Critica Da Musicologia e Apontamentos...

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CRÍTICA DA MUSICOLOGIA E APONTAMENTOS DE FENOMENOLOGIA Prof. Ms. André Luiz Gonçalves de Oliveira – UNOESTE – SP. [email protected] Ms. Luis Felipe de Oliveira – doutorando UNICAMP – SP. [email protected] Prof. Ms. Rael Gimenes Toffolo – UEM – PR [email protected] Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar princípios que consideramos fundamentais para o desenvolvimento de uma musicologia de orientação fenomenológica. Iniciamos por uma descrição histórica da musicologia apresentando os estudos sobre música relevantes para a formação da cultura ocidental e tratamos também dos limites e alcances dos estudos musicológicos a partir do século XVIII. Classificamos os estudos sobre música em três vertentes musicológicas principais e apontamos uma crítica sobre problemas conceituais específicos a cada vertente. Como última etapa descrevemos princípios organizadores de uma musicologia fenomenológica. Tais princípios são apenas descritos como um primeiro conjunto conceitual para o desenvolvimento de estudos futuros no desenvolvimento de novas tendências nos estudos musicológicos. Palavras-chave: Musicologia, Fenomenologia. Introdução Os estudos sobre música remontam à formação da história do ocidente. As primeiras abordagens que anacronicamente podemos chamar de musicológicas são resultantes dos princípios pitagóricos que consideravam a música como parte de uma cosmologia fundada no conceito de número enquanto unidade, conceito este que se aplicava às várias instâncias do cosmos; através do número é que se entendiam as proporções dos corpos sonoros, sua relação com o nível humano e com o movimento das esferas celestes. Tal abordagem, remodelada de formas diferenciadas por Platão e Aristóteles se estende pelo mundo Romano e por toda a idade média. É neste período que além de tratados com abordagens mais filosóficas (cosmológicas) surgem outros que visavam a descrição da atividade prática musical, em especial da composição, abordagem esta inaugurada no Micrologus de Guido d´Arezzo que tem por seqüência as obras teóricas de Vitry à Rameau, passando por

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CRÍTICA DA MUSICOLOGIA E APONTAMENTOS DEFENOMENOLOGIA

Prof. Ms. André Luiz Gonçalves de Oliveira – UNOESTE – [email protected]

Ms. Luis Felipe de Oliveira – doutorando UNICAMP – [email protected]

Prof. Ms. Rael Gimenes Toffolo – UEM – [email protected]

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar princípios que consideramos fundamentaispara o desenvolvimento de uma musicologia de orientação fenomenológica. Iniciamos poruma descrição histórica da musicologia apresentando os estudos sobre música relevantespara a formação da cultura ocidental e tratamos também dos limites e alcances dos estudosmusicológicos a partir do século XVIII. Classificamos os estudos sobre música em trêsvertentes musicológicas principais e apontamos uma crítica sobre problemas conceituaisespecíficos a cada vertente. Como última etapa descrevemos princípios organizadores deuma musicologia fenomenológica. Tais princípios são apenas descritos como um primeiroconjunto conceitual para o desenvolvimento de estudos futuros no desenvolvimento denovas tendências nos estudos musicológicos.

Palavras-chave: Musicologia, Fenomenologia.

Introdução

Os estudos sobre música remontam à formação da história do ocidente. As primeirasabordagens que anacronicamente podemos chamar de musicológicas são resultantes dosprincípios pitagóricos que consideravam a música como parte de uma cosmologia fundadano conceito de número enquanto unidade, conceito este que se aplicava às várias instânciasdo cosmos; através do número é que se entendiam as proporções dos corpos sonoros, suarelação com o nível humano e com o movimento das esferas celestes. Tal abordagem,remodelada de formas diferenciadas por Platão e Aristóteles se estende pelo mundoRomano e por toda a idade média. É neste período que além de tratados com abordagensmais filosóficas (cosmológicas) surgem outros que visavam a descrição da atividade práticamusical, em especial da composição, abordagem esta inaugurada no Micrologus de Guidod´Arezzo que tem por seqüência as obras teóricas de Vitry à Rameau, passando por

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Tinctoris e Zarlino. Essas visões sobre música se mantêm de forma muito similar até o fimda renascença, só sendo sobrepujadas pela revolução copernicana.

