Criacoes Libertarias e Praticas Parresiastas

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Criações libertárias, feminismos e práticas parresiastas Margareth Rago - UNICAMP O possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento. É uma questão de vida. Deleuze Se discutimos, aqui, o tema da produção de subjetividades libertárias, se buscamos, nesse importante Seminário, caminhos para realizar esses desejos de transformação de nosso mundo, é inevitável agregar um outro adjetivo à palavra subjetividade, aquele que remete à palavra filoginia, em geral, tão ausente de nosso vocabulário cotidiano. 1 Estamos cansadas de comportamentos, idéias, raciocínios, práticas e pessoas misóginas. Embora não estivesse voltado para as questões específicas do feminismo, a busca de uma vida não-fascista marca a trajetória de Michel Foucault e seu esforço maior dirige-se, em especial, a problematizar nossa atualidade, estranhando o que somos e abrindo novas possibilidades de constituição de subjetividades éticas, ou de “devires revolucionários”, na expressão de Deleuze. Como um velho 1 FIOLOGINA, do grego philos, amigo + gyne, mulher = amor às mulhres – antônimo de MISOGINIA, aversão às mulheres (Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, São Paulo, 1999, p. 432).

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Criações libertárias, feminismos e práticas parresiastas

Margareth Rago - UNICAMP

O possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento. É uma

questão de vida.

Deleuze

Se discutimos, aqui, o tema da produção de subjetividades libertárias, se

buscamos, nesse importante Seminário, caminhos para realizar esses desejos de

transformação de nosso mundo, é inevitável agregar um outro adjetivo à palavra

subjetividade, aquele que remete à palavra filoginia, em geral, tão ausente de nosso

vocabulário cotidiano.1 Estamos cansadas de comportamentos, idéias, raciocínios,

práticas e pessoas misóginas.

Embora não estivesse voltado para as questões específicas do feminismo, a busca

de uma vida não-fascista marca a trajetória de Michel Foucault e seu esforço maior

dirige-se, em especial, a problematizar nossa atualidade, estranhando o que somos e

abrindo novas possibilidades de constituição de subjetividades éticas, ou de “devires

revolucionários”, na expressão de Deleuze. Como um velho anarquista, Foucault rejeita

tudo aquilo que nos liga ao poder, “o inimigo maior, o adversário estratégico: o fascismo

que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”, como afirma

num prefácio ao livro de Deleuze e Guattari (FOUCAULT, 1977).

Assim, pergunta pelos caminhos de construção das relações de si para consigo e

para com os outros, que escapam às estratégias disciplinares, distantes também de uma

concepção do indivíduo cindido em seu próprio eu, aquele em que a alma tem primazia

sobre o corpo, como no cristianismo. Diz ele:

é talvez uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável a

constituição de uma ética de si, se é verdade afinal que não há outro ponto,

1 FIOLOGINA, do grego philos, amigo + gyne, mulher = amor às mulhres – antônimo de MISOGINIA, aversão às mulheres (Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, São Paulo, 1999, p. 432).

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primeiro e último, de resistência ao poder político para além da relação de si

para consigo (FOUCAULT, 2001, 241).

Sabemos que os projetos revolucionários do passado carregavam em seus

objetivos a construção de um “novo homem” e de uma “nova mulher”, sujeitos

revolucionários por excelência, belos, admiráveis, justos, livres, proposta que também

não se realizou. Aliás, discutindo as técnicas de si construídas em nossa tradição e as

formas imaginadas de construção de outros modos de existência, Foucault aborda o tema

da produção da “subjetividade revolucionária”. Historicizando essa experiência,

perguntando por sua emergência, sugere que é desde meados do século XIX, que o antigo

tema de um trabalho sobre si se conecta com a idéia da revolução política, da “conversão

à revolução”. Em suas instigantes palavras:

Parece-me que é a partir do século XIX (...) seguramente por volta dos anos

1830-40, e justamente em referência aquele acontecimento fundador, histórico-

mítico que foi para o século XIX, a Revolução Francesa, que se começou.

