita, sem código ou fonte. Ele compreendeu. Ela lhe levou um presente. Um anjo de argila, torto e débil como a pretensão ali expressa. Este é o anjo menino...cupido. Disse ela. Existe um par feminino para ele. E onde está? Perguntou ele, tolo. Comigo, disse

ela. Havia um bilhete escrito no presente: “Bertand, que você atribua a este um significado próprio. Até um pró-ximo momento, em uma próxima oportunidade...talvez”.

Ela fez dezoito anos uma semana depois. Ele ficou sabendo. Ela entrava no bate papo todos os dias às seis e meia da tarde. Ele também. Ela sugeriu um encontro. Ele aceitou. Ela estava de saia e com os cabelos soltos. Ele estava com culpa por pensamentos sórdidos. Ele espe-rou ela sentar e sentou-se na cadeira oposta. Ele pediu uma Norteña e uma caipirinha. Ela também. Ela ficou alegre. Ele também. Ele pediu para que ela sentasse do seu lado. Ela disse “vem aqui você”. Ele foi. Beijaram-se. A boca dela, delgada e com aparelhos perscrutava os movimentos tentando acertar o passo frente a perícia bem treinada dele que também acertava o passo, mas muito mais rapidamente. Depois do beijo, ela não falava. Ele também não. Beijavam-se mais então. Caminharam até o ponto de ônibus. Passava da meia noite e não tinha mais o ônibus dela. Ele planejou isso. Ela também.

Ela entrou na casa dele irrompida de alegria, curio-sidade e conquista. Ele envaideceu-se. Ele ofereceu vodca, ela aceitou. Ela ficou bêbada. Ele não. Ela montou em cima e tirou a roupa sem jeito. Ele a virou deitada. Sou virgem, disse ela inaudivelmente. O quê? Ele fingiu não escutar. Sou virgem, ela repetiu. Ele olhou nos olhos dela. Ela olhou nos olhos dele. Tudo bem, ele concluiu e ela ficou com medo. Ela foi vomitar. Ele cuidou dela. Foram muitas tentativas nas semanas seguintes e por fim, rompera-se o nó. E desalinhou o fio da vida. E o no-velo era arguto, leve... loquaz. Ela o via de surpresa. Ele ralhava e pedia para avisar antes. Ela fingia entendê-lo e ele fingia que estava certa. Ele queria ficar na cama, ela virava a cama do avesso. Ele se arrependia de dormir, ela esperava ele acordar.

Ele a ajudou a estudar para o ENEM. Ela ia mal em Física. Ele falou do PROUNI. Ela aceitou. Ela conseguiu bolsa de 100% em arquitetura no Mackenzie. Eles come-moraram. Ela queria morar sozinha. Ele procurou casas para ela. Ela desistiu. Ele também. Ele começou a namo-rar outra pessoa. Ela também. Até hoje eles se falam. Ele fez ela prometer que a planta da casa dele seria ela a pes-soa a fazer. Ela aceitou rindo. Ela reprovou em Física na Faculdade. Ele foi fazer Filosofia.

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Tatuagem do PCCRenato Pugliese

19 de Fevereiro de 2010. Zona Leste da cidade de São Paulo, SP. Escola Estadual Professor Oswaldo Catalano. Primeira semana de aulas. Desde o dia primeiro deste mês eu havia trabalhado

as primeiras aulas do ano com turmas de 1º, 2º e 3º ano do Ensino Médio em outras escolas e, quando cheguei à sala de aula dos 3ºs anos do noturno da rede estadual fui surpreendido, mesmo após décadas nesta unidade, com o excesso de apatia e rejeição apresentado pelos estu-dantes durante as discussões iniciais.

Ninguém queria saber de nada.

Senti como se o fato de saber que uma partícula pode estar carregada eletricamente não fosse importante para a humanidade. Ou não fosse importante para aqueles alunos dos 3ºs do noturno. E nem é importante mesmo, pouco importa.

Realmente a desorganização estrutural da rede básica de educação sempre surpreende os participantes da instituição. Contudo um fato me chamou a atenção para além da desorganização.

Possuo algumas tatuagens em meu corpo e, por uma coincidência que classifico como curiosa (ou trágica, ou provocadora), uma delas foi adotada por uma organiza-ção criminosa para identificar os participantes de suas atividades, os quais, divididos em diversos grupos pela cidade, acabam infiltrando-se nas escolas por meio de alunos (ou caracterizados como alunos). A figura em questão é o símbolo chinês do Tao (yin yang), que desenhei em meu braço há alguns anos. Dezenas de alunos já haviam conversado comigo sobre isso anos atrás, o que permitiu diversas conversas interessantes sobre

o assunto (pensamento chinês, história, tatuagens, verda-des absolutas, física quântica...).

Primeira aula no 3ºH.Um aluno me procurou logo no início questionando

sobre meus objetivos quando fiz aquela tatuagem. Não foi uma pergunta simples.

Foi uma intimação.

A expressão no rosto dele era de quem participava, de alguma forma, de organizações do poder paralelo. Estava claro: ele era de algum Bonde, de alguma Família, era Irmão. Esqueçam gangues e quadrilhas, isso é passado.

Eu, professor; ele, aluno; nós, inimigos, a priori. É assim que se começam muitos cursos.

Respondi à intimação de maneira séria, didática e respeitosa, o que significa esse símbolo na filosofia orien-tal antiga e por que decidi desenhá-lo. Ele voltou à sua cadeira e dei início a aula. Após uma discussão sobre os temas que trataríamos durante o ano, sobre as verdades físicas, o cientificismo, sempre dialogando com a turma sobre o que haviam estudado nos anos anteriores, o que esperavam estudar este ano, quais as frustrações e quais as esperanças – reparando sempre a expressão fechada e intimidadora deste aluno, a classe sentiu-se à vontade para comentar alguns fatos e muitos gargalharam após um causo/chiste que contei.

Só quem é professor entende o que é você oferecer confiança e segurança para a turma e ela devolver o reca-do em forma de sorrisos.

Neste momento, de muita euforia, reparei que o rapaz estava sorrindo verdadeiramente, junto à classe. Ele estava sorrindo. Muito. E ele notou que eu notei. Neste exato instante, completamente envergonhado por eu tê-lo visto alegre e sorridente, abaixou a cabeça, escon-dendo-se da turma, e só voltou a levantar quando voltou à seriedade.

Dentro da concepção de escola, aluno e professor que ele construiu (não à toa), ele não poderia sorrir na-quele contexto, nem tampouco demonstrar que estava sentindo alegria.

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Quem sorri é fraco. Jesus não sorriu.

Isso poderia ser entendido como sinal de fraqueza, para alguém que participa de gangues, de bondes, do crime, do grupo que vai à escola para trabalhar com tráfico de drogas, entre outros.

No término da aula, enquanto eu saía da sala, ele me procurou e agradeceu. Disse que esperava ter um ótimo ano na escola. Disse que pela primeira vez alguém o olhou com sinceridade e o respeitou como aluno, e não como bandido.

E eu agradeci, por dentro, pois não tive a sapiência de expressar oralmente, por ele ter me respeitado como professor.

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