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420 Estilos da Clínica, 2010, 15(2), 420-433 RESUMO Neste trabalho, partimos da for- ma particular de comunicação existente entre a mãe e o bebê denominada de “manhês”. Res- saltamos a importância da mu- sicalidade da língua materna, dos diferentes tipos de comuni- cação não-verbal. A força libi- dinal das palavras utilizadas, mais do que seu conteúdo, mar- ca a criança e dá sentido às suas manifestações. Considerando que o exercício da função ma- terna não é necessariamente rea- lizado pela mãe biológica, nos perguntamos como crianças, ins- titucionalizadas precocemente, são marcadas ou não pela voz de seus cuidadores. Descritores: manhês; comu- nicação não-verbal; função ma- terna. Artigo A O MANHÊS: COSTURANDO LAÇOS Mariana Moreira de Souza Pierotti Lidia Levy Silvia Abu-Jamra Zornig importância das relações objetais preco- ces na constituição do psiquismo da criança tem sido enfatizada pela teoria e pela clínica psicanalítica, prin- cipalmente por relacionar a necessidade da presença de adultos em função de pais ao processo de desen- volvimento do infante. Apesar da teoria freudiana não ter priorizado uma concepção mais detalhada sobre os primórdios do psiquismo, autores pós-freu- dianos ampliaram e desenvolveram noções fundamen- tais que nos permitem refletir acerca das relações es- tabelecidas na primeira infância, especialmente aquelas que têm como referência a noção de susten- tação, continência e interações afetivas não verbais. Diversos aspectos presentes na troca afetiva entre aquele que exerce a função materna e o bebê merecem um estudo; entretanto, destacaremos nes- te trabalho o papel especial atribuído à voz materna Psicóloga, pesquisadora do núcleo de pesquisa em relações objetais precoces da PUC/Rio de Janeiro. Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio de Janeiro, psicanalista da SPID e da SPCRJ. Professora e supervisora do Depto. de Psicologia da PUC-Rio de Janeiro, psicanalista, presidente ABEBE.

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RESUMO

Neste trabalho, partimos da for-ma particular de comunicaçãoexistente entre a mãe e o bebêdenominada de “manhês”. Res-saltamos a importância da mu-sicalidade da língua materna,dos diferentes tipos de comuni-cação não-verbal. A força libi-dinal das palavras utilizadas,mais do que seu conteúdo, mar-ca a criança e dá sentido às suasmanifestações. Considerandoque o exercício da função ma-terna não é necessariamente rea-lizado pela mãe biológica, nosperguntamos como crianças, ins-titucionalizadas precocemente,são marcadas ou não pela vozde seus cuidadores.Descritores: manhês; comu-nicação não-verbal; função ma-terna.

Artigo

A

O MANHÊS:COSTURANDO LAÇOS

Mariana Moreira de Souza PierottiLidia Levy

Silvia Abu-Jamra Zornig

importância das relações objetais preco-ces na constituição do psiquismo da criança tem sidoenfatizada pela teoria e pela clínica psicanalítica, prin-cipalmente por relacionar a necessidade da presençade adultos em função de pais ao processo de desen-volvimento do infante. Apesar da teoria freudiananão ter priorizado uma concepção mais detalhadasobre os primórdios do psiquismo, autores pós-freu-dianos ampliaram e desenvolveram noções fundamen-tais que nos permitem refletir acerca das relações es-tabelecidas na primeira infância, especialmenteaquelas que têm como referência a noção de susten-tação, continência e interações afetivas não verbais.

Diversos aspectos presentes na troca afetivaentre aquele que exerce a função materna e o bebêmerecem um estudo; entretanto, destacaremos nes-te trabalho o papel especial atribuído à voz materna

Psicóloga, pesquisadora do núcleo de pesquisa em

relações objetais precoces da PUC/Rio de Janeiro.

Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio

de Janeiro, psicanalista da SPID e da SPCRJ.

Professora e supervisora do Depto. de Psicologia da

PUC-Rio de Janeiro, psicanalista, presidente ABEBE.