No século XVII a influência de Descartes foi tão significativa que podemos considerara Idade Moderna como a era do pensamento cartesiano, caracterizado por duas principaisdoutrinas: o racionalismo, inclusive enquanto metodologia científica, e o dualismomente-corpo, também chamado de Dualismo cartesiano. Obviamente, tanto a novacosmologia possibilitada pela revolução copernicana quanto as novas práticas científicas efilosóficas decorrentes do pensamento cartesiano alteraram as formas de como se fazer,experimentar e falar sobre música.

A posição cartesiana assumida pela ciência e filosofia moderna e por conseqüêncianos estudos sobre música incorre em oposições como podem ser verificados nos trabalhosde caráter fisicalista de Helmholtz e Stumpf de um lado e a filosofia metafísica deSchopenhauer, por exemplo. Essa oposição também pode ser encontrada entre Hanslick eWagner; entre a música entendida como representação de nada além de si mesma e amúsica servindo a um ideal máximo e sintético da obra de arte total, da Gesamtkunstwerk,que Wagner retirou da tragédia clássica. Àreas como a Psicologia[1] não surgiriamdescoladas da física não fosse o rumo cartesiano da história da ciência. Há, como consensouma posição distinta entre os assuntos chamados de ciências humanas e os chamados deciências naturais. Tal distinção é tão carente de fundamento que, sem querer aprofundar acrítica, poder-se-ia questionar se o próprio homem não faz parte da natureza. No entanto,para retornar ao ramo central do nosso interesse, a musicologia é fruto de uma ciênciaobjetivista e de uma filosofia e psicologia metafísicas, que se entendem como distintas,quando não como excludentes.

Ainda não havia uma área de estudos denominada musicologia e somente a partir doséculo XVIII que Framery apresenta uma das primeiras divisões que demarcaram o escopoda musicologia. Tal autor estabeleceu um hall de disciplinas e áreas de atuação que temcomo raiz a Acústica subdividida em ciências quantitativas e ciências metafísicas, a PráticaMusical subdividida em composição e interpretação e a História da Música que engloba osfatos presentes e passados, a história da música e dos músicos e a música dos nativos eestrangeiros. Ainda no século XVIII, Forkel apresenta uma divisão diferenciada que secaracteriza pelos estudos da física do som, da matemática do som, da gramática musical,da retórica musical e da crítica musical. A preocupação com a música não ocidental teminício nos trabalhos de Fétis no século XIX, sendo este considerado o formador das basespara o surgimento da Musicologia Comparada ou Etnomusicologia. Guido Adler, em 1855,foi o responsável pela distinção entre musicologia histórica e musicologia sistemática, queamplia a área de estudos musicológicos para além daqueles de natureza histórica, incluindoaspectos teóricos e analíticos, sociológicos e culturais, estéticos e educacionais. De fato, otermo musicologia, ou Musikwissenschaft, que significa Ciência da Música, surge como títulodo trabalho de Johann Bernhard Logier, em 1827 (apesar de que os termos musikalischeWissenschaft e tonwissenschaft remontam a textos do século XVIII).

