Cristiano Luis Christillino
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Anpuh Rio de Janeiro
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ
CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380
A Lei de Terras e a transição ao capitalismo no Brasil no XIX: uma análise
micro dos efeitos da Lei sobre a afirmação da propriedade
Cristiano Luís Christillinoi
A Lei de Terras de 1850ii tem gerado debates e controvérsias na historiografia brasileiraiii.
Sucessivas gerações têm encontrado novos temas de abordagem que envolvem a Lei, tais como: a
substituição da mão-de-obra escrava pela livre, a influência do modelo de Edward Wakefield, a
comparação com a política fundiária norte-americana e o uso da Lei pelos trabalhadores livres pobres
no XIX. Dentre os temas suscitados pela discussão da Lei de Terras, discutiremos neste artigo o da
transição ao capitalismo.
Os autores que estudam a Lei de Terras focando sua análise na transformação econômica,
defendem que a Lei, ao impedir o livre acesso a terra às camadas mais pobres e ao transformar as
antigas concessões e posses em títulos de propriedade, modernizaria a realidade fundiária brasileira e,
desta forma, garantindo a transição plena ao capitalismo no meio rural. Para analisarmos o impacto da
Lei de Terras neste processo, discutiremos o caso do litígio entre Maria José Sampaio Ribeiro Teixeira
e Primórdio Centeno de Azambuja, no Município de Taquari nas décadas de 1860 e 1870.
Em termos jurídicos, a propriedade privada da terra inexistia no Brasil até a promulgação da Lei
de Terras em 18 de setembro de 1850. O acesso legal a terra era obtido mediante a concessão de
sesmarias e datas de terras, as quais foram extintas em 1822. Desta data até a promulgação da Lei de
Terras, a posse se constituiu na única forma de obtenção de uma parcela de terras, constituindo a fase
áurea do posseiro no Brasil. Na ausência de uma legislação que regulamentasse a estrutura fundiária, os
litígios eram resolvidos com base nas Ordenações Filipinas portuguesas, datadas do início do Século
XVII. As concessões de terras eram revogáveis e transitórias, desta forma não ofereciam as garantias
de uma propriedade, em seu sentido moderno. No que diz respeito as posses a insegurança era ainda
maior, embora as autoridades portuguesas viessem concedendo uma maior atenção aos interesses dos
posseiros na fase final do período colonial. Esta conjuntura leva alguns autores preocupados em
analisar a transição ao capitalismo no Brasil, a conceberem a Lei de Terras como uma etapa da
consolidação da propriedade privada em solos brasileiros, na medida em que ela transformaria as
antigas concessões e as posses em títulos de propriedade. Desta forma poderiam ser utilizados em
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hipotecas, o que incrementaria o sistema de crédito naquele período. Neste sentido a Lei de Terras,
somada a gradual substituição da mão-de-obra escrava pela livre, seria um passo fundamental à
transição da agricultura mercantil brasileira do século XIX ao capitalismo. José Souza Martinsiv, vem
reforçar esta tese, defendendo que a Lei de Terras, ao barrar o acesso a terra por parte dos homens
livres e, no caso do Sudeste, dos imigrantes, garantiria a mão-de-obra necessária à lavoura cafeeira. Na
obra O cativeiro da terra, Souza Martins analisa a passagem ao trabalho livre e a monopolização do
acesso a terra, duas premissas do capitalismo, reforçando a importância da Lei no processo de transição
este sistema econômico em pleno século XIX no Brasil.
A tese de Martins serviu de base para muitas interpretações que abordam o tema da transição
capitalista no Brasil. Roberto Smithv é autor do trabalho mais representativo desta visão sobre a
transição ao capitalismo no Brasil no século XIX. O autor parte da análise da Lei de Terras e da Lei
Euzébio de Queiróz de 1850 para defender esta premissa. Para Smith o Estado Imperial empreendeu, a
partir destas medidas, juntamente com o código comercial e a Lei Hipotecária de 1864, transformações
econômicas de cunho capitalista. A passagem do trabalho escravo para o trabalho livre e a
absolutização da propriedade da terra seriam as duas premissas fundamentais desta transformação. No
que se refere a Lei de Terras, ela estaria embasada num processo mais amplo, que vinha ocorrendo a
nível internacional, cuja base principal seria a obra do economista inglês Edward Gibbon Wakefield.
