Crescer em valores

188
Crescer em Valores Histórias para Ler e Pensar

Transcript of Crescer em valores

Page 1: Crescer em valores

Crescer

em

Valores

Histórias para Ler e Pensar

Page 2: Crescer em valores

ÍNDICE

Paz - Um lugar tranquilo Slide 4

Honestidade - O presente da costureira de mantas Slide 10

Humildade - A flor mágica Slide 22

Ternura - Voa, gaivota, voa! Slide 27

Alegria - O duende Dudu, professor de felicidade Slide 36

Justiça - No país de Iqbal Slide 45

Esperança - Vende-se cachorrinhos Slide 67

Gratidão - De graça Slide 70

Amizade - Dois amigos a sério Slide 74

Respeito pela Natureza - A história da árvore do Paraíso Slide 87

Paciência - A árvore que falava Slide 92

Page 3: Crescer em valores

Compaixão - Uma estrela subiu ao céu Slide 109

Responsabilidade – Chico Slide 117

Sinceridade - O caminho para a verdade Slide 125

Generosidade - O Senhor Palha Slide 131

Delicadeza - O cato Slide 137

Obediência - O pássaro da alma Slide 144

Disciplina - Jogos perigosos Slide 148

* Alguns dos textos da presente antologia são adaptações da versão original.

Page 4: Crescer em valores

Paz

De vez em quando,

procura um espaço de silêncio.

O barulho excessivo é prejudicial.

Page 5: Crescer em valores

Um lugar tranquilo

Por vezes, uma pessoa precisa de um lugar tranquilo. Um sítio para descansar os ouvidos de campainhas a tocar, de apitos a silvar, de adultos a falar, de motores a roncar, de buzinas a apitar, de rádios… Bom, às vezes, até os adultos precisam de um lugar tranquilo. Mas encontrar um pode ser difícil. Tens de saber onde procurar.

Podias procurar por baixo de um arbusto, de um lilás, no teu quintal. Quando gatinhas para debaixo dele, todos os sons do mundo parecem abafados e distantes. E tu podes ser um pirata numa ilha deserta e encontrar um tesouro enterrado.

O teu lugar tranquilo podia ser um arbusto.Até que alguém te chama para ires limpar o teu quarto. Então…

Podias procurar no bosque. Talvez encontres um tronco velho que sirva de cadeira ou um cepo com musgo a servir de sofá numa mansão verde de sombras e de raios de sol. Claro que não é muito silencioso. Os gaios azuis gritam e o vento canta

Page 6: Crescer em valores

nas folhas. Mas tudo parece calmo. E tu podes ser o lobo, o fantasma cinzento da floresta.

O teu lugar tranquilo podia ser o bosque.Mas se o bosque é demasiado escuro e profundo…

Podias procurar à beira-mar, na praia, numa manhã de nevoeiro, onde as tuas pegadas na areia são as primeiras do dia. As ondas marulham e as gaivotas soltam gritos mas isso nem parece barulho. E tu podes ser mesmo um explorador a descobrir um continente perdido.

A praia podia ser o teu lugar tranquilo.Mas se a praia não é bem aquilo de que gostas…

Podias procurar no deserto, onde o Velho Sanguaro tenta alcançar o céu e, ao longe, as nuvens rebentam como flores que caiem das alturas sobre os planaltos. Uma carriça dos catos aparece para fazer uma visita, enquanto um sapo cabeçudo brilha ao sol. E tu podes ser um cavaleiro do Pony Express galopando pelo velho Oeste.

O deserto podia ser o teu lugar tranquilo.

Page 7: Crescer em valores

Mas se o deserto for um pouco seco demais…

Podias sentar-te junto de um lago. Perto da margem, uma garça-real está imóvel como o tronco de uma árvore e a água está tão calma que parece um espelho. Uma rã salta de uma folha de nenúfar e o teu rosto agita-se. E tu podes ser o melhor pescador do mundo a recolher uma armadilha para monstros.

Um lago podia ser o teu lugar tranquilo.Mas se os peixes não estão a morder…

Podias procurar numa caverna, onde os passos ecoam e o gotejar lento da água forma novas rochas que caem como pingentes de gelo ou se erguem como esculturas; onde os dias e as noites, as semanas e os anos são todos iguais. E tu podes ser um habitante das cavernas no antro do tigre com dentes de sabre.

O teu lugar tranquilo podia ser uma caverna.Mas se a caverna for demasiado fria e húmida…

Podias subir até ao cume de um monte, onde as nuvens passam a flutuar comobarcos ou jacarés ou elefantes. No cume de um monte consegues ver até muito longe

Page 8: Crescer em valores

e refletir longamente sobre “Como”, “O quê” e “Porquê”. E tu podes ser um alpinista no topo do mundo.

O cume da montanha podia ser o teu lugar tranquilo.Mas se as tuas pernas estão demasiado cansadas para escalar…

Podias esperar por um dia de muito frio e deitar-te num montão de neve. A neve que cai à tua volta sussurra “Ch-ch-ch-i-i-u” e envolve o mundo em silêncio. Se escutares com mais atenção, quase consegues ouvi-la respirar. Também tu respiras devagar, fingindo que és um urso polar a dormir num país onde o silêncio da neve não acaba nunca.

O teu lugar tranquilo podia ser um montão de neve…Mas se estiver demasiado quente para montões de neve…

Podias ir visitar um museu onde tigres de latão e leões de bronze guardam silenciosamente tesouros fabulosos. Cada quadro é uma janela mágica que a tua imaginação pode abrir de par em par e atravessar. E tu podes ser um artista a admirar as tuas próprias obras-primas.

Page 9: Crescer em valores

O teu lugar tranquilo podia ser um museu.Mas se o museu está fechado para obras de remodelação…

Podias ir para um canto secreto da biblioteca onde as únicas pessoas que falam estão dentro dos livros. Falam tão baixinho, que só na tua cabeça consegues ouvi-las, enquanto vais lendo sobre florestas e mares e desertos e grutas e museus e centenas de outras coisas.

O teu lugar tranquilo podia ser uma biblioteca.Mas se a biblioteca ainda não está aberta…

Podias vir para casa e arrumar o teu quarto e ler os teus livros e pensar os teus pensamentos e sentir os teus sentimentos e descobrir o lugar mais tranquilo de todos:

aquele que está sempre lá, onde quer que vás ou onde quer que fiques…… o lugar que está dentro de ti!

Douglas WoodA Quiet Place

New York, Simon and Schuster, 2002

Page 10: Crescer em valores

Honestidade

Há muitas pessoas para quem

o dinheiro é o mais importante

na vida, não olhando a meios

para enriquecerem.

Procura ver a verdadeira

riqueza nas coisas simples

e belas da vida.

Só assim terás alegria.

Page 11: Crescer em valores

O presente da costureira de mantasEra uma vez uma costureira de mantas que vivia numa casa no cimo das

montanhas de bruma azulada. Até o mais idoso dos tetravôs não se lembrava de um tempo em que ela não estivesse lá em cima a coser, dia após dia. Aqui e ali, e onde quer que o sol aquecesse a terra, dizia-se que ela fazia as mantas mais belas que alguma vez se tinha visto.

Os azuis pareciam vir do mais profundo do oceano; os brancos, das neves mais boreais; os verdes e os púrpuras, das abundantes flores silvestres; os vermelhos, os cor-de-rosa e os cor-de-laranja, do mais maravilhoso dos pores do sol.

Algumas pessoas diziam que os seus dedos eram mágicos. Outras murmuravam que as suas agulhas e tecidos eram dádivas do povo das fadas. E outras diziam ainda que as mantas tinham caído de anjos que por ali passavam. Muita gente subia a montanha, com os bolsos a abarrotar de oiro, na esperança de comprar uma daquelas maravilhosas mantas. Mas a costureira não as vendia.

— Dou as minhas mantas aos que são pobres ou não têm casa — dizia a todos os que lhe batiam à porta. — Não são para os ricos.

Nas noites mais frias e escuras, a costureira descia à cidade, no sopé da

Page 12: Crescer em valores

montanha. Percorria as ruas calcetadas até encontrar alguém a dormir ao relento. Então, tirava do saco uma manta acabada de fazer, enrolava-a nos ombros dos que tremiam de frio, aconchegava-os bem, e afastava-se depois em bicos de pés. No dia seguinte, depois de beber uma chávena fumegante de chá de amoras, começava uma nova manta.

Por esta altura, vivia também um rei, senhor de muito poder e ambição, que, mais do que tudo, gostava de receber prendas. Os milhares e milhares de lindíssimos presentes que recebia pelo Natal e pelo seu aniversário nunca lhe chegavam. Proclamou, então, uma lei que dizia que o rei passaria a festejar o seu dia de aniversário duas vezes por ano.

Quando isto também deixou de o satisfazer, deu ordens aos seus soldados para procurarem pelo reino as poucas pessoas que ainda não lhe tinham dado prenda alguma. No decurso dos anos, o rei foi assim ficando com quase todas as coisas mais bonitas do mundo. Os seus inúmeros bens estavam empilhados um pouco por todo o castelo. Em gavetas ou prateleiras, em caixas e arcas, em armários e sacos.

Coisas que brilhavam, cintilavam e tremeluziam. Coisas extravagantes e práticas. Coisas misteriosas e mágicas. Eram tantas, que o rei tinha uma lista de tudo o que possuía. Mas, apesar de ser dono de todos estes tesouros maravilhosos, o rei não sorria. Não era nada feliz.

Page 13: Crescer em valores

— Deve haver, algures, algo de bonito que me faça, finalmente, sorrir — ouvia--se o rei dizer muitas vezes. — E hei de tê-lo.

Um dia, um soldado entrou precipitadamente no castelo com a notícia de uma mágica costureira de mantas que vivia nas montanhas.

O rei bateu com o pé no chão.— E por que razão essa pessoa nunca me deu nenhuma das suas mantas de

presente? — perguntou ele.— Ela só as faz para os pobres, Vossa Majestade — respondeu o soldado. — E

não as vende por dinheiro algum.— Isso é o que vamos ver! — bradou o rei. — Tragam-me um cavalo e mil

soldados. E partiram à procura da costureira de mantas. Quando chegaram a casa dela,

esta limitou-se a rir.— As minhas mantas são para os pobres e necessitados, e vê-se facilmente que

não és nem uma coisa nem outra. — Eu quero uma dessas mantas — exigiu o rei. — Talvez seja o que finalmente

me fará feliz.

Page 14: Crescer em valores

A costureira pensou por um momento.— Oferece tudo o que tens — disse — e então far-te-ei uma manta. Por cada

prenda que deres, acrescento um quadrado à manta. Quando tiveres dado todas as tuas coisas, a tua manta estará terminada.

— Dar todos os meus maravilhosos tesouros? — gritou o rei. — Eu não dou, eu recebo!

E, dito isto, deu ordem aos soldados para se apoderarem da linda manta de estrelas da costureira. Mas, quando se precipitaram sobre ela, a costureira lançou a manta pela janela e uma forte rajada de vento levou-a. O rei ficou muito zangado: levou a mulher montanha abaixo, atravessou a cidade e subiu outra montanha, onde os seus ferreiros reais fizeram uma grossa pulseira de ferro. Acorrentaram-na a uma rocha, na gruta de um urso que estava a dormir.

O rei pediu-lhe novamente uma manta, e uma vez mais ela recusou.— Muito bem, então — respondeu o rei. — Vou deixar-te aqui. Quando o urso

acordar, tenho a certeza de que vai fazer de ti um ótimo pequeno-almoço.Quando, algum tempo mais tarde, o urso abriu os olhos e viu a costureira na

gruta, equilibrou-se nas fortes pernas traseiras e soltou um rugido que sacudiu os ossos da mulher. A costureira ergueu os olhos para o urso e abanou tristemente a

Page 15: Crescer em valores

cabeça.— Não admira que sejas tão resmungão — disse. — Para além de rochas, não

tens nada onde possas à noite descansar a cabeça. Arranja-me um braçado de agulhas de pinheiro e, com o meu xaile, far-te-ei uma almofada grande e fofa.