No entanto, quando se fala em musicologia enquanto ciência, tradicionalmente o quese tem em mente são as áreas das ciências humanas, principalmente as ciências sociais e afilosofia. No século XX inclusive, existe uma grande ênfase em aspectos sociológicos,

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antropológicos e etnológicos, talvez mesmo até em detrimento de questões filosóficas(epistemológicas e mais ainda ontológicas). Dentro dessa linha, alguns musicólogos doséculo XX irão sugerir que a etnomusicologia deixe de ser uma sub-área da musicologiapara, na verdade, ser ela própria a visão de musicologia que deve ser praticada. Segundotal visão, a musicologia deve englobar, estudar e se relacionar com aspectos estruturais eestéticos, porém sempre dentro de uma visão sociológica, não eurocentrada, quesubstituísse a musicologia essencialmente histórica feita até o momento. Dessa forma amusicologia tradicional deveria adotar a metodologia aplicada aos estudosetnomusicológicos como afirmam Harrison, Hood, & Palisca (1963) “É função de todamusicologia ser na verdade etnomusicologia”. Essa visão recuperada e revisitada a partir dadécada de 1980, recebe o nome de Nova Musicologia e foi protagonizada por trabalhosinfluenciados pela Nouvelle Historie, pela Antropologia Cultural, pela Sociologia, pela CríticaLiterária e pelos trabalhos da Escola de Frankfurt. Kramer (2003) em sua MusicologiaCultural afirma que suas preocupações centram-se, antes de tudo, em questões dosignificado musical amplamente elaboradas em um contexto antropológico. A tendênciageral na musicologia pós década de 1980 caracteriza-se pela investigação dos fenômenosmusicais a partir dos aspectos sociológicos, significações de tais manifestações em grupossociais, não devendo considerar questões que se afastem disso.A partir dos anos de 1990, surge um outro tipo de musicologia que se concentrou não sobreaspectos sociais e antropológicos, mas sobre aspectos psicológicos e cognitivos daexperiência musical. Tal área, chamada de Musicologia Cognitiva, se caracteriza emprimeiro lugar, por uma reformulação da agenda de pesquisa da psicologia da música e emsegundo lugar pelo apoio sobre os desenvolvimentos da chamada Revolução Cognitiva dosanos de 1970. Huron (1999), aponta que a Musicologia Cognitiva se opõe a Psicologia daMúsica, porque esta última se apóia fortemente no positivismo devido a seus protocolosbehavioristas sendo, dessa forma, impedida de responder questões ligadas à experiênciamusical num sentido amplo. A Musicologia Cognitiva possui, também, um forte apelocomputacional, decorrente das modelagens da Inteligência Artificial e do Conexionismosurgidos com a Revolução Cognitiva.

Parncutt (2007), no artigo que busca destrinchar o conceito “guarda-chuva” demusicologia, estipula duas grandes categorias nos estudos sobre música da atualidade:musicologia sistemática e musicologia histórica e etnológica. A musicologia sistemática sedivide em dois sub-grupos. O primeiro seria a musicologia sistemática científica, incluindo arelação entre a música e áreas como a psicologia, as ciências sociais, a acústica, a fisiologia,a neurociências e a ciência cognitiva. Por sua vez, a musicologia sistemática humanística,incluiria a filosofia estética, a sociologia, a semiótica, a hermenêutica, a crítica musical e osestudos culturais e de gêneros. Parncutt tenta sistematizar as relações entre as principaisáreas sob esse guarda-chuva conceitual em uma grade comparativa (cf. Parncutt 2007, p.15) .

Nos últimos anos, temos visto a manifestação de uma área que se auto-denominaMusicologia Interdisciplinar que tem como principal fundamento a aproximação entre asduas vertentes da Musicologia Sistemática, segundo o entendimento de Parncutt e outros.De qualquer forma, a delimitação das ciências que constituem uma área como a musicologia

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vai sempre ser limitada, mesmo porque a prática de pesquisa, principalmente dentro dasperspectivas multi ou interdisciplinares, que têm se destacado na atualidade parece escapara uma sistematização. Nesse sentido, parece mais fácil delimitar agendas de pesquisa equestões a serem estudadas do que áreas e metodologias que podem exercer taisinvestigações. Mesmo porque, nos parece, a Musicologia sempre teve no mínimo umavocação interdisciplinar.