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ou à voz de quem exerce a função ma-terna. Com este intuito, relataremosuma experiência cujo foco foi obser-var a forma de comunicação utiliza-da pelas funcionárias de uma institui-ção diante dos bebês que estavam sobseus cuidados.

Consideramos que o bebê deixa-se seduzir pelos elementos dinâmicosda fala da mãe, não pelo conteúdo lin-guístico, mas pelos traços prosódicosque esta imprime à sua fala. No iní-cio da vida, o bebê precisa de umapresença manifestada pela voz e nãoapenas na motricidade do corpo-a-corpo, precisa que a voz lhe seja des-tinada. Assim é que Dolto (1998)enfatiza que ele estará em perigo, casonão possa agarrar-se a sequências devariações auditivas e se prenda a se-quências de variações táteis, fixando-se a sensações de necessidades e nãodesenvolvendo os lugares de percep-ção de alegria, de desejo compartilha-do. Catão (2008) também entende quea voz do agente materno dirigida aoinfans não remete a uma comunicaçãode sentido, mas faz girar o circuito dapulsão oral em torno de um objetoque não é o objeto da satisfação danecessidade. Para a autora, o laço maisprimordial com o outro (Outro) é olaço com a voz. Esta se constitui emum dos modos fundamentais da pre-sença da mãe no lugar de Outro. Avoz participa da instauração do laçoentre a mãe e o bebê ao mesmo tem-po em que se constitui como objetopassível de ser contornado pela pul-são. Enquanto objeto pulsional, a voz

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delimita as bordas que separa o cor-po da mãe do que será o corpo dobebê, fundando, a um só tempo, su-jeito e Outro.

Winnicott (1945, 1956, 1960), emsua obra, ressalta a dimensão afetivae não verbal que perpassa as intera-ções entre a mãe e seu bebê, demons-trando como a sustentação física, omanejo do corpo do bebê, a musica-lidade da voz materna, funcionamcomo pontos de referência para osurgimento do psiquismo do infante.O sentimento de ser no mundo ba-seia-se na continuidade de cuidadose na previsibilidade do meio ambien-te, marcadores essenciais para o de-senvolvimento do eu e para a estru-turação do self. Assim, é por meio doscuidados maternos que a temporali-dade e a noção de espaço vão sendoinstauradas na vivência do infante. Obebê precisa viver a ilusão de ter cria-do os objetos que o satisfazem; ilu-são que é a base para o desenvolvi-mento da criatividade, possibilitandoao sujeito transitar num espaço po-tencial, entre o interno e o externo,um espaço transicional. A capacida-de de ilusão do bebê se dá com a aju-da de um outro, que lhe mostra omundo num formato compreensívele de um modo adequado às suas ne-cessidades.

Bion (1962), por sua vez, indicaque a mãe atua de forma a metaboli-zar e transformar experiências brutasem elementos psíquicos. O conceitode rêverie indica a capacidade da mãede abrigar, conter o bebê, oferecen-

do-lhe palavras. Ela o acolhe com suacapacidade de sonhar, podendo assimfazer um trabalho de metabolização;ou seja, recebe o que vem do bebê,os elementos beta (elementos sensori-ais que ainda não sofreram transfor-mação ao nível psíquico), e exercendoa função alfa, uma função transfor-madora, permite que elementos psí-quicos sejam colocados disponíveispara o uso em pensamento. Numamesma linha de raciocínio, Figueire-do (2007) constata a importância decuidados que impliquem em fazer li-gações, dar forma, sequência e inteli-gibilidade aos acontecimentos, quepossibilitem uma integração em opo-sição aos excessos traumáticos.

Assim, na primeira infância, asrelações afetivas são moduladas pelasensorialidade da experiência, senso-rialidade aqui compreendida comouma vivência no corpo, desde que estecorpo seja definido como um corporelacional, marcado pelo outro. Ouseja, os cuidados maternos permitemque as experiências sensoriais façamsentido. Zornig (2008) apoia-se nanoção de “afetos de vitalidade”, utili-zada por Stern (1992), para enfatizarque o bebê sente antes de compreen-der intelectualmente. A autora desta-ca que o bebê inicia seu percurso sub-jetivo através de modalidades afetivasmarcadas por uma dimensão de in-tensidade e não só por seu conteúdoformal, que se diferenciam dos afe-tos categóricos (alegria, raiva, medo,tristeza). A linguagem, portanto, teminício através de trocas não verbais