E foi isso que fez. Nunca ninguém fora antes tão amável para com o urso. Este partiu a pulseira de ferro da mulher e pediu-lhe que lhe fizesse companhia durante a noite.

Mas, embora o rei desempenhasse bem o papel de homem ganancioso, desempenhava mal o papel de homem malvado. Durante toda a noite não conseguiu dormir, a pensar na pobre mulher, prisioneira na gruta.

— Oh, meu Deus, o que é que eu fui fazer? — lamentava-se.Acordou os soldados e lá marcharam todos em pijama até à gruta, para a

salvarem. Mas, quando chegaram, o rei encontrou a costureira e o urso a tomarem um pequeno-almoço de frutos silvestres e mel.

Então, o rei esqueceu por completo a pena que sentira e voltou a ficar zangado. Ordenou aos construtores reais de ilhas que construíssem uma ilha tão pequena que a costureira só lá pudesse ficar em bicos de pés. Novamente o rei lhe pediu uma manta e novamente ela recusou.

Page 16: Crescer em valores

— Muito bem — respondeu o rei. — Esta noite, quando estiveres demasiado cansada para te manteres em pé e quiseres deitar-te para dormir, afogar-te-ás.

E o rei deixou-a só na minúscula ilhota.Pouco depois de ele partir, a costureira viu um pardal atravessar o grande lago.

Soprava um vento forte e violento e o pobre pássaro não parecia capaz de chegar a terra. A costureira chamou-o e ele poisou no ombro dela para descansar. Como o pobre e cansado pardal estava a tremer, fez-lhe uma capa de um pedaço de tecido do seu colete púrpura. Quando a ave se sentiu mais quente e o vento parou de soprar, levantou voo de novo, grato pelo que a costureira lhe tinha feito.

Dali a pouco, o céu escureceu devido a uma enorme nuvem de pardais. Com as asas sempre a bater, milhares deles desceram, pegaram na mulher com os seus pequeninos bicos e levaram-na em segurança para terra. Uma vez mais, nessa noite, o rei não conseguia dormir a pensar na costureira, sozinha na ilha.

— Oh, meu Deus, o que é que eu fui fazer? — lamentava-se.Voltou a acordar os soldados que estavam a dormir, e lá marcharam em pijama

até ao lago, para libertarem a costureira. Mas, quando chegaram, ela estava sentada no ramo de uma árvore a coser minúsculas capas cor de púrpura para todos os pardais.

Page 17: Crescer em valores

— Desisto! — gritou o rei. — O que tenho de fazer para me dares uma manta?— Como já te disse — respondeu ela — oferece tudo o que tens e eu faço-te uma

manta. E, por cada prenda que dês, acrescento mais um quadrado à tua manta.— Não consigo fazer isso! — gritou o rei. — Eu adoro todas as minhas lindas e

maravilhosas coisas.— Mas, se elas não te fazem feliz — retorquiu a costureira — para que servem

então?— Lá isso é verdade! — suspirou rei. E pensou muito, muito, no que ela dissera. Pensou durante tanto tempo, que as

semanas se sucederam umas às outras. — Pronto, está bem — disse entredentes. — Se tenho de me libertar dos meus

tesouros, então que seja! O rei regressou ao castelo e procurou, de uma ponta a outra, qualquer coisa da

qual conseguisse abdicar. De sobrolho franzido, lá acabou por encontrar um simples berlinde. Só que o rapazinho que o recebeu retribuiu-lhe o gesto com um sorriso tão radiante, que o rei regressou ao castelo para ir buscar mais coisas.

Por fim, pegou num monte de casacos aveludados e foi distribuí-los pelas

Page 18: Crescer em valores

pessoas vestidas de trapos. Ficaram todas tão contentes, que se puseram a desfilar pelas ruas da cidade. Mas, ainda assim, o rei não sorria.

Em seguida, foi buscar uma centena de gatos siameses azuis, que dançavam valsas, e uma dezena de peixes transparentes como vidro. Depois, deu ordem para que trouxessem para fora o carrossel com os cavalos verdadeiros. As crianças gritaram de entusiasmo e puseram-se a dançar em redor dele.

O rei olhou à sua volta e viu as danças, a felicidade e a alegria que os seus presentes tinham trazido. Uma criança pegou-lhe na mão e puxou-o para dançar. O rei agora sorria e até soltava gargalhadas.

— Como é possível? — exclamou. — Como é possível eu sentir-me tão feliz por dar as minhas coisas? Tirem tudo cá para fora! Tirem tudo imediatamente!

Entretanto, a costureira manteve a sua palavra e começou a fazer uma manta especial para o rei. Por cada presente que ele dava, ela acrescentava mais um quadrado à manta.

O rei continuou a dar e a dar. Quando, por fim, não havia mais ninguém que não tivesse recebido alguma coisa, o rei decidiu ir pelo mundo e procurar outras pessoas que precisassem das suas prendas. Mas, antes de partir, o rei prometeu à costureira que lhe enviaria um pardal, de todas as vezes que desse alguma coisa.

Page 19: Crescer em valores

De manhã, à tarde e à noite, as carroças partiam da cidade, cada uma delas carregada até cima com todos os objetos maravilhosos do rei. E durante anos e anos, os pardais mensageiros foram voando até ao peitoril da janela da costureira, à medida que ele ia esvaziando lentamente os seus carros por onde quer que passasse, trocando os seus tesouros por sorrisos.

A costureira trabalhava sem parar e, pedaço a pedaço, a manta do rei foi crescendo, cada vez maior e mais bonita. Por fim, certo dia, um pardal cansado entrou-lhe pela janela e poisou na agulha. A costureira compreendeu imediatamente que este era o último mensageiro. Deu o último ponto na manta e desceu a montanha em busca do rei.

Após uma longa busca, encontrou-o finalmente. As suas vestes reais estavam agora em farrapos e os dedos dos pés espreitavam-lhe das botas. Os olhos brilhavam de alegria e o riso era maravilhoso e sonoro. A costureira retirou do saco a manta e desdobrou-a. Era de tal forma bela, que borboletas e colibris esvoaçavam à sua volta. Ergueu--se em bicos de pés e pô-la à volta do rei.

— O que é isto? — exclamou ele.— Prometi-te há muito tempo — disse ela — que, quando fosses pobre, te daria

uma manta.

Page 20: Crescer em valores

O sorriso radiante do rei fez cair maçãs e levou as flores a voltarem-se para ele. — Mas eu não sou pobre — disse. — Posso parecer pobre mas, na verdade, o

meu coração está cheio a mais não poder, com as recordações de toda a alegria que dei e recebi. Agora sou o homem mais rico do mundo!

— Mesmo assim, fiz esta manta só para ti — disse a costureira.— Obrigado — respondeu o rei. — Mas só fico com ela se aceitares uma prenda

minha. Há um último tesouro que ainda não dei. Guardei-o todos estes anos para ti. O rei retirou o seu trono do carro velho e frágil. — É mesmo muito confortável — disse o rei. — E o ideal para quem passa longos

dias a coser.A partir desse dia, o rei voltou muitas vezes à casa da costureira de mantas, que

ficava bem lá em cima, perto das nuvens… Durante o dia, a costureira fazia lindas mantas que não vendia e, à noite, o rei

levava-as para a cidade. Procurava, então, os pobres e infelizes, pois nunca se sentia tão feliz como quando dava alguma coisa a alguém.

Page 21: Crescer em valores

Jeff BrumbeauThe quiltmaker’s gift

New York, Orchard Books,2000

Page 22: Crescer em valores

Humildade

As pessoas que têm verdadeiro

valor não gostam de se exibir.

Procura ser discreto

e atento aos outros.

Page 23: Crescer em valores

A flor mágica

Era uma vez duas irmãs. Uma muito bonita e a outra muito feia.Certo dia em que passeavam pelo bosque à procura de frutos silvestres, ouviram

alguém chamar e gemer. Era o anão Malaquias. Tinha ficado preso num silvado e não conseguia soltar-se. A irmã bonita começou a rir. A feia cortou os espinhos e pousou o anão são e salvo no chão.

— Como forma de te agradecer, vou ensinar-te o caminho para a flor mágica — disse o anão. — Quem a levar ao rei, tornar-se-á rainha. Segue o ribeiro até à nascente. É aí, entre as pedras, que nasce a flor mágica.

Dito isto, desapareceu.— Sou eu quem vai buscar a flor. Tu és demasiado feia para ser rainha — disse a

irmã bonita à irmã feia.E partiu imediatamente. Quando andara já um bom pedaço, encontrou um sacho

no meio do caminho.— Leva-me contigo — pediu o sacho.

Page 24: Crescer em valores

— Não. Estás muito sujo — disse a rapariga, e prosseguiu. Mais à frente, encontrou um regador no meio do caminho.— Leva-me contigo — pediu o regador.— Não. És muito pesado — disse ela, prosseguindo.Mais à frente, encontrou uma corda no caminho.— Leva-me contigo — pediu a corda.— Não. Não serves para nada — respondeu a rapariga, seguindo caminho.Quando o sol estava no seu ponto mais alto, chegou finalmente à nascente. Só

que a nascente estava a secar, a terra, ressequida e a flor, murcha.— O anão mentiu — disse a rapariga e, furiosa, regressou a correr pelo mesmo

caminho.— Vai agora tu — disse ela à irmã, no dia seguinte, contente por saber que ela

iria fazer o longo caminho em vão.A irmã feia fez-se, então, ao caminho. Quando já tinha andado um bom bocado,

encontrou um sacho.— Leva-me contigo — pediu o sacho.

Page 25: Crescer em valores

— Com todo o gosto — disse a rapariga. — Se calhar, ainda vou precisar de ti.E, com o sacho ao ombro, continuou. Mais adiante, encontrou um regador.— Leva-me contigo — pediu o regador.— Com todo o gosto — disse a rapariga. — Se calhar, ainda vou precisar de ti.De sacho ao ombro e regador na mão, a rapariga continuou. Um pouco mais à

frente, encontrou uma corda caída no caminho.— Leva-me contigo — pediu a corda.— Com todo o gosto — disse a rapariga. — Se calhar, ainda vou precisar de ti.E lá continuou, com o sacho ao ombro, o regador numa mão, e a corda na outra.Quando o sol tinha atingido o seu ponto mais alto, chegou à nascente, mas a

fonte estava a secar, a terra ressequida e a flor mágica, murcha. A rapariga pegou então no sacho e escavou a terra. Com o regador, regou a flor. Por último, pegou na corda e com ela endireitou a flor.

A flor começou então a reviver. A água subiu pelo caule até às folhas, o botão endireitou-se em direção à luz e abriu-se. A rapariga observava, espantada. Olhava para a flor e nem se deu conta de que, a pouco e pouco, ela própria estava a tornar-

Page 26: Crescer em valores

-se tão bonita quanto a flor.Cortou-a e levou-a ao rei. O rei ficou muito contente ao ver a bonita rapariga com

a flor e, tal como tinha prometido, fez dela rainha. A irmã bonita, essa foi ficando, com a inveja, cada dia mais feia.

Max BolligerS Risefäscht

Aarau, AT Verlag, 1990

Page 27: Crescer em valores

Ternura

És terno quando mostras afeto

pelas pessoas e pelos animais

e tomas cuidado para

não magoar ninguém

com palavras ou

atitudes desagradáveis.

Page 28: Crescer em valores

Voa, gaivota, voa!

Danute irrompeu no pátio a correr. Olhou à sua volta e gritou:— Romas!— O que tens? — perguntou Romas, que estava no jardim, por detrás do poço,

trincando uma maçã.— O Vilius anda à tua procura!— Que quer ele?— Tem uma gaivota.— Uma gaivota? — Romas fez uma careta. A maçã estava verde.— Pequena. Tem uma asa ferida. Dá cá uma maçã!— Toma! — Romas arrancou uma e estendeu-a à menina. — Só que estão

verdes. Com a maçã na mão e depois de ter acalmado a respiração, Danute explicou:— Sabes, ele quer vender-te a gaivota. Vamos!

Page 29: Crescer em valores

A verdade é que Mykolas, o irmão mais velho, tinha dado a Romas uma nova moeda de rublo — um rublo! — para comprar gelados. Romas comentara isso com os amigos. Quando Vilius soube, os olhos cintilaram-lhe de inveja. Chamara mentiroso ao Romas. Então, este pôs-lhe a moeda debaixo do nariz: era ou não verdade?

