Critica de Kierkegaard e Liszt

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRASPROGRAMA EM TEORIA DA LITERATURA

FORMAS DE ARTE: A PRTICA CRTICA DE BERLIOZ, KIERKEGAARD, LISZT E SCHUMANN

ELISABETE MARQUES JESUS DE SOUSA

Doutoramento em Teoria da Literatura

2006

memria da minha av Filomena de Sousa (1900-93) para quem a leitura e a escrita se iniciaram aos quarenta anos

AGRADECIMENTOS

Agradeo muito o precioso apoio que me foi concedido durante a elaborao desta dissertao pelas seguintes instituies: Fundao para a Cincia e Tecnologia (bolsa para encargos de investigao entre 2003 e 2005); Fundao Luso-Americana para o Desenvolvimento (subsdio para a deslocao Hong Kierkegaard, St. Olafs College, MN, USA em 2003); Ministrio da Educao e Cultura (equiparao a bolseiro nos anos lectivos de 2003 a 2006); The Hong Kierkegaard Library (bolsa como Summer resident scholar em Julho de 2003 e Agosto 2004). Em especial, queria ainda expressar os meus agradecimentos: aos Professores Manuel S. Loureno e Miguel Tamen por terem sido os atentos e sempre disponveis orientadores desta tese; a Cynthia Lund e ao Professor Gordon Marino pelo caloroso incentivo prestado durante a minha permanncia na Hong Kierkegaard Library, St.Olafs College (Northfield, MN, USA). Agradeo a Cludia Fischer o auxlio nas tradues dos textos de Robert Schumann e a Maria Costa Ferreira e a Mia Dagner a ajuda nas tradues dos textos de Sren Kierkegaard. A todos os colegas a quem expus e com quem discuti as minhas ideias e a todos os amigos que pacientemente assistiram ao desenrolar desta investigao, agradeo o seu inestimvel apoio. Ao meu filho Ricardo, agradeo a compreenso pelo meu trabalho e a colaborao responsvel, prestada na resoluo dos inevitveis problemas com que o quotidiano e a vida familiar nos confrontaram.

RESUMO

Esta tese toma como objecto de investigao a prtica crtica e componstica de trs msicos e a crtica musical de um filsofo do sculo dezanove, respectivamente, Hector Berlioz, Franz Liszt e Robert Schumann e Sren Kierkegaard, analisando-as como formas de arte. Na primeira parte, apresento e discuto os argumentos dos investigadores mais frequentemente utilizados na interpretao dos pseudnimos de Schumann e de Kierkegaard com o objectivo de fundamentar a minha prpria anlise da gnese e da utilizao desses pseudnimos, observando, em especial, o modo como condicionam a prtica crtica de Schumann e de Kierkegaard e a sua condio de autores. Na segunda parte analiso os processos criativos de Schumann e de Berlioz, com incidncia na recepo de Goethe e de Shakespeare por ambos os compositores e de Verglio, no caso particular de Berlioz, recorrendo teoria sobre a rememorao de Kierkegaard, de modo a estabelecer o carcter nico das suas obras, tanto na gnese, como no gnero. Don Giovanni de W.A.Mozart constitui o elemento unificador da terceira parte, em que exponho modos diversos de rememorao desta pera atravs de exemplos retirados das obras de Berlioz, Kierkegaard, Schumann e Lizst, com incidncia na funcionalidade dessa rememorao nas prticas componstica e crtica, literria ou musical, destes autores.

ABSTRACT

This dissertation takes the practical criticism of three composers, Hector Berlioz, Franz Liszt e Robert Schumann, and a philosopher Sren Kierkegaard, as case studies of nineteen-century practical criticism to argue that they stand for as forms of art. In the first part, I discuss research data concerning the use of pseudonyms in Schumann and Kierkegaard in order to put forward my own point of view on this matter, with special emphasis on their work as critics, composer and philosopher. In the second part, I analyse Schumanns and Berliozs reception of Goethe (as well as of Virgil for the latter) so as to argue that the uniqueness in gender of their musical compositions is interwoven with the uniqueness of their literary based musical ideas. This discussion is partly based on the theory of recollection by Kierkegaard. In the third part, by means of different examples of the use of Mozarts Don Giovanni in the musical criticism of the four authors and in the compositions of Liszt, I argue that recollection is fundamental to understand and describe their ways of presenting art and their own persona as creators, as well as the representation of their ideas on art.

NDICE

Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Parte I - A mo esquerda e a mo direita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I.1. Schumann: Davidsbund, Davidsbndler, Davidsbndlerei . . . . . . . I. 2. Kierkegaard: modos de comunicao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I. 3. Alteridade, auto-conscincia e contradio . . . . . . . . . . . . . . . . . . Parte II - Recordar e criar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II. 1. Da expressividade musical instrumentao e orquestrao . . . . II. 2. Ideias poticas, ideias musicais e ideias potico-musicais . . . . . . II. 3. Berlioz e Virglio: vivncias, emprstimos e recordaes . . . . . . Parte III - A crtica como arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III.1. Ideias potico-musicais e ideias filosfico-musicais . . . . . . . . . . III. 2. A crtica musical como actividade filosfica . . . . . . . . . . . . . . . III. 3. Recordar, compor, criar, criticar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anexo I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anexo II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anexo III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referncias Bibliogrficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

5 7 8 45 82 107 108 137 174 195 196 228 245 285 309 353 363

INTRODUO

Esta dissertao toma como objecto de estudo a prtica crtica e componstica de trs msicos e a crtica musical de um filsofo do sculo dezanove, respectivamente, Hector Berlioz, Franz Liszt e Robert Schumann e Sren Kierkegaard, analisando-as como formas de arte. Est dividida em trs partes, cada uma das quais com trs seces. Na primeira parte, intitulada A mo esquerda e a mo direita, analiso os pseudnimos de Robert Schumann e os de Sren Kierkegaard. A discusso dos argumentos principais dos estudiosos de Schumann e de Kierkegaard permite estabelecer a plataforma de entendimento, a partir da qual comento o uso de pseudnimos como elementos constitutivos de uma prtica crtica e componstica, no caso de Schumann, e de uma prtica crtica e filosfica no caso de Kierkegaard. Na segunda parte, com o ttulo Recordar e criar, abordo transversalmente o lugar ocupado pela rememorao de obras literrias, em particular o Faust de Goethe e a Eneida de Virglio, na prtica componstica de Hector Berlioz e de Robert Schumann. Procuro determinar o conceito de expressividade musical para Berlioz e utilizo a sua distino entre ideias poticas e ideias potico-musicais para explicar como o desenvolvimento de uma ideia musical a partir de uma fonte literria actua

simultaneamente como acto de recriao literria e como tentativa de estabelecimento de um novo gnero musical nestes dois compositores. Para tal, recorro teoria sobre a rememorao exposta no prlogo a In Vino Veritas, o primeiro captulo de Stadier paa Livets Vej de Hilarius Bogbinder, um dos pseudnimos de Kierkegaard. Na terceira parte, intitulada A crtica como arte, comento algumas das novelas de Berlioz e a arquitectura do volume Soires de lOrchestre deste mesmo compositor, bem como a de Enten/Eller de Kierkegaard, com incidncia no captulo Os Estdios Ertico-Musicais ou o Ertico-Musical e no conceito de representao musical imediata da ideia de sensualidade em Don Giovanni de Mozart. Dois artigos de Schumann, Ein Werk II e Der Davisdbndler, e um de Franz Liszt, Berlioz und seine Haroldssymphonie so igualmente analisados. Por fim, apresento alguns aspectos das transcries, parfrases e fantasias operticas de Liszt, consideradas como prtica crtica e componstica, relacionveis, no caso de Liszt, com a sua condio de pianista virtuoso, e no caso de Kierkegaard, com o seu entendimento de uma obra filosfica e/ou religiosa como um trabalho potico. O Anexo I contm os textos originais das citaes, que esto traduzidas no corpo do texto. Todas as tradues so da minha responsabilidade, excepto se indicao em contrrio. O Anexo II rene os originais e as respectivas tradues de textos que considero fundamentais para o conhecimento da prtica crtica de Schumann e que referencio ao longo deste trabalho, mas que so de difcil acesso. O Anexo III apresenta um conjunto de tabelas, que fui elaborando durante o meu estudo de Kierkegaard, e que julgo permitirem uma panormica clara da estruturao da obra deste autor e dos seus mltiplos pseudnimos. Na primeira pgina das referncias bibliogrficas, encontra-se a tabela das siglas utilizadas nesta dissertao. As referncias bibliogrficas esto seriadas por

autores e dentro de cada autor, divididas em referncias primrias e secundrias, com uma seco final onde se mencionam obras que exorbitam o mbito especfico de cada autor.

PARTE I

A mo esquerda e a mo direita

Ao longo da primeira seco, apresento e discuto os argumentos habituais dos investigadores schumannianos utilizados na interpretao dos pseudnimos de Robert Schumann (Zwickau,1810-Endenich,1856), a fim de estabelecer a fundamentao que se encontra subjacente minha prpria anlise do uso de pseudnimos por Schumann na prtica crtica e na prtica componstica deste compositor, em particular, no modo como interagem em alguns textos crticos e em algumas das composies para piano. Na segunda seco, analiso vrias questes relacionadas com a estruturao em duas sries das obras de Sren Aabye Kierkegaard (Copenhague, 1813-1855), com a criao e o uso dos seus mltiplos pseudnimos, com especial incidncia nos textos em que discute a sua condio de autor. Na terceira seco, coloco em paralelo os modos de funcionamento dos pseudnimos de Schumann e de Kierkegaard, atravs do comentrio de pequenos textos e de descries dos prprios pseudnimos de cada um destes autores, com o objectivo de demonstrar como a construo potica acompanha o estabelecimento de um ponto de vista crtico, o qual, por sua vez, se encontra presente, de forma

indissocivel, na produo crtica, literria, musical e/ou filosfica de Schumann e de Kierkegaard.

I.1. Schumann: Davidsbund, Davidsbndler, Davidsbndlerei.

A natureza particular da obra de Robert Schumann impe a bigrafos e a crticos a caracterizao dos seus pseudnimos que se manifestam tanto nas composies musicais para piano, como nos textos crticos. Com efeito, necessrio contextualizar e explicar a gnese e a identidade desses pseudnimos, pois disso depende o entendimento da prtica crtica e composicional deste msico e da relao entre elas. A dificultar a explicao dos pseudnimos de Schumann, acresce a circunstncia de a sua gnese e o seu uso se encontrarem intimamente associados existncia de uma outra criao schumanniana, a Davidsbndlerschaft ou Davidsbund, um crculo de reflexo e de interveno crtica no meio musical, que ganhou forma atravs dos artigos publicados no Neue Zeitschrift fr Musik (a partir de agora, NZfM), o jornal bissemanal que o compositor fundou em Leipzig em 1834 e que dirigiu at 1844, ano em que o vendeu a Franz Brendel (1811-68). A importncia desta Davidsbund e dos Davidsbndler, os seus membros, para a compreenso da obra de Schumann no advm apenas de um poder interventivo de carcter imediato nas instituies sociais e musicais da sociedade de Leipzig; outras associaes, como adiante refiro (pp. 37-41), tero intervindo de forma mais efectiva e visvel nessas instituies. Porm, a condio de Davidsbndler revela-se fundamental para o entendimento dos pressupostos sobre os quais assenta o ponto de vista crtico de Schumann, presente quer na produo musical, quer na prtica crtica. Algumas