Parece-me que, ao longo do século XIX, não se pode compreender o que foi a

prática revolucionária, não se pode compreender o que foi o indivíduo

revolucionário e o que foi para ele a experiência da revolução se não se leva em

conta a noção do esquema fundamental da conversão à revolução. O problema,

então, estaria em examinar de que modo se introduziu este elemento que

procedia da mais tradicional - (...) pois que remonta à Antiguidade - tecnologia

de si que é a conversão, de que modo se atrelou ele a este domínio novo e a este

campo de atividade nova que era a política, de que modo este elemento da

conversão se ligou necessariamente, senão exclusivamente, à escolha

revolucionária, à prática revolucionária. Seria preciso examinar também de que

modo esta noção de conversão foi pouco a pouco sendo validada – depois

absorvida, depois enxugada e enfim anulada – pela própria existência de um

partido revolucionário. E de que modo passamos do pertencimento à revolução

pelo esquema de conversão ao pertencimento à revolução pela adesão a um

partido (FOUCAULT, 2004b, 256).

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Essa discussão ressoa, ainda, em outro momento de suas aulas, quando

problematiza a “governamentalidade de partido”, forma de controle biopolítico dos

indivíduos. Mais uma vez como um velho anarquista, Foucault radicaliza a crítica às

formas de governamentalidade postas em prática pelo partido. Em O Nascimento da

Biopolítica, afirma que a origem do Estado totalitário não deveria ser buscada num

inflação do Estado liberal, mas em outro lugar, em especial, nessa forma política

emergente no século XIX, o partido:

...o princípio dos regimes totalitários não deve ser buscado do lado de um

desenvolvimento intrínseco do Estado e de seus mecanismos; em outras

palavras, o Estado totalitário não é o Estado administrativo do século XVIII, o

Polizeistaat do século XIX levado ao limite, não é o Estado administrativo, o

Estado burocratizado do século XIX levado aos seus limites. O Estado

totalitário é alguma coisa de diferente. É preciso buscar seu princípio não na

governamentalidade estatizante ou estatizada que se vê nascer nos séculos XVII

e XVIII, mas do lado de uma governamentalidade não-estatal, justamente,

naquilo que se poderia chamar de uma governamentalidade de partido. E´ o

partido, esta tão extraordinária, tão curiosa, tão nova organização, é esta muito

nova governamentalidade de partido que aparece na Europa no final do século

XIX (...) que está na origem histórica de algo como os regimes totalitários, de

algo como o nazismo, de algo como o fascismo. de algo como o stalinismo

(FOUCAULT, 2004a, 196).

Não vou me estender à posição claramente anarquista expressa aqui por Foucault,

tão próximo de Bakunin ou Malatesta, avessos à constituição do partido revolucionário,

mas quero destacar a historicização dos modos de subjetivação que o filósofo aponta no

Ocidente. Esta constatação da existência de modos diferenciados de construção do

indivíduo, tanto na relação com os códigos sociais quanto na relação consigo mesmo,

permite desnaturalizar as práticas modernas de existência e de produção da subjetividade,

evidenciando sua dimensão normativa, despotencializadora e sedentarizante.

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Vale perguntar, nessa direção, se a importância que assumem os manuais e livros

de auto-ajuda na atualidade não se explicam, em grande parte, como efeito de uma

formação que enfatiza a obediência e a submissão às normas e às ordens vindas de cima.

Educado para a passividade e obediência, o indivíduo tem dificuldades para inventar por

si só novos modos de enfrentar e transformar a sua realidade.

Portanto, se podemos produzir outros modos de existência, como se discute em

nossos dias, se não acreditamos mais que somos desenhados por uma natureza pré-

existente, se já discutimos amplamente as implicações da noção de “militância”, com a

“falência das esquerdas”, podemos passar a desdobrar o tema de maneira mais afirmativa.

Criar novas relações de si para consigo e para com o mundo que escapem às incessantes

capturas do poder e que potencializem as criações libertárias é tarefa urgente. Esta supõe,

ainda, a instauração de práticas feministas, práticas que promovam a autonomia das

mulheres e que sejam, ao mesmo tempo, filóginas, isto é, que valorizem a cultura

feminina.

Nesse texto, convido a refletir, mesmo que brevemente, e acompanhada por

Foucault, Deleuze e o feminismo pós-estruturalista, sobre a necessidade do abandono do

“mundo dos clichês” e sobre as possibilidades de criação de vidas imaginativas, éticas,

libertárias e feministas, em constantes devires. Valendo-me das palavras de

Zourabichvili, ao reler Deleuze:

A doença do clichê nos deixa em um meio termo angustiante: não mais

acreditamos em um outro mundo, mas ainda não acreditamos neste mundo,

nas chances de encontro com ele, na chance que representa um encontro com

ele (...) O possível é o que pode acontecer, efetiva ou logicamente

(ZOURABICHVILI, apud ALLIEZ, 2000, 354).

