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    Crianas, velhos e museu: memria e descoberta

    CRIANAS, VELHOS E MUSEU:MEMRIA E DESCOBERTA

    MARIAISABEL LEITE*

    RESUMO: Este texto versa sobre a relao que as crianas tm/podemter num museu, em particular nos museus de arte, compreendendo-

    os como espaos de troca, descoberta, produo de sentido, criao,mas, sobretudo, espaos de memria, de histria, de vida. Sublinha-seaqui a importncia, para seu processo de formao como sujeito social,histrico e cultural, dos elos e associaes que a criana faz/pode fazera partir de suas experincias estticas com representaes culturais deoutros tempos-espaos e com pessoas de outras geraes.

    Palavras-chave: Educao. Memria. Relaes de espao-tempo. Mu-seu de arte. Criana.

    CHILDREN, THE ELDERLY AND MUSEUM: MEMORY AND DISCOVERY

    ABSTRACT: This text deals with the relation that children establish/can establish in a museum, most particularly in art museums, under-stood as exchange, discovery, sense production, creation spaces and,above all, as memory, history and life spaces. It also highlights the im-portance, for their own formation as social, historical and cultural sub-

    jects, of the links and associations that, based on their aesthetic expe-riences, the children make/can make with the cultural representationsof other time-spaces and people from other generations.

    Key words: Education. Memory. Time-space relationships. Art muse-ums. Children.

    * Doutora em Educao pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora titulardo Programa de Ps-Graduao em Educao e do curso de Artes Visuais da Universidade doExtremo Sul Catarinense (UNESC); coordenadora do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extenso emEducao Esttica (GEDEST). E-mail: [email protected]

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    o pequeno o contingente de pessoas que tm a idia de queos museus so espaos de quinquilharias e coisa velha. Isso no um fato isolado, mas resultado das diferentes aes no tempo

    e no espao que vm construindo o percurso que desemboca no hoje.Santos (2005) analisa que, historicamente, os museus eram espaos dereproduo de conhecimentos de diferentes reas, com nfase em cole-es, cujo perfil era, prioritariamente, catalogador, expositor e conserva-dor, repleto de regras. Digamos que esta concepo seja parte, aindahoje, do imaginrio museal de muitos sujeitos, como definiria Chagas(2005).

    Verdade que, decorrente desta idia, encontra-se uma srie deaes, em destaque, neste artigo: a relao das crianas com os museuse objetos de cultura de diferentes tempos-espaos; assim como com ou-tros sujeitos de outros tempos e espaos os velhos.

    Museu: espao privilegiado de encontro de arte e memria

    Ao longo do tempo, ampliou-se o conceito de patrimnio, bemcomo os bens culturais a serem preservados. A relao do homem com opatrimnio cultural faz-se outra, sendo incentivada sua apropriao ereapropriao, de forma a viver a identidade na pluralidade e na ruptu-ra. No mais as colees passam a ser base das aes museais, mas sim aprtica social (Santos, 2005). O que mantm um museu vivo a relaodinmica com a sociedade, portanto, museus no so instituies per-manentes, mas prticas sociais colocadas a servio da sociedade e seu de-senvolvimento, que podem nascer, crescer e morrer (Chagas, 2005).

    Os museus e demais espaos de cultura so depositrios da me-mria de um povo, encarregados pela preservao das obras produzidaspela humanidade, com suas histrias, com os meios prprios de que dis-pem. Mas dizer que museu espao de memria parece j ter viradolugar-comum, esvaziando a expresso. Segundo Chagas (2005), h a ne-cessidade permanente de (re)vermos os termos utilizados, pois eles tmque produzir um pensamento diferenciado, crtico. No podem perdera capacidade de impactar, de serem transformadores. Outrossim, noadianta mexer no termo sem alterar as prticas. Para o autor, os museusno apenas exercem o papel da guarda, mas tm vocao para investigar,documentar e comunicar-se. Trabalham permanentemente com o

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    patrimnio cultural integral, ressaltando sua dimenso educativa, pro-curando, assim, desenvolver as identidades locais, regionais, nacionais einternacionais. So espaos de produo de conhecimento e oportunida-des de lazer. Seus acervos e exposies favorecem a construo social damemria e a percepo crtica da sociedade.