Limites e Alcances da Musicologia

A partir deste momento o que nos interessa é verificar se tais vertentesmusicológicas consideram questões fundamentais sobre aquilo que consideramos comoponto de partida para os estudos sobre música: a música enquanto experiência.

Propomos aqui uma taxonomia que somente visa destacar alguns pontos que nosparecem estar razoavelmente negligenciados em distintas orientações da Musicologia.Sendo assim, descrevemos três vertentes musicológicas: a) musicologia estruturalista,preocupada com aspectos da sintaxe musical, que se apóia na Teoria da Música e na AnáliseMusical, b) musicologia sócio-etnológica, que pretende entender a música enquantofenômeno social e cultural e c) musicologia cognitiva, ocupada em descrever como ocorremdeterminadas atividades musicais, entendidas como fenômenos cognitivos, atuando emcolaboração com a Psicologia, Filosofia, Neurociência, entre outras.

No entanto, parece que as três vertentes apresentam problemas. Não que sejamproblemas ligados à própria constituição de tais vertentes, mas parecem ser problemas quedecorrem mais da defesa de uma musicologia de caráter o mais amplo o possível,preocupada em lidar com questões conceituais básicas o bastante para serem simplesmentedesconsideradas nas abordagens mais tradicionais. Tais vertentes não enunciam questõescomo: Qual é a natureza da música? O que é e como é o fenômeno musical? Comoexperienciamos música? Como entendemos música? Como percebemos música? Para queserve música? Por que gostamos de música? Talvez essas perguntas sejam básicas demaispara serem investigadas em abordagens musicológicas que já tenham suas agendaspreenchidas com suas especificidades. Ao mesmo tempo são musicais demais, para seremmeramente lançadas à área da Epistemologia ou da Estética Geral.

Uma musicologia sócio-etnológica pode lidar com algumas destas questões e,normalmente nem considera outras delas. Na melhor das hipóteses tal orientação levará arespostas que consideram sempre a música enquanto fenômeno social. No entanto, pode-semuito bem perguntar se é função da musicologia sócio-etnológica responder e mesmo seinteressar por indagações como as que levantamos acima. Por outro lado, isso não faz comque tais questões sejam irrelevantes, mesmo porque não entendemos, ao contrário deHarrison, Hood, & Palisca (1963), que a musicologia deve ser única e exclusivamenteetnomusicologia. Se a etnomusicologia fosse capaz de responder nossas perguntas,poder-se-ia até cogitar tal possibilidade, mas, de fato, esse parece não ser o caso. Outraquestão que parece ser sintomática do tipo de pesquisa que atrai os etnomusicólogos, é uminteresse mais acentuado por questões sociais do que propriamente musicais, e isso, faz

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com que a musicologia se torne uma parte da Sociologia, perdendo seu foco assim comoseu objeto de estudo.