- em busca da diferença ética

Num determinado momento de suas pesquisas, depois de publicar o primeiro

volume da História da Sexualidade, Foucault se volta para o mundo grego, onde encontra

outros modos de constituição da subjetividade. Vale observar que ele se volta para o

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passado, não como um historiador cioso de encontrar os fatos históricos, e sim como um

filósofo que visa a construção de outros olhares e de conceitos úteis para enfrentar o seu

próprio tempo. Aliás, é ele mesmo quem diz que imagina a figura do filósofo semelhante

a de um jornalista atento para o presente, crítico das relações de poder, ao mesmo tempo

em que valoriza em Sócrates ser aquele que cuida para que cada um cuide de si mesmo

na cidade.

Em sua vertente crítica, (...) a filosofia é justamente aquilo que coloca em

questão todos os fenômenos de dominação em qualquer nível e sob qualquer

forma que se apresenta – política, econômica, sexual, institucional. Esta função

crítica da filosofia deriva, até certo ponto, do imperativo socrático: ‘Cuida-te de

ti mesmo’, isto é: ‘Fonde-toi en liberté par la maîtrise de toi’ (FOUCAULT

apud RABINOW, 1995, 233).

A questão da possibilidade de construção de um eu ético está na ordem de suas

principais preocupações, e leva-o, então, à pesquisa histórica da Antiguidade clássica.

Seu objetivo é claro e preciso: busca o conhecimento histórico do passado naquilo que

possa potencializar o presente na problematização da subjetividade e do poder, assim

como no destronamento das formas hegemônicas de constituição de si. Não se trata da

importação de antigos modelos de conduta, mas da importância da desnaturalização e da

inspiração para a criação de novos possíveis, na atualidade. Lembrando Deleuze:

Embora Foucault remonte aos gregos, o que lhe interessa em O uso dos

Prazeres, bem como em seus outros livros, é o que se passa, o que somos e

fazemos hoje: próxima ou longíngua, uma formação histórica só é analisada

pela sua diferença conosco, e para delimitar essa diferença. Nós nos damos

um corpo, mas qual é a diferença com o corpo grego, a carne cristã? A

subjetivação é a produção dos modos de existência ou estilos de vida

(DELEUZE, 1996,142).

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No mundo greco-romano, Foucault encontra uma importante experiência da

liberdade nas práticas de si e, em especial, no “cuidado de si”, - que é também um

cuidado com o outro -, e que lhe serve de referência para contrapor-se às tecnologias

disciplinarizantes desenvolvidas na Modernidade, ou, mais recentemente para nós, às

novas formas de bioascese difundidas na “sociedade de controle” (DELEUZE,

1996,219). Nesta, a captura da subjetividade se sofistica enormemente, mas estamos

muito longe da tradição histórica: entre outras dimensões, todo um discurso médico-

fisicalista estimula o indivíduo a observar as regras de higiene, os regimes alimentares, o

fitness e o body-building, e um proliferante arsenal de cuidados estéticos corporais.

Afinal, o que importa é a aparência. É Francisco Ortega quem explica:

As modernas asceses corporais, as bioasceses, reproduzem no foco subjetivo

as regras da biossociabilidade, enfatizando-se os procedimentos de cuidados

corporais, médicos, higiênicos e estéticos na construção das identidades

pessoais, das bioidentidades. Trata-se da formação de um sujeito que se

autocontrola, auto-vigia e auto-governa. (...) (ORTEGA, 2008, 32).

As “estéticas da existência”, ou “artes do viver” do mundo grego-romano, ao

contrário das bioasceses contemporâneas, fornecem a Foucault um modelo de governo