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entre a mãe e o bebê, permitindo-lhefigurar no corpo a história recentedesta relação. A unificação de suasexperiências separadas é realizadaatravés do “envelope proto-narrati-vo”, uma unidade de base que tem afunção de integrar diversas vivênciase possui uma estrutura próxima à nar-ratividade (Stern, 2005). Desta forma,o bebê experimenta a potência de umafeto antes de compreender seu con-teúdo. Como indicam Golse e Desjar-dins (2005, p. 18), “o bebê precisa –não saber – mas experimentar e sen-tir profundamente que a linguagemdo outro (e singularmente a de suamãe) o toca e o afeta, e que esta éafetada e tocada, por sua vez, pelasprimeiras emissões vocais dele”.

Ao estudar as funções de conti-nente e de transformação das ima-gens, Levy (2007) percebe o quantoestas fornecem uma ilusão de conti-nuidade psíquica ao bebê ainda indife-renciado. A autora sinaliza que, já em1897, Freud escrevia que as fantasiasoriginam-se de uma combinação in-consciente de conformidade com de-terminadas tendências, de coisas expe-rimentadas e ouvidas. Um fragmentode experiência visual une-se a um frag-mento de experiência auditiva, trans-formando-se numa fantasia.

Consideramos, portanto, que aexperiência da voz é inaugural e temum papel primordial na fundação dosujeito. Bentata (2009) sugere que avoz, como primeira experiência, pos-sibilita as etapas oral, anal e o Édipo,que só ocorrem mais tarde. Assim o

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infans precisa para se nomear, para sesubjetivar, transpor a difícil etapa damontagem pulsional da voz, precisaapropriar-se da voz materna e fazê-lasua.

No desenrolar do processo deseparação mãe/bebê, observamos amaneira particular como a mãe falaao filho, forma que adquire matizesdiferentes a cada passo desse trajeto,comunicação especial que foi deno-minada de “manhês” (motherese).Palavras cuja força libidinal marca acriança, palavras que dão sentido àssuas manifestações, que serão utiliza-das para expressar sua demanda e que,ao mesmo tempo, ajudam em seumovimento de diferenciação.

O “manhês”

Um dos elementos constitutivosda função materna é a voz do adulto,o primeiro elemento sensorial ao qualo bebê tem acesso. A fala materna vaipropiciar a tentativa da mãe, ou da-quele que exerce a função materna,de oferecer sentido, representações àspulsões do bebê. Freud comenta oquanto a audição tem valor primário,ou seja, o que é ouvido é a essênciado resíduo mnêmico mais do que ocomponente visual ou motor da pa-lavra. “Os resíduos verbais derivamprimariamente das percepções audi-tivas, de maneira que o sistema Pcs.possui, por assim dizer, uma fontesensória especial. Os componentes

visuais das representações verbais sãosecundários, adquiridos mediante aleitura, e podem, inicialmente, serdeixados de lado, e assim também asimagens motoras das palavras, que,exceto para os surdos-mudos, desem-penham o papel de indicações auxili-ares. Em essência, uma palavra é, emúltima análise, o resíduo mnêmico deuma palavra que foi ouvida.” (Freud,1996 [1923], pp. 34-35)

Esta afirmação de Freud é mui-to importante por indicar que a escu-ta da musicalidade da voz maternatem uma influência decisiva na ma-neira como ela será metabolizada pelobebê. Como sugere Dolto (2002, p.79) “De que ela (a criança) está preci-sando naquele momento? De um ali-mento simbólico, isto é, de um ele-mento auditivo, visual, linguageiro,que lhe explique o gosto e ponha pa-lavras naquilo que ela leva à boca... overdadeiro elemento transicional paraa criança são as palavras”. Para a au-tora, essas palavras têm que estar ba-nhadas de afeto, ou seja, aquele queexerce a função materna precisa in-vestir emocionalmente o bebê. Denada adiantaria falar apenas mecani-camente, é necessário que haja forçalibidinal nas palavras ditas pela mãe.Ela vai falar com seu bebê na tentati-va de dar nomes às suas manifesta-ções, acolhendo-o. Então o bebê cho-ra e a mãe diz: “deve estar comcólica”, “está com frio”, “deve serfome”, e assim por diante.