Este propunha na colonização sistemática, uma saída de colonização baseada na venda da terra aos
colonizadores, forçando a criação de um mercado de trabalho. A preocupação central de Wakefield
seria a criação de um mercado de trabalho nas áreas coloniais onde havia a abundância de terras. A Lei
seria, desta forma, influenciada por um projeto importado, de acordo com os moldes ingleses, mas
também seria fruto de uma direção política que caminhava em prol da consolidação do capitalismo.
Na concepção de Roberto Smith a Lei de Terras representa um dos pilares da transição ao
capitalismo no Brasil, garantindo a absolutização da propriedade privada, sem analisar os seus efeitos
práticos sobre a realidade agrária brasileira oitocentista. Para assegurar o domínio sobre as suas
pretendidas extensões, os membros da elite terratenente se valeram muito mais das suas redes de
relações pessoais do que dos expedientes previstos pela Lei de Terras. Recorria-se a Lei apenas quando
seu domínio era ameaçado por uma outra pessoa de mesmo peso político, e com a qual o conflito não
poderia ser resolvido pelas vias pessoais. Os próprios títulos de propriedade expedidos pelas
Repartições Especiais de Terras Públicas, e mais tarde (a partir de 1870) pelas Diretorias Especiais de
Terras Públicas não garantiam o domínio definitivo sobre a área legitimada. O caso do litígio entre
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Primórdio e Maria José vem mostrar que a Lei de Terras não assegurou, na prática, essa transição à
propriedade privada da terra na segunda metade do XIXvi.
O Município de Taquari, palco do conflito, localizado, nas décadas de 1860 e 1870, em meio a
Região Serrana, e que abrangia o Vale do Rio de mesmo nome. Este, por sua vez, era navegável, em
boa parte do seu leito, próximo a Porto Alegre, e ainda possuía uma dos terrenos mais férteis da
Província. Mesmo assim, a agricultura em larga escala encontrava-se em plena decadência. Esta região
abrigava uma elite falida e possuidora de grandes extensões de terras que poderiam ser comercializadas
aos imigrantes. Esta era praticamente a única alternativa econômica para esta elite. Dentre tais
comercializadores de terras encontravam-se as famílias Azambuja e Ribeiro, aos quais pertenciam,
respectivamente, Primórdio e sua rival Maria José.
Esta última era filha do Ten. Cel. Vitorino José Ribeiro, comandante de um importante núcleo
da Guarda Nacional no Vale do Taquari no início da década de 1860. Neste momento ele havia
fundado a “Colônia da Estrella”, que em breve se tornaria uma das mais prósperas colônias particulares
da Província, aumentando mais ainda o seu prestígio junto aos órgãos públicos provinciais. Além das
suas políticas de alianças, o Ten. Cel. Vitorino José Ribeiro se valeu de uma outra estratégia: a do
casamento, garantindo matrimônios de futuro para seus filhos. Ele teve dois genros que gozavam de
grande prestígio, o Ten. Cel. Pedro Álvares Cabral da Silveira da Cunha Godolfim que possuía uma
grande área de terras contíguas a Fazenda Estrela, e o Ten. Cel. Manoel Lopes Teixeira Jr., que fora, na
ocasião de sua morte, deputado provincial. Estes casamentos renderam boas redes familiares para os
Ribeiro nas décadas de 1850 e de 1860 e também um importante prestígio junto as repartições públicas
da época.
Assim como a Família Ribeiro, os Azambuja também utilizaram estratégias de construções
familiares para assegurar a estabilidade econômica e política de sua parentela. A Família Azambuja foi
constituída de soldados de patente e estancieiros no século XVIIIvii. O Capitão Francisco Xavier
Azambuja recebeu uma sesmaria de terras em 1754 no futuro Distrito de Santo Amaro, fruto do plano
da coroa portuguesa de estabelecer quartéis militares ao longo do Rio Jacuí para fazerem frente às
invasões dos espanhóis. Sua descendência, além de receberem várias concessões de terras, se firmou
em torno de sólidas alianças matrimoniais. Entre a sua descendência está o núcleo familiar do Ten. Cel.