recenses contemporneas da obra de Schumann, por exemplo a do prprio Brendel 1, no s reconhecem Schumann como Davidsbndler, como consideram essa condio indispensvel para a anlise da sua obra. Todavia, ao longo do tempo, esse reconhecimento perdeu relevncia e apenas a partir de 1980 se assiste ao aparecimento de uma bibliografia schumanniana, que tenta esclarecer essa condio de Davidsbndler como chave incontornvel para o entendimento da obra do compositor. Deste modo, surge como mais compreensvel a desvalorizao que lhe imputada por alguns musiclogos; o caso de Leon B. Plantinga, autor do excelente livro Schumann as Critic de 1967 2, sem dvida a descrio mais rigorosa e completa dos textos crticos de Schumann, realizada a partir do prprio NZfM, j que nenhuma das edies de Gesammelte Schriften ber Musik und Musiker (a partir de agora GS) 3 inclui a totalidade desses textos. Um tanto paradoxalmente, este crtico nem releva os artigos assinados por SchumannDavidsbndler como fundamentais para o aparecimento dessa nova crtica no NZfM, nem descreve as suas caractersticas como decorrentes de um enquadramento na Davidsbund. Plantinga no deixa de referir que o carcter inovador dessa nova crtica se deve a idealismo vigoroso, militncia e, frequentemente, impetuosidade irreverente (Plantinga 1967:3), palavras que poderiam descrever sucintamente o tom habitual das intervenes de Florestan, um dos pseudnimos de Schumann. EsteCf. Franz Brendel, Robert Schumann with reference to Mendelssohn-Bartholdy and the Development of Modern Music in General, in Schumann and his World, ed. R. Larry Todd (Princeton: Princeton University Press, 1994), pp. 317-37. Publicado originalmente no NZfM (n22, 1845, 63-67;81-83;89-92;113-15;145-47;149-50) com o ttulo Robert Schumann mit Rcksicht auf Mendelssohn-Bartholdy und die Entwicklung der modernen Tonkunst berhaupt. Sobre o mesmo assunto, cf. Jurgen Thym, Schumann in Brendels Neue Zeitschrift fr Musik from 1845 to 1856, in Mendelssohn and Schumann, Essays on their Music and its Context, eds. Jon W. Finson, R. Larry Todd (Durham, North Carolina: Duke University Press, 1984), pp. 21-34. 2 Cf. Leon B. Plantinga, Schumann as Critic (New Haven and London: Yale University Press, 1967), pp. 3, 47, 61, 63, 66, 68-69, 71, 78, 234, n.44. 3 Edio utilizada nesta dissertao: Gesammelte Schriften ber Musik und Musiker (Reprint Ausgabe Leipzig 1854, Wiesband: Breitkopf & Hrtel, 1985). Para alm desta primeira edio, da responsabilidade do prprio Schumann, Plantinga recomenda a quarta edio de 1891, com F. Gustav1

musiclogo, porm, limita-se a considerar que esses artigos correspondem procura do estilo desejvel para a seco Belletristisches, tal como anunciada por Schumann-editor no Prospektus do primeiro nmero de NZfM. 4 No obstante, Plantinga demonstra que o papel do NZfM determinante para a concretizao de um modelo de crtica musical novo e diferente em relao linha tradicional dos peridicos musicais na Alemanha, em especial do Allgemeine musikalische Zeitung de Leipzig (a partir de agora, AmZ). Segundo Max Graf, embora este peridico tenha sido o primeiro a introduzir um estilo de crtica musical de pendor literrio, os artigos a publicados no revelavam uma perspectiva desprovida de preconceitos face nova msica, faltando-lhes o entusiasmo e o carcter potico, que viriam a caracterizar a prtica crtica romntica, num estilo, que, em sua opinio, se filia em Adolph Bernhard Marx, o editor do AMZ de Berlim, um entusiasta da crtica musical de E.T.A. Hoffmann (1776-1822) 5. no intento reformista do NZfM que reside uma parte significativa da sua relevncia para o panorama musical alemo, visvel logo no primeiro ano de publicao, atravs de um conjunto de dez artigos na seco Journalschau 6, dedicados anlise dos principais jornais publicados na Alemanha e na Frana. A grande maioria desses peridicos pertencia a editoras musicais, tais como Breitkopf und Hrtel de Leipzig, Tobias Haslinger de Viena ou Schlesinger de Paris. Estas casas editoriais utilizavam, assim, um rgo prprio paraJansen como editor e a quinta de 1914, com Martin Kreisig como editor (GS Kreisig, nesta dissertao), na mesma casa editorial (Plantinga 1967:xi). 4 Cf. o texto integral e traduo do Prospektus (NZfM I, 1-2) no Anexo II, pp. 311-14, transcrito a partir de Plantinga 1967: 272-274. 5 Cf. Max Graf, Composer and Critic, Two Hundred Years of Musical Criticism (New York: W.W. Norton & Company, Inc.,1946), pp. 125,153,157. 6 Cf. NZfM I (1834), pp. 182, 186, 190, 193, 198, 210, 226, 230, 266, 270. So estes os peridicos analisados, com indicao, sempre que possvel, das datas de publicao, da cidade, da casa editorial (muitas vezes uma editora musical) e do director do jornal no ano de 1834: Allgemeine Musikalische Zeitung (1798-1848) Leipzig: Breitkopf und Hrtel, Gottfried Wilhelm Fink; Ccilia (1824-1839; 1842-1848), Mainz: Schott, Gottfried Weber; Iris im Gebiete der Tonkunst (1830-1842), Berlim: Trautwein, Ludwig Rellstab; Allgemeiner musikalischer Anzeiger (1829-?), Viena: Tobias Haslinger, I.F. Castelli; Allgemeiner musikalischer Anzeiger (1826-?; 1834-1836), A. Fischer; La Revue Musicale

promover a aquisio de partituras de peras ou de peas de concerto para consumo domstico junto de um pblico crescente. Nos primeiros nmeros do NZfM, torna-se ntida a inteno editorial de sublinhar a independncia do novo peridico face a qualquer presso de editoras. Schumann pretendia, de facto, modificar o estado da msica alem e favorecer o aparecimento de compositores que dessem continuidade a uma linhagem na qual Ludwig van Beethoven (1770-1827) e Franz Schubert (1797-1828) eram a referncia, tal como expresso no Prefcio a GS:No se pode dizer que a situao da msica da Alemanha de ento fosse muito satisfatria. No palco reinava ainda Rossini, no piano Herz e Hnten, quase exclusivamente. E todavia, tinham passado apenas alguns anos desde que Beethoven, C.M. von Weber e Franz Schubert tinham vivido entre ns. verdade que a estrela de Mendelssohn estava em ascenso e que corria a fama de coisas maravilhosas sobre um polaco, Chopin; mas estes [msicos] s posteriormente produziriam uma 7 influncia duradoura. (GS Band I: III-IV)

A esta conscincia da tradio, como lhe chama Carl Dahlhaus 8, junta-se, ento uma prtica crtica sobre o presente que, demarcando-se do modelo comum contemporneo, despertaria o interesse do pblico, ao mesmo tempo que formava o seu gosto musical, associando, assim, uma nova prtica musical, um novo modelo de crtica e um pblico intencionalmente preparado para a sua recepo, com o objectivo de fazer progredir a msica. A provar que tais objectivos foram plenamente alcanados, em 1844 Schumann recebeu o convite de G.C. Hrtel (1763-1827), proprietrio do AmZ, para exercer o cargo de editor, exactamente do peridico contra o qual Schumann fundara o NZfM dez anos antes.

(1827-1835) Paris: Edouard Ftis; Gazette Musicale de Paris (1834-1835), Paris: Schlesinger (Plantinga 1967: 23-38). 7 Cf. texto integral e respectiva traduo no Anexo II, pp. 315-17. 8 Cf. Carl Dahlhaus, Nineteenth-Century Music (Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1989, p. 247. Traduo de J. Bradford Robinson de Die Musik des 19. Jahrhunderts (Neues Handbuch der Musikwissenschaft, Band 6) (Wiesbaden: Akademische Verlagsgesellschaft, 1980).

Logo na pgina de rosto de cada um dos seus volumes 9, o NZfM menciona que editado atravs de uma associao de artistas e de amigos da arte; entre os colaboradores pode ler-se R. Schumann e Davidsbndler, o que indicia a existncia de uma associao de artistas que utiliza o NZfM como rgo de expresso crtica. Com efeito, a Davidsbund actuou como supra-estrutura dos colaboradores deste peridico, os quais, em nmero significativo, assinavam com o pseudnimo respectivo enquanto membros da liga de David. Outras afirmaes posteriores de Schumann so coerentes com esta apresentao: em Maro de 1846, planeou escrever uma auto-biografia com o ttulo Biographie eines Davidsbndlers; e, em meados de 1849, mencionava no seu dirio esses artigos como Davidsbndlerei

(Abraham:842,847). Significativamente, no Prefcio de 1854 a GS, escrito no momento em que a sua produo musical e crtica abandonara o uso de pseudnimos h cerca de doze anos, Schumann coloca toda essa produo crtica sob a tutela da Davidsbund. Com efeito, para primeiro texto dessa colectnea o msico-crtico escolhe exactamente Ein Werk II, o artigo em que pela primeira vez surgiram os seus pseudnimos enquanto vozes crticas, explicando em nota de rodap: Este artigo apareceu j no ano de 1831 no Allgemeine Musikalische Zeitung. Como o primeiro em que entram os membros da liga de David, possa ele tambm aqui ser recolhido (GS Band I:3) 10. Alis, o mesmo prefcio, ao retomar muitas das ideias expressas no editorial de abertura do ano de 1839, Zum neuen Jahr 1839 11, acentua a permanncia de uma identidade enquanto Davidsbndler na pessoa de Schumann, que manifestamente assumida pelo compositor nestes dois textos. De referir ainda que9

Durch einen Verein von Knstlern und Kunstfreunden. Cf. a reproduo da pgina de rosto do stimo volume de NZfM, in Robert Schumann, On Music and Musicians, ed. Konrad Wolff, trad. Paul Rosenfeld (New York, Toronto, London: Mc-Graw-Hill Book Company, 1964), p. 29. 10 Cf. texto e traduo no Anexo II, pp. 322-26.

na edio de GS de 1854, em relao ao momento da publicao inicial no NZfM, no se registam alteraes quer nas assinaturas dos seus prprios artigos (quinze assinaturas diferentes, num total de vinte e cinco variantes 12), quer nas assinaturas dos artigos dos restantes colaboradores. O aparecimento dos pseudnimos, relatado nas entradas do dirio de 8 de Junho de 1831 (Florestan) e 1 de Julho do mesmo ano (Eusebius), habitualmente considerado como sendo autnomo e anterior constituio da Davidsbund em 1833. Esta afirmao fundamenta-se ainda na cronologia de dois artigos, Ein Werk II de 1831 e Der Davidsbndler de 1833. Quatro pseudnimos, Florestan, Eusebius, Meister Raro e Julius (o narrador que tambm assina o artigo) surgem em Ein Werk II, publicado a 7 de Dezembro de 1831 no AmZ. Dois anos mais tarde, em Der Davidsbndler (GS Kreisig: 260-272) 13, publicado no peridico literrio de Leipzig Der Komet em trs partes (7 e 14.12.1833 e 12.1.1834), surgem os mesmos pseudnimos, enquanto membros da liga de David, j que se trata da transcrio de actas da Davidsbund. No primeiro artigo, o verdadeiro elemento de unio entre Florestan, Eusebius, Meister Raro e Julius o objecto de anlise, as Variaes para piano e orquestra L ci darem la mano de Mozart, Op.2 (1827, publicada em 1830) de Fryderyc Chopin (1810-1849). Ao longo de Ein Werk II, as personagens com o nome destes pseudnimos do voz a pontos de vista divergentes sobre a composio de Chopin, sem fazerem, contudo, qualquer referncia Davidsbund ou ao prprio Schumann. Ao invs, em Der Davidsbndler o tema exactamente a apresentao das actividades da Davidsbund na cidade de Leipzig, lendo-se, sob o ttulo, Mitgeteilt vonCf. texto e traduo no Anexo II, pp. 318-21. Cf. Jochen Michael Lebelt, Robert Schumann als Redakteur des NZfM, 1834 bis 1844, Diss., (Zwickau: 1988), ponto 2.1.3.4.: Der musikalische Journalism als Mglichkeit der Erfllung der knstlerischen Doppelbegabung Schumanns. O Anexo II inclui a lista dessas assinaturas, pp.354-55.12 11