Este diálogo entre mãe e bebêchama-se “manhês”. É um tipo de

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prosódia especial que a mãe utilizaquando se dirige ao filho. Qualqueradulto que esteja nesse papel, verda-deiramente investido libidinalmentena criança, irá conversar com o bebênesse “idioma” especial. A comuni-cação verbal da mãe com o bebê temcaracterísticas especiais: “prolonga-mento das vogais, que a torna maislenta e sonora, aumento da frequên-cia, que a faz mais aguda, e glissandoscaracterísticos que a tornam maismusical.” (Laznik & Parlato-Oliveira,2006, p. 58).

Ao observarmos um adulto con-versando com um bebê, não é raroverificarmos sua capacidade de afinara voz e até mesmo modificar sua pos-tura corporal. Brazelton (2002) co-menta sobre a maneira peculiar atra-vés da qual os adultos costumamdirigir-se aos bebês, usando uma mo-dulação diferente de voz, não só fa-lando a meia-língua típica das crian-ças, mas usando ritmos mais lentos epalavras mais simples.

Catão (2008) explica que omanhês convida o bebê a alienar-seno campo da linguagem, fundandoum significante mínimo; ou seja, umamatriz simbolizante é implantada pelamúsica da voz do agente materno.Música esta que tem um poder quaseabsoluto de invocação, uma promes-sa de gozo sem limites, sendo consi-derada um dos determinantes da alie-nação do infans ao desejo do Outro.Somente a partir deste momento dealienação, a criança poderá ter voz. Osom, como ruído sonoro, se organiza

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em música a partir da intervenção do Outro cuidador. O bebê pre-cisa aceitar trocar o ruído do caos sonoro em que nasce pela“sincronia significante” que o agente materno propõe; assim é ini-cialmente chamado, para, em seguida chamar e se fazer chamar.

Ao discorrer sobre uma dimensão simbólica da voz, Bentata(2009) sugere que a mãe, fornece sua voz ao bebê em manhês, lín-gua universal das mães, que funcionaria como o canto das sereias,atraindo irresistivelmente aquele que a escuta: “...a voz da sereiaevoca esse encantamento de outrora da voz materna, quando o sig-nificante da presença da mãe equivalia à manifestação de sua voz. Avoz do grande Outro materno sucedia ao grito de chamada” (Bentata,2009, p. 17). A criança deve se deixar seduzir pela voz materna, semnela se perder. Ao responder ao apelo que a musica da voz lhe diri-ge, muda de posição, passando de invocado a invocante.

Diversos trabalhos recentes (Bentata, 2009, Catão, 2008,Ferreira, 1990) abordam a linguagem do agente materno com o bebê,visando entender os transtornos de crianças autistas. A criança au-tista, para Bentata, não consegue articular o olhar com a voz, sóreagindo à voz materna quando ela vem por trás. Já Ferreira, reco-nhece em muitos autistas uma preferência ao ruído em detrimentoda voz. Ruídos ritmados e repetidos que buscam incessantementeescutar. Catão, por sua vez, indica que a criança autista parece de-sinvestir a voz em seu tempo musical, fazendo com que esta perma-neça como ruído. Para o autista, em vez de se revelar cativante, avoz parece repulsiva a seus ouvidos.

Considerando a comunicação mãe-bebê por outro prisma, éigualmente interessante perceber que o discurso do adulto vai assu-mindo diferentes formas a cada passo do trajeto no caminho dadiferenciação. Nos primeiros meses, a mãe se refere ao bebê quasesempre no plural, “nós”, implicando-se no que ele vivencia. Depoispassa a se comunicar como se o bebê estivesse falando; tal especu-laridade, chamada de “fala atribuída” (Cavalcante, 1999), ocorrequando a mãe se coloca no lugar do outro (a criança). A mãe seencontra tão ligada ao bebê, fusionada a ele, que fala dele na primei-ra pessoa como se fosse ela. A mãe olha para o bebê e diz: “Eu soutão levado” ao invés de dizer: “Você é tão levado”.