A musicologia estruturalista parece sofrer do contrário. Muitas vezes torna-se difícildistinguir entre os objetos de estudo da Musicologia e da Teoria Musical. O surgimento denovas formas de pesquisa e de metodologias joga luz sobre antigos postulados detratadistas, teóricos e compositores. O próprio desenvolvimento da área analítica com novastécnicas numéricas e computacionais e a semelhança sintática entre a música e a linguagemnatural favoreceram as investigações musicológicas de caráter estruturalista. Mas, existenessa musicologia um domínio dos estudos sobre o sistema tonal, porém, ao contrário damusicologia sócio-etnológica, estuda o sistema tonal sob o enfoque das estruturas sintáticase não das influências sócio-culturais correlacionadas. A vertente estruturalista tem grandeapreço pela História da Música -- o contrário também se mostra verdadeiro. A TeoriaMusical é uma área de conhecimento indispensável, assim como a Análise Musical, mas aredução da musicologia a elas ou, na melhor das hipóteses a uma história da teoria musical,que tem como metodologia a prática analítica, parece ser um estreitamento muitoacentuado do que pode ser a musicologia; esse fato é ainda mais acentuado pela falta dediálogo entre essa musicologia estruturalista e a sócio-etnomusicológica.A musicologia cognitivista, por sua vez, apesar de sua suposta abrangência, também sofrede problemas parecidos. Ou melhor, as vezes tem-se a impressão de que essa vertentesofre de uma ambição exagerada, pois quer responder perguntas bastante complexasatravés de uma metodologia científica, ou quase. Numa observação panorâmica, pode-seter a impressão de uma contradição entre seus objetivos e métodos, enquanto os primeirossão, bastante restritos, os segundos são amplos e visam abranger todo um universo decasos. Como exemplo do que acabamos de argumentar, podemos tomar as pesquisas deLeman (1984). Tal autor emprega uma metodologia bastante restritiva e simplista, como nocaso do uso das reduções em pitch-class. Porém suas conclusões, ou seus objetivos visamdar conta de explicar processos complexos, como o de ontogênese do sistema tonal. Aquitemos um bom exemplo para nossa crítica, não pensamos que o conexionismo nãocontribua com a pesquisa sobre cognição e musicologia, o que ressaltamos é que ele nãopode ser tomado como única abordagem possível. Em outras palavras, nossa crítica apontaque essa vertente da musicologia cognitiva fica presa em uma lacuna epistemológicaquando transpõem resultados e conclusões de experimentos de laboratório, como os feitocom Mapas Auto-Organizados de Kohonen, para conclusões sobre ontogênese de umsistema musical, ou ainda para explicar funções que ocorerrem em sistemas neuronais demaior complexidade, como o dos humanos. (cf. Janata et al., 2002). Outro grave problemaque podemos apontar à vertente musicológica cognitiva é o uso de modelos psicoacústicosbaseados no paradigma do processamento de informação. As críticas de Clarke (2005) sãoesclarecedoras nesse sentido

ter a impressão de uma área contraditória: algumas pesquisas parecem se limitar a um“recorte epistemológico” estreito, normalmente investigando fenômenos mais perceptivosdo que cognitivos; outras investigações parecem, ao contrário, almejarem grandes

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afirmações por metodologias muito limitadas, inclusive em termos de modelagem cognitiva.As primeiras pouco podem contribuir com um estudo da música enquanto fenômenoperceptivo, cognitivo e significativo, apesar de oferecerem as bases para tal estudo; assegundas parecem tentar sustentar grandes descobertas por evidências muito frágeis, oupelo menos mais frágeis do que deveriam ser para sustentarem fenômenos complexos comoa experiência musical.

Musicologia Fenomenológica

Entendemos que a musicologia até aqui não concentrou esforços em responderperguntas básicas, fundamentais para o direcionamento dos caminhos da pesquisa emmúsica. Assim, a partir do encaminhamento de novas saídas para problemas antigos, comoa descrição da percepção, ou da significação ou ainda, da cognição, através dessaabordagem filosófica chamada fenomenologia, é que esperamos apresentar umapossibilidade de direção aos estudos musicológicos, mais especificamente aqueles queenvolvem percepção, significação e cognição musical.

Em seu último livro, Maurice Merleau-Ponty, tece uma crítica a posicionamentosobjetivistas e subjetivistas como dois pólos de oscilação do mesmo paradigma. O de que háum mundo dado, independente e anterior a um percebedor e que tal percebedor tambémexiste independente do mundo, que existe enquanto uma subjetividade, um homúnculo,que pensa, considera, toma decisões e, não sendo matéria, age sobre a matéria. O autoraponta que todo desenvolvimento da filosofia e ciência da modernidade se dá sob ofundamento dualista cartesiano, o que dificulta a tarefa de uma investigação que procure namatéria e em seu funcionamento particular as causas de seus comportamentos específicos.A musicologia é uma das áreas do conhecimento que vem apresentando uma transiçãobastante lenta entre o paradigma dualista cartesiano da modernidade e novas possibilidadesparadigmáticas. Por isso nos interessa voltar aos conceitos mais fundamentais para que apartir de novas colocações acerca deles tenhamos novas descrições sobre a experiênciamusical.