Vilius sentiu até náuseas ao ver o dinheiro, sem compreender que necessidade dele teria aquele fedelho! Claro que ia gastá-lo numa bugiganga qualquer! Ele, Vilius, sim, sabia como o empregar: comprava, por exemplo, uma bobina de linha de pesca! Cortava a linha em pedaços e trocava-os com a rapaziada por outras coisas... De qualquer maneira, haveria de surripiar a moeda ao Romas. Mas como?

Vilius passou dois dias a dar cabo da cabeça, mas não encontrou estratagema de jeito.

Naquele dia, entretanto, apanhara na costa uma gaivota ferida e decidira tentar a sorte. Mandara Danute chamar Romas e ficou à espera empoleirado num barco virado. Acertara na previsão: Romas e Danute chegaram à costa pouco tempo depois.

Quando Romas se aproximou, Vilius, agora sentado em cima do barco, mostrou-lhe a gaivota e perguntou:

— Queres comprá-la?Os olhos da gaivota suplicavam, cheios de medo.

Page 30: Crescer em valores

— Não a apertes tanto — pediu Romas. — Estás a magoá-la!— Coitada! Quem lhe teria ferido a asa? — Danute quis fazer-lhe festas, mas

Vilius bateu-lhe nos dedos:— Não lhe mexas! — E para Romas: — Dá cá o dinheiro, e fica com ela. Se a

curares, terás uma gaivota em casa.Romas tinha pena do pássaro.— É possível curá-la? — perguntou.— Coisa mais fácil! Então? É pegar ou largar, não tenho tempo para conversas.— Aceita! — sussurrou-lhe a menina, quase a chorar. Também sentia pena da

gaivota. — Aceita. Tratamos dela. Eu ajudo-te.Romas hesitava, pois poderia precisar do rublo para outra coisa.— Então, estás com pena do dinheiro? — provocava-o Vilius. — O que dizes?— Compro!— Então, passa para cá a moeda!Romas correu a toda a pressa para casa. Aqui encontrou o avô, a quem contou

atabalhoadamente o que se tinha passado. Disse-lhe que tinha muita pena da

Page 31: Crescer em valores

gaivota.— Claro — disse o avô em tom compreensivo e dando-lhe pancadinhas no ombro.Vilius pegou na moeda e entregou a ave a Romas. Ambos ficaram contentes.

Com a gaivota ferida contra o peito e acompanhado de Danute, Romas caminhou para casa.

Depois de examinar a asa ferida, o avô disse:— Fizeste bem! Vamos curá-la. Teremos mais uma gaivota viva neste mundo.Só então Romas se sentiu realmente satisfeito. Embora ainda tivesse pena do

seu rublo...— Ora bem... Primeiro, vamos ligar-lhe a asa... — O avô trouxe a gaze e começou

a fazer umas talas.Quando a mãe voltou do trabalho e viu tudo aquilo, perguntou severamente:— O que se passa aqui?— Estamos a tratar de uma gaivota — respondeu Romas.— Muito bem, mas é melhor montarem o hospital na arrecadação — aconselhou

a mãe.

Page 32: Crescer em valores

A arrecadação, onde se instalaram momentos depois, era realmente um ótimo lugar para tratar da gaivota.

O avô estava tão feliz como Romas por prestar socorro à gaivota.— Vamos arranjar qualquer coisa para pôr no fundo da caixa, onde ela ficará

muito bem — sugeriu.— E quando ficar boa? — quis saber Romas.— Veremos então o que fazer. Para já, vai com Giedrius à pesca. A gaivota é uma

ave que está sempre com fome. A doente foi presenteada com um jantar de doze percas. Mas estava sem apetite.

Talvez lhe doesse a asa. Comeu só quatro peixes, e dos mais pequenos. Mas, no dia seguinte, já apresentava melhoras. Um dia depois, não podendo manter-se na caixa, começou a dar pulos, arrastando a asa ferida pelo chão. Romas, Giedrius, Danute e Ruta tiveram de ficar sucessivamente de guarda à entrada, para manter a ave ao abrigo dos gatos, que andavam à espreita.

Toda a gente tinha pena da gaivota, e pensava com alegria que o avô ia curá-la e ela tornaria a voar. Até o Ignas passou pela arrecadação.

— Mostra-me lá a tua gaivota — pediu.

Page 33: Crescer em valores

O pássaro estava sentado em cima de uma pilha de lenha.— O Vilius é um espertalhão — disse abanando a cabeça. — Trocou isto por um

rublo. Caíste como um patinho!Romas respondeu-lhe com as palavras do avô:— Teremos mais uma gaivota neste mundo.— Ora, meu filho — sorriu Ignas. — Só que daqui a pouco terás de soltá-la. Não

vai continuar aqui o resto da vida. E ficarás sem a gaivota e sem o dinheiro.Romas ainda não pensara nisso. Talvez o Ignas tivesse razão: quer quisesse quer

não, um dia teria de soltá-la. Chegava a desejar que ela não melhorasse tão depressa!

A gaivota, porém, era nova e o avô tratava-a bem. Restabelecia-se rapidamente. Já voava pela arrecadação, chocando contra as paredes. «Oxalá não volte a magoar-se, pois na arrecadação há tanta coisa: lenha, a ferramenta do avô, os aparelhos de pesca do pai», pensava Romas.

— Acho que é tempo de soltá-la — disse o avô certo dia. — o que pensas?O coração apertou-se-lhe. Estava quase a ponto de chorar. Mas não era nenhum

bebé! Reprimiu as lágrimas, embora a ideia da separação continuasse a causar-lhe

Page 34: Crescer em valores

imensa tristeza.— Não existem gaivotas domésticas. Não são como as galinhas — disse o avô,

meneando a cabeça para convencer Romas. — Precisam de liberdade.Mas, ao ver que Romas só com grande esforço continha as lágrimas, sugeriu com

um sorriso:— Está bem. Deixa-a ficar mais uns dias.Estavam na arrecadação. A gaivota, como que compreendendo que os homens

não queriam pô-la em liberdade, voou, bateu no teto e caiu em cima das canas de pesca do pai., lançando a Romas um olhar muito, muito triste.

— Não! — gritou Romas. — É melhor deixá-la voar!Quis apanhar a ave para a levar para a costa, mas esta não se deixava caçar.

Embora com grande dificuldade, só o avô conseguiu agarrá-la. O rapaz apertou a gaivota contra o peito e sentiu um coração bater mais depressa. O dele ou o da ave? Não sabia.

— Vamos, avô.Chegaram à costa. Juntaram-se-lhes logo Giedrius, Danute e Ruta.

Page 35: Crescer em valores

O mar estava calmo, o céu sem nuvens, o ar transparente. À superfície viam-se gaivotas. Dali a pouco, teriam mais uma companheira.

— Voa — disse o rapaz, lançando a gaivota ao ar. A gaivota levantou voo.Romas nem sentia que as lágrimas lhe turvavam os olhos. E não era do dinheiro que tinha pena!

Viktoras MiliünasVoa, gaivota, voa

Edições Ráduga Moscovo, 1987

Page 36: Crescer em valores

Alegria Sempre que começares o teu dia,

lembra-te dos inúmeros dons que vais

receber,

desde o alimento à saúde do corpo,

do afeto que te tem sido dado,

e de como é importante poderes crescer

num ambiente de paz.

Tantos motivos para te alegrares!

Page 37: Crescer em valores

O duende Dudu, professor de felicidadeNaquele dia, Martinho acordara muito, muito mal disposto, como era, aliás,

habitual, todas as manhãs. Martinho estava sempre de péssimo humor. Mas não era por falta de uma mãe sorridente, de um pai carinhoso, de uma linda casa, nem de todas aquelas coisas que são necessárias para se ser feliz.

— Bom dia, querido! — exclamou a mãe. O sol inundou o quarto.— Grrr — disse Martinho, à laia de bom dia.— Hoje está bom tempo, podes vestir os teus calções — disse-lhe a mãe

carinhosamente.— Não gosto de bom tempo — resmungou Martinho. — Quando está bom tempo,

fica muito quente.A mãe suspirou. Porque seria ele tão resmungão? Mas, naquela manhã, alguma

coisa ia mudar na vida de Martinho. Ao despir o casaco do pijama, sentiu uma coisa no bolso... Assustado, sacudiu o casaco.

— Ai, ai! Ui! — ouviu-se do chão uma vozinha minúscula.

Page 38: Crescer em valores

Martinho semicerrou os olhos... Diante dele, agitava-se o mais pequenino duende que alguma vez existiu à face da terra. Um duendezinho que esfregava o seu minúsculo pé esquerdo, ao mesmo tempo que fazia caretas.

— O que estás aqui a fazer? — perguntou Martinho.— Não és nada simpático. Ao menos podias perguntar-me se eu não me magoei,

não achas? Julgo que parti o pé esquerdo.— E depois? — perguntou Martinho, cruzando os braços.O pequeno duende estendeu-lhe a sua mãozinha minúscula.— Sou o duende Dudu, professor de felicidade — disse em tom solene. — Às tuas

ordens.— Professor de felicidade? E que mais? — disse Martinho, rindo maldosamente. —

Porque não professor de delicadeza e de boas-maneiras?— Acertaste em cheio! — exclamou Dudu com a sua vozinha minúscula — porque

sou tudo isso ao mesmo tempo. Ensino a gentileza, as boas-maneiras, os sorrisos, o desejo de viver. E agora, cuidas-me da perna e levas-me para a escola, por favor?

De má-vontade, Martinho foi buscar cartão, fósforos e fio de pesca para fazer uma tala. Em seguida, meteu Dudu no bolso do casaco, dizendo:

Page 39: Crescer em valores

— Nunca se sabe... talvez eu me aborreça menos do que de costume!A caminho da escola, o duende Dudu pôs a sua pequenina cabeça fora do bolso.— Martinho, levanta a cabeça! Tens os olhos pregados no chão! Assim só vês o

cocó dos cães!— E depois? — perguntou Martinho com um tom arrogante. — Quero lá saber do

que se passa à minha volta!— Não me admira que andes sempre mal disposto, assim fechado em ti mesmo

como numa prisão! — suspirou o duende da felicidade. — Olha à tua volta! Olha para esta banca de frutos! Aprecia estes morangos! Davam-me para uma casa fantástica. Quando for rico, hei de comprar um morango como aquele e fazer dali a minha segunda residência. Com cortinados brancos às pintinhas cor-de-rosa.

“É doido de todo”, pensou Martinho. Mas o duende não parava de se extasiar: — Oh! Olha! Aquela menina... Que beleza! Parece saída das Mil e Uma Noites. Se

lhe puseres um diadema, fica uma verdadeira princesa.Pela primeira vez, Martinho reconheceu que Dudu tinha razão. Quando se olhava

para ela com olhos de duende, aquela menina parecia saída de um conto de fadas.

Page 40: Crescer em valores

— Oh! É extraordinário! — voltou Dudu a exclamar.— O que é agora? — perguntou Martinho cheio de curiosidade, erguendo os

olhos. — O que estás a ver, Dudu?— Bem, é o senhor Peixoto, o peixeiro — exclamou Dudu com a sua vozinha

estridente. — Vai de bicicleta, olha! Deve ir à pesca.— Para onde?— Pode ir para o rio Douro, para o rio Tejo, para o oceano... tanto faz!— É verdade — concordou Martinho. — Não importa saber para onde. O que tem

graça é imaginá-lo a pescar...Na escola, Dudu admirava-se a cada instante. A aula de Matemática fê-lo dar

saltos dentro do bolso.— Ena! Tantas possibilidades! Tantos cálculos até ao infinito! A aula de História fê-lo suspirar de satisfação.— Tantas histórias... — murmurava ele com a sua vozinha minúscula de duende.

— Histórias de reis, de imperadores...Mas a sua preferida foi a aula de Geografia.

Page 41: Crescer em valores

— Os mares! Os oceanos! Tantas ilhas, tantos lugares que não conhecemos e que podemos imaginar só de olharmos para um mapa! Os mapas geográficos são um verdadeiro sonho!