Por outro lado, usa a palavra “mamãe”, ao invés de “eu”. Elanão diz: “eu vou te dar o banho”, diz: “mamãe vai te dar o banho”.Em relação aos outros membros da família, a mãe se expressa comose fosse o filho, assim é que chama sua mãe de vovó e seu marido de

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papai, dizendo para o bebê: “vamospara a casa da vovó”, quando vão paraa casa da mãe dela, ou “fala com opapai se pode ir”, mencionando seumarido.

Jerusalinsky (2006) reforça o pa-pel que a fala materna tem para seufilho e comenta o que ocorre quandoa diferenciação mãe-bebê não se dá:“...esse modo da fala materna reservaum lugar para o pequeno filho, lugarem que ele mesmo poderá ir introdu-zindo paulatinamente as expressõesde sua própria demanda. Não haven-do diferenciação desse lugar, não ha-verá atribuição de significado àquiloque o bebê manifesta, e assim ele nun-ca se encontrará no papel de prota-gonista senão de mero receptor damensagem do outro”. (Jerusalinsky,2006, p. 64). A conversa da díade mãe-bebê acontece em um espaçotransicional, onde as mães deixam umtempo estratégico para que o bebêentre no canal e dê sinal de que estána linguagem. Já a criança tem que sepermitir ser adotada pelo outro atra-vés da voz, deixando-se levar pela suamusicalidade, permitindo criar a ins-tância do outro dentro de si.

Vale aqui ressaltar que a palavraem inglês “mother” possui nela mes-ma a palavra “other” (Fink, 1995, p.24). Esta leitura auxilia na tentativa deexpandir o conceito da palavra mãepara “m’other”, ou seja, o outro cui-dador, aquele que fará a função ma-terna, não necessariamente a mãe bi-ológica do bebê. Qualquer um quepossa realizar a captura singular da

criança no campo do desejo do Ou-tro pode exercer a função materna.Esta diz respeito ao campo simbóli-co, de introdução do bebê no mundoda cultura feita pelo Outro Primor-dial que supõe no bebê um sujeitoonde há apenas um organismo vivo.Perceber uma demanda nos reflexose automatismos do vivente, perceberque há um sujeito ali, faz parte da fun-ção materna (Kamers, 2004).

Partindo da premissa que o exer-cício da função materna não é neces-sariamente realizado pela mãe bioló-gica do bebê, nos perguntamos comocrianças institucionalizadas precoce-mente são impregnadas ou não pelavoz de seus cuidadores. Com esteobjetivo, visitamos uma instituição noRio de Janeiro que abriga criançasnuma faixa etária de seis meses a seisanos. Elas ali permanecem ou duran-te a semana, com retorno à casa dospais apenas nos fins de semana ou emperíodo integral, retornando todas asnoites para casa. No período em querealizamos nossa observação, verifi-camos a angústia vivida por algunsbebês (de seis meses a um ano de ida-de), diante de uma fala esvaziada demelodia e de conteúdo afetivo.

Quando a fala é vazia

Sabemos que as primeiras inscri-ções psíquicas ocorrem a partir doscuidados parentais (Désjardins &Golse, 2005; Winnicott, 1945) sendo

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fundamental para o bebê uma conti-nuidade de cuidados que lhe propicieum sentimento de continuidade deexistência. Ou seja, através das inte-rações precoces entre o infante e seuscuidadores primordiais, gradualmen-te ele internalizará estes cuidados,desde que sejam constantes e previsí-veis. A constância do investimentopermite ao bebê sentir que está aomesmo tempo no outro e tambémseparado dele. Entre as característi-cas demandadas ao cuidador, Figuei-redo (2007) identifica inicialmenteduas dimensões primordiais, que po-dem ser exercidas por diversos agen-tes: a função de holding, que garante acontinuidade, e a função de continen-te, que proporciona as experiências detransformação. Segundo o autor “sãoas famílias, grupos e instituições osobjetos mais aptos a oferecer o holdingao longo da vida, principalmentequando o que se está em jogo é a con-tinuidade na posição simbólica dosujeito no mundo.” (Figueiredo, 2007,p. 17).