Fenomenologia tem sido um termo empregado por diferentes filósofos com certavariedade de significados. No presente trabalho estamos nos referindo a uma tradiçãofilosófica que se intitula husserliana e que tem sido tema de comentário e encaminhamentode uma série de autores[2] durante todo o século XX e na atualidade. Essa corrente temrepresentado filósofos que buscam a articulação dos saberes conceituais com práticas delaboratório que permitem modelos onde as hipóteses conceituais podem ser implementadas,ou testadas. A tecnologia desenvolvida no fim do século XX trouxe novos horizontes aosmodelos matemáticos, ampliou seu campo epistemológico e permitiu a reflexão sobrerela-ções antes impossíveis. Dupuy (1999) apresenta um caminho para a ontologia quepassa por uma naturalização da epistemologia e que vai ao encontro de uma verdadeheideggeriana sobre o Ser (Sein), como diz: a truth that involves a deconstruction of themetaphysical view of the subject.

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Há grande proximidade entre essa corrente filosófica, a fenomenologia, e áreas quetêm sido chamadas de ciências da complexidade, como é o caso da cibernética ou mesmoda ciência cognitiva, por exemplo. Isso abre caminho à proposta ontológica já iniciada noprincípio de naturalização da Fenomenologia presente no Visível e Invisível deMerleau-Ponty e as ciências naturais. Em outras palavras, cremos que uma musicologiafenomenológica pode encontrar nos estudos sobre percepção, significação e cogniçãorealizados pela fenomenologia naturalizada, ou pela ciência cognitiva atuaccionista, um ricomaterial para sua reflexão e descrições de fenômenos musicais diversos. Que ela podereservar espaço em sua agenda e que possui meios para desenvolver pesquisa a fim deresponder questões sobre a natureza do fenômeno musical, sobre a percepção musical,sobre significação e cognição musicais.A circunscrição do que estamos denominando por musicologia fenomenológica envolve oexame de alguns princípios ou conceitos fundamentais para a explicação de qualquerfenômeno que se considere musical: 1) a música é um fenômeno que envolve interaçãoentre diferentes agentes para sua existência e desenvolvimento; 2) a significação musical éum caso particular de um processo geral de significação (assim como se pode estabelecerum contínuo entre os processos cognitivos e os processos naturais) e 3) a cognição musicalé um caso particular de uma descrição geral de cognição.É plausível afirmar-se que vários pesquisadores ligados à musicologia não estão satisfeitoscom os resultados obtidos pela prática científica cartesianamente orientada. A crença de queexiste um objeto musical independente de um agente, de que o significado musical estácontido nesse objeto, ou de que a música nada significa, são pressupostos que vêm sendogradativamente abandonados. Entender a música enquanto experiência, enquantofenômeno, parece possibilitar uma compreensão muito mais ampla do domínio musical, aoapoiar-se naquilo que consideramos como o fato mais essencial de qualquer musicologia, ouseja, no entendimento de música como um processo interativo entre os vários elementosque constituem um sistema musical.

Referencias Bibliográficas

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Harrison, F., M. Hood, and C. Palisca. Musicology. Englewood Clifis: Prentice-Hall, 1963.

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Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999

Maturana, H. R. Da Biologia à Psicologia. Porto Alegre: Artmed, 1995.

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Roy, J. et all. Beyond the Gap: An Introduction to Naturalizing Phenomenology.

Varela, F. J., E. Thompson, and E. Rosch. Embodied mind: cognitive science and humanexperience. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1991.

[1] Apesar do termo único, entendemos que a Psicologia abarca áreas distintas e nossacrítica encaminha-se especificamente àquelas mais ligas à metafísica dualista.

[2] M. Merleau-Ponty, M. Heidegger, H. Maturana, F. Varela, J. Petitot, J.-M. Roy, entreoutros.