S. e como subttulo Leipziger Musikleben. Ora, por um lado, uma das assinaturas usadas por Schumann exactamente a assinatura S.; assim, o ttulo parece atribuir a identidade de Davidsbndler seja ao autor S., seja aos diferentes pseudnimos, que assinam as pequenas seces do artigo como E., Fl. e R.. Por outro lado, o subttulo remete para a cidade de Leipzig e para a vida musical, afinal o meio social e cultural em que nasceu e actuou a Davidsbund, o que por si denota a contextualizao sociolgica indispensvel para a compreenso do modo de relacionamento dos membros da liga de David. Der Davidsbndler igualmente fundamental para a caracterizao dos pseudnimos e do estilo recorrente nos artigos de Schumann-Davidsbndler. Trata-se de um artigo em duas partes que combina diversos gneros dentro de uma narrativa com vrios nveis de registo e diferentes narradores. Na primeira parte, S. transcreve um texto proveniente de uma folha de papel meio rasgada que lhe chegou s mos trazida pelo vento: trata-se, afinal, da acta da trigsima oitava reunio da Davidsbund. O secretrio dessa sesso Eusebius, que regista as suas prprias intervenes e as de Florestan e de Raro, mencionando as assinaturas de outros sete membros presentes. Encontram-se frequentes aluses ao contexto tpico de uma reunio comum; por exemplo, na primeira parte, marcadamente dialogante, as intervenes (tomando, por vezes, um tom de sentena que as aproxima do aforismo) surgem como rplicas decorrentes de uma discusso, tal como manifesto nesta interveno de Raro:Que a execuo em concerto de andamentos mais curtos e rapsdicos no fique sem seguidores. (Para tal, basta um nome famoso. Fl.) O virtuoso pode, assim, de modo imediato, expressar o seu esprito com todos os matizes. (GS Kreisig: 263) 14

Logo adiante, Florestan queixa-se da qualidades de Eusebius enquanto secretrio (Acho que Eusebius muito maador a escrever!, Ich finde, da13 14

Cf. texto integral no Anexo II, pp. 329-53. Cf. texto original no Anexo I, 1.

Eusebius sehr langweilig schreibt!) e, a dado momento, este ressalva que se lem afirmaes da sua inteira responsabilidade intercaladas no relato da sesso: (quero apenas confessar que toda a frase anterior no do Davidsbndler, mas sim de mim prprio, no posso, todavia, saltar uma observao de Raro) 15. Na segunda parte, inclui-se o comentrio a uma carta que apresenta dois emissrios da Davidsbund, vindos de Veneza em misso cultural. Importa agora sublinhar dois aspectos relativos caracterizao dos pseudnimos neste artigo: o primeiro envolve o relacionamento entre Eusebius e Schumann e o segundo diz respeito s descries do carcter dos pseudnimos. O relacionamento entre Eusebius e Schumann comentado pelo prprio Eusebius:Sobre o andamento da Sinfonia de S[chumann] dificilmente tenho opinio. No ele o meu irmo mais velho e Doppelgnger, e no cresce o seu trabalho sob os meus olhos? [Eusebius prossegue comentando a Sinfonia] (GS Kreisig: 265) 16.

Este pequeno excerto bem representativo da complexidade da pseudonmia do compositor e tambm de alguma instabilidade. Por um lado, Eusebius assume-se como uma voz crtica do prprio compositor, na condio de assumirmos que os parnteses rectos (da responsabilidade do editor, M. Kreisig) remetem para Schumann. Ora, data da redaco de Der Davidsbndler, Schumann no tinha composto qualquer sinfonia; s o far a partir de 1840. Este S. o mesmo que surge no ttulo como responsvel pela divulgao do artigo (mitgeteilt von S.), circunstncia que aponta para um novo desdobramento de pseudonmia: S. autor de sinfonias, conhece os Davidsbndler desta reunio e publica artigos em peridicos musicais. Esta diferena entre S. e Schumann implicitamente reconhecida pelos prprios Davidsbndler, que distinguem Schumann-editor do NZfM de si prprios.

15 16

Cf. texto original no Anexo I, 2. Cf. texto original no Anexo I, 3.

Numa aluso ao artigo Die Davidsbndler (NZfM I, 1834:73-75), a verso original de Aus den kritischen Bcher der Davidsbndler, percebe-se esse reconhecimento:Como infelizmente ainda somos forados a manter reserva sobre os motivos do nosso disfarce, solicitamos ao senhor Schumann (no caso deste ser conhecido da prezada redaco) que nos represente pelo seu nome, se for necessrio. -Die Davidsbndler Com todo o gosto. -R. Schumann 17

Por outro lado, S. de imediato designado como mais velho, coincidindo com a verso dos dirios de Schumann, facto que coloca S. num plano de identidade mais prximo de Schumann. Repare-se que Eusebius designa S. como seu Doppelgnger, ao passo que Schumann designa Eusebius e Florestan como os seus prprios Doppelgnger nos seus dirios. Assim, Eusebius estabelece, neste texto, uma relao com S. semelhante que Schumann estabelecera com Eusebius e Florestan nos seus dirios. Tal significa que os pseudnimos, confessadamente Doppelgnger de Robert Schumann, podem ser considerados como representativos de pontos de vista diferentes do compositor, tanto na prtica crtica, como na composicional. Alm disso, os pseudnimos ilustram tambm um particular processo de auto-conscincia, que culmina na cristalizao dessas perspectivas sobre a a crtica e sobre a arte em Eusebius, Florestan e Raro. Poder-se-, pois, afirmar que a instncia autoral, em Der Davidsbndler, se desdobra em dois nveis: um primeiro nvel, em que a autoria do artigo, com a apresentao de Eusebius, Florestan e Raro no enquadramento da Davidsbund, atribuvel ao compositor e editor do NZfM Robert Schumann; e um segundo nvel, que se caracteriza por ser plural e marcadamente auto-reflexivo,

17

Cf. texto original no Anexo I, 4.

atravs de um exerccio constante de distanciao dos diversos pseudnimos, S. includo, face a Robert Schumann. Quanto ao carcter de Florestan e de Eusebius, pode dizer-se que as suas intervenes confirmam aspectos manifestados em Ein Werk II: Florestan mais caloroso, idealista e impaciente, enquanto Eusebius mais tolerante e moderado nas suas rplicas, e, de um modo geral, mais ponderado. Todavia, as descries habituais na bibliografia shumanniana filiam-se, em minha opinio, nos papis quase antitticos que desempenham em Davidsbndlertnze, Op. 6 (1837). De facto, neste ciclo de msica para piano (dezoito pequenas peas, assinadas ora por Eusebius, ora por Florestan, ora por ambos), as indicaes dos tempi poderiam ser utilizadas para descrever o comportamento de Florestan e Eusebius ou, pelo menos, o tom das suas intervenes, logo em Der Davidsbndler. De acordo com as indicaes dos tempi respeitantes s peas assinadas Eusebius, devem predominar a serenidade, a contemplao e a suavidade, ao passo que nas peas assinadas por Florestan se devem expressar sentimentos de impacincia, de impetuosidade e desassombro. Esta tabela sintetiza a autoria e as indicaes dos tempi das dezoito danas de Florestan e de Eusebius com o nmero da respectiva pea entre parnteses:Eusebius Innig (1), Einfach (5 e 11), Nicht schnell/mit usserst starker Empfindung (7), Zart und singend (14), Ganz zum berfluss meinte Eusebius noch folgendes, dabei sprach aber viel Seligkeit aus seinen Augen Etwas hahnbchen (3), Ungeduldig (4), Sehr rasch und sich hinein (6), Frisch (8), Hierauf schloss Florestan und es zuckte ihm schmerzlich um die Lippen (9), Balladen mssig. Sehr rasch (10), Mit Humor (12), Mit gutem Humor (16) (sem indicao de autoria) Lebhaft (1), Wild und lustig (13), Frisch (15), Wie aus der Ferne (17)

Florestan

Fl. / Eus.

Encontram-se outros exemplos musicais, embora nenhuma outra composio seja to clara nas indicaes dos tempi, de modo a que possa ser inequivocamente atribuda a Eusebius e Florestan. Com efeito, o uso de pseudnimos nas composies

musicais bastante desigual. A primeira edio da Pianoforte-Sonate, Op.11 (183335), assinada total ou parcialmente por Florestan e Eusebius, e tudes Symphoniques, Op.13 (1834), foi concebida como uma obra da autoria dos Davisdsbndler. Para alm das assinaturas, os pseudnimos schumannianos surgem de outro modo nas obras musicais. Um dos exemplos mais interessantes o de Carnaval, Scnes Mignones sur quatre notes, Op. 9 (1834-35). Este ciclo de msica para piano constitudo por vinte pequenas peas (as denominadas scnes) antecedidas por um Prembulo. A maioria dos ttulos identifica presumivelmente os protagonistas dessas cenas a figuram Florestan e Eusebius, a par de uma extensa galeria na qual se incluem personagens da Commedia dellarte, outros Davisdsbndler e os nomes de Chopin e de Paganini, bem como outros ttulos que remetem para hipotticas aces destas personagens ou do prprio compositor. Eis as designaes das cenas do Carnaval de Schumann: Prambule, Pierrot, Arlequin, Valse Noble, Eusebius, Florestan, Coquette, Rplique, Sphinxes, Papillons, A.S.C.H. S.C.H.A., Lettres Dansantes, Chiarina, Chopin, Estrella, Reconnaissance, Pantalon et Colombine, Valse

Allemande: Paganini, Aveu, Promenade, Marche des Davidsbndler contre les Philistins. Lawrence Kramer considera que Schumann desdobra metaforicamente o ttulo da composio, e que a natureza fragmentria destas cenas, maioritariamente danas ou marchas e peas de carcter, convida o ouvinte a interrelacionar as ideias de festa, arte, identidade e gnero. Na sua anlise de Carnaval, Kramer sublinha que, ao jogo musical sobre as notas A-ES-C-H. (omnipresentes, embora sem se constiturem como melodia), corresponde uma contnua troca de identidades entre as personagens que do nome s

diferentes peas 18. Segundo Dahlhaus, trata-se de um motivo simblico, que se refere a Asch, a cidade natal de Ernestine von Fricken, uma momentnea paixo de Schumann (Dahlhaus: 145). No se pode, porm, pensar que exista um programa subjacente a Carnaval; de facto, o encadeamento das peas no pressupe um fio condutor pr-existente. Alis, a musicloga L. C. Roesner esclarece que Schumann procedia por tentativas at encontrar a ordem definitiva das diferentes partes constitutivas destes ciclos de msica para piano, sendo que a sequncia final era escolhida de acordo com as tonalidades e os estados de esprito que essas partes sugeriam (Roesner:61) 19. Anthony Newcomb observa ainda que Schumann no considerava estas escolhas como definitivas: quer os ttulos, quer as legendas ou epgrafes constantes nas pequenas peas destes ciclos eram escolhidos aps a concluso das composies 20. Por seu lado, a primeira verso da Fantaisie, Op. 17 oferece aspectos pertinentes para o aprofundamento da relao entre a prtica crtica e a prtica componstica de Schumann-Davidsbndler. Originalmente concebida como uma sonata de homenagem a Beethoven, por ocasio do levantamento de fundos para o seu monumento, permite a observao de pontos de contacto com um artigo sobre o mesmo tema. Nicholas Marston cita uma carta de Dezembro de 1836 ao editor Carl F. Kistner, ao qual Schumann apresenta uma sonata como sendo fruto de uma ideia de Florestan e de Eusebius para homenagear Beethoven. Em Junho do mesmo ano, Schumann publicara o artigo Monument fr Beethoven. Vier Stimme darber (GSCf. Lawrence Kramer, Rethinking Schumanns Carnaval, in Musical Meaning, Toward a Critical History (Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 2002), pp.100-132. 19 Cf. Linda Cornell Roesner, The Sources for Schumanns Davidsbndlertnze, Op. 6: Composition, Textual Problems, and the Role of the Composer as Editor, in Mendelssohn and Schumann, Essays on their Music and its Context, eds. Jon W. Finson, R. Larry Todd (Durham: Duke University Press, 1984), pp. 53-70. 20 Cf. Anthony Newcomb, Schumann and the Marketplace: From Butterflies to Hausmusik, in Nineteenth-Century Piano Music (1990), ed. R. Larry Todd (New York and London: Routledge, 2004), pp. 258-315.18