O autor aponta ainda outras ca-racterísticas dos cuidados maternoscomo “reconhecer”, “interpelar” e“reclamar”, que incluem uma dimen-são simbólica. Reconhecer o objetode cuidados no que ele tem de pró-prio e singular. Interpelar aproxima-se do seduzir e indica que o outrocuidador é também fonte de enigmas.É nesta condição que ele desperta apulsionalidade. Já o outro que recla-ma funciona como agente do con-fronto e do limite, defrontando o su-

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jeito com a alteridade, com a lei. Cui-dados que devem ser introjetados demodo que aquele que os recebe sejaele mesmo um participante ativo doprocesso.

Instituições que acolhem o infansdurante a semana continuamente oupor longo período diariamente deve-riam manter uma rotina e, principal-mente, a constância na figura de umcuidador principal. Após avaliar asrelações entre as cuidadoras e os be-bês da instituição visitada, percebe-mos algumas falhas no que se refereà falta de comunicação verbal das pro-fissionais com os bebês observados.Logo num primeiro momento iden-tificamos uma falta de palavras ditasaos bebês assim como a presença denão-ditos que os deixavam visivel-mente angustiados. Nossa atenção foidespertada pela maneira peculiarcomo as cuidadoras se expressavamverbalmente. Muitas vezes havia umaausência de fala e, em outras ocasiões,sentíamos que a voz era muita baixa,quase inaudível. O conteúdo da con-versa, quando ocorria, era aquele mi-nimamente necessário para que osbebês atuassem de acordo com asexpectativas dos adultos ali presentes.Eram frases como, “não pode bater”ou “tira a mão daí”, falas imperativas,que buscavam mais uma harmonia dogrupo do que o compartilhar de afe-tos ou uma sintonia entre as cuida-doras e os bebês.

Identificamos também pouquís-simas falas que narrassem os aconte-cimentos, deixando os bebês sem sa-

ber o que viria a seguir; não lhes eradito para onde estavam sendo leva-dos, não havia qualquer chamada queindicasse as refeições, nenhuma an-tecipação do banho que lhes seriadado ou aviso da chegada dos pais,quando estes iam buscá-los. Tudo fi-cava implícito e, sem que fossem ofe-recidas aos bebês representações ca-pazes de ligá-los ao que estava sendoexperimentado, percebia-se a angús-tia por eles vivida.

As cuidadoras ora falavam comas crianças como se lhes pedissemuma atitude “adulta”, de compreen-são da situação, sem notar o desam-paro em que se encontravam ora li-davam com elas como se não fossemsujeitos desejantes ou como se nãoestivessem ali. Não pareciam perce-ber a importância de uma atividadede troca, onde ambos – cuidador ebebê – têm uma ação ativa. Não apre-sentavam sinais de uma relaçãoempática, de sintonia afetiva com ascrianças de quem cuidavam, nem ha-via qualquer investimento libidinal.Talvez por isto, elas quase não fala-vam com os bebês, deixando-os semuma oferta de representações quedessem conta de suas pulsões.

Lembremos que, segundo Win-nicott (2000 [1945], p. 224), dentre astarefas que ajudam o bebê a integrar-se estaria a atitude pela qual “alguémmantém a criança aquecida, segura-ae dá-lhe banho, balança-a e a chamapelo nome”. Neste sentido, não setrata apenas de cuidados físicos, masao ser nomeado, o bebê não é somen-

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te o objeto de um fazer automatizado, mas é reconhecido em suaexistência.

A importância da narratividade das cuidadoras que trabalhamem creches é enfatizada por Fensterseifer (2008) no desenvolvimentode um apego seguro. A narratividade é valorizada em sua função deligação, de fornecer a sensação de continuidade da vida. Partindo daobservação de bebês em uma creche, a autora observou que se ascuidadoras são econômicas na sua comunicação verbal ocorre umafalha de atribuição de sentido e significado nas ações que envolvema criança. Em nossa observação, confirmamos a relevância de pre-parar o cuidador no trabalho de significar para o bebê a situação naqual se encontra.