João Xavier de Azambuja, casado com Laura Centeno de Azambuja, oriunda de uma família
tradicional da Campanha, os Centeno, que, inclusive por meio de alianças matrimoniais, herdaram
grande parte dos bens de Bento Gonçalves da Silva, o líder da Guerra Civil Farroupilhaviii. Os filhos do
referido casal tiveram bons casamentos, e uma de suas netas, Maria Altina, filha de Primórdio, casou-
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se com o seu primo, o Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova, que garantiu bons contatos junto à
administração provincial para os Azambuja, pois além de ter sido um burocrata e deputado de prestígio,
fora também presidente da Província em 1887-1888. Os arranjos matrimoniais, somados a carreira
militar, garantiram boas redes de relações pessoais no mundo clientelístico da época, especialmente
após a Guerra do Paraguai e do casamento de Maria Altina Azambuja. Os Azambuja se projetaram na
década de 1850 e 1860, e nos anos 70 colheram os frutos das suas ligações. Mas nas décadas anteriores,
a Família Ribeiro gozava de um prestígio muito maior que o dos Azambuja. É neste contexto que
ocorre o litígio de terras entre Primórdio e Maria José.
Em 1861 Maria José de Sampaio Ribeiro Teixeira, filha do fundador da Colônia Estrela, Ten.
Cel. Vitorino José Ribeiro, e viúva do Deputado Ten. Cel. Manoel Lopes Teixeira Jr., entrou com um
pedido de legitimação de uma posse de 4.593 hectaresix. Esta “posse” localizava-se nas margens do Rio
Taquari, em meio ao Arroio da Seca. Uma área que sofreu uma importante valorização em função da
proximidade da Colônia de Imigração Italiana Conde d’ Eu, futura Garibaldi, e da Colônia Teutônia e
Estrela, e das colônias de Antonio Fialho de Vargas na margem oposta do Rio, de colonização alemã.
Encravada entre colônias, a chamada Fazenda da Seca constituía um patrimônio fundiário de grandes
dimensões (a área poderia render 90 lotes coloniais, que valeriam em torno de 500$000 reis cada um!).
Maria José primeiramente comercializou as suas áreas de posses mais seguras, e reconhecidas,
em 1860x, somando mais de 11 contos de réis. Logo após, Maria José entra com aquele pedido de
legitimação para garantir a sua propriedade sobre o restante das terras em questão. No processo de
legitimação a autora nem sequer citou o então Capitão Primórdio como seu confrontante, e este logo
entrou com um pedido de embargo sobre a mesma medição. O auto da agrimensura curiosamente
realiza, apenas, a “verificação dos rumos já abertos e com os marcos já fincados”, onde apenas se
confirmou as medidas requeridas pela autora, sem descrevê-los com maior detalhamento, como ocorria
nas medições da época. O Capitão Primórdio Centeno de Azambuja, em seu e,bargo, alegava que a
mesma autora não poderia pedir o acréscimo do dobro da área ocupada em função de não tê-la
realizado, baseando-se para isto num simples contrato de arrendamento que o seu marido havia feito de
uma pequena área. Este acréscimo na “área original” de Maria José incorporaria uma outra data doada
ao avô do embargante, o Ten. Cel. Antonio Xavier Azambuja, e que estava sob o seu domínio. O
pedido não recebeu a atenção esperada pelo autor.
Primórdio não se deu por vencido, e formalizou um novo pedido de embargo, exigindo uma
nova medição. A petição foi aceita, mas que apenas “detalhou” a mensuração realizada pelo agrimensor
Reichembach. Esta, apesar de suas gritantes, fraudes foi aprovada em 1863, sendo negado ainda mais
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um recurso do referido embargante. Assim, terminado o processo, Maria José Sampaio Ribeiro
Teixeira obteve o documento da área que legitimara, prevalecendo os seus direitos sobre os de
Primórdio. Ela teria, a partir de então, pleno direito sobre a área que compreenderia o seu título de
propriedade.
O então Capitão Primórdio Centeno de Azambuja perdeu a causa. Ao contrário de sua
confrontante, viúva de um deputado e membro de uma influente família da região, ele não possuía
ligações tão sólidas no meio político da época. Primórdio então utilizou uma estratégia bastante comum
naquele período: o tempo. Esperava-se pelo momento certo para proceder determinado trâmite, a fim
de os executarem quando as suas alianças e seus contatos os assegurariam. Neste caso, mesmo que
Maria José tivesse obtido o seu “pleno direito de propriedade”, este foi contestado novamente.