Band I:215), que rene quatro seces, assinadas por Florestan, Jonathan, Eusebius e Raro 21. Estes quatro textos evocam o estilo laudatrio do epitfio, e deles ressalta a ideia de que a melhor homenagem a prestar a Beethoven poderia assumir duas formas. Jonathan sugere que se divulgue a sua msica atravs de interpretaes condignas e o exemplo dado o de Felix Meritis, ou seja, F. Mendelssohn Bartholdy (1809-1847) enquanto Davidsbndler. Florestan e Eusebius discutem a arquitectura desejvel, de propores gigantescas, anlogas dimenso da obra de Beethoven. Por fim, Raro sugere que o monumento seja um smbolo das celebraes musicais que se deveriam realizar em toda a Alemanha. No texto de Jonathan, o monumento surge tematizado como runa (acho que um monumento uma runa voltada para frente (tal como esta um monumento voltado para trs, ich sage, schon ein Denkmal ist eine vorwrts gedrehte Ruine (wie diese ein rckwrts gedrehtes Monument) GS Band II: 218) e a honra e glria devida a um grande msico comparada, por duas vezes, de um imperador (Imperator Napoleon (215), segundo Florestan, ein deutscher Kaiser (221), para Eusebius). Ora, runa, honra e glria so exactamente as noes subjacentes aos trs andamentos da sonata proposta a C.F. Kistner, os quais deveriam figurar no prprio ttulo da obra: Ruinen, Trophaeen, Palmen, Grosse Sonate f.d.Pianof. fr Beethovens Denkmal, von Florestan u. Eusebius. A relao entre este plano e Monument fr Beethoven. Vier Stimme darber , pois, estreita, no sendo despiciendo que, antes da ltima designao Fantaisie, Schumann se tenha igualmente referido a esta sonata como Dichtungen: Ruinen, Siegesbogen, Sternbild. Pese embora o facto de Marston considerar que o ttulo do primeiro andamento, Ruinen, se refere ao momento difcil do relacionamento entre Schumann e Clara Wieck (1819-1896), parece-me bem mais21

Cf. Nicholas Marston, The Compositional History of the Fantaisie, in Schumann: Fantaisie, Op.

plausvel que a sonata e o artigo tenham sido concebidos como um desenvolvimento da mesma ideia que Schumann alimentava em relao ao monumento a Beethoven, isto , a de que a nica homenagem imperecvel a criao e a interpretao de msica: porm, msica grandiosa, como a de Beethoven, dirigida por Felix Meritis, Mensch von gleich hoher Stirn wie Brust ou ento, a sua prpria Grosse Sonate. Do que acabo de expor, pode-se concluir que existe uma reciprocidade de usos e de efeitos entre a prtica crtica e a produo musical, no que se refere utilizao dos pseudnimos, principalmente no perodo compreendido entre 1833 e 1843. Nos textos de crtica musical, este desdobramento de vozes surge por vezes ficcionado, no sentido em que esses Davisdsbndler, por vezes, protagonizam pequenos episdios, os quais, no seu conjunto, constituem um artigo de crtica a uma pea musical ou a um compositor. Quando se pronunciam apenas como crticos, assinam um artigo ou seces de um mesmo artigo, as quais por vezes se estruturam dramaticamente, ou seja, uma seco resposta a outra; o caso de Aphorismen (von den Davidsbndlern) (GS Band I:208-212), texto no qual Eusebius, Raro e Florestan emitem opinio sobre diversos Das temas, Sehen que der surgem Musik, como Das subttulos ffentliche

(Componistenvirtuosen,

Auswendigspielen, Das Anlehnen, Rossini, Rossinis Besuch bei Beethoven, Italinisch und Deutsch). Eusebius, Raro e Florestan podem tambm protagonizar pequenas narrativas que se desenvolvem em trs ou quatro cenas, dialogando entre si, ou at contracenar com outros elementos pertencentes Davidsbund. o caso de Bericht an Jeanquirit ber den Kunsthistorischen Ball des Redacteurs. Von Florestan (GS Band I: 106115), onde se relatam um baile, as conversas entre os pares danantes e as atitudes dos

17, Cambridge Music Handbooks (Cambridge: Cambridge University Press, 1992), pp. 1-22.

convidados. Ao mesmo tempo, os intervenientes criticam doze danas de compositores diversos, as seleccionadas para a programao do baile, decorrendo a crtica das conversas mantidas enquanto efectivamente se dana. Ocorrem outros formatos, tais como Schwrmebriefe I und II von Eusebius22, um conjunto de cartas que serve de pretexto a peas crticas, dirigidas a Chiara, o nome de Davidsbndler para Clara Wieck, a qual, contudo, no interage como personagem. As referncias temporais e espaciais em alguns destes textos colocam, por vezes, a narrativa dentro de um enquadramento temporal e espacial que evoca deliberadamente um outro tempo e um outro espao identificveis como pertencendo a um ambiente ou a um acontecimento reais. Por outras palavras, a partir de um acontecimento efectivamente vivido pelas pessoas que pretendem simbolizar enquanto membros da liga de David, essas personagens-Davidsbndler dramatizam esse acontecimento atravs do seu desempenho numa sucesso de cenas, recorrendo a evidentes alteraes em relao experincia originalmente vivida, com a finalidade de criticar o comportamento ou de simplesmente comunicar com a pessoa que estivera presente no efectivo momento em que decorrera esse acontecimento. Em busca de explicao para a gnese da Davidsbund e dos pseudnimos, os musiclogos schumannianos utilizam, como principais fontes, os dirios e a correspondncia, bem como os livros de registo mantidos por Clara e Robert Schumann entre 1837 e 1856 23 colocando os textos de Schumann-Davidsbndler em segundo plano. John Daverio, autor de uma extensa biografia de Schumann 24, considera mesmo que esta abundncia de fontes auto-biogrficas, marcadamente deNa edio de GS de 1854, Schumann incluiu apenas a primeira e a terceira cartas. Jansen e Kreisig incluram a segunda e a quarta em apndices das respectivas edies de GS. 23 Cf. Robert Schumann, Tagebcher, eds. G. Eismann, G. Neuhaus (Leipzig: Deutscher Verlag fr Musik, 1971,1987). Clara Schumann, Briefwechsel, Kritische Gesamtsausgabe, 3 Bnde, ed. Eva Wessmeiler (Basel: Strmfeld, 1984, 2001).22

carcter intimista e confessional, tem produzido efeitos nefastos na bibliografia schumanniana. O compositor manteve o seu dirio desde 1827 at 1854, apenas com uma interrupo entre Maro de 1833 e Outubro de 1837; segundo Daverio, a informao a veiculada propicia um tratamento sensacionalista, contribuindo para mistificar a existncia do compositor em vez de enriquecer a interpretao da sua obra (Daverio 1997:4-5). O facto de Plantinga, em Schumann as Critic, desvalorizar a condio de Schumann enquanto Davidsbndler pode, alis, ser entendido como o posicionamento necessrio para estruturar uma anlise dos textos crticos, sem recorrer a explicaes de natureza auto-biogrfica. Numa nota ao artigo intitulado Aus den kritischen Bchern der Davidsbndler l-se a seguinte explicao do autor: Assume-se que os Davidsbndler mantinham um livro [de actas], no qual anotavam os seus pensamentos sobre obras recm publicadas. (Es wird angenommen, da sich die Davidsbndler ein Buch hielten, in das ihre Gedanken ber neuerschienene Werke u. einzeichneten. GS Band I: 12). Esta atitude do prprio Schumann enquanto editor (es wird angenommen) contagia efectivamente grande parte dos musiclogos schumannianos, reforando a ideia de que os pseudnimos de Schumann, os Davidsbndler e a crtica musical que subscreveram no passam de um produto da imaginao ou um efeito estilstico, explicvel do ponto de vista psicolgico. Mesmo Daverio, por exemplo, hesita em considerar a Davidsbund como estrutura organizadora, considerando que se tratava de uma organizao meio imaginria, meio real (Daverio 2001:766). Alm disso, o reconhecimento pelo prprio compositor, no seu dirio, quer da dualidade do seu talento como msico e como poeta, quer da admirao por Jean Paul (1763-1825), conduz grande parte dos crticos a considerar o carcter literrio dos textos crticos de24

Cf. John Daverio, Robert Schumann, Herald of a New Poetic Age (New York, Oxford: Oxford

Schumann como dissociados do seu posicionamento esttico e crtico enquanto msico. A maioria dos argumentos utilizados fundamenta o aparecimento dos pseudnimos como fruto da personalidade dividida do compositor e cita os textos crticos para corroborar os dirios e a correspondncia. Por conseguinte, os elos que se estabelecem entre os textos crticos e a produo musical tomam a forma de analogias, por vezes de contornos pouco claros. Daverio no escapa a este recurso, desvirtuando a clareza do argumento. Ao alternar e justapor sistematicamente os termos msica e poesia ou musical e potico, produzem-se enunciados cujo sentido se perde em analogias pouco produtivas, tais como: Assim como muita da sua crtica potica adopta um estilo quase musical, muitas das suas composies podem ser interpretadas como crticas em som de prtica passada e contempornea. (Daverio 2001:767) 25. A meu ver, a ideia de que o acto de compor pode ser perspectivado como um modo de fazer crtica, que me parece ser aqui o mais importante, acaba por se diluir numa analogia entre a msica e a poesia que repete ad nauseam os termos de Heinrich Heine (1797-1856) na caracterizao de Chopin nas cartas reunidas em ber die franzsische Bhne:[Chopin] no simplesmente um virtuoso, tambm poeta [Poet], consegue levar-nos contemplao da poesia que vive na sua alma, compositor [Tondichter], e nada se assemelha ao prazer que nos oferece, quando se senta ao piano e improvisa. () a sua verdadeira ptria o reino de sonho da poesia. 26

At cerca de 1980, os musiclogos tendem, pois, a associar os pseudnimos (bem como a Davidsbund) ao estilo belletristisch e a consider-los como artifcios literrios, situados ao mesmo nvel de outros recorrentes no NZfM, os quais apenas pretenderiam criar no leitor a convico de que a Davidsbund seria uma associaoUniversity Press, 1997). 25 Cf. texto original no Anexo I, 5.