Era assim mesmo, sem tirar nem pôr! Martinho começou a pensar que aquele homenzinho estava cheio de razão, e passou a prestar atenção àquilo que acontecia na escola.

— Gostavas de ir a algum lado, Martinho?— Gostava de ir à Polinésia — respondeu Martinho. — Porque lá a água do mar é

quente e há peixes de todas as cores.Quando saiu da escola, às quatro e meia, com o duende no bolso, Martinho já

não ia cabisbaixo. Sentia agora que a sua vida estava cheia de sonhos e de cores.— Vês — disse Dudu — basta mudar-se o que se tem na cabeça. Se pensarmos:

“Vou aborrecer-me na escola”, aborrecemo-nos de certeza. Mas, se pensarmos: “Vou ouvir histórias bonitas sobre países longínquos”, tudo se torna diferente.

O ar cheirava a framboesas e Dudu não parava de falar.— Sabes que mais? Se eu tivesse uma mãe como a tua, só teria um desejo: sentir

a cara dela junto da minha, respirar o seu perfume... As mães são tão perfumadas,

Page 42: Crescer em valores

tão carinhosas! Ficamos tão contentes quando pensamos nelas...E a sua voz tornou-se grave:— Eu tive mãe, há muito, muito tempo... E agora daria tudo para poder respirar o

seu perfume. Mas é tarde demais.Martinho compreendeu que a mãe de Dudu e o seu desaparecimento tinham um

papel muito importante na história do duendezinho e na sua maneira de procurar ser feliz.

Naquela noite, Martinho deu à mãe um abraço muito apertado e respirou com força o seu perfume. A mãe deu-lhe um abraço mais apertado ainda.

— Sinto que estás melhor, Martinho, e estou muito contente por isso.— É natural! — respondeu Martinho a rir-se. — Trago comigo um génio bom… Um

pequeno duende que me ensina a ser alegre.A mãe também se riu e deu-lhe as boas-noites.No dia seguinte, quando Martinho acordou, meteu a mão no bolso à procura de

Dudu. Nada. Sacudiu com força o casaco do pijama à espera de ouvir o duende resmungar, como na véspera. Mas aquilo que caiu foi uma minúscula folha de papel branco que ele desdobrou.

Page 43: Crescer em valores

O meu pé melhorou e já posso ir-me embora. Espero que o teu pé também esteja melhor. Desejo-te uma vida bonita, cheia de pequenas

alegrias.

Martinho fez um esforço para não chorar. Passado algum tempo, já não se sentia triste nem zangado. Comentou simplesmente:

— Que sorte tive eu de o ter conhecido! Foi o melhor professor de felicidade que alguma vez encontrei!

Foi assim que a sua vida mudou por completo. Quando cresceu, Martinho casou--se com uma princesa das Mil e Uma Noites. Viajou para longe, durante muito tempo. Descobriu regiões desconhecidas, só vistas nos mapas, tal como a Polinésia, o que lhe dava sempre uma enorme satisfação.

Por vezes, diante de um oásis, de uma duna, ou de um cardume de peixes multicores que nadavam rumo ao sonho, ele pensava no duende Dudu e sabia que, onde quer que este estivesse, no seu morango gigante ou no deserto da Arábia, iria sempre olhar para ele com o seu olhar sábio de filósofo e murmuraria:

— Bravo, Martinho! Estou orgulhoso de ti! O teu pé esquerdo está agora muito melhor!

Page 44: Crescer em valores

Sophie CarquainPetites histoires pour devenir grand

Paris, Ed. Albin Michel, 2003

Page 45: Crescer em valores

Justiça

Ninguém deve sentir-se tranquilo

quando sabe que há pessoas que passam

necessidades,

e que há crianças que não podem ir à escola

e trabalham como escravas.

Colabora como puderes

para a criação de uma

sociedade mais justa.

Page 46: Crescer em valores

No país de Iqbal1

— Feliz aniversário!Kevin sopra as velas. Apaga-as de uma só vez. À volta dele, pais e amigos gritam

e aplaudem. Kevin pode agora abrir os presentes. Gosta particularmente deste momento, em que rasga o papel dos embrulhos. Estragam-no com mimos. Como acontece todos os anos.

Começa pelos sobrescritos que contêm dinheiro, mas o que mais gosta de abrir são, é claro, os presentes de verdade. Dos três embrulhos, Kevin já percebeu qual é o melhor, aquele por que está à espera. Guarda-o para o fim.

— Uau, é tão bonita! — exclama.Exatamente o que ele queria: uma bola de couro, cosida. Uma bola de jogador

profissional, azul e branca, ainda mais lisa e brilhante do que nos seus sonhos. Tira-a da caixa, segurando-a com a ponta dos dedos, como se fosse de açúcar.

Kevin queria uma bola, porque Laurent, o seu vizinho, tem uma e nunca quer emprestá-la por muito tempo. No entanto, é muito menos bonita. Quando jogam na

Page 47: Crescer em valores

praceta em frente das vivendas, sempre que Laurent começa a perder, encontra um pretexto para se zangar. Pega na bola e vai-se embora. E, claro, o jogo acaba. É irritante.

De futuro, ninguém voltará a interromper a partida enquanto Kevin quiser continuar a jogar; ninguém poderá suspendê-la contra a sua vontade. Nunca se sentira tão feliz.

— Ora dá cá! — pede o pai, estendendo as mãos.É a sua vez de agarrar na bola. Acaricia-a, fá-la saltar… Que vontade de lhe dar

uns bons pontapés! — Dá-ma, por favor! — atalha rapidamente Kevin, que sabe o pai que tem.

Quando este segura uma bola nas mãos, torna-se uma autêntica criança. É capaz de a estragar sem querer.

— Se querem jogar, vão para o jardim!A mãe conhece-os bem, e já começa a recear pelos móveis e adornos. Kevin não

espera que lhe digam duas vezes e desata a fugir com o seu presente. Nem sequer espera até chegar ao relvado. Ainda vai a meio do terraço e já quer experimentar a bola. Lança-a ao chão e estende as mãos para a apanhar…

Page 48: Crescer em valores

Mas não apanha nada! As mãos estendidas ficam vazias. A bola não saltou. Caiu como goma sobre a tijoleira. Não voltou a mover-se, ficou como que colada e mole. Dir-se-ia uma pastilha elástica. Espantado, Kevin baixa-se para pegar no seu tesouro. Espantado, mas não inquieto.

Esta bola não pode ser de má qualidade. Foi ele, Kevin, que a atirou mal… Ou então é a tijoleira do terraço que está pegajosa, provavelmente cheia de compota. Seja como for, tratou-se de um acidente que não voltará a acontecer. Kevin limpa a bola e dá-lhe lustro. Observa-lhe discretamente todas as costuras mas, nada, está tudo perfeito.

A bola precisa é de erva. No relvado vai renascer. Kevin afasta-se da casa e espera o momento de chegar a meio do relvado para atirar ao ar o seu brinquedo. Lança a bola para o céu, o mais alto que lhe é possível. Orgulhosamente, vê-a descer, lisa, brilhante, azul e branca, bela. Vê-a descer… e abater-se sobre aquele tapete de relva tão suave, sem o menor desejo de saltar e de se divertir. Não há dúvida, esta bola tem algum defeito, há algo que não bate certo.

2

— Então! Não chores! É porque a bola não está suficientemente cheia. Acontece

Page 49: Crescer em valores

muitas vezes quando são novas.Kevin tinha ido contar ao pai a sua desdita. Apesar dos esforços para se conter,

os olhos estão cheios de lágrimas. O pai enterra os fortes polegares no couro, que cede facilmente.

— O que é que eu dizia! Anda, vamos arranjar isto!Kevin assoa-se e vai com o pai até à garagem. Está cabisbaixo, ainda não sorri,

mas já recuperou a esperança.O pai de Kevin é habilidoso. Na garagem, penduradas na parede ou guardadas

numa gaveta, há ferramentas que permitem consertar tudo o que não funciona bem à face da terra.

— Não mexas! Sei que há uma bomba de ar em qualquer lado… Cá está, nesta caixa…

Introduz um tubo fino como uma agulha na bomba de ar e, com firmeza, segura a bola recalcitrante entre os joelhos. E depressa lhe devolve a boa cara que ela nunca deveria ter perdido.

— Anda, apanha-a, se fores capaz!A porta da garagem abre para o jardim. O pai lança a bola com tanta força que

Page 50: Crescer em valores

esta devia saltar até à parede do fundo. Kevin corre atrás dela, a rir-se… Mas não por muito tempo! Cheia ou não, a bonita bola deixa-se ficar na relva, após dois ou três saltos ofegantes. Não chegará nunca à parede do fundo. Mais uma vez a esperança morreu nos olhos de Kevin.

— Tens razão — constata o pai — algum defeito há de ter, na verdade. Talvez um problema no couro, não compreendo… Guardei o talão de compra. Amanhã, vamos à loja para a trocarmos, não te preocupes!

Kevin encolhe os ombros: não está preocupado, mas a festa, o seu aniversário, é hoje, não amanhã! Com um pontapé furioso, atira aquele trapo mole para um canto, já que não serve para nada. É então que decide esquecê-la. Afinal, tem outros brinquedos, brinquedos de verdade que gostam de se divertir, brinquedos de confiança.

Chegada a noite, ainda se sente tão zangado que continua a não querer ocupar-se daquele brinquedo tão dececionante.

— Pode dormir lá fora, é o que merece.Mas o pai não está de acordo.— Não, não, Kevin. Vai buscá-la e guarda-a. Se a perderes ou estragares, já não

podes trocá-la.

Page 51: Crescer em valores

É verdade, Kevin reconhece-o. O pai tem razão. Vai buscar a bola. Empurra-a com o pé até ao terraço, como se fosse uma velha lata de conserva, depois pega nela sem qualquer cuidado. À entrada do quarto está o cesto da roupa suja. Atira-a lá para dentro.

— Dorme bem! — ironiza.De agora em diante só quer esquecê-la, mas sente-se tão irritado que não é

capaz de o fazer. Antes de se deitar, não consegue deixar de se virar uma vez mais para o cesto, onde a deixou:

— Não se admite o que fizeste, não se admite. No teu lugar, escondia-me. Não tens o direito de ser tão bonita, de brilhar, para depois não servires para nada quando contamos contigo. Não tens o direito de te esvaziares dessa maneira… Uma idiota, é o que tu és! Detesto-te!... Ainda bem que não te mostrei aos meus colegas. Que vergonha!... Mas não faz mal, não perdes pela demora. Amanhã vais voltar para de onde vieste, e nunca mais quero ouvir falar de ti!

Mais calmo depois destas duras palavras, Kevin deita-se e apaga a luz. Está tão cansado que adormeceria bem depressa se, por detrás dele, um estranho barulho não se fizesse ouvir.

3

Page 52: Crescer em valores

Um estranho barulho, na verdade, como o de alguém a fungar, como o soluço abafado de uma criança. No meio da escuridão, Kevin ergue-se e aguça o ouvido.

— És mau! — escuta distintamente.Desorientado, volta a acender a luz da mesa de cabeceira:— Quem foi que falou, quem? — pergunta Kevin, cada vez mais inquieto.— Aqui! — decide-se a dizer a voz misteriosa. — Aqui! Na tua bola!De facto, a voz parece sair do cesto da roupa suja. Kevin senta-se na beira da

cama, virado para o cesto, sem se atrever a aproximar-se. É impossível, não consegue acreditar.

— Uma bola não fala! Uma bola não tem boca!— Uma bola também não tem ouvidos e, no entanto, dirigiste-me a palavra,

deste-me uma lição de moral durante um quarto de hora! Verdade ou mentira? Julgo até que me chamaste “idiota”…

— Escapou-me…Com os olhos encarquilhados e a boca aberta, quase sem respirar, Kevin fixa o

recipiente.

Page 53: Crescer em valores

— Vá, não fiques assim. Vou explicar-te. Mas, por favor, tira--me deste cesto de roupa suja.