    Nascimento Jr. (2005), refletindo sobre as prticas vigentes narea, afirma que a museologia tradicional aos poucos substituda pelanova museologia e hoje se fala de museologia crtica baseada na cr-tica como ao constante. Como cincia, a museologia assume seu papelde no-neutralidade, ocupando espao poltico e ideolgico importante.A museologia crtica vem problematizar a tradicional e a nova atque se desgaste, se esgote e pea novas mudanas.

    Tambm a sociedade dinmica e exige um exerccio contnuo demobilizao crtica. Museus ricos e pobres, grandes e pequenos, bons eruins... sempre so o reflexo da sociedade e sua estruturao. Sua funosocial mais premente ser esse espao de comunicao direta com a co-munidade. Esta dinmica faz do museu um espao de diversidade sem,no entanto, jogar fora o velho, ou guard-lo bolorento mas debruan-do-se criticamente sobre ele, fornecendo instrumentos para o dilogopermanente.

    As polticas na rea de museus, no Brasil, avanaram recentemen-te, transformando o campo museal em rea estratgica. A poltica estligada a um corpo terico que informa a ao, que se transforma em pr-tica poltica, que move aes e assim sucessivamente, num sistema quese auto-alimenta. Chagas (2005) defende a idia de campo museal, dan-do a conotao de arena, luta, jogo, disputa espao de confronto dediferentes sujeitos num processo contnuo. Nesta perspectiva, o campomuseal reuniria tudo o que se refere aos museus est para alm damuseologia, portanto, mais amplo que o campo museolgico.

    Para o autor, o campo museal opera por redes e sistemas, que dia-logam permanentemente com outras redes, eliminando de vez a tentati-va de modelo nico, abrindo leque para a diversidade e a inseparabi-lidade: corpo e alma, material e imaterial. Concorda com NascimentoJr. (op. cit.) que a diviso entre cultura material e imaterial incua eque se limita aos aspectos didtico-pedaggicos. Sempre que secontextualiza os objetos eles so, ao mesmo tempo, materiais (em suavisibilidade) e imateriais (sua histria, seu uso, seu contexto). A nova

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    museologia nasce, exatamente, da defesa de se contextualizar os objetos.Entretanto, hoje se entende que no basta contextualiz-los. Os objetos,ao serem preservados, carregam consigo, no mnimo, o seu significadoinaugural devem ser pensados criticamente neste contexto.

    Mas discutir as questes museais de forma genrica tem limites h de se perceber as particularidades das reas. Enfocando a especifici-dade na arte,

    Todas as obras trazem, de alguma maneira, questes sociais, religiosas e po-lticas de sua poca (...). Entretanto, os museus parecem querer obscure-cer esse aspecto de lutas e forjar a paz entre as imagens ali presentes, colo-cando-as lado a lado em seus espaos o critrio para seleo , muitas ve-

    zes, ter qualidade artstica, desvinculando-as de seus papis sociais, de suasorigens (...). A discusso que permanece se situa no papel do prprio mu-seu como depositrio de obras to diversas quanto adversas, parecendo,aos olhos de muitos, uma incoerncia inadmissvel. Visto assim, tudo oque colocado no museu, em vez de conservado, condenado morte poressa falsa idia de objeto inofensivo, inativo, que, em local especfico, con-jura a violncia. (Leite, 2005, p. 25 e 27)

    Pensando na relao arte e memria, o filsofo alemo Walter Ben-jamin (1984, 1993a, 1993b) aponta que a memria conservadora, pro-veniente da experincia; o material da produo potica e esttica. Di-ferentemente, a lembrana destruidora o que vai para o consciente,o que explicvel, ganha cronologia: comeo, meio e fim.

    O autor trabalha com a idia de origem buscar a origem tentar

    no esquecer. Nossa histria uma busca de significaes que estoestilhaadas no tempo e no espao. O homem vive a tragdia do estilhaoe vive a esperana de reencontrar sua inteireza. A arte requer esta inteirezado homem. Formada de imagens fluidas sonoras, corporais, plsticas etc., criadas e apropriadas numa temporalidade outra, possibilita uma rela-o especfica de espao e tempo. O tempo passado-presente-futuro, cro-nolgico, tal qual o entendemos em nossa vida cotidiana, baseado numconceito cclico da natureza, transmitido pela religiosidade (Almeida,1997). Na arte, entretanto, esta anlise temporal desconstruda ela nopode ser montada como uma gramtica. Seu tempo cclico, mas um ci-clo sempre novo, no qual nenhum acontecimento se repete. A questo, naexpresso artstica, no re-ler ou re-fazer; mas ler de novo, fazer de novo no ato criador tem sempre algo inaugural.