legalmente formalizada. A insuficincia e a inoperncia das anlises de fundamentao psicolgica para explicar o tipo particular de subjectivizao que se observa na pseudonmia de Schumann abriu caminho, em parte, a anlises de pendor sociolgico, iniciadas com o artigo de Bernhard Appel, Schumanns Davidsbund, Geistes- und sozialgeschichtliche Voraussetzungen einer romantischer Idee (1981) 27, que adiante comento. A partir de ento, um nmero significativo de investigadores tem colocado os pseudnimos e a Davidsbund como a chave necessria para a interpretao de diferentes questes levantadas pela prtica crtica e composicional de Schumann. Esta mudana de paradigma constitui-se, em parte, como resposta ao ensaio Neuromantik de Carl Dahlhaus 28. Este musiclogo denuncia o carcter predominantemente monumentalista da historiografia da msica do sculo dezanove, lanando um repto igualmente nietzscheano para a instaurao de uma nova ordem na historiografia musical no sculo dezanove, semelhana do que j se verificava com os sculos precedentes 29. Dahlhaus considera que tal se deve ao facto de a histria da msica desse sculo ser vista como o conjunto das vidas dos seus protagonistas ou heris, a que se associa o culto do gnio e a ideia de que podem ocorrer nexos de causalidade entre composies musicais e factos biogrficos. Na sua perspectiva, este conceito de histria, ligado noo de Zeitgeist, contribuiu para que a designao de neo-romntico ocultasse aquilo que Dahlhaus descreve como o carcter

Cf. Heinrich Heine, Werke und Briefe, 6, ber die franzsische Bhne, Ludwig Brne, Lutetia (Berlin, Weimar: Aufbau-Verlag, 1980), pp.80-1. Cf. texto original no Anexo I, 6. 27 Cf. Bernhard Appel, Schumanns Davidsbund, Geistes- und sozialgeschichtliche Voraussetzungen einer romantischer Idee, Archiv fr Musikwissenschaft, XXXVIII. Jahrgang, Heft 1 (Wiesbaden: Franz Steiner Verlag Gmbh, 1981), pp. 1-23. 28 Cf. Carl Dahlhaus, Neuromantik, in Zwischen Romantik und Moderne: Vier Studien zur Musikgeschichte des spteren 19. Jahrhunderts (Munich: Musikverlag Emil Katzbichler, 1974). Edio utilizada: Between Romanticism and Modernism, trad. Mary Whittall (Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1989), pp. 1-18. 29 Cf. Friedrich Nietzsche, Unzeitgemsse Betrachtung II, Vom Nutzen und Nachteil der Historie fr das Leben (1873) (Frankfurt am Main/Leipzig: Insel Verlag, 2000).

26

intempestivo da produo musical de diferentes compositores da segunda metade do sculo dezanove. Por outras palavras, neste perodo, a msica continuou a ser representativa de um iderio romntico datado do incio do sculo, ao passo que as restantes artes deixaram de o ser (o exemplo preferencial neste texto a pintura). esta tambm a tese de Daverio, em Nineteen-Century Music and the German Romantic Ideology, quando defende que a msica alem actualiza diferentes conceitos-chave do Romantismo Alemo de Jena, de Carl Maria von Weber (17861826) a Richard Strauss (1864-1949). 30 Alm de Daverio, saliento Leon Botstein e Anthony Newcomb, cujas anlises analiso aps a exposio de perspectivas anteriores que contribuem para o entendimento de aspectos pontuais da pseudonmia de Schumann. A sntese que em seguida apresento no pretende ser exaustiva, tendo antes como principais objectivos exemplificar como a questo da pseudonmia de Schumann , por vezes, analisada atravs da reiterao de lugares-comuns, alguns deles indefensveis face investigao mais recente. Ao mesmo tempo, selecciono os elementos de anlise consensuais, que se mantm coerentes face investigao mais recente. (1) A descrio mais comum de Schumann retrata o compositor como uma personalidade rica e diversificada, com um talento dual para a literatura e para a msica; leitor vido de Jean Paul e de Hoffmann - o que absolutamente verdadeiro -, a sua imaginao literria manifestou-se inicialmente em compilaes de versos, ainda no Gymnasium, bem como em vrias tentativas de escrita de novelas, na apario de um pseudnimo juvenil: Sklander. Os pseudnimos e os elementos ficcionalizados da sua crtica e da sua composio constituiriam, assim, uma

30

Cf. John Daverio, Nineteenth-century Music and the German Romantic Ideology (New York: Schirmer Books, 1993), em especial o segundo e o terceiro captulos, Schumanns Opus 17 Fantasie and the Arabeske e Schumanns Systems of Musical Fragments and Witz.

manifestao tardia dessa imaginao literariamente frtil, na influncia directa das leituras mencionadas. Embora reconhecendo que a reside a particularidade do talento

schumanniano, Gerald Abraham na sntese biogrfica de Schumann para a primeira edio (1980) de The Grove Dictionary of Music and Musicians 31 (doravante, The Grove) e R.H. Schauffler, na sua biografia de Schumann 32, apenas constatam este facto. Frequentemente traz associado a ideia de que o exacerbamento desta sensibilidade literria e musical seria um sintoma da loucura a que Schumann sucumbiu e que obrigou ao seu internamento numa casa de sade mental de 1854 a 1856, ano da sua morte. O primeiro pargrafo do artigo de Judith Chernaik 33 refere esta interpretao como um dos lugares-comuns acerca de Schumann, enquanto o seu artigo refora a tese de que a loucura final resulta de um quadro clnico de sfilis terciria 34. Daverio, na entrada para a segunda edio de The Grove (2001), estrutura a produo musical em paralelo com a alternncia de perodos disfricos e eufricos, afinal um dos ingredientes habituais na viso romanticizada da vida de Schumann. (2) Uma outra perspectiva enfatiza a herana literria de Jean Paul e descreve a biografia do compositor como uma tentativa de dar vida aos protagonistas dos romances deste escritor, sendo que os pseudnimos Florestan e Eusebius teriam tido origem em duas personagens destinadas a uma novela, Die Wunderkinder. Assim, o uso de pseudnimos corresponderia a uma fase de relativa imaturidade, o equivalente aos Flegeljahre de Schumann, numa dupla analogia com a obra homnima de JeanCf. The New Grove Dictionary of Music and Musicians, ed. Stanley Sadie (London: Macmillan Press Limited, 1980), Vol. 16, pp.827-70. 32 Cf. Robert Haven Schauffler, Florestan, The Life and Work of Robert Schumann (New York: Dover Publications, Inc., 1945). 33 Cf. Judith Chernaik, Guilt alone brings forth Nemesis, the last days of Schumann at Endenich: extracts from a doctors diary, The Times Literary Supplement, August 31, 2001, pp. 11-13. 34 Sobre a frequncia com que a sfilis, a genialidade e a loucura surgem associadas em descries biogrficas de artistas do sculo dezanove, cf. Deborah Hayden, Pox: Genius, Madness and the Mysteries of Syphilis (New York: Basic Books, 2003).31

Paul de 1804, na qual as personagens principais, Vult e Walt, so dois irmos gmeos habitualmente interpretados como representando aspectos contrastantes da

personalidade do prprio Jean Paul. Este escritor criou ainda duas personagens, Leibgeber e Siebenks, lidos habitualmente como outros Doppelgnger de Jean Paul. Todavia, R. Tymms chama a ateno para o facto de Leibgeber e Siebenks representarem aspectos complementares de uma personalidade idealizada e no a do prprio Jean Paul 35, remetendo, assim, estes Doppelgnger para uma existncia apenas literria. O ambiente exclusivamente musical em que actuam Florestan, Eusebius, Raro e outras criaes de Schumann relacionar-se-ia com a influncia de Hoffmann, atravs de um conjunto de novelas em que o fantstico se associa ao utpico dentro de um universo musical 36. Com efeito, a leitura de Flegeljahre (1804) de Jean Paul de 1827 ou do ano seguinte e a leitura de Die Serapionsbrder (181921) de Hoffmann, igualmente considerada relevante para a gnese dos pseudnimos e da Davidsbund, de 6 de Junho de 1831, dois dias antes do aparecimento dos pseudnimos. Na minha opinio, Plantinga em Schumann as Critic um caso limite deste tipo de analistas, ao atribuir a natureza dos artigos de Schumann-Davidsbndler a acentuadas inclinaes literrias do tempo da sua infncia em Zwickau (ibid, 61). A sua descrena na identidade de Schumann-Davidsbndler to convicta que nem dissimula a estupefaco pelo facto de uma crtica, constituda por seces assinadas por Eusebius, Florestan e Raro, conseguir efectivamente descrever e classificar sonatas atravs do comentrio de exemplos musicais (ibid, 66). Por conseguinte, o sistema de narrativas encaixadas, visvel nos artigos de Schumann-Davidsbndler mencionados nas pginas iniciais deste captulo, desvirtuaria o prprio objecto35

Cf. Ralph Tymms, Doubles in Literary Psychology (Cambridge: Bowes &Bowes, 1949), pp. 28-71.

criticado, alm de tornar as anlises musicolgicas desses artigos pouco credveis e nada fiveis. Jochen M. Lebelt, semelhana de Plantinga, considera que o jornalismo musical seria um modo de conciliar esse talento dual de Schumann para a msica e para a literatura, reconhecido pelo prprio compositor (Lebelt:98; Plantinga 1967:47,53). (3) Peter Ostwald, um dos principais alvos da crtica de Daverio, amplifica a primeira anlise aqui descrita, explicando que a inveno dos pseudnimos funcionou para Schumann como um processo de compensao freudiana para um perodo de abstinncia sexual forada, dominado pela ansiedade e por sentimentos de culpa, na convico de que contrara uma doena venrea (o que, de facto, se confirma) 37. Ostwald no relaciona o aparecimento de Florestan e de Eusebius com a criao da Davidsbund e menos ainda com a prtica crtica do compositor. Leon Botstein 38 cita Ostwald como um dos crticos que descreve a personalidade de Schumann como estranha e sujeita a perodos de profundo abatimento, o que, afinal, coloca Ostwald na linha dos bigrafos do sculo dezanove para quem Schumann oferecia a imagem idealizada do artista romntico louco e genial (Botstein: 4-5) 39. A proposta mais interessante de Ostwald remetida para uma nota de rodap certamente por entrar em conflito com a explicao psicanaltica que este musiclogo defende. Nessa nota, Ostwald chama a ateno para o facto de Schumann poder ter tido conhecimento, durante os seus estudos clssicos em Zwickau, de um tratado de

Trata-se de Ritter Gluck (1809), Don Juan (1812), e outras novelas da colectnea Die Serapionsbrder (1819-21), tais como Die Fermate (1815) e Rat Krespel (1816). 37 Cf. Peter Ostwald, Schumann, The Inner Voices of a Musical Genius (Boston: Northeastern University Press, 1985), pp. 74-79. 38 Cf. Leon Botstein, History, Rhetoric, and the Self: Robert Schumann and Music Making in German-Speaking Europe, 1800-1860, in Schumann and his World, ed. R. Larry Todd (Princeton: Princeton University Press, 1994), pp. 3-46. 39 Sobre a persistncia das explicaes psicolgicas para descrever a recepo da produo musical em detrimento de uma anlise sociolgica das edies das obras musicais, cf. Hans Lenneberg, The Myth of the Unappreciated (Musical) Genius, The Musical Quartely, vol. 66, n.2 (April 1980), pp. 219-231.