ético, em que as técnicas paidéticas não se transformam em ortopedia, em que os

educadores não se transformam em líderes, e em que o ideal de formação do cidadão não

aponta para a criação de indivíduos submissos, ensinados a obedecer e, portanto, a

renunciar a si mesmos. Trata-se de um moral, ou de várias morais, como mostra ele, que

procuram formar o indivíduo autônomo, capaz de gerir a si mesmo e, logo, a própria

cidade. Segundo Foucault,

Entre os gregos e romanos – entre os gregos, sobretudo – para conduzir-se bem,

para praticar a liberdade como se deve, era preciso ocupar-se consigo mesmo,

cuidar-se de si mesmo, ao mesmo tempo para conhecer-se (...) e para formar-se,

para superar-se, para dominar em si os apetites que arriscariam levar-nos. A

liberdade individual era, para os gregos, algo de muito importante –

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contrariamente ao que diz esse lugar comum, mais ou menos derivado de Hegel,

segundo o qual a liberdade do indivíduo não teria nenhuma importância diante

da bela totalidade da cidade: não ser escravo (de uma outra cidade, daqueles

que vos cercam, daqueles que vos governam, das suas próprias paixões) era um

tema absolutamente fundamental (...) tem-se aí toda uma ética que gira em torno

do cuidado de si (...) (FOUCAULT, 2001ª,1531).

Foucault destaca, nesse trabalho, a historicidade das experiências subjetivas e

sexuais dos antigos, diferenciando-as claramente de outras épocas. Assim, os prazeres

pagãos diferem dos prazeres da “carne” cristã, assim como de outros discursos, como o

do sexo moderno, e talvez, diz Veyne, do do “gênero” pós-moderno, com o feminismo e

os direitos sexuais (VEYNE, 2008, 20). Ao invés de uma história do “amor”, como algo

abstrato e universal, a pesquisa histórica e o método empírico de Foucault dá visibilidade

a diferentes práticas e objetos. Na repetição, a diferença: na Grécia antiga, o Don Juan se

transforma em efeminado, pois é vítima dos prazeres, ao invés de ter controle sobre o

modo de experimentá-los.

- criações libertárias: a conversão a si

Examinando a “cultura de si” dos antigos, Foucault destaca a importância que

assume o preceito délfico “cuida-te de ti mesmo”, em relação ao famoso “conhece-te a ti

mesmo”. Para Sócrates, está em jogo a efetivação de um trabalho constante sobre si, a

realização de exercícios espirituais, mais do que a descoberta de um eu alojado no fundo

de si mesmo. No “cuidado de si” do mundo greco-romano, era fundamental a

preocupação consigo mesmo, um trabalho de “conversão a si”, de voltar-se sobre si

mesmo, a partir de todo um trabalho ético-estético de elaboração pessoal. Segundo

Foucault, o princípio do cuidado de si não era apenas condição de acesso à vida

filosófica, mas tornou-se o princípio de toda conduta racional, de toda forma de vida ativa

que se orientasse pelo princípio da racionalidade moral. Diz ele, “A incitação a ocupar-

se de si mesmo tomou, ao longo de todo o pensamento helenístico e romano, uma

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extensão tão grande que se tornou, creio, um verdadeiro fenômeno cultural de

conjunto.”

Em nossos dias, ocupar-se de si mesmo é interpretado de modo suspeito, como

forma de individualismo exacerbado, sinal de vaidade ou egoísmo, em oposição aos

interesses públicos, ao bem comum. Já para os antigos gregos e romanos, era

imprescindível saber cuidar de si, ter o governo de si para a relação libertária também

com o outro. Contudo, com o cristianismo, a salvação pessoal passará a ser obtida pela

renúncia de si, pela negação dos próprios desejos, pelo sacrifício pessoal. Para aqueles,

ao contrário, tratava-se de dar-se uma forma estilizada de vida, o que implicava saber

“usar os prazeres”, para se chegar à vida temperante, equilibrada.

Nessa cultura do cuidado de si, as práticas de conversão a si aparecem ao lado das

práticas parresiastas, como momentos delicados e fundamentais da constituição da

subjetividade ética. Assim, ao contrário da conversão a si pregada pelo discurso militante

do passado, fortemente calcado nas formas do retorno a si instituídas pelo cristianismo,

Foucault destaca outras possibilidades históricas na experiência de si, das quais valoriza a

experiência helenística. Explico com mais vagar.

No cristianismo (sécs. III e IV), a conversão cristã se aproxima da metanóia, que

em grego designa a penitência e uma mudança radical do espírito. Segundo Foucault,

esta é súbita e exige uma passagem da obscuridade à luz, exige ruptura, produz uma cisão

do eu – “o eu que se converte é um eu que renunciou a si mesmo”; morrer para si,

renunciar a si, renascer em outro eu e sob nova forma são as formas dessa experiência

(FOUCAULT, 2004b, 260)

Na Grécia antiga, com Platão, trata-se de uma outra experiência do retorno a si. A

conversão a si implica um desviar-se das aparências. Fazer um retorno a si implica

reconhecer a própria ignorância e a necessidade de ter cuidados consigo, de conhecer-se e

transformar-se, “fazer ato de reminiscência” – como forma de conhecimento, retornar à

pátria ontológica, às origens, à casa, à verdade e ao Ser. Visa libertar-se pelo acesso à

verdade, desprendendo-se do corpo-prisão e deste mundo.