Em 1874, 11 anos após o término do processo, Primórdio, neste momento sendo Ten. Cel. da
Guarda Nacional, ingressou com um pedido de legitimação da área na qual havia entrado em conflito
com a referida “proprietária”. Neste contexto a família Ribeiro já não possuía mais o prestígio e a
influência de outrora. Já os Azambuja haviam conquistado um espaço importante junto às mesmas
entidades, através de várias ligações, especialmente por casamentos. Assim a arena das redes de
relações clientelísticas dos Azambuja haviam se transformado consideravelmente, criando condições
para Primórdio afirmar a sua “propriedade” frente aos litígios com a sua vizinha “proprietária”.
Ele fez o pedido de legitimação de 1.327 hectaresxi que constituiriam a data que o autor havia
adquirido dos herdeiros de seu avô. O seu mapa de medição não mostra as condições da vegetação -na
qual se discriminava as áreas de agricultura daquelas de matas-, o que não seria interessante, pois
revelaria a não ocupação daquele espaço (o que inviabilizaria a confirmação de cultura efetiva e
morada habitual). Maria José Sampaio Ribeiro Teixeira, e seus filhos pediram vistas aos autos da
respectiva medição. A mesma alegou, com procedência, que Primórdio não prova a posse da mesma
data por títulos legítimos, apenas apresentando documentos que mencionam a existência da mesma sem
determinar a sua localização exata nem sua extensão, e a autora ainda reclama a invasão da sua área
pelos marcos da medição do requerente.
A réplica do Ten. Cel. Primórdio ao embargo de Maria José, é extensa e contraditória, não
respondendo nenhuma das acusações da embargante, chegando a afirmar que a área requerida pela
mesma era de simples roçados seus. Ele acabou demonstrando que não as possuía, pois sua exploração
sobre a área não constituía uma ocupação efetiva. Apesar de sua inconsistência legal, o Ten. Cel.
Primórdio questionou a ocupação das áreas de Maria José, procurando mostrar que o seu título não se
fundamentava em embasamentos legais. A “propriedade” da embargante, “garantida” pela Lei de
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Terras, passa a ser questionada após a sua legitimação, acabando com as garantias previstas na
regulamentação da Lei.
O Ten. Cel. Primórdio Centeno de Azambuja arrolou testemunhas não apenas para
comprovarem a sua posse, mas também para demonstrarem a falta de legitimidade do “título de
propriedade” da embargante. Ele utilizou métodos totalmente fraudulentos para tal. As testemunhas
arroladas por Primórdio não compareceram no juizado local. Uma vez “precizando da opinião de todos
os meos vizinhos os mais notáveis do lugar”, visando fazer frente às testemunhas humildes de Maria
José, o Ten. Cel. Primórdio enviou uma carta para os mesmos responderem. Além de constituir uma
prática totalmente ilícita, a carta ainda é anexada no processo redigida e assinada pela mesma pessoa, à
exceção da primeira das seis testemunhas. Uma fraude grosseira, na qual o autor nem sequer foi capaz
de apresentá-la como traslado, mas foi considerada válida perante a Repartição Especial de Terras
Públicas, sem nenhuma contestação. Um documento frágil e visivelmente fraudado foi capaz de se
tornar a peça chave para a desconstituição de um “título de propriedade”.
Os argumentos de ambas as partes se auto desconstituíam em relação às suas ocupações. As
mútuas alegações referentes a falta de provas documentais e de ocupação efetiva poderiam se voltar
contra às suas próprias “comprovações” apresentadas. A saída encontrada por Maria José foi a de
buscar um acordo com Primórdio, diante a impossibilidade de fazer valer o seu título frente ao então
bem relacionado e prestigioso confrontante. Através deste acordo, Maria José aceitava abrir mão de
uma considerável parcela da área pretendida por Primórdio. Mesmo com a reprovação do processo de
legitimação deste Ten. Cel. em novembro de 1875 na recém criada Repartição Especial de Terras
Públicas, onde se flagrou a inconsistência gritante da comprovação da existência da data de terra a que
o Ten. Cel. Primórdio afirmava ser sua por direito, este consegue aprovar o seu processo de legitimação
em 1876. Maria José Sampaio Ribeiro Teixeira, que havia recebido o seu título baseado na Lei de
Terras, perdeu parte da sua propriedade para o seu poderoso vizinho.