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    Benjamin (op. cit.) discute criticamente a modernidade e suascontradies. Como mquina que facilita a produo e o acesso obra(por sua reprodutibilidade tcnica) e, ao mesmo tempo, a despersonifica,pois, na medida em que reduz o homem a sua individualidade, leva-o aperder os laos de coletividade, a perder a experincia e a capacidade denarrar. Passa a ter olhos que pairam sem ver, ouvidos que discriminamsem ouvir, palavras que no ecoam, apenas informam, sem possibilitarenlaces ou significados diferentes.

    Nesta perspectiva, o que passou no faz sentido, no tem impor-tncia. Passado morto, enigma indecifrvel. A histria fica enterrada e osvencedores sempre traro tona a verso oficial, fazendo com que tenha-mos vivido, ento, a mesma histria. O prioritrio padronizar,homogeneizar desejos, comportamentos criar um novo que seja sem-pre igual. Esta compreenso crtica vem diretamente ao encontro da ne-cessidade premente de se (re)pensar o campo museal como espao privi-legiado de encontro; de alteridade.

    Processo de apropriao artstica/fruio: entrecruzamento de tempos-espaos

    Os diversos meninos e meninas que hoje percorrem os inmeros mu-seus e centros culturais espalhados pelo pas aqui fao um recorte maisespecfico nos de arte vo cada vez mais encontrando, diante de seus olhos,obras de todos os portes, pocas, estilos, tcnicas, linguagens e suportes.Obras de valor variado, s vezes de qualidade duvidosa, obras que fazem rir,chorar, indagar; obras que no tocam, no causam incmodo ou estranheza.As imagens paradas (fotografias, pinturas) exigem, do contemplador, o mo-vimento. Elas revivem a cada olhar, no ritmo determinado por aquele queolha; sua durao aquela da possibilidade de observao. Diferentemente,as artes em movimento determinam, elas prprias, seu tempo.

    Seja qual for a relao sujeito-obra, nela se d um entrecruzamentode tempos no-lineares. H a temporalidade do autor; do contemplador,da obra em sua materialidade e do que ela representa. O processo designificao de imagens no est no presente, est no que vai vir estnas ondas de sentido que se propagam. H a necessidade de soterrar ima-gens no esquecimento para que sejam, depois, lembradas, evocadas. Maisinterpenetrao de tempos...

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    De qualquer forma, a busca de sentido prpria e singular e seestabelece na relao com o outro, como uma narrativa, e

    Toda narrativa evocao, memria, recuperao do passado. (...) criam-setempos inexistentes, detm-se o tempo, acelera-se ou se retarda, constroem-se tempos paralelos (...). A memria um campo onde coexistem temposdiferentes e opera por rupturas, por rompimentos a cada instante, da con-tinuidade. (Marques & Grzybwski, 1990, p. 23)

    Para alm do tempo, percebe-se, na busca de sentidos, oentrecruzamento espacial. O sentido precisa do silncio para se formar, a frase seguinte que d sentido anterior (Almeida, 1999, 2003). Paraeu compreender uma obra recorro a meu acervo de imagens sonoras,plsticas, corporais, literrias etc. (Bakhtin, 1992). Aquilo que chega aci-ona acervos e, num processo de familiarizao de cdigos no pr-convencionados, possibilita a interpretao. Portanto, entendendo o acer-vo imagtico do sujeito como toda a memria do que foi visto/ouvido/sentido por ele, percebe-se que esta memria que possibilita a incorpo-rao de novas imagens. Tudo o que experimentamos esteticamente guardado em locais, como ndices e sinais, para que possam ser aciona-dos em outros tempos, outros espaos (Almeida, 1999).

    Bakhtin reafirma a necessidade do outro na construo do olhar.Trazido por Jobim e Souza & Gamba Jr. (2003, p. 39-40),

    sugere que cada um de ns prescinde e necessita irremediavelmente do outroe que esta condio essencialmente alteritria do outro em relao a mim fun-

    damental para a experincia humana na sua plenitude, encaminhando umacompreenso cada vez mais aperfeioada da nossa cultura e de ns mesmos.