Kevin obedece como um autómato. Aproxima-se e levanta a tampa. É de facto a bola que está lá dentro, a própria bola. Pega nela cautelosamente, com as pontas dos dedos mas, desta vez, é por ter medo dela. Com os braços esticados, leva-a até à cama e pousa-a em cima do colchão.

— Para lá com essas fitas! Anda ajudar-me! — impacienta-se a voz.Kevin dá um enorme grito, porque a voz já não vem de dentro da bola.Um rapazinho da sua idade esforça-se por sair pelo minúsculo orifício da válvula.

Já libertou a cabeça e os ombros. Com as duas mãos apoiadas no couro, tenta soltar o resto do corpo, e é a voz dele que se ouve. Kevin esconde o rosto. Já nem se atreve a olhar.

— Não! É demais! Vim parar à casa do rei dos medricas, ou quê? Anda ajudar-me, já te disse! Acho que fiquei preso.

Kevin ainda tem medo, mas sente-se envergonhado. Não pode continuar a tremer. Faz um esforço para se aproximar. É verdade que o rapaz não é nenhum monstro. Com os cabelos muito negros e muito lisos colados à testa, é parecido com qualquer outra criança.

Page 54: Crescer em valores

Kevin agarra a bola, segura nela com firmeza para a impedir de deslizar para os lados, enquanto o seu estranho visitante faz cada vez mais força com os braços.

— Assim, isso! Aguenta!Faz tanta força que se liberta num rompante, de uma forma tão brusca como a

rolha de uma garrafa de champanhe. Depois de um enorme trambolhão, acaba sentado, de costas contra a parede, a um canto do quarto. Ri-se. Os dentes reluzem-lhe no rosto tisnado. Kevin ri também. O medo desaparecera. O coração continua a bater-lhe acelerado, mas por causa do esforço e da emoção.

— É um caso sério sair de lá de dentro. Ainda bem que me ajudaste, se não, ainda lá estava!

Kevin encolheu os ombros. Concorda, sente-se até orgulhoso, mas nem sabe o que dizer. Não se pode falar tranquilamente, como se nada fosse, com alguém saído não se sabe de onde. Antes de mais, Kevin precisa de algumas explicações. E o rapaz compreende.

— Queres saber como cheguei até aqui? É normal! Vou explicar-te!Levanta-se e alisa a roupa amarrotada: uma longa túnica, uma espécie de camisa

de noite. Satisfeito, senta-se confortavelmente com as pernas cruzadas, em cima da alcatifa. Kevin instala-se a seu lado, com as costas apoiadas na beira da cama. Para

Page 55: Crescer em valores

começar, o rapaz apresenta-se:— Chamo-me Iqbal… Tu, chamas-te Kevin. Ouvi o teu pai chamar-te assim.— Ouvias tudo dentro da bola?— Claro!— E… também sentias tudo? Devo ter-te magoado! Desculpa! — Kevin lembrou-

-se dos seus pontapés furiosos.— Não te preocupes, já vi outras coisas bem piores no sítio onde trabalho! Aliás,

foi por isso que fugi.— Trabalhar… Fugir… Continuo sem perceber! Antes de mais, diz-me de onde

vens.— Venho de muito longe. Venho do país onde se fazem as bolas.

4

Kevin, que se instalara sensatamente junto do seu convidado, levanta-se de um salto, furioso:

— Estás a exagerar! Do país onde se fazem as bolas? Tretas! Julgas, se calhar, que na minha idade ainda acredito em contos como o da Branca de Neve e os sete

Page 56: Crescer em valores

anões? Que ainda acredito naqueles países extraordinários onde se diz que seres minúsculos fabricam os nossos objetos quotidianos? Já passei a idade dessas tolices! Ando na escola e sei que os objetos são feitos em fábricas por máquinas e até por robôs… Não tentes baralhar-me!

— Mas eu não estou a tentar baralhar-te. Juro que estou a dizer a verdade: as bolas como esta são quase todas fabricadas no meu país, um país de verdade. Os bocados são unidos com um fio e uma agulha enorme por crianças da minha idade. No que me diz respeito, não os contei, mas devo ter cosido seguramente uns milhares.

— Desculpa, é que não gosto que me tomem por um imbecil…Kevin acalma-se. Senta-se e repete:— Desculpa! Explica-me agora por que razão fugiste e, principalmente, como.— Porquê, é fácil de explicar. Mas como foi, já te previno, não é nada fácil. Nem

eu consegui ainda perceber!— Se não percebeste, então quero ouvir-te. Conta-me tudo!— Foi certamente por influência da minha avó. Ela é extraordinária! É velha,

velha, e conhece coisas que tu nem imaginas… Olha, estamos aqui os dois a

Page 57: Crescer em valores

conversar, como se falássemos a mesma língua!... tenho a certeza de que se deve a ela.

— Estranho, de facto… Mas fala-me da tua avó!— Ela ficou cega mas, com as mãos, continua a fazer milagres. Cura as

queimaduras, afasta o mal. As pessoas vêm vê-la de muito longe, pagam para falar com ela… Gosto de me sentar à beira da minha avó, embora ela às vezes me assuste. Costumava dizer: «Sinto o infortúnio a pairar sobre ti! Tem cuidado.» Um dia, acrescentou: «Ouve, se alguém quiser fazer-te mal, pronuncia esta palavra, só esta palavra, e serás salvo.» Advertiu-me com um ar tão trágico que a palavra ficou logo gravada na minha memória.

— Serviste-te dela porque queriam matar-te? Foi isso, não foi? — diz Kevin de imediato, impressionado com a história.

— De certo modo… O dono da oficina onde cosemos as bolas batia-me cada vez mais.

— Porque é que te batia?— Apercebi-me de que ele era um ladrão… Tinha emprestado dinheiro ao meu

pai, e o meu trabalho seria para o ajudar a reembolsá-lo. Trabalhava até rebentar e o meu pai também, mas a dívida não diminuía. Havia um ardil por detrás, ele era um

Page 58: Crescer em valores

ladrão.— O patife!— Dizes bem. Da primeira vez que quis protestar, começou a dar-me murros…

Uma noite, vinguei-me, inundei-lhe o stock, os caixotes prontos para partir para todos os países do mundo e ele ficou louco! Agarrou num pau enorme e atirou-se a mim. Senti muito medo e escondi a cabeça entre os braços. Pensei logo na minha avó, porque ela sempre me defendeu. Sem mesmo refletir, a palavra que me tinha ensinado veio-me aos lábios. Gritei-a…e, então, vi-me em tua casa, dentro desta bola, e não era nada agradável: davas-me grandes pontapés na cabeça, porque eu não saltava — concluiu Iqbal a rir.

— Para com isso! Tiveste muita sorte, ele podia ter-te matado!... Que palavra extraordinária é essa?

— Não é extraordinária, até nem quer dizer nada, a minha avó inventou-a com toda a certeza: Shabatsé.

Iqbal já tinha pronunciado a palavra quando se apercebeu que não o devia ter feito. E Kevin repete:

— Shabatsé, é bonito, talvez que…

Page 59: Crescer em valores

Não chega a terminar a frase. Torna-se de repente muito leve, começa a flutuar, a baloiçar. E grita:

— Iqbal!Demasiado tarde. E logo a seguir ao seu amigo, Kevin é aspirado para o interior

da bola.5

— Onde estamos? O que se passou?Kevin sente medo, tem vontade de chorar.— Regressámos à minha oficina — responde Iqbal. — Que horror!Estão sentados no chão de cimento de uma divisão sombria, húmida e suja. À

volta deles amontoam-se peles. É o couro que serve para fabricar as bolas. Cheira mal.

— Shabatsé! Shabatsé! Shabatsé! — grita Kevin, desesperado.— Não te canses! — advertiu Iqbal. — Já tentei, mas parece que a palavra perdeu

todo o seu poder.Kevin lança-se contra a porta… Está fechada à chave pelo lado de fora.

Page 60: Crescer em valores

— O que é que nos vai acontecer? Não pedi para vir até cá! — gritou Kevin.— Ninguém pediu para vir!Não foi Iqbal quem respondeu. A pessoa que respondeu foi um rapaz ainda mais

novo. Está de pé, ao lado de Kevin. Tem olhos grandes, muito tristes, mas sorri. Não é o único a ter-se levantado e aproximado. Três, cinco, oito crianças mais, rodeiam Iqbal, o recém-chegado, e o seu misterioso companheiro.

— De onde saíram? — inquieta-se Kevin.— Trabalham comigo.— E vivem aqui? Dormem aqui? Como é que fazem? Há ratos, não?— Habituamo-nos. Os ratos não fazem mal.— É nojento. O vosso patrão merece ser preso.Ninguém se dá ao trabalho de concordar.— E agora, o que vamos fazer?Kevin mudou de tom. Começou a perceber. Já não se inquieta apenas por si

próprio, mas por todas as crianças que o acaso apanhou numa armadilha, naquele buraco pestilento.

Page 61: Crescer em valores

Iqbal queria responder, mas não teve tempo: a chave gira na fechadura enferrujada da única porta. Em pânico, as crianças desaparecem. Voltam a deitar-se e fingem que estão a dormir. O próprio Iqbal foge também, mas regressa; não tem o direito de abandonar Kevin.

O homem que entra é enorme, um brutamontes. Os olhos são tão frios como balas de espingarda:

— Ah! Estás aqui! Sempre voltaste! Onde te meteste? Mas não perdes pela demora!

Está prestes a lançar-se sobre Iqbal, quando de repente se imobiliza:— E este, quem é?Descobrira Kevin e compreendera que pertencia a um outro mundo.— É meu amigo — murmura Iqbal.— Teu amigo… Teu amigo…O homem hesita, tanto mais que Kevin já não é o mesmo. Não só tinha deixado

de tremer como é agora ele quem ataca:— Devia ter vergonha! O meu professor falou-nos de pessoas como você, mas eu

Page 62: Crescer em valores

não acreditava! Vou contar-lhe tudo e havemos de escrever ao ministro, ao presidente da República, ao vosso chefe de Estado! Vai pagar caro!

O homem de olhos cruéis hesitou apenas um instante. Desata a rir.— Estrangeiro imbecil! Não vais contar a tua história a ninguém. Não voltarás a

sair daqui. Vou reduzir-te a picado e hás de ser comido pelos ratos.Com uma só mão, agarra Kevin pelos colarinhos, levanta-o como se fosse uma

palha e encosta-o à parede. Levanta a outra mão, fecha o punho, ganha o impulso necessário... Vai cumprir a ameaça, mas para no último instante. Volta-se, sem largar Kevin: o seu instinto de animal selvagem advertiu-o de que havia perigo nas suas costas. Está cercado por um bando de crianças amotinadas, encurralado contra a parede.

Como seria de esperar, Iqbal e os companheiros encontram-se na primeira linha, mas os restantes vieram em socorro deles. São já trinta, quarenta, em filas cerradas, e cada vez chega mais gente. Empunham o seu instrumento de trabalho, uma temível agulha, tão afiada como um punhal. Mas mais inquietante ainda é o brilho dos seus olhos.

O homem nunca levará a melhor. Sabe-o bem, apesar da sua tacanhez. Pode varrer a primeira fila e, depois, a segunda. Como soldados prontos para o sacrifício,

Page 63: Crescer em valores

outros tomarão a vez. Mais cedo ou mais tarde será derrotado. Para poder ver-se livre deles, prefere render--se. Esquece Kevin, e levanta os braços.

6As crianças não dão nenhuma hipótese ao seu carrasco. Com a resistente corda

que serve para coser as bolas, prendem-no de imediato e abandonam-no. Agora é cada um por si: todos se dispersam e fogem.

— Vamos ter com a minha avó. Só ela pode ajudar-te a regressar a casa — garante Iqbal a Kevin.

Para deixarem aquela cidade gigantesca, têm de caminhar durante horas antes de chegarem aos primeiros campos, sulcados por uma rede de irrigação. Algumas frágeis barracas de madeira aninham--se no cruzamento de dois caminhos perdidos.

— É ali — declara Iqbal.Indica-lhe uma das casas. Entram na divisão única, sem ninguém, já que naquela

altura a família está a trabalhar no campo. A avó de Iqbal está sentada bem longe da entrada, no meio de um amontoado de tapetes.