Já na cultura de si helenística e romana, a conversão a si é muito diferente das

anteriores, como explica Foucault: esta não se move no eixo de uma oposição entre este

mundo e um outro. Consiste em nos deslocarmos do que não depende de nós ao que

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depende de nós; trata-se de uma liberação no interior deste eixo de imanência, liberação

em relação a tudo aquilo que não dominamos, para alcançarmos o que podemos dominar.

Portanto, não é uma liberação em relação ao corpo, não é uma cisão em relação ao corpo,

mas na adequação de si para consigo que a conversão se faz. O conhecimento é

importante, mas não decisivo da conversão como em Platão. Aqui, a conversão é uma

ascese, uma prática, um exercício, um trabalho sobre si (FOUCAULT, 2004b, 268 e

segtes).

Na conversão helenística e romana, nessa cultura de si, portanto, não há ruptura

subjetiva, como no modelo cristão. Segundo Foucault, Sêneca refere-se a uma

transfiguração de si, a uma mutação de si mesmo. Se há ruptura, não é no interior do eu

que ela se produz, explica ele. Pode ser em torno do que cerca o eu, do que o torna

escravo, dependente e cerceado – mas não se trata de uma ruptura de si para consigo.

Longe da imagem do giro do “pião”, cujo movimento se origina por impulso

exterior, esse trabalho sobre si visa fortalecer o indivíduo como um atleta, que se dá os

exercícios necessários no tempo e no modo que lhe convém. Mas aqui, a técnica de si

deixa de ser pedagogia, algo que se oferece aos jovens quando estão prestes a atingir

outra fase da vida. Esse trabalho é de fluxo contínuo, um trabalho constante de si para

consigo, que não visa à cidade, nem ao outro, mas toma a si mesmo como meta, pois visa

a construção de um eu ético.

- as práticas parresiastas

Nesse trabalho de escultura de si, ganha destaque outro conceito que Foucault

encontra entre as técnicas educativas dos antigos gregos: a parrésia, ou o franco falar, o

falar corajosamente que assume riscos e que pode se dar em contextos públicos e

privados. Fundamentalmente, a parrésia opõe-se à retórica. O parresiasta é aquele que

tem “a coragem da verdade”, é aquele que se arrisca, que não teme correr riscos, que ousa

dizer a verdade acerca das instituições e decisões políticas diante dos poderosos, sem

temer o rei. Ao mesmo tempo, a prática parresiasta está distante da confissão, dessa

relação com a verdade que Foucault entende como um importante dispositivo de controle

do indivíduo e de instauração da obediência. Para ele, quanto mais o indivíduo é incitado

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a exprimir o seu eu mais profundo e a revelar as suas emoções mais íntimas, sobretudo

pela confissão, tanto mais fica submetido a essa forma de poder denominada de “governo

por individualização”, que se exerce na vida cotidiana, vinculando-o à sua identidade

(GROS, apud RAGO, 2006). Finalmente, o parresiasta também se distancia do “militante

iluminado”, aquele que se sente em condições de impor ao outro o que acredita ser “a”

verdade.

Trata-se da construção de uma “subjetividade expressiva”, segundo Nancy

Luxon, em oposição ao sujeito dividido e alienado para Marx, ou neurótico e obsessivo

para Freud (LUXON, 2008, 390). Ao contrário deste, que vai para dentro em busca dos

segredos do desejo, as práticas parresiastas de auto-formação se detêm na superfície da

atividade. Primeiro, trata-se de perceber-se a si mesmo, de prestar atenção aos próprios

movimentos e respostas, de escutar-se. Contudo, o conhecimento de que aqui se fala não

implica uma hermenêutica do sujeito, uma conversão a si nem no estilo platônico, com

base na reminiscência do que a alma conheceu em outros tempos, nem no modelo cristão,

que investe na recusa de quem se é, na crítica aos próprios desejos, na culpabilização do

prazer e na renúncia a si, como já dissemos. As práticas da parrésia, para fornecerem um

modelo de auto-governo ético, devem ser capazes de formar sujeitos coerentes, no dizer e

no agir, sem que suas relações sejam disciplinares ou de constrangimento, sem

objetivação dos indivíduos num “corpo de conhecimentos”, sem que as técnicas

paidéticas da parrésia se transformem em ortopedia. Aí, Foucault enfatiza as atividades

que estruturam as relações individuais com outros. Diz Luxon:

Enquanto as imagens espaciais do Panóptico organizam os corpos projetando

uma ordem espacial sobre eles, a parrésia mantêm os indivíduos como são

definidos pela particularidade da elaboração e ritmo que dão às suas práticas. As

práticas da parrésia educam o indivíduo para uma “disposição à firmeza”. Como

atingir esse auto-domínio que não é ortopédico? Não busca a verdade de si na

interioridade, mas examina os próprios passos para adquirir uma firmeza de

orientação. Diferentes das tecnologias confessionais, as técnicas parresiastas

ensinam duas coisas: ensinam o indivíduo a estabelecer seu padrão de valores e

então a começar o trabalho paciente de mover-se entre esse padrão e o mundo

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em que vive. Nada de criação de um código ético universal que deva ser

internalizado como consciência, mas criação de relações consigo e com os

outros que forneçam um contexto imediato de reconhecimento desses valores

em uma comunidade (LUXON, 2008, 388).

É importante salientar, ainda, que esse cuidado de si do paganismo, em suas

diferentes modalidades, não consiste em uma atividade solitária, não se destina a separar

o indivíduo da sociedade; ao contrário, supõe as relações sociais, pois ocorre nos marcos

da vida social e comunitária. Diz Foucault, “o cuidado de si (...) aparece como uma

intensificação das relações sociais.” Não se trata, portanto, de renunciar ao mundo e aos

outros, mas de modular diferentemente a relação com os outros pelo cuidado de si.

- subjetividade, feminismo e ética

Gostaria agora de perguntar pelos aportes da teoria e da experiência feminista a

esse debate. A crítica feminista foi radical ao buscar a liberação das formas de sujeição

impostas às mulheres pelo patriarcalismo e pela cultura de consumo da sociedade de

massas e se, num primeiro momento, o corpo foi negado como estratégia mesma dessa

recusa das normatizações, desde os anos oitenta, no Brasil principalmente, percebe-se

uma mutação nessas atitudes e a busca de novos lugares para o feminino. As mulheres

voltaram sobre si mesmas, num movimento bastante diferente do que se poderia

imaginar, não mais se espelhando no olhar médico do passado, mas a partir de suas

próprias indagações, questionamentos e subversões. Com muitas suspeitas, dúvidas e

inquietações.

Essa busca estimulou a emergência de outras formas de feminilidade, de novas

concepções de sexualização, beleza e sedução, inclusive corporais, que poderiam

aproximar-se das “artes da existência”, isto é, técnicas de constituição estilizada da

própria subjetividade desenvolvidas a partir das práticas de liberdade. Embora não seja

possível definir um sujeito único do feminismo, pode-se afirmar que as feministas, de

modo geral, estão preocupadas tanto com o refinamento do espírito, quanto com a beleza

corporal, a saúde, a agilidade, a elegância e a moda, na construção de si e de uma nova

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ordem social e sexual. Mostrando que poderiam existir modos diferentes de organizar o

espaço, outras “artes de fazer” no cotidiano, da produção científica ou artística à

formulação das políticas públicas, das relações sexuais aos modos de subjetivação, a

crítica feminista evidenciou que múltiplas respostas são sempre possíveis para os

problemas que enfrentamos e que outras perguntas deveriam ser colocadas a partir de

uma perspectiva feminista, isto é, a partir de um pensamento que singulariza, subverte e

diz de onde fala.

É no contexto dessas reflexões, que a feminista deleuziana Rosi Braidotti propõe

a figuração de subjetividades nômades:

Falando como uma mulher feminista branca, anti-racista, pós-estruturalista,

européia, eu apoio figurações de subjetividade nômade, para agir como uma

desconstrução permanente do falologocentrismo eurocêntrico. Consciência

nômade é o inimigo dentro desta lógica (BRADITOTTI, 2002).