Portador então de um título de propriedade, ele próprio vai procurar afirmar a sua propriedade
frente as possíveis ameaças que esta poderia enfrentar. Em 1881 Primórdio permutou com seu genro, o
influente burocrata e Deputado Doutor Rodrigo d’ Azambuja Villanova, e sua filha Maria Altina d’
Azambuja a área legitimada, pela herança obtida pelos mesmos no inventário de sua esposa na Colônia
Nova Berlin, onde nunca houve problema algum com respeito ao seu domínio. Provavelmente ninguém
teria como fazer frente ao Dr. Villanova, o qual se tornou, inclusive, presidente da Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul naquela década. Primórdio facilmente derrubou um “título de
propriedade” de Maria José, mas o que ele próprio obteve não foi o suficiente para assegurar a sua
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plena propriedade, realizando uma permuta desfavorável com o seu genro. Mesmo assim, Primórdio
garantiu o domínio familiar sobre a dita propriedade frente a possibilidade de uma nova ação de Maria
José, cujas redes clientelísticas familiares voltavam a se recompor no final dos anos 70 do século XIX.
Após esse longo processo percebemos que a afirmação de propriedade ainda continuava a ocorrer no
âmbito do clientelismo. Isso ainda no final do Império.
Este litígio nos faz refletir sobre a propriedade privada no século XIX. Em muitos trabalhos,
ainda percebemos a referência a Lei de Terras como o elemento legal assegurador desta, mas, como
vimos, ela não a assegurava totalmente. Se no período anterior à Lei de Terras o solo era usufruto do
rei, após a promulgação e aplicação desta haverá uma transição para a propriedade privada, onde,
continuarão a prevalecer, sobre as formas de afirmação do seu domínio, as velhas práticas do século
XIX: a inserção em boas redes de relações de poder e clientelísticas. Ela estava inserida em toda uma
estrutura que não seria desconstituída por uma simples Lei. Num contexto em que o título de
“propriedade” pode ser desconstituído a qualquer momento por artifícios clientelísticos, ainda não há
condições à plena existência da propriedade privada.
i Doutorando em História-UFF- E-mail: [email protected] ii Lei n.° 601 de 18 de Setembro de 1850, regulamentada pelo Decreto n.º 1.318 de 30 de Janeiro de 1854. iii Sobre o debate historiográfico em torno da Lei de Terras ver: CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Estranhos em
seu próprio chão: o processo de apropriações e expropriações de terras na Província de São Pedro Do Rio
Grande do Sul (o Vale do Taquari no período de 1840-1889). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo, UNISINOS/CCH, 2004. iv MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec,1986. v SMITH, Roberto. A propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade privada e transição
para o capitalismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990. vi A análise da aplicação da Lei de Terras e seu efeito prático sobre a sociedade rural brasileira do Século XIX possui uma dimensão empírica e uma complexidade temática, que praticamente impossibilitam um estudo que contemple um espaço amplo com uma investigação densa sobre o objeto. Neste aspecto a Micro-História nos oferece uma importante metodologia de pesquisa, permitindo contemplar nosso objeto através da redução da escala de análise. Para isto, escolhemos, dentre os autos de medições do Município de Taquari, o caso que julgamos mais representativo de nossa hipótese e também aquele que nos permitiu um maior embasamento empírico. Realizamos isto sem perder de vista a contemplação da conjuntura em discussão, mostrando as relações de nosso objeto com a mesma, o excepcional-normal que defende Edoardo Grendi. vii RÜDIGER, Sebalt. Colonização e propriedade de terras no Rio Grande do Sul, século XVIII. Porto Alegre: Secretaria de Educação e Cultura/IEL, 1965 . viii HARRES, Marluza Marques. Conflito e conciliação no processo de reforma agrária do Banhado do
Colégio.Camaquã, Rio Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, 2002. Tese de Doutorado. Porto Alegre, UFRGS/PPGH, 2004. ix Auto de Medição nº 48. Autor: Maria José Sampaio Ribeiro Teixeira,1861, Taquari. AHRS. x Registros de transmissões do 1º Tabelionato de Taquari do período de 1850 a 1931. Livro nº 04, fls. 39, 41, 52 e 65. APERS. xi Auto de Medição nº 696. Autor: Primórdio Centeno de Azambuja, 1861, Taquari. AHRS.