36

msica do neo-platonista Aristides Quintilianus 40 (Ostwald:78,n.). Aristidis Quintiliani de musica um tratado redigido sob a forma de uma exposio do autor a dois destinatrios, Florentius e Eusebius. Apresenta semelhanas com a obra de Plutarco De musica, no qual a exposio feita atravs de um dilogo entre dois interlocutores, havendo um moderador a abrir e a fechar o dilogo. Segundo Thomas J. Mathiesen, editor da traduo em lngua inglesa, estas obras inseriam-se na tradio platonista do dilogo filosfico, sendo numerosas as aluses a Plato e a tratados de msica da antiguidade clssica (Mathiesen:10-15). Embora Mathiesen refira que o tradutor alemo Rudolf Schfke j associara os nomes dos destinatrios de Aristides Quintilianus aos pseudnimos de Schumann 41, a bibliografia schumanniana prefere tradicionalmente as explicaes de natureza confessional do compositor. Mesmo a verso de Schauffler para os pseudnimos, que me parece ser a mais coerente e completa quanto escolha dos nomes dos Davidsbndler, nem menciona Florentius e Eusebius, nem Quintilianus. Pelo contrrio, aceita a explicao de Schumann para a escolha do nome de Eusebius, relacionada com a proximidade das datas dos dias dos santos com os nomes de Clara, Aurora e Eusebius no incio do ms de Agosto. Ora, a coincidncia dos nomes dos destinatrios de A. Quintilianus com os pseudnimos do compositor no me parece de modo algum fortuita. Embora, no caso de Florestan, no seja de excluir uma relao com a personagem homnima da pera Fidelio (Op. 72) de Beethoven, o didactismo pretendido por Schumann na sua prtica crtica pode tambm reflectir o tratado de Aristides Quintilianus.

Data desconhecida, provavelmente entre o primeiro sculo a.C. e o quarto sculo d.C. . Edio utilizada nesta dissertao: Aristides Quintilianus, On Music in Three Books, trad., introd. e notas de Thomas J. Mathiesen, Music Theory Translation Series (New Haven, Connecticut: Yale University Press, 1983). 41 De acordo com Mathiesen, cf. Von der Musik, Aristides Quintilianus, trad, e introd. Rudolf Schfke (Hesse: Berlin-Schneberg, 1937), p. 159.

40

Quanto ao caso de Raro, Schauffler reitera a proposta de Heinrich Reimann, como sendo a seco central dos nomes de Clara Wieck e de Robert Schumann claRARObert , o que me parece muito defensvel e bem enquadrado dentro da pluralidade de vozes divergentes pretendida por Schumann 42. Schauffler considera que a aproximao de Clara Wieck/Raro a Schumann como elemento conciliador entre Florestan e Eusebius mais plausvel do que a identificao de Raro como Friedrich Wieck, pai de Clara, dada a situao de conflito vivida entre Schumann e F. Wieck durante esse perodo (Schauffler:80). Para justificar a escolha do nome de David, Schauffler adopta a interpretao consensual atravs da filiao bblica no Rei David, poeta e msico que derrotou os Filisteus. David seria Schumann e Jonathan, amigo do Rei David, seria o pseudnimo de Ludwig Schunke (1810-1834), o seu amigo de todas as horas durante a gnese da Davidsbund. Alm disso, Schauffler relembra que, na sequncia de conflitos com os habitantes de Jena no final do sculo dezassete, os estudantes universitrios designaram os seus opositores como Filisteus, considerando que no se encontravam ao seu nvel intelectual e de apreciao esttica (Schauffler:79). Esta observao refora os comentrios de Plantinga sobre Schumann e os Davidsbndler, os quais se consideravam injustiados, enquanto artistas, por falta de reconhecimento por parte de um pblico pouco receptivo (Plantinga 1967:23). O facto de Schumann ter abandonado o uso de pseudnimos a partir de 1843 (coincidindo com a composio de Das Paradies und die Peri, Op. 50) parece corroborar o argumento de que corresponderiam a uma fase de imaturidade ou, pelo menos, de formao do compositor. Raro desapareceu em 1836, Eusebius manteve-se esporadicamente at 1839, e Florestan apareceu pela ltima vez em 1842. O ltimo artigo assinado por um Davidsbndler (de 1843, com a assinatura Dblr.) 42

Como fonte para esta explicao do nome Raro, Schauffler cita Heinrich Reimann, Robert

provavelmente do pianista e compositor Stephen Heller (1813-1888), correspondente do NZfM em Paris (Plantinga 1967:78, n.66). A este respeito, alguns aspectos j presentes em abordagens crticas contemporneas do prprio compositor merecem ser apontados. F. Gustav Jansen, no segundo captulo do seu livro de 1883, dividiu a produo musical de Schumann em duas fases, tomando Faschingschwank aus Wien, Op. 26 (1839) como a linha divisria entre uma fase de formao, dominada pelas Davidsbndler- compositionen, e uma segunda fase de maturidade 43. Embora defendesse uma perspectiva organicista para descrever a produo musical de Schumann, Brendel, em 1845, recorrera a outro critrio, de inspirao literria, para dividir a obra do compositor em dois perodos; o primeiro perodo, de tom lrico, seria constitudo por obras reveladoras de uma intensa subjectividade, caracterizada por formas extremas de humor e de fantasia, e o segundo perodo, em que predomina a objectividade, seria dominado por obras de ambio pica 44. Todavia, Jansen e Brendel consideraram sempre a pseudonmia de Schumann como elemento fundamental para a estruturao e para a interpretao da primeira parte da obra schumanniana, ao passo que qualquer dos musiclogos mencionados em (1) e (2) tende a considerar a pseudonmia como um momento de formao presente em obras de carcter intimista. A escolha de dois grandes perodos denota uma interpretao dessa segunda fase da composio musical que no privilegia qualquer relao com o primeiro perodo, no sentido em que nas composies dessa segunda

Schumann, Leben und Werken (Leipzig: 1887). 43 Cf. F. Gustav Jansen, Die Davidsbndler aus Robert Schumanns Sturm- und Drangperiode (Leipzig: Druck und Verlag von Breitkopf und Hrtel, 1883), p.39. 44 Cf. Robert Schumann, Herald of a New Poetic Age, pp. 342, 330-331. Segundo Daverio, uma outra diviso frequente da obra de Schumann, num primeiro perodo romntico e num segundo perodo clssico, filia-se igualmente em Brendel (Daverio, 1997:12).

fase ter-se-ia perdido o dialogismo presente nas composies com a assinatura ou com a incluso de partes atribuveis aos Davidsbndler. (4) Daverio representa na actualidade a abordagem crtica mais consistente e coerente sobre as influncias literrias, em especial do romantismo alemo, com a particularidade de considerar toda a produo musical e crtica numa perspectiva de continuidade e sob o signo de Schumann-Davidsbndler. Com efeito, ao contrrio de Abraham que, na entrada de The Grove de 1980, reservou apenas as dez linhas finais para referir a prtica crtica do compositor, Daverio, na edio de 2001, descreve a produo musical de Schumann como um conjunto de ciclos centrados em diferentes gneros musicais, todos eles marcados dialogicamente por dois tipos de linguagem musical que identifica como sendo as vozes de Florestan e de Eusebius: msica para piano (1833-39), Lied (1840), msica sinfnica (1841), msica de cmara (1842), oratria (1843), formas contrapontsticas (1845), msica dramtica (1847-8) e msica sacra (1852) (Daverio 2001:773-4). Com esta proposta, Daverio ultrapassa simultaneamente a periodizao herdada do sculo dezanove, ao mesmo tempo que evita discutir uma questo candente, levantada por Newcomb, que chama a ateno para dados bem mais prosaicos, mas no menos interessantes e pertinentes, no que diz respeito estrutura cclica das composies para piano de Schumann. Newcomb considera que existem trs perodos distintos para a msica para piano de Schumann: o primeiro, at cerca de 1839 (Opp. 1-23; 26,28,32), o segundo compreendendo os estudos polifnicos (Opp. 56,58,60,72) e o terceiro incluindo a produo ps-1845, que Newcomb designa como Hausmusik. O primeiro perodo caracteriza-se por composies pouco convencionais, de difcil execuo, cuja recepo junto do grande pblico (atravs dos concertos de Clara Schumann e de Franz Liszt) ficava muito aqum do agrado e da notoriedade conquistada junto das

interpretaes em privado. Ora, era deste pblico que um compositor vivia, atravs das vendas de partituras para consumo domstico, as quais, porm, tinham de ser relativamente fceis de executar e de interpretao acessvel. Segundo Newcomb, a necessidade de ir ao encontro do gosto de um pblico menos sofisticado teria condicionado Schumann a utilizar formas e gneros mais convencionais, depois dos grandes ciclos de canes, a partir de 1840. Caso se aceite este argumento, ter que se reconhecer que Schumann, na msica para piano, optou por agradar um pblico de Kenner e Liebhaber, ao invs das primeiras composies, nitidamente destinadas a um pblico de Knstler, o que, do ponto de vista cronolgico, coerente com outras opes do compositor, j que grande parte da Hausmusik foi composta aps 1844, ano em que Schumann ps termo sua actividade como editor do NZfM 45. Ora, como editor, Schumann tentara desenvolver a capacidade de anlise de um pblico de Kenner e de Liebhaber, apelando deliberadamente ao desenvolvimento das suas capacidades de avaliao esttica, de modo a que pudesse apreciar um tipo de msica mais elaborado e mais exigente. No deve, contudo, considerar-se que se trata aqui apenas de uma vacilao do compositor; Newcomb sublinha a coincidncia deste perodo com o intenso revivalismo da msica de J. S. Bach (1685-1750), que se iniciou em Leipzig pela iniciativa de Mendelssohn, originando uma mudana no paradigma esttico-musical

A distino entre Knstler, Kenner e Liebhaber data do artigo Kenner de J.G. Sulzer, Allgemeine Theorie der schnen Knste (Biel, 1777), Theil 2, Band 1, pp. 5-14. J. A. Hiller identifica trs classes de Kenner num artigo publicado em Wchentliche Nachrichten, 3 (1768). Plantinga esclarece que no sculo dezoito surgiu um primeiro tipo de peridicos musicais destinados a amadores, classe-mdia, que seguia o modelo dos semanrios literrios, tendo evoludo para peridicos de ndole tecnicista e puramente musicolgica. Os peridicos destinados a Kenner e Liebhaber seguiam a actualidade musical atravs da anlise de partituras recm publicadas (Plantinga 1967: x, 43). Graf apresenta um bom exemplo na actividade do terico musical Friedrich Wilhelm Marpurg (1718-95), que dirigiu sucessivamente publicaes de natureza distinta destinadas a Kenner (Der kritische Musicus an der Spree, 04.03.1749-17.02.1750), a Liebhaber (Historisch-Kritische Beitrge zur Aufnahme der Musik, a partir de 1754, num total de cinco volumes de seis nmeros cada), para regressar novamente a um pblico de Kenner com Kritische Briefe ber die Tonkunst (1759-1763, dois volumes de quatro partes cada) (Graf: 59-61).

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alemo na msica para piano, com o retorno ao cultivo de formas mais simples, a que Schumann certamente no permaneceu indiferente. Leon Botstein e Appel, cujas anlises passo agora a apresentar, contribuem com observaes seminais para a questo da gnese e do uso dos pseudnimos e para a circunscrio da influncia literria de Jean Paul na criao dos pseudnimos. (5) Botstein introduz um novo dado, pois considera que, a par da obra de Jean Paul, Die Deutsche Literatur (1827) de Wolfgang Menzel (1798-1873) constitui um modelo possvel para o exerccio da crtica. No seu tempo, Menzel escreveu Mrchen dramticos la Tieck (Rbezahl, 1829, Narcissus, 1830) e, pelo menos uma novela (Furore, 1851), embora tenha sido a polmica contra o movimento Junges Deutschland no jornal Literaturblatt que o tornou conhecido. Considerado como um crtico selvagem e pouco escrupuloso, atacou de forma virulenta Heinrich Heine e Ludwig Brne (1786-1837) e nem mesmo J. W. Goethe (1749-1832) escapou sua crtica em Die deutsche Literatur, obra muito divulgada e que Schumann leu de imediato 46. A literatura surge a como o meio preferencial para formar um pblico, considerando Botstein que a linguagem e a estratgia editorial de Schumann se inspiraram em Menzel. Desse modo, a nova crtica protagonizada por Florestan, Eusebius e Raro teria adoptado o estilo jocoso e o tom irnico de Menzel, ele prprio influenciado por Jean Paul:A linguagem e a estratgia da crtica musical de Schumann, em particular o ataque ao pedantismo antiquado e ao filistinismo contemporneo inspiraram-se em Menzel. O resultado foi a estratgia da prosa de Jean Paul (o uso das personagens, i.e., Eusebius, Florestan, Raro e a criao de um dilogo interno com diferentes pontos de vista), imbuda do tom e das ideias de Menzel. (Botstein:18) 47

Sobre Wolfgang Menzel, cf. AAVV, Kurze Geschichte der deutschen Literatur (Volk und Wissen: Volkseigener Verlag Berlin, 1983), pp.372-73; Robert Koenig, Deutscheliteraturgeschichte, zweiter Band (31. Auflage) (Bielefeld und Leipzig: Verlag von Velhagen & Klasing, 1906), pp. 319-20; The Oxford Companion to German Literature, eds. Henry Garland e Mary Garland (Oxford: Oxford University Press: 1997), p. 581. 47 Cf. texto original no Anexo I, 7.