— Estava à vossa espera! — afirma. — Aproximem-se, para eu vos ver melhor.Para poder ver melhor, tal como diz, acaricia o rosto das crianças com as suas

Page 64: Crescer em valores

velhas mãos cheias de suavidade.— Meu Deus, estão exaustos! Dá-lhe de beber! Recebe o teu amigo como deve

ser.Sobre uma braseira acesa algures, a água ferve. Iqbal prepara o chá. Serve-o a

Kevin com toda a cerimónia.— Sabes, avó, o homem quis matar Kevin. É preciso castigá-lo. Vais…— Chiu!A avó põe um dedo nos lábios. Pede a Iqbal que se cale, antes de continuar:— Kevin, meu filho… Chamas-te Kevin, não é verdade? Não estou enganada?

Descansa primeiro, restabelece-te de tantas emoções. Em seguida, quando estiveres preparado, pronuncia esta palavra: Namasté e voltarás para o teu quarto.

Kevin não se apressa. Acaba o chá, bate na mão de Iqbal, prometendo que tentará vê-lo de novo, embora não saiba como, pronuncia a fórmula e desaparece.

7— Kevin! Kevin!Kevin senta-se na cama, acordado em sobressalto pelo pai. Dormira toda a

Page 65: Crescer em valores

manhã.— Levanta-te. A bola espera-te lá fora. Já não tem nada, salta como um cabrito.— Que bola?...Com os cabelos despenteados e os olhos pesados de sono, Kevin tem o ar de

quem veio de outro planeta.— Sabes? A tua bola supostamente estragada… Tive tempo de ir à loja. Está

impecável. Devemos ter sonhado… Mas o vendedor tranquilizou-me. Tem havido ultimamente muitos problemas, muitas coisas estranhas a acontecer com estes produtos fabricados não se sabe onde… Até me falou de um punching-ball que acabou de receber. Sabes, aqueles grandes sacos de couro com que os boxeurs se treinam. Sempre que alguém lhes dá um soco, tem-se a impressão de que o saco chora e geme! Como se alguém estivesse fechado lá dentro! É estranho, não é?

Jacques VénulethAu pays d’Iqbal

Paris, Ed. Magnard, 2001

Page 66: Crescer em valores

Esperança Nunca deixes de acreditar na vida.

Lembra-te sempre: só podes

olhar o futuro com esperança

se viveres o presente

com retidão.

Page 67: Crescer em valores

Vende-se cachorrinhos

Um rapazinho olhou para o letreiro da loja onde estava escrito: “Vende-se cachorrinhos.”

— Por quanto vai vender os cachorrinhos? — perguntou.— Entre 30 e 50 euros — respondeu o dono da loja.— Tenho 2 euros e 37 cêntimos — disse o rapazinho. — Posso vê-los?O dono da loja sorriu e assobiou, e do canil saíram cinco bolinhas de pelo. Um

dos cachorrinhos ia ficando bastante para trás. O menino viu imediatamente o cachorrinho atrasado que coxeava, e disse:

— O que é que tem aquele cãozinho?O dono da loja explicou que ele não tinha o encaixe da anca e que seria sempre

coxo. O rapazinho ficou entusiasmado:— É esse cãozinho que eu quero comprar.

Page 68: Crescer em valores

O dono da loja comentou:— O cão não está à venda. Se o quiseres, dou-to.O rapazinho ficou muito aborrecido. Olhou bem nos olhos o dono da loja e disse:— Não quero que mo dê. Esse cãozinho vale cada cêntimo, tal como os outros, e

vou pagar o preço total. Vou dar-lhe 2 euros e 37 agora e 2 euros por mês até o ter pago.

O dono da loja insistiu.— Não podes querer comprar este cãozinho. Nunca vai conseguir correr e saltar

contigo como os outros cães.A isto, o rapaz respondeu, baixando-se e levantando a perna da calça. Mostrou

em seguida a perna esquerda muito torta e defeituosa, presa por um grande aro de metal. Olhou para o dono da loja e respondeu suavemente:

— Eu também não corro lá muito bem, e o cachorrinho vai precisar de alguém que o compreenda!

Dan Clark

Canja de galinha para a alma

Page 69: Crescer em valores

Mem Martins, Lyon Edições, 2002

Page 70: Crescer em valores

Gratidão

Sê grato por tudo aquilo

que tens e lembra-te:

só aquele que sabe agradecer

os favores que recebe

merece ser ajudado!

Page 71: Crescer em valores

De graçaUm rapaz foi ter com a mãe e entregou-lhe um papel. Depois de limpar as mãos

ao avental, a mãe leu-o:

Por cortar a relva 5,00€

Por limpar o quarto esta semana1,00€

Por ir fazer um recado à loja0,50€

Por tomar conta do meu irmão0,25€

Por ir pôr o lixo lá fora 1,00€

Por trazer boas notas 5,00€

Por limpar e varrer o quintal 2,00€

Total em dívida: 14,75€

Page 72: Crescer em valores

A mãe ergueu o olhar e ele ficou ali, à espera. Ela pegou no papel, voltou-o e escreveu:

Nove meses em que te transportei enquanto estavas dentro de mim: de graça.

O tempo em que estive sentada a teu lado a tratar-te, e em que rezei por ti: de graça.

Todas as lágrimas que me fizeste chorar ao longo dos anos: de graça.

Todas as noites povoadas de medo e preocupações que me esperavam: de graça.

Por brinquedos, comida, roupa, e até por te assoar: de graça.

E depois de somar tudo, o amor verdadeiro é... de graça meu filho!

Page 73: Crescer em valores

Quando o filho leu o que a mãe escreveu, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Olhou de frente para ela e disse: “Mãe, gosto muito de ti.”

Depois, pegou na caneta e em grandes letras escreveu:

“CONTA SALDADA.”

M. Adams

Canja de galinha para a almaMem Martins, Lyon Edições, 2002

Page 74: Crescer em valores

Amizade

Um amigo verdadeiro é aquele

com quem podes partilhar um livro,

estudar as lições, falar do

que te preocupa.

Receberás dele atenção e lealdade,

e não inveja, mentira

ou atitudes agressivas.

Page 75: Crescer em valores

Dois amigos a sério— Tu irritas-me mesmo! — resmunga Roberto. — Isto aqui não é para ti! É só

para grandes!O parque de diversões não é para garotos de cinco anos, mesmo que morem na

rua por detrás das barracas de tiro, precisamente onde Roberto também mora. Mas Marco não deixa que o tirem dali para fora. Com passos largos e pesados segue atrás do outro. Quando ele para, Marco para também.

— Porque é que andas sempre a correr atrás de mim?— Eu não ando a correr atrás de ti — afirma Marco. — Tu é que andas muito

depressa!— Eu não quero que venhas comigo, percebes?Marco para. Deita para fora a pequena barriga redonda que a camisola interior,

com um buraco do tamanho de uma cereja e muitas nódoas de gelado e doce, só tapa até ao umbigo. Enfia as mãos bem fundo nos bolsos das calças e deixa descair os cantos da boca, lançando sobre o Roberto o seu olhar amuado.

Page 76: Crescer em valores

Roberto torna-se meigo.— Pronto, anda cá! Lá por mim… — com um gesto largo chama-o para si.É assim o jogo. Roberto, o grande de 10 anos, deixa que o pequeno de 5 anos vá

com ele. Sem Marco, o parque de diversões não é tão divertido. Mas alguém tem mesmo que ser o chefe e mandar! Regras são regras.

Ninguém é tão fiel como Marco. Ninguém escuta Roberto com tanta atenção como ele.

Não importa que haja muitas coisas que não entenda, que não perceba tudo aquilo que Roberto sonha e relata. Sonhos que ele conta de forma tão emocionante como se fossem reais. Mas só Marco acredita em tudo o que ele diz. Só Marco consegue o que mais ninguém consegue, mesmo quando esse alguém é muito hábil e crescido: ficar contente e ter medo, juntamente com Roberto.

À sua maneira, Marco gosta mesmo de Roberto.Roberto e Marco têm muito tempo para vaguear porque ninguém se ocupa deles.

Só à noite é que têm de ir para casa jantar, o que é importante; e também é importante que ainda se vejam as cores das calças e que não haja cabeças partidas.

À tarde, andam juntos pelo parque de diversões, farejam as salsichas grelhadas

Page 77: Crescer em valores

para as quais não têm moedas, lambem em pensamento o algodão doce, que não podem comprar por falta de dinheiro, e porque preferem gastar o pouquinho que têm num gelado.

Roberto tem dinheiro. Mas muito pouco!Nos bolsos, Marco tem elásticos para fazerem fisgas. E o lenço de assoar, o

enorme, do pai, usado já milhentas vezes. Primeiro, passeiam calmamente até à montanha russa, param um bocado. Ouvem como os carrinhos às cores cheios de pessoas se lançam pelas curvas, continuam a corrida a subir e vão ficando mais lentos, como se não conseguissem chegar ao cimo.

— Agora! — grita Marco, agarrando a barriga com as duas mãos. Aperta os lábios, fecha os olhos com força. Imagina-se a cair para o fundo a toda a velocidade. Mal as pessoas gritam com medo, ele agarra o braço de Roberto, e Roberto agarra Marco pelos ombros e tapa-lhe os olhos.

— Já passou — diz, tirando a mão.O jogo é assim.Na pista de cart é a vez de Roberto. Regras são regras.Marco está radiante. É bom ter medo quando Roberto está ao seu lado para o

Page 78: Crescer em valores

proteger. Roberto é daqueles que nunca têm medo. E quando tem, nunca mostra. Muitas vezes, até provoca propositadamente os rapazes mais velhos da feira. E ganha todas as bulhas!

Então, como é bom quando o mais pequeno está a assistir e grita com toda a força:

— Dá-lhe!Quem mais poderia bater no ombro de Roberto, depois da luta, se não o

pequenito? Quem mais poderia limpar-lhe o sangue do nariz de uma forma tão carinhosa e desajeitada com a única ponta limpa do lenço todo sujo?

Roberto faz voz grossa:— Deixa lá isso! Não sou nenhum bebé.Mas Marco responde:— Um dia ainda vou ser como tu. Igualzinho a ti, o melhor e o que consegue

cuspir mais longe aqui no parque! E depois, também vou deixar que me limpem o nariz!

Mesmo assim, Marco já é capaz, a três passos de distância, de cuspir nas tábuas do banco de madeira em frente da cabine das gargalhadas. Tenta até imitar, com as

Page 79: Crescer em valores

suas pernas curtas, o andar de Roberto. Um pouco largo, com passos seguros, as mãos nos bolsos das calças, mesmo que os bolsos estejam meio rotos e, ao correr, esvoacem como bandeirolas ao vento. Tenta habituar-se a falar como Roberto, com pequenas pausas entre certas palavras, que soam muito adultas.

Marco sabe praguejar como o amigo, e não lhe fica nada atrás. E sabe jogar futebol com a bola demasiado mole, a que falta sempre um pouco de ar para que salte bem. Como uma flecha, Marco corre atrás da bola e atira-se para a baliza. Não chora quando cai, nem quando o chão é duro e a terra salta e arde nos olhos. Só chora depois, em casa, quando a água corre sobre as feridas.

Da montanha russa seguem para o autódromo, passando pelo baloiço gigante e pelo carrossel.

— Gostava tanto de voar uma vez no avião! Achas que alguma vez vamos conseguir juntar tanto dinheiro?

Como sempre, Marco olha com desejo e pena para os cavalos de pau a baloiçar, para o seu avião que gira ao lado das motas pretas.

— Voar, é sempre possível — diz Roberto — com o nariz no chão! Anda, vamos para a pista de cart!

— Tu ficas com o carro número 4. Eu com o 6 — decide Roberto quando lá

Page 80: Crescer em valores

chegam.Encostam-se à rampa e observam como os outros entram nos seus carros. Mal os

carros começam a trabalhar, imaginam-se atrás do volante, carregam no acelerador, cortam as curvas, chocam contra as proteções, guinam com o volante.

O número 6 rasga a meta a grande velocidade.— Campeão!! — grita Marco por Roberto. Até se esqueceu que apostou no

número 4!Mas Roberto é sempre o vencedor! O jogo é assim. E o vencedor também ganha

o gelado. O perdedor tem autorização para lamber três vezes, uma vez em cada cor. Regras são regras.