    (...) no campo de viso de um sujeito h sempre algo que no possvel seralcanado por sua viso, devido a sua localizao no espao. Este espao nopreenchido pela viso do sujeito o excedente de viso que s pode ser pre-enchido pela posio de um outro sujeito no espao. Portanto, aquilo que inacessvel ao olhar de uma pessoa preenchido pelo olhar de outra pessoa.Ao campo espacial adicionamos a perspectiva temporal, pois cada sujeito his-trico habita uma determinada experincia temporal que tambm ir mar-car profundamente o modo como percebe o presente, o passado e o futu-ro. (Idem, ibid., p. 39)

    Assim, falar de arte e memria falar de tempo-espao numa pers-pectiva no-cronolgica. dizer de conhecimento, privilegiadamente, es-

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    ttico e potico. discutir subjetividade e significao. problematizara cultura como processo e como produto do homem em suas mltiplasrelaes e atribuies de sentido. perceber o registro artstico comopossibilidade de deixar rastros e, assim, registrar uma poca.

    Registrar deixar vivo. Portanto, o processo de criao no di-ferente de combinar imagens de maneira inaugural uma re-elabora-o do velho, em novo (Vygotsky, 1993). , ento, recorrendo aos acer-vos, portanto, memria, que o artista cria aquilo que quer entender, de dentro dele que saem seus desejos e necessidades assim, a rela-o intrnseca entre o processo de criao e o de fruio.

    No importa a natureza da obra ou da relao experimentada

    com ela. Vale destacar que todas elas, de alguma maneira, somam-seao repertrio imagtico das crianas e tornam-se partes integrantes deseu acervo cultural. fundamental que possam assumir seu papel decontempladoras ativas e no mais de espectadoras distantes (Leite,2005, p. 38).

    No nada fcil manter-se aberto alteridade que interrogamos e a ex-perincia esttica pressupe isso, ela a relao com o outro; exige, docontemplador, a criao de sentido. O tempo da experincia fundamen-tal: o olhar sensvel no reconhece imediatamente; exige ateno flutuan-te. Depois, organiza e classifica. O contemplador ativo, ultrapassando oslimites da obra e do artista, vai revelando smbolos, decodificando, esta-belecendo sentidos. Com o reconhecimento, vem a interpretao, conser-vando a legitimidade do objeto esttico. Esta exige distncia (mas no avertigem da distncia!) e aproximao (mas no a cegueira da aproxima-

    o!), num movimento alternante e, assim, surgem novas indagaes.(Frayse-Pereira apud Leite, 2005, p. 44)

    Em suma, dizemos que cada poca fabrica a si, fabrica seu univer-so com tudo o que as distingue de um tempo precedente a partir domaterial e dos recursos de que dispe. A obra de arte fala do seu autor,fala do mundo e, ao ser contemplada, entra em dilogo com o especta-dor. Por esta razo, podem ser entendidas como expresses simblicas dememrias de dimenso esttica e potica de uma sociedade.

    (...) a arte um sistema de manifestaes e cdigos que se interpenetrame se recodificam a cada momento; uma forma particu lar de ver e expres-sar o mundo, que atua como uma reao emocional e conceitual vida. A

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    linguagem artstica busca resolver umproblema artstico no qual se encon-tra o artista, possibilitando-lhe o pensamento e a expresso de si e de suapoca por imagens sonoras, visuais, corporais, poticas... O que vigora,hoje, na arte no a penas o conhecimento sensvel ou mesmo a beleza a inteireza, a significao. um campo privilegiado da educao estti-ca. (Leite, 2005, p. 22-23)

    Mediao cultural: memria e descoberta

    Nada do que foi serDe novo do jeito que j foi um diaTudo passa, tudo sempre passar.

    A vida vem em ondasComo um marNum indo e vindo infinito.

    Tudo que se v no Igual ao que a gente viu h um segundo.

    Tudo muda o tempo todo no mundo.No adianta fugir

    Nem mentir pra si mesmo agoraH tanta vida l fora.

    Aqui dent ro, sempreComo uma onda no mar...

    (Como uma onda [zen surfismo],Lulu Santos & Nelson Motta)

    No possvel conceber aes na cultura sem parceria alm das

    questes financeiras (que no so o alvo de discusso deste texto) , fun-damentalmente pela necessidade intrnseca da rea: cultura pressupe re-lao, pois opera entre seres humanos, objetos qualificados e espao soci-almente construdo (Chagas, 2005).