É nessa lógica que as discussões sobre as relações de gênero ganham sentido,

como um modo de escapar da filosofia do sujeito e das armadilhas da afirmação das

identidades, para entrar num novo campo epistemológico e político, capaz de se abrir

para a formulação de novas perguntas e respostas, ou antes, para criar novos modos de

pensar e existir. E é ainda nesse sentido, que o diálogo com Foucault e Deleuze, entre

outros filósofos contemporâneos, foi e é enriquecedor para o feminismo, pela profunda

crítica que aqueles lançam ao pensamento cêntrico e à ciência ocidental, assim como

pelas saídas que apontam. Vale lembrar que, para Deleuze, o devir é essencialmente

feminino, um “devir-mulher”, que aliás também importa às mulheres, que não nascem

prontas, como se sabe, e que também tem de “devir-mulher”. Segundo ele, “o homem se

apresenta como uma forma de expressão dominante que pretende impor-se a toda

matéria, enquanto a mulher, o animal, a molécula tem um componente de fuga que

escapa a toda formalização” (DELEUZE, 1997, 11).

Nessa direção, perguntando “o que o feminismo tem a oferecer ao futuro do

pensamento? O feminismo teria um futuro no pensamento?”, Elisabeth Grosz afirma a

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necessidade de reconceitualização do que o feminismo entende por subjetividade, já que

discorda que se trata de reconhecer identidades, o que seria defender uma política servil:

O feminismo (...) é a luta para tornar mais móveis, fluidos e transformáveis, os

meios pelos quais o sujeito feminino é produzido e representado. É a luta para

se produzir um futuro, no qual as forças se alinham de maneiras

fundamentalmente diferentes do passado e do presente. Essa luta não é uma luta

de sujeitos para serem reconhecidos e valorizados, para serem ou serem vistos,

para serem o que eles são, mas uma luta para mobilizar e transformar a posição

das mulheres, o alinhamento das forças que constituem aquela ‘identidade’ e

‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza como um lugar e uma

identidade (GROSZ, 2002).

Portanto, o feminismo tem uma dimensão política profundamente crítica e

libertadora, que não pode ser negligenciada, afinal, têm sido enormes as suas

contribuições, especialmente ao questionar as formas e as práticas masculinas de um

mundo que, misógino, é opressivo para as mulheres, e ao mostrar a maneira pela qual a

ciência fundamentou essas concepções, com seus conceitos sedentários, mascarando sua

realidade de gênero.

O feminismo trouxe novas perspectivas, juntamente com novas imagens do

pensamento, ao revelar que o mundo poderia ser outro, isto é, feminino e filógino, e que

as mulheres não são apenas sistemas reprodutivos passivos, nem natureza transbordante e

incontrolável ameaçando destruir a cultura, com seu desejo ninfomaníaco e selvagem,

como sugerem várias peças e filmes dos inícios do século XX.

Deixou claro que as feministas são capazes de inventar novos mundos, organizar

de modo não-elitista, de dar respostas diferentes das já conhecidas e que não satisfazem

apenas a alguns setores sociais e sexuais. Mostrou que as mulheres podem criar novas

ciências, novas formas de produção de conhecimento, - as epistemologias feministas,

transversais -, pois estão em todas as classes e grupos sociais, orientadas por agendas

feministas, como observa Sandra Harding (HARDING, 1991).

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Finalmente, esse movimento não visou apenas o benefício das mulheres, pois

atingiu e desestabilizou também a solidez da identidade masculina do guerreiro,

valorizada, desde o século XIX, em oposição ao modelo aristocrático de masculinidade

da “sociedade de corte”, e reforçada pelo sucesso de Tarzan, desde as primeiras décadas

do XX. Expondo a unilateralidade e limitação dessa identidade masculina, que exclui

tudo o que é considerado culturalmente feminino, como as emoções, os sentimentos, a

fragilidade e a possibilidade de experiências e vivências mais reais, porque mais

integradas psiquicamente, forçou a busca de novas formas de invenção de si também para

os homens. Como afirma aquela autora:

as mulheres não são as agentes exclusivas do conhecimento feminista. O

pensamento feminista deve fundamentar suas análises críticas da natureza e das

relações sociais no âmbito das vidas das mulheres. Entretanto, os homens

também precisam aprender como fazer o mesmo a partir das suas condições

históricas e sociais particulares, agindo como homens traidores da supremacia

masculina e das relações de gênero convencionais (HARDING,1991, 311).

BIBLIOGRAFIA

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