Às vezes também há um pão com fiambre como prémio. Ou chocolate. Marco recebe então uma tira inteirinha, e meia tira quando os chocolates são recheados. Em troca, oferece ao amigo, uma vez por outra, um selo turco, porque o avô lhe manda um postal por mês. Marco mandou dizer ao avô que lhe enviasse sempre um selo diferente porque, por cada selo bom, recebia um bocado de chocolate!

Mas Marco preferiria voar no avião… a comer chocolate…— Só uma volta — implora Marco.

Page 81: Crescer em valores

Mas o amigo responde:— Isso não dá. O carrossel tem muitas voltas. Não nos vendem só uma!— Pergunta aos teus amigos se nos emprestam algum dinheiro. Aos do parque

de estacionamento, aos que indicam os lugares vagos aos carros!— Eles não andam a gastar as pernas para tu poderes andar de avião!— Porque é que nós não trabalhamos também no parque de estacionamento? —

pergunta Marco.— Porquê? Primeiro, eles não aceitam miúdos. Segundo, não aceitam ninguém.

Senão, têm de dividir o dinheiro por muitos.— Mas vamos lá na mesma! — insiste Marco.— Não.— Eu também sou o teu melhor amigo.— Pois és — diz Roberto. — Mas não vamos!— Também te deixo ganhar sempre no cart!— Eu ganho de qualquer maneira porque tu gritas sempre por mim: “Campeão!”

Page 82: Crescer em valores

Marco para. Deita a pequena barriga redonda para fora, enfia as mãos nos bolsos das calças, lança sobre o Roberto o seu olhar amuado.

— Pronto, está bem — diz Roberto suavemente. — Vá. Por mim, podemos ir.— Eu adoro-te! — diz Marco. Depois, estica-se todo até chegar ao pescoço de Roberto e pespega-lhe um

grande beijo na cara!— Deixa-te disso — retorquiu Roberto. — Não sou nenhum bebé! — Com as

mãos, limpa a cara do beijo de Marco.Depois dobra-se, rápido, e dá-lhe um beijo na cabeça, mesmo a meio do cabelo

curto e espetado como um ouriço.— Ai! Isto pica! — Roberto leva as mãos aos lábios.— E pica bem! — diz Marco, a rir.No parque de estacionamento, Ivo e Theo indicam aos carros que chegam os

lugares vagos. As crianças que lá “trabalham” são da mesma idade de Roberto. É assim que ganham algum dinheiro com as gorjetas dos condutores.

— Isso eu também sei fazer! — Marco observa como Theo faz sinal a um carro,

Page 83: Crescer em valores

corre à frente e leva-o até um lugar livre.— Isto não são coisas para ti — diz Roberto. Depois pergunta a Theo onde está o

terceiro, o Jojo.— O Jojo fez chichi para o pneu da frente de um Mercedes — diz Theo. — No

preciso momento em que o condutor regressava. Pusemos Jojo fora do grupo. Nada de chichis, nada de riscar a pintura, nada de tirar ar dos pneus! Era assim que estava combinado!

— Ouviste? — diz Roberto a Marco. — Regras são regras. Com eles também!— Queres fazer na vez do Jojo? Ainda podíamos precisar de um terceiro. Mas de

um quarto, não! — diz Theo, ríspido, deitando um olhar reprovador a Marco.— Eu faço com vocês mas só se este aqui ficar comigo. É o meu ajudante!Indica Marco que está à sua beira como um pequeno soldado, os ombros para

trás, a barriga encolhida, a cabeça direita, com um olhar de “eu-já-sou-grande”, como quem diz: nem tentes imaginar que eu sou tão pequeno como pareço!

— O quêêê!?! — grita Theo. — Tu precisas de ajuda? Aqui ninguém precisa de mais do que dois braços. Além disso, ele é pequeno demais. Ainda escorrega para baixo do capot de um Volkswagen!

Page 84: Crescer em valores

— Eu tomo conta dele! — diz Roberto. — O miúdo é fixe.Roberto não vai desistir de maneira nenhuma. Esta noite ainda vai fazer uma

surpresa a Marco!— Podes ir brincar de babysitter para outro lado! — diz Ivo, aproximando-se. —

Aqui trabalha-se. Não precisamos de uma quarta pessoa. Podes ir embora!— Vamos com calma — diz Roberto muito adulto. Pega em Marco, que só tem

uma grande barriga e que, de resto, é muito magro e levezinho.— Segura-te — diz-lhe para cima. — Nós os dois contamos como um homem! —

diz para Ivo.— Queres brincar aos gigantes, é? — Theo sorri ironicamente.— Apostas em como nos veem melhor a nós os dois do que a vocês? E em como

nós temos mais gorjetas que vocês? No fim, calha-vos mais dinheiro!— Hum — resmunga Ivo.— Combinado — diz Theo. — Mas se der para o torto, sais tu e o teu ajudante

anãozinho.— Não sou anão nenhum! — grita Marco de cima para Theo. — Agora, sou maior

Page 85: Crescer em valores

do que tu!Por volta da noite, Roberto e Marco tinham já ajudado a estacionar nove carros.

De cada vez que um carro chegava, Marco trepava para os ombros de Roberto. Este orientava os condutores até aos lugares vagos e Marco baixava-se e recebia o dinheiro.

Antes de cada um ir para casa, fazem-se as contas. As gorjetas recolhidas vão para o boné de Theo onde o dinheiro é dividido pelos três. Marco faz as contas com Roberto: dois gelados, meio pão com fiambre para cada um. Duas tabletes de chocolate, uma recheada, outra simples. Estão ricos! Talvez ainda sobre algum para…

— Amanhã, deixo-te voar! — exclama Roberto, levantando o pequeno no ar. Rodopia com ele de tal forma que Marco quase se desequilibra.

— Queres dizer voar a sério — pergunta Marco ao amigo — ou só como agora?— A sério! — diz Roberto. — No teu avião.— Iupii!! — grita Marco, dando um enorme salto no ar!— Então convido-te eu também para uma volta de cart! Depois grito “Campeão!”

e tu estás mesmo sentado lá dentro.— OK! — diz Roberto.

Page 86: Crescer em valores

É assim o novo jogo.— Mas eu sou o primeiro — diz Marco.— De acordo — responde Roberto.Novo jogo, novas regras!

Evelyne Stein-Fischer13 Geschichten vom Liebhaben

München, DTV Junior, 1990

Page 87: Crescer em valores

Respeito pela Natureza

A natureza é generosa com

todos, mas os seus dons estão

a esgotar-se devido à cegueira e

ao egoísmo dos homens que põem

os seus interesses acima

do interesse comum.

Sê responsável.

Page 88: Crescer em valores

A história da árvore do Paraíso

No início do mundo, o Grande Criador plantou um jardim. Inúmeras plantas formosas cresciam em cada um dos seus diferentes campos.

Havia jardins de florestas, completamente cobertos de musgo verde e campainhas ondulantes, que acenavam timidamente ao vento. Pequenos seres povoavam estes jardins, farejando e sussurrando a toda a hora.

Havia jardins de pradarias cheios de ervas oscilantes, que os animais percorriam com passadas graciosas.

Havia também jardins subaquáticos, para os seres do mar profundo. Tinham folhas roçagantes, arrastadas pelas correntes, e misteriosas flores de pétalas trémulas.

Os mais belos de todos eram os jardins de árvores. Eram tão altas que tocavam o céu. Nessas árvores, todos os pássaros faziam os seus ninhos. Os ramos, cheios de folhas, enchiam-se de trios e chilreios, de gorjeios e assobios, de melodias trinadas, que caíam em sonora cascata para deleite do mundo.

O Grande Criador pediu aos homens que tomassem conta do mundo e

Page 89: Crescer em valores

construíssem para si próprios casas simples e seguras, num dos jardins de que gostassem.

Mas o tempo foi passando e as pessoas tornaram-se cada vez mais ambiciosas…— Vamos construir CASAS MAIORES! — disseram. — Há materiais de construção

em abundância para usarmos como quisermos.Em breve começaram a construir palácios.Cada novo edifício era mais alto do que o anterior e os palácios eram feitos cada

vez com mais magnificência. As suas salas às centenas estavam cheias de todo o tipo de luxos… mas a ambição das pessoas não conhecia limites.

Os jardins do mundo foram caindo em ruínas, cada um deles imagem da mais desoladora devastação. Todas as árvores tinham sido abatidas.

Os pássaros agitavam-se tristemente no chão frio, tentando, em desespero, construir novos ninhos. As suas canções foram silenciadas.

Então, do alto do seu palácio, uma criança olhou para o mundo devastado e chorou.

— Desce à terra — sussurrou-lhe, por entre o vento, a voz do Criador. — Lá encontrarás uma semente, que deves semear num local onde possa crescer em

Page 90: Crescer em valores

segurança.A correr, a criança desceu as escadas em caracol da torre do palácio. Pousada na

terra, estava uma semente castanha, enrugada, feia.A criança pegou na semente com delicadeza. — Onde poderei semeá-la em segurança? — perguntou-se.Foi caminhando, caminhando, até que chegou a uma vala na qual uma lama

escura corria lentamente e alguns juncos baloiçavam no vento frio.— Coloca-a aqui, onde nunca ninguém vem! — parecia sussurrar o vento.E foi ali que a menina enterrou a semente.Devagar, em silêncio e completamente invisível, a semente começou a germinar.Cresceu e fez-se uma árvore forte. Sob os seus ramos, outros jardins começaram

a florescer. Em breve, as criaturas reuniram-se à sua volta.A árvore cresceu mais alto do que todos os palácios. Os pássaros voavam por

entre os seus ramos e aí construíam os ninhos.

Cresceu tanto, que chegou ao Paraíso. E quem assim o desejasse, poderia subir

Page 91: Crescer em valores

pelos seus ramos até ao Jardim do Paraíso do Grande Criador.

Mary JoslinThe tale of the heaven tree

Oxford, Lion Publishing, 2001

Page 92: Crescer em valores

Paciência

Não te zangues com aqueles

que são mais fracos do que tu,

nem os olhes com superioridade.

Tenta aceitar com calma

as contrariedades que vais

encontrando pelo caminho.

Vê também o seu lado positivo!

Ajudar-te-ão a crescer.

Page 93: Crescer em valores

A árvore que falavaLonge, muito longe… bem no coração da savana, vivia uma árvore maior e mais

velha do que qualquer outra. Abrigava, sob a sua corcha, toda a sabedoria de África.A seus pés, por entre as altas ervas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se

tinham afastado do grupo. Como era a única árvore das redondezas, os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. Também as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, a conheciam. E os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta…

E assim a árvore conhecia todos os segredos dos pássaros, dos leões, das girafas, das zebras e de muitos outros animais. É que ela escutava com todas as suas folhas. Até os homens vinham sentar-se debaixo dela no momento das grandes decisões, discutindo os assuntos sérios à sombra dos seus ramos.

A árvore sabia mais sobre o povo dos homens do que o mais velho dos anciãos e o mais sábio dos sábios. Porque ela sabia calar-se, enquanto eles gostavam de falar. Mas a árvore não guardava para si o seu saber: àqueles que tinham os ouvidos atentos, ela murmurava, em confidência, a resposta a muitas questões.

Page 94: Crescer em valores

Quando as suas crias estavam suficientemente grandes para voar, as andorinhas, as cotovias e os estorninhos tinham por hábito levá-las até à árvore. Ao cair da noite, esta enchia-se de chilreios. Passado algum tempo, com três bicadas, os pais faziam calar as mais palradoras. E cada uma escutava o murmúrio que subia da raiz mais profunda até ao raminho mais alto.

No dia seguinte, os juvenis sabiam um pouco mais da arte de voar em ziguezague para enganar as aves de rapina que mergulham sobre as presas. E a águia ou o milhafre regressavam às montanhas de mãos a abanar, perguntando-se por que milagre todos os passarinhos daquele canto da savana se tinham tornado, de repente, tão espertos!