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Neste artigo, Botstein coloca o acto de leitura no cerne da sua anlise: por um lado, considera que as leituras de Jean Paul e de Menzel so determinantes para a compreenso do posicionamento crtico de Schumann. Na sua opinio, tal deve-se ao facto de as obras de Jean Paul pretenderem produzir no leitor o efeito de uma contemplao filosfica e emocional e de Menzel defender o papel interventivo e reformador da literatura e da crtica. Por outro lado, Botstein considera que Schumann pretenderia que a sua msica actuasse junto do ouvinte ou do intrprete de um modo semelhante ao da leitura, isto , que a msica pudesse assumir um papel na formao esttica do indivduo e na educao do gosto do pblico 48 (Botstein: 16-40). Ao aprofundar a contextualizao da Davidsbund no meio musical e cultural do seu tempo, o ensaio de Bernhard Appel Schumanns Davidsbund, Geistes- und sozialgeschichtliche Voraussetzungen einer romantischer Idee 49 possibilita uma interpretao da gnese dos pseudnimos e dos restantes Davidsbndler menos permevel a preconceitos, como os de Plantinga, ou a explicaes psicanalticas, no mnimo especulativas, como o caso de Ostwald. O rigor da anlise de Appel permite, alm do mais, desmistificar a verso de Schumann no Prefcio de 1854, que designa os encontros no Kaffeebaum de Leipzig como meramente ocasionais, a resoluo de fundar o NZfM como uma misso quixotesca, o seu papel como o de um sonhador e a Davidsbund como produto da sua imaginao 50:

O ensaio de Botstein foi escrito contra-argumentando o j citado artigo de Anthony Newcomb, Schumann and the Marketplace: From Butterflies to Hausmusik, in Nineteenth-Century Piano Music (1990), ed. R. Larry Todd (New York and London: Routledge, 2004), pp. 258-315. Botstein defende que h uma continuidade nos pressupostos estticos de Schumann, verificvel quer na prtica crtica, quer na musical. O ensaio de Botstein compreende quatro partes: (1) a relao com Jean Paul e Wolfgang Menzel e outras propostas de leituras e de escrita do incio do sculo dezanove; (2) o discurso filosfico contemporneo do jovem Schumann sobre o lugar da esttica dentro do conhecimento e da experincia; (3) a sua relao com o tempo histrico, passado e futuro; (4) o seu interesse pela histria de arte e pela pintura do incio do sculo dezanove. 49 Cf. Archiv fr Musikwissenschaft, XXXVIII. Jahrgang, Heft 1 (Wiesbaden: Franz Steiner Verlag Gmbh, 1981), pp. 1-23. 50 Cf. texto original e respectiva traduo no Anexo II, pp. 316-19.

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No final do ano 1833 reuniu-se em Leipzig, todas as noites e como que por acaso, um certo nmero de msicos, na sua maioria jovens, em primeiro lugar para um encontro amigvel, mas no menos para trocar ideias sobre a arte que era, para eles, o alimento da vida: a msica. () Ento, certo dia, passou pela cabea destes jovens estouvados esta ideia: no nos abandonemos ociosidade, lancemos mos obra, para que as coisas melhorem, para que a poesia da arte alcance de novo dignidade. () Assim nasceram as primeiras pginas de um novo peridico musical. () o fantasiador musical da sociedade. () Cabe aqui mencionar uma associao, que era mais do que secreta, nomeadamente porque s existia na cabea do criador, a Liga de David. (GS:3)

A criao dos pseudnimos e da Davidsbund, bem como o seu uso em composies musicais e na crtica musical ganham novos contornos com a anlise de Appel, ao surgirem como um processo em que a criatividade do compositor se exerceu atravs da expresso de um ponto de vista crtico sobre si mesmo e sobre o meio musical que o rodeava. Ao ter-se exercido sobre si mesmo, esse ponto de vista crtico desencadeia o progressivo aparecimento (e o subsequente uso) de um nmero diversificado de pseudnimos, que do voz a pontos de vista divergentes sobre arte. Ao voltar-se para esse meio musical, conduziu Schumann conquista do seu prprio lugar nesse meio musical (caracterizado, como Appel demonstra, por uma intensa actividade crtica em crculos privados e em publicaes peridicas) atravs da publicao das composies musicais e da introduo de um modelo diferente de peridico, como j mencionei, especificamente criado com o objectivo de projectar um exerccio da crtica, capaz de formar um pblico receptivo a uma msica renovada. semelhana de outros bigrafos e crticos, Appel menciona as duas ligas de alunos que Schumann fundou em 1825, quando frequentava o Gymnasium em Zwickau: a Schlerverbindung, fundada a 19 de Maio, e principalmente a Schlerverein, com a primeira reunio a 12 de Dezembro. At partida de Schumann para a Universidade de Leipzig em Fevereiro de 1828, existem actas de trinta sesses deste crculo de alunos, que tinha como objectivo iniciar os seus membros na

literatura alem, atravs do estudo de obras de autores reconhecidos, entre outras, dramas de Friedrich Schiller (1759-1805) e ensaios de Friedrich Schlegel (1772-1829) e de J.G. Herder (1744-1803). Appel considera que a Schlerverein se encontra num plano diferente em relao aos crculos de leitura que continuavam a ser frequentes nessa poca nas cidades alems desde o seu aparecimento no sculo dezoito. No final do sculo, o nmero de Lesergesellschaften seria superior a trezentos, influenciando decisivamente a formao do pblico leitor, atravs das condies de admisso (em Knigsberg seria a apresentao de um ensaio), da leitura de peridicos e da constituio de bibliotecas ou ainda na figura do Geschmackstrger, ou seja, o indivduo que idealmente representaria um pblico-alvo 51 (Milstein: 3-10). Appel oferece uma dupla justificao para o seu ponto de vista: em primeiro lugar, os membros da Schlerverein liam e discutiam obras literrias, mas tambm escreviam as suas prprias crticas e poemas para serem postos discusso; em segundo lugar, partindo de uma citao do compositor, Appel presume que Schumann acreditaria que os poetas alemes anacrenticos do sculo dezoito teriam nascido de uma organizao semelhante, e que, desse modo, Schumann esperaria que dessa Schlerverein pudessem vir a nascer novos vultos para a literatura alem. Desse modo, a concepo inicial de Schumann para a Schlerverein seria a de uma Knstlerbund e no de um Leserzirkel, sendo essa ideia de Knstlerbund que presidiria mais tarde criao da Davidsbund, como sabido, em 1833 em Leipzig (Appel: 3-4) 52. Abraham, e mesmo Daverio, destacam o facto de estas associaes de

Cf. Barney M. Milstein, Eight Eighteenth Century Reading Societies, A Sociological Contribution to the History of German Literature, German Studies in America, No. 11 (Berne and Frankfurt/M: Herbert Lang & Co., Ltd., 1972). 52 Carl Maria von Weber (1786-1826) tentara dar forma a uma Harmonischer Verein em 1810, no podendo, contudo, afirmar-se de que se trata, pela parte de Schumann, de uma filiao neste compositor, visto que a existncia dessa Harmonischer Verein s se conheceu em 1864, com a publicao da primeira biografia de Weber (Appel: 1,2).

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juventude terem tido lugar antes das leituras que so habitualmente consideradas determinantes para a formao literria de Schumann. M. Kreisig, na sua edio de GS de 1914 53, identificara muitos dos colaboradores de Schumann no NZfM e na Davidsbund, tendo, ento, indicado as ligaes entre Friedrich Hofmeister (1782-1864) e duas associaes musicais contemporneas. Appel explora, provavelmente, essa nota e destaca trs crculos musicais determinantes como factores facilitadores da constituio da Davidsbund: Ludlamshhle em Viena (c. 1817-1826), Tunnel ber der Spree em Berlim (18251912) e Tunnel ber der Pleie em Leipzig (1828-?1838?). Para alm de estabelecerem um precedente, a corrente de informao entre estes crculos, alimentada pelas personalidades que pertenceram pelo menos a duas dessas associaes, leva Appel a concluir que a Davidsbund no s adoptou muitas das propostas desses outros crculos, como pode tambm ter sido a resposta de Schumann a um crculo musical de Leipzig pr-existente. Appel sugere igualmente que a prpria criao dos pseudnimos ter sido influenciada pela Tunnelpraxis, visto que os membros destas associaes recebiam um nome no momento em que eram admitidos (Appel: 14-15). Em relao a Ludlamshhle 54, Appel salienta que os aspirantes a membros eram sujeitos a rituais de ingresso, que as sesses do crculo incluam discusses, canto coral e contribuies de carcter humorstico, alm da adopo de pseudnimos. Pese embora o conservadorismo de muitos dos seus membros, esta associao vienense entrou em conflito com a censura e a polcia de segurana do Chanceler Metternich, sempre atenta a qualquer tentativa de interveno na ordem social, devido

53 54

Cf. GS Kreisig: 458-61, n.520. A fonte indicada por Appel I.F. Castelli, Memoiren meines Lebens, Band. II (Wien, Prag: 1861).

ao secretismo que envolvia os seus encontros e a admisso de novos membros nessa associao (Appel: 4-6). O crculo de Berlim deveu-se iniciativa de um dos membros mais radicais da Ludlamshhle, Moritz Gottlob Saphir (1795-1858), jornalista satrico que abandonara Viena em 1825, por se ter tornado politicamente indesejvel. Saphir acabaria por partir de Berlim em 1829 pelos mesmos motivos; tendo-se salientado por ter entrado em vrios conflitos com os crculos teatrais desta cidade, fundou o crculo Tunnel ber der Spree, estruturado semelhana do crculo de Viena no que diz respeito a pseudnimos, ingresso e organizao das sesses. Ao contrrio do crculo vienense, as actividades do Tunnel ber der Spree eram de carcter mais literrio do que musical, reflectindo a composio dos seus membros. Segundo Appel, h dois elos de ligao entre esta associao berlinense e Schumann, atravs dos quais a ideia da Davidsbund se pode ter consolidado. Um deles anterior constituio da Davidsbund e o outro posterior, j no perodo em que Schumann edita o NZfM (1834-1844). O primeiro elemento de contacto um arqui-inimigo de Saphir, Willibald Alexis (1798-1871), romancista histrico, que Schumann encontrara em 1829 quando estudava Direito em Leipzig; o segundo elemento de contacto constitudo por quatro dos membros do Tunnel ber der Spree que mais tarde vieram a ser colaboradores do NZfM, a saber, Karl Komaly (1812-1893), de 1837 a 1846, autor do primeiro grande artigo sobre Schumann (AmZ, 1844), Karl August Kahlert, Musikliterat, (1807-1864) entre 1835 e 1847, o violinista Heinrich Panofka (1807-1887) de 1834 a 1839 e o compositor Friedrich Hieronymus Truhn (1811-1886) entre 1836 e 1842 (Appel: 6-10) 55. O Tunnel ber der Spree serviu de modelo ao Tunnel ber der Pleie de Leipzig, fundado na Primavera de 1828; como membro fundador, contava com um