    A despeito de considerarmos a criana como sujeito histrico, so-cial e cultural de direitos, consumidora crtica e produtora de cultura,no difcil perceber e reconhecer o papel que o adulto assume comomediador da criana frente aos equipamentos culturais disponveis emseu entorno. Desta forma, enquanto adultos considerarem museu espa-o de coisa morta, mais remota ser a possibilidade de a crianaressignificar esta viso e poder, ento, experimentar a relao com o mu-seu como espao de troca, descoberta, produo de sentido, criao, es-paos de memria, de histria, de vida.

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    Se a essncia da relao sujeito-obra est no entrecruzamento detempos-espaos, falar da relao das crianas de hoje com obras de di-ferentes lugares e culturas, com artistas de pocas variadas, falar dapossibilidade de enriquecer este processo. Neste percurso, imaginar for-mas de partilha entre crianas e velhos num museu seria um desafioque, certamente, valeria a pena ser enfrentado estaramos aumentan-do, ainda mais, suas interlocues e fraturando o tempo cronolgico.Na socializao das lembranas, velhos e crianas movimentam-senuma direo onde o importante a busca de compreenso e o estabe-lecimento de sentidos (Park, 1996, p. 47).

    Nesta perspectiva de anlise, a distncia espao-temporal entre as geraes,

    ao invs de se tornar obstculo para compreendermos melhor a nossa po-ca, passa a ser uma soluo promissora, posto que a dimenso alteritria en-tre as vises do adulto, da criana e do jovem sobre um mesmo objeto, en-riquece definitivamente nossas possibilidades de compreenso do objeto emquesto como um artefato da cultura. ( Jobim e Souza & Gamba Jr., 2003,p. 40)

    ento a experincia do outro que vai enriquecer a nossa. Michelde Certeau et al. (1996) trazem tona a importncia da oralidade nocampo da cultura e sua argumentao vem somar idia, aqui desen-volvida, da importncia da relao criana-velho-objetos culturais:

    O desejo de falar vem criana pela msica das vozes, que a envolve, no-meia e chama a existir por sua conta. Toda uma arqueologia de vozes codi-fica e torna possvel a interpretao das relaes, a partir do reconhecimen-to das vozes familiares, to prximas. Msicas de sons e de sentidos,polifonia de locutores que se buscam, se ouvem, se interrompem, seentrecruzam e se respondem. Mais tarde, a tradio oral que recebeu servir criana para medir sua capacidade de ler. S a memria cultural que assimse adquire permite enriquecer pouco a pouco as estratgias de interrogaodo sentido, cujas expectativas so afinadas e corrigidas pela decifrao de umtexto. A criana aprender a ler na expectativa e na antecipao do sentido,uma e outra nutridas e codificadas pela informao oral da qual j dispor.(De Certeau et al., 1996, p. 336)

    Pensar no enlace de geraes quebrar, tambm, com o status quovigente nas sociedades urbanas capitalistas modernas. Crianas so pen-sadas como fatia de mercado (Leite, 2004, 2005) museu para criana,cinema para criana, teatro para criana , eliminando subliminarmente

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    o convvio geracional e assumindo o ciclo natural de nascimento, cresci-mento, amadurecimento, envelhecimento e morte.

    Do ponto de vista produtivo, do capital, at bem pouco tempo ovelho era peso morto, descartvel. Hoje, com a previdncia privada e oprolongamento da qualidade de vida em alguns segmentos da popula-o, o velho passa a ser visto, tambm, como consumidor temos tudopara a terceira idade (ou melhor idade, ou qualquer outro termo queo pessoal de marketing crie).

    Provocar a relao criana-velho vai contra esta lgica de mercado alicera-se na busca do resgate da narrativa, da experincia, dahumanizao, compreendendo que o novo se faz a partir do velho. Pro-vocar esta relao possibilitar uma forma outra de produo de senti-do, de descobertas, de trocas, tanto para as crianas, quanto para os ve-lhos. uma nova forma de se escrever a Histria.

    No mais, a prpria pesquisa sobre a infncia fica enriquecida comeste entrecruzamento de tempos-espaos, como apostam Piacentini &Fantin (2005, p. 56): presente-passado que recria, reconstri e que tem achance de indicar pistas, recuperar trilhas e, quem sabe, apontar caminhosna direo de outras possibilidades para a condio da infncia atual. Cri-anas, velhos e museus: possibilidades de descoberta; ressignificao damemria. Est posto o desafio.

    Recebido em setembro de 2005 e aprovado em maro de 2006.

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