Verificamos a necessidade de um estado emocional específicodo adulto, de sintonia empática com o bebê, identificando-se comele e investindo-o libidinalmente, para que a comunicação verbalexerça sua função de continente e o auxilie em seu processo deintegração. Laznik e Oliveira (2006) valorizam não apenas a presen-ça de um cuidador constante, mas a exposição ao manhês, ao ritmomelódico da fala de quem exerce a função materna, de modo quevenha a ser parte constituinte do psiquismo da criança.

Considerações finais

A psicanálise com crianças aponta, segundo Zornig (2009), parauma mudança de paradigma, ou seja, a passagem de uma clínica doconteúdo para uma clínica do continente, onde a ênfase recai narelação e no vivido. Não se trata de desconsiderar a função da lin-guagem na constituição do sujeito, mas sim ressaltar sua dimensãosensível: a musicalidade da língua materna, os diferentes tipos decomunicação não-verbal, as sensações que envolvem as interaçõesentre o bebê e seus pais ou cuidadores primordiais.

Alguns autores citados neste artigo ressaltam que o psiquismose constitui através de sensações e inscrições corporais e relacionaisantes da percepção de um eu autorreflexivo e diferenciado de seuentorno. É necessário um holding materno que funcione inicialmen-te como um continente, para possibilitar a atividade de pensar quetransforma o continente em conteúdo. Em outras palavras, é preci-so uma experiência de sustentação materna para que a criança pos-

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sa internalizar a mãe e se automater-nar. Outros autores citados indicama importância de um primeiro mo-mento de alienação, no qual a criançaé seduzida pela música da voz do agen-te materno. A voz entendida enquan-to um objeto pulsional, um objeto va-zio, que participa da instauração dolaço entre a mãe e o bebê; entretanto,a criança deverá inicialmente transfor-mar seu grito em apelo para, no ca-minho de tornar-se sujeito, situar-secomo narrador de sua história.

Procuramos enfatizar como, du-rante a interação da mãe com seubebê, distintos traços prosódicos pre-sentes na fala da mãe provocam efei-tos distintos no bebê. A criança rea-ge à fala materna, não em decorrênciada significação que ela carrega, elaprecisa ouvir seu nome cantado emtodos os tons, como demonstrouDolto (1998). O “manhês” é uma for-ma de comunicação que se caracteri-za pelo investimento afetivo e costu-ra os laços entre a mãe e o bebê, aomesmo tempo em que vai se direcio-nando no sentido de facilitar sua se-paração. Esta comunicação, utilizadapor quem exerce a função materna,deixa entrever o investimento reali-zado na criança, em momento muitoprecoce de seu desenvolvimento. Emcontraposição, observamos que o si-lêncio em torno do bebê, a ausênciade representações que deem sentidoao que sentem, provoca intensa an-siedade e esvaziamento afetivo.

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THE MATERNAL LANGUAGE: FORMING THE INITIAL TIES

ABSTRACT

The paper intends to discuss a particular form of communication between the mother and herbaby, entitled “motherese”. The paper emphasizes the different forms of non –verbalcommunication established between the mother and the baby, particularly the music of thematernal language. The baby is initiated into the different modes of interaction through themother’s affective responses, more than from the content of her discourse. Considering that thematernal role is not always carried by the biological mother, one of the questions of this paperrefers to the possibilities of emotional development of institutionalized infants and children.

Index terms: motherese; non-verbal communication; maternal role.

LO “MANHÊS”: COSIENDO LAZOS

RESUMEN

En este estudio, hemos partido de la manera peculiar de comunicación que existe entre madre ehijo recién nacido llamada de “maternés”. Hemos destacado la importancia de la musicalidadde la lengua materna, de los diferentes tipos de comunicación no verbal. La fuerza libidinal delas palabras utilizadas, más allá de su contenido, destaca al niño y da sentido a sus manifestaciones.Considerándose que el ejercicio de la función materna no es necesariamente cumplido por lamadre biológica, nos preguntamos como niños, institucionalizados precozmente, son marcados ono por la voz de sus cuidadores.

Palabras clave: “maternés”; comunicación no verbal, función materna.

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Recebido em fevereiro/2010Aceito em junho/2010