amigo de Schumann, Karl Georg Herlosohn (1804-1849), por sinal, eleito como representante do crculo de Leipzig junto do crculo berlinense, e que viria a ser o editor do j mencionado jornal Der Komet, no qual surge o primeiro artigo de Schumann como Davidsbndler em 1833. Segundo Appel, o Tunnel ber der Pleie acabou por se constituir como um verdadeiro crculo cultural naquela cidade, onde organizava actividades to variadas como bailes, palestras literrias ou musicais ou a recepo a convidados como Johan Strauss (pai) (1804-49) em 1836. Entre os seus membros, contavam-se figuras conhecidas do meio musical, tais como Gottfried W. Fink (1783-1846), editor do AmZ, e Christian T. Weinlig (1780-1842), Thomaskantor e mais tarde professor de Richard Wagner (1813-1883). Heinrich Dorn (1804-1892)56, com o qual Schumann teve lies de contraponto e de baixo contnuo, entre Julho de 1831 e Julho de 1832, pertencia ao Tunnel ber der Pleie, tendo recebido o devido apoio para a conduo ao cargo de Director Musical de Leipzig em 1829 57 (Appel: 11-14). Os encontros ao fim da tarde no Kaffeebaum, entre 1833 e 1840, so unanimente reconhecidos como estando na origem da Davidsbund. A reuniam-se elementos igualmente pertencentes ao Tunnel ber der Pleie, nomeadamente, Friedrich Wieck (1785-1873) 58, Ferdinand Stegmayer (1803-1863), Mestre Capela de Leipzig, Johan P. Lyser (1803-1870), pintor, crtico musical e compositor, Christian A. Polenz (1790-1843), director musical dos Gewandhauskonzerte (1827-35),

As principais fontes indicadas por Appel so dois volumes de F. Behrend, Der Tunnel ber der Spree. I. Kinder- und Flegeljahre 1827-40 (Berlin:1919) e Geschichte des Tunnels ber der Spree (Berlin:1938). 56 A autobiografia de Heinrich Dorn, Ergebnisse aus Erlebnissen, Fnfte Folge der Erinnerungen (Berlin:1877) a principal fonte de Appel para a actividade do Tunnel ber der Pleie. 57 Heinrich Dorn foi uma personalidade decisiva na vida musical da Alemanha devido aos cargos que ocupou na direco de teatros lricos: Knigsberg (1828), Leipzig (1829-32), Hamburg (1832), Riga (1836), Berlin Hofoper (1849-69), e direco dos Festivais do Reno (1844-47). Teve igualmente um papel importante na recepo alem, nem sempre favorvel, das peras de Richard Wagner. 58 Friedrich Wieck foi professor de piano e pedagogo em Leipzig, tambm do jovem Schumann, pai de Clara Wieck, esposa de Schumann a partir de 1840.

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Gottfried W. Fink, editor do AmZ, e o j referido Carl Herlosohn, o qual, para alm de Der Komet, editava o Damen-Konversations-Lexicon, juntamente com Willibald von der Lhe (1801-1866), obra para a qual Schumann escreveria sessenta artigos musicais 59. Friedrich Gleich (1782-1842) e Friedrich Hofmeister (1782-1864) pertenciam tambm a este crculo, juntamente com o grupo de jovens msicos, que se encontravam para trocar ideias sobre a arte, que era para eles o alimento da vida - a msica (zum Austausch der Gedanken ber die Kunst, die ihnen Speise und trank des Lebens war, - die Musik, GS:III), entre outros, o compositor Heinrich Marschner (1795-1861), Heinrich Laube (1806-1884) e ainda Julius Knorr, o primeiro editor do NZfM em funes at 1844, Ernst Ortlepp (1800-64), organista e crtico musical, Ludwig Schunke, Joseph Mainzer (1801-1851) e Johann Ludwig Bhner (1787-1860) (Schauffler: 74). Do que acabo de expor, verifica-se que alguns padres de organizao e de funcionamento se repetem nestes trs crculos musicais, nomeadamente o uso de pseudnimos, a prtica da anlise de textos de carcter crtico da autoria dos seus membros, as sesses peridicas com manuteno de actas e a interveno a nvel local, afinal caractersticas que Schumann acentua frequentemente nos seus textosDavidsbndler. interessante notar que Schumann dos mais jovens de todos os membros referidos, juntamente com Schunke, Mainzer, Bhner e que todas as associaes reuniam duas geraes de personalidades ligadas ao meio musical e ao meio literrio, ocupando frequentemente a gerao mais velha cargos directivos em instituies das respectivas cidades. Este modelo organizativo e as provas reunidas por Appel, demonstrando a rotao de membros dentro destes crculos e da prpria Davidsbund, colocam a constituio da Davidsbund num enquadramento

59

Cf. Damen-Konversations-Lexikon, ed. Carl Herlosohn (Leipzig: [3ff:Adorf], 1834-38.

acentuadamente diferente do que habitualmente proposto por crticos como Abraham, Schauffler, Plantinga e mesmo at Daverio, cujos argumentos de fundamentao psicolgica ou de base confessional perdem nitidamente terreno. Embora seja de relevar a emulao de Jean Paul e de Hoffmann (o prprio Appel acentua a importncia de Hoffmann), deve considerar-se que, afinal, o mesmo acontecia em inmeros crculos culturais. No caso de Schumann, atingiu uma dimenso particular pelo modo idiossincrtico de que se reveste o processo de subjectivizao em Schumann. Penso igualmente que o ambiente musical de Leipzig foi to determinante para o nascimento da Davidsbund, quanto o modelo dos crculos literrios e musicais mencionados; com efeito, esse ambiente musical era extraordinariamente propcio, pelo cruzamento de personalidades influentes em diversos sectores do meio cultural. Bastar relembrar que durante o perodo em que Schumann editou o NZfM (18341844) se publicavam outros dois peridicos influentes no meio musical e literrio (respectivamente, AmZ de Fink e Der Komet de Herlosohn) e que nele se compreende a poca urea de Mendelssohn, tanto no domnio da composio musical, como nos cargos exercidos, nomeadamente o de director musical da Gewandhaus (1835-1847), fundador do Conservatrio de Msica de Leipzig (1843) e o de compositor na coroa prussiana (1841-1844). Schumann seguiu atentamente no NZfM as actividades musicais de Leipzig atravs de seces regulares 60, nas quais analisava detalhadamente essas actividades, respondendo, assim, a esse clima incentivador da polmica musical, da procura de novos caminhos e da ateno a novas formas de composio e de crtica.

Alguns exemplos: Kirchenauffhrung in Leipzig, Fragmente aus Leipzig, Rckblick auf das Leipziger Musikleben, Gutenbergsfest in Leipzig, Musikleben in Leipzig, Die Abonnementkonzerte in Leipzig.

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Deste modo, ao enquadrar a gnese da Davidsbund nesta tradio de crculos culturais, vivida desde a adolescncia por Schumann com a Schlerverein, surgem como decorrentes de uma prtica contempornea quer o uso de pseudnimos, quer a prtica da anlise e discusso de textos de carcter crtico em sesses peridicas, quer mesmo o objectivo de interferir no status quo musical da Alemanha. O trao distintivo que verdadeiramente demarca a liga de David das associaes de Viena, de Berlim e de Leipzig acima descritas reside no suporte fsico em que ficaram registadas as suas sesses e as contribuies crticas dos seus membros, ou seja, o NZfM. Alm dos pseudnimos, da crtica sob pseudnimos (ou por eles protagonizada) e da incluso expressa na pgina de rosto dos Davidsbndler como colaboradores, o NZfM apresenta ttulos ou subttulos de seces de artigos que pretendem criar no leitor a convico de que a Davidsbund uma associao formalizada do ponto de vista legal, tal como outras suas contemporneas. o caso frequente de ttulos como Aus den kritischen Bchern des Davidsbndlers (GS Band I:12-21), Aus Meister Raros, Florestans und Eusebius Denk- und Dichtbchlein (GS Band II:27-58) ou ainda Aphorismen von Florestan und Eusebius (GS Band I:208-14), e da citao de extractos de uma trigsima oitava sesso da Davidsbund no j mencionado artigo Der Davidsbndler, como se tivessem tido lugar muitas outras. Na realidade, no h livros de actas de reunies, onde se tenham registado as entradas, os pseudnimos dos seus membros e os cargos exercidos, visto que a Davidsbund nunca formalizou a sua existncia. O protocolo directamente estabelecido com o leitor do NZfM, atravs das marcas textuais que lhe permitem reconhecer aceder a uma sociedade que, desse modo, deixa de ser restrita e privada, para ganhar contornos pblicos. Neste sentido, ganha novos contornos a opinio de Appel, que considera o esprito que congrega os Davidsbndler como influenciado pela geistige Brdershaft, tal como apresentada

como Serapionsbrderschaft por Hoffmann no conto Die Bergwerke zu Falun (Appel:15-16). Esta fraternidade espiritual congrega, ento, o leitor que partilha as actividades da Davidsbund, no pondo em causa a sua existncia, antes aceitando tacitamente que uma vivncia mental de Schumann ou de outros Davidsbndler possa actuar de modo semelhante ao de um crculo cultural legalmente formalizado. Appel considera que Schumann foi um crtico que assumiu uma responsabilidade social e o prprio Schauffler reconhece que este estatuto da Davidsbund junto do leitor ao admitir que a Davidsbund deixa de ser cosa mentale com o incio da publicao do NZfM (Schauffler: 78). Em consequncia, Schumann pensou em fundar uma verdadeira sociedade musical para atribuir um carcter formal Davidsbund em 1837 (Plantinga 1967:78, n.66) e dois anos mais tarde, ao tentar publicar o NZfM em Viena, tornou a pensar em legaliz-la, no sendo despiciendo que nem o negcio se concluiu, nem a Davidsbund se legalizou (Appel:21), visto que a eficcia do protocolo com o pblico de Leipzig no dependia de uma eventual legalizao. Deste modo, outros traos distintivos, em relao s associaes de Viena, Berlim e Leipzig, decorrem da revelao da Davidsbund no NZfM: a assumpo dos pseudnimos do domnio pblico, despida do secretismo das sesses dos restantes crculos, e visvel quer nas assinaturas dos artigos, quer nos nomes das personagens figurantes em alguns dos artigos. A cada pseudnimo correspondia efectivamente uma pessoa desse grupo do Kaffeebaum, ou de um crculo mais alargado, eventualmente identificvel pelo pblico leitor. Estes Davidsbndler interagiam com Schumann, que partilhava todas estas condies em nveis diversos, mas co-presentes, visto que editava o NZfM, assinava artigos como Schumann e com mais de um pseudnimo, artigos estes que tinham a particularidade de se apresentarem nas formas que descrevi nas pginas iniciais deste captulo, ou seja, em determinados artigos, os seus prprios

pseudnimos surgem como personagens de pequenas histrias da sua autoria, apresentando-se a crtica musical em torno do enredo desses episdios. Dirigido com mo de ferro por Schumann, em especial aps a sada de Knorr logo no primeiro ano de publicao, o NZfM acolheu os Davidsbndler como seus colaboradores, levando os seus leitores a partilharem toda a vivncia que Schumann designaria como Davidbndlerei. Como editor, Schumann revia exaustivamente os artigos e as partituras para recenso, usufruindo em pleno desse estatuto, no se abstendo de aconselhar a adopo de um estilo adequado condio de Davidsbndler em numerosas cartas aos seus colaboradores (Plantinga 1967: 12-13,54-55), afinal o necessrio para que nesse processo se consubstancializasse o prprio dito de Schumann Die Form ist das Gef des Geistes (GS Band I: 118).

I.