E cada girafinha que partia a mascar um punhado de folhas da árvore ficava a saber um pouco melhor como evitar a leoa que caçava. E, misteriosamente, cada leãozinho, depois da sesta ao pé da árvore, desconfiava um pouco mais do riso da hiena que rondava à procura de uma presa fácil.

Mas os homens, esses, partiam tão sisudos e ocos como tinham vindo, e a sua tagarelice nada lhes ensinava porque não sabiam escutar.

Eram orgulhosos e arrogantes. Incendiavam a savana com os seus fogos e matavam mais animais do que aqueles de que precisavam para se alimentar.

Page 95: Crescer em valores

Matavam-se até uns aos outros. E chamavam a isso «a guerra». A árvore falava-lhes, como a todos, mas os homens não a escutavam. Por causa deles, a árvore ficou triste. Pela primeira vez, sentiu-se velha e cansada. Se pudesse, ter-se-ia deitado para esquecer. Mas quando se é uma árvore, é preciso ficar de pé a recordar…

Foi então que as suas folhas amareleceram e secaram e, em breve, ficou nua no meio da savana. Os pássaros começaram a desdenhar dos seus ramos e os leões e as girafas também, porque ela deixara de lhes falar.

E todos diziam que ela estava morta.

* * *

Por muito tempo a árvore seca ficou de pé. E parecia que nada viria alguma vez a mudar… O milhafre da montanha estava contente e as hienas riam-se. A leoa perdeu um leãozinho, a girafa uma girafinha e a andorinha, três passarinhos que mal sabiam voar.

Mas, uma manhã, veio um pequeno homem com um ar decidido. Tinha o olhar de uma criança, e esse olhar não refletia nem fogo nem sangue. As suas mãos não agarravam nem arco nem zagaia. Contudo, era um homem.

Parou ao pé da árvore seca, estendeu os braços e, com as pontas dos dedos,

Page 96: Crescer em valores

tocou no tronco, muito devagar, ao de leve, como se acordasse alguém que dorme. A corcha estremeceu. E a voz do pequeno homem subiu ao longo da árvore, terna como um cântico muito antigo. O homem falava à árvore, cheio de simplicidade. Depois, calou-se. E encostando a orelha ao tronco, escutou. O vento nos ramos parecia formar palavras e frases. E quanto mais a árvore falava, mais a expressão do homem se iluminava.

Quando a árvore terminou, o homem partiu. Quando voltou, trazia um machado aos ombros. Uma vez perto da árvore, levantou a cabeça em direção aos ramos e murmurou algumas palavras em tom de desculpa. Depois, firme nas suas pernas, com o cabo do machado bem preso nas mãos, começou a cortar o tronco.

E a madeira ressoou na savana, até aos limites do deserto e das montanhas. Cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. Todos acorreram para junto dela, mas apenas encontraram um cepo e algumas aparas espalhadas pelo solo. É que o pequeno homem, ajudado por alguns da sua aldeia, tinha levado a árvore até casa. E, com medo dos homens, os animais não se atreveram a segui-lo.

Uma vez chegados à aldeia, o homem pôs-se a trabalhar. Tinha uma grande ideia: para que a voz de madeira da velha sábia percorresse de novo a savana, iria fazer um tantã. Um tantã mais sonoro e maior do que qualquer outro.

Page 97: Crescer em valores

Suficientemente longo para que todos os homens da tribo pudessem tocar em conjunto.

Quando o homem pegava de novo no machado para podar os ramos e deixar, assim, o tronco livre, aqueles que tinham carregado a árvore com ele fizeram-lhe sinal que parasse:

— Pequeno homem, nós ajudámos-te — disseram os homens fortes com as suas vozes grossas. — O nosso trabalho deve ser pago.

— Mas… com que é que vou pagar-vos? Eu não tenho nada, bem sabem!— Deixa-te disso! — insistiram os homens fortes. — Trouxemos a tua árvore, dá-

nos a nossa parte.— Não pode ser — protestou o homem. — É preciso que o tronco fique inteiro

para o tantã. Se não, como é que a tribo poderá tocar?Os homens obstinavam-se a reclamar a sua parte da madeira e o assunto foi

levado ao Conselho dos Anciãos.* * *

Era uma assembleia de homens muito velhos e muito tagarelas. Sempre prontos a pronunciar uma sentença ou um julgamento, tanto a propósito do que conheciam

Page 98: Crescer em valores

como do que ignoravam. Nada lhes agradava mais do que reunirem-se quando lhes pediam um conselho, e também quando não lhos pediam! Ora, o Conselho tinha por hábito reunir-se debaixo da grande árvore, e os velhos sentiam-se desamparados… pois a árvore tinha sido cortada! O mais velho dos Anciãos, um pequeno velhinho com a face enrugada como uma ameixa seca, agitou o cachimbo por cima da cabeça e tomou a palavra:

— O Conselho não se pode reunir por falta de um lugar adequado.E expeliu uma baforada do seu cachimbo.Os outros membros do Conselho, sentados em círculo, aprovaram com um

movimento de cabeça, expeliram, cada um, uma baforada do seu cachimbo e guardaram silêncio. Os homens fortes, que queriam a sua parte da árvore, e o pequeno homem, que nada queria, não sabiam o que fazer.

Impaciente por começar o trabalho, o homem avançou para dentro do círculo, curvou-se respeitosamente diante do mais velho dos Anciãos:

— Digam-me apenas se posso começar o meu trabalho, já que estais aqui reunidos.

— É verdade que estamos aqui — respondeu o Ancião. — Mas o Conselho não está reunido. Por isso, não pode dar a sua opinião.

Page 99: Crescer em valores

Expeliu uma outra baforada e calou-se.Os homens fortes, impacientes por levar a madeira que lhes cabia, inclinaram-se,

por sua vez, diante dos Anciãos e disseram:— Digam-nos apenas se podemos pegar na nossa parte.O Ancião nem se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a expelir uma

baforada do cachimbo e permaneceu em silêncio. Mas o mais forte, que também era o mais impaciente, deu um passo em frente. De imediato, o velho homem largou o cachimbo e, com uma voz trémula, acrescentou precipitadamente:

— O Conselho vai reunir… para decidir onde terá lugar o próximo Conselho.O discurso enfadonho que se seguiu poderia ter durado até ao final dos tempos,

se o Conselho não tivesse acabado por decidir… que decidiria mais tarde!De seguida, os velhos aconselharam o pequeno homem a dar aos homens fortes

o que eles pediam. Depois, reclamaram, por sua vez, um pedaço da árvore como recompensa pelo sábio conselho. E o pequeno homem assim o fez, porque era costume dar uma prenda aos Anciãos, como agradecimento pelos seus conselhos.

E cada um se apressou a serrar, a rachar e a atar. E o pedaço de árvore não tardou a transformar-se em achas, toros e feixes para

Page 100: Crescer em valores

queimar. Os homens acendiam fogueiras à volta da aldeia para manter afastados os animais selvagens. Ignoravam que os animais tinham ainda mais medo deles do que das suas fogueiras.

* * *

Um pouco desiludido, o pequeno homem reparou na diminuição do tronco, mas disse para si mesmo que, apesar de tudo, ainda chegava para fazer um bom tambor para a tribo.

Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. O machado, no entanto, não era muito adequado para o descortiçamento, por isso decidiu ir a casa de um vizinho pedir emprestado um podão, cuja lâmina curvada faria melhor o serviço. Como era hábito, o vizinho estava a fazer a sesta e o pequeno homem acordou-o para lhe fazer o pedido.

— Ah! És tu? — disse o vizinho, bocejando como um hipopótamo. — O que queres de mim?

— Podias emprestar-me o teu podão? — perguntou muito educadamente o pequeno homem.

— Eh! — respondeu o vizinho, tão amável quanto um crocodilo a quem interromperam a digestão. — Não me deixas dormir com esse barulho todo… E ainda

Page 101: Crescer em valores

por cima queres que te empreste o meu podão! E se eu precisar dele?— Mas… é só por um dia! Amanhã já terei acabado!— O que me dás em troca?— Sabes bem que não tenho nada de meu.— Ah não? E essa árvore? É tua, não é?— Sim, mas… — começou o pequeno homem.— Pois bem, dá-me um pedaço para alimentar a minha fogueira e emprestar-te-

-ei o meu podão.Assim se fez, já que mais ninguém na aldeia tinha a ferramenta de que o

pequeno homem precisava. Um pouco desiludido, atentou no tronco, agora mais pequeno. No entanto, havia ainda madeira para fazer um tantã para a tribo. Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. E o descortiçamento depressa terminou. Mas, quando quis cavar o tronco, apercebeu-se de que não tinha cinzel para o fazer.

De certeza que o vizinho tinha um, mas será que lho emprestaria sem reclamar mais um pedaço da árvore? Infelizmente, mais ninguém da aldeia tinha cinzel. E era preciso acordar novamente o hipopótamo, amável como um crocodilo.

Page 102: Crescer em valores

— Tu, outra vez! — bocejou o vizinho. — O que queres?— Desculpa — disse o pequeno homem com a sua voz gentil. — Vim devolver-te

o podão… e pedir-te, em troca, um cinzel, se fazes o favor.— Em troca? — zombou o vizinho. — Não há troca nenhuma porque o podão é

meu. Dá-me um pedaço de madeira para a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu cinzel.

* * *

Assim foi feito. E o pequeno homem, um pouco desiludido, atentou no tronco muito curto. Ainda podia fazer um bonito tantã, não para toda a tribo, mas, mesmo assim, um bonito tantã. Cheio de coragem, meteu mãos à obra e depressa cavou o tronco. Faltava apenas endurecê-lo ao lume, para que fosse mais sólido e para que o seu som chegasse mais longe. Mas o pequeno homem não tinha fogueira e já havia dado tanta madeira aos outros que não possuía o suficiente nem para atear um fogo. Claro que a fogueira do vizinho crepitava, um pouco mais longe, mas não ousava acordá-lo pela terceira vez.

Foi então pedir aos homens fortes a permissão de passar o seu tantã pelo fogo.— De acordo, — disseram eles — mas com a condição de pores uma acha na

nossa fogueira, como todos fazem.

Page 103: Crescer em valores

— Mas… já não tenho madeira, já vos dei tudo! — respondeu.— Ah sim? E isto, isto não é madeira? — perguntou o mais forte dos homens

fortes, indicando o pequeno tantã.Com a morte na alma, o pequeno homem teve de se resolver a cortar um pedaço

do tantã antes mesmo de lhe ter ouvido a voz. E quando pensou naquilo que lhe restava do imenso tronco que a árvore lhe tinha dado, esteve quase para se sentar a chorar e abandonar o seu belo projeto. Mas caiu de novo em si e disse para si mesmo que, apesar de tudo, se não chegasse para um tantã, chegaria para fazer um grande tambor.

Cheio de coragem, meteu mãos à obra e o que restava do tantã foi rapidamente convertido em djembé. (Djembé é o nome que se dá em África a esta espécie de tambor). Mas o pequeno homem apercebeu-se de que lhe faltava uma pele de cabra para o tambor.

Partiu então à procura do rebanho de cabras. A rapariga que as guardava era ainda quase uma criança, e o pequeno homem pensou que seria mais fácil falar com ela.

— Bom dia — disse à criança.— Bom dia — respondeu ela. — És tu que dás madeira a toda a gente em troca

Page 104: Crescer em valores

de uma ferramenta ou de lume?— Sim, quer dizer… — começou ele.— O que queres de mim? — interrompeu a criança.— Apenas uma pele de cabra, uma daquelas que tens por aí. Mas já não tenho

madeira para te dar.— É pena — disse a rapariga. — Porque também eu necessito de um pouco de

madeira. Para afastar os leões do meu rebanho não há nada melhor do que uma boa fogueira, disseram-me os Anciãos.

— Oh, por favor, dá-me uma pele. Bem vejo que não te fazem falta — suplicou o pequeno homem.

— Pelo contrário, as minhas peles, troco-as por madeira! — retorquiu a criança.E, como mais ninguém na aldeia tinha peles de cabra, o homem foi obrigado,

uma vez mais, a cortar um pedaço do tambor.

* * *

A pele de cabra era dura e seca, frágil como uma corcha. Antes de a colocar no tambor, era preciso macerá-la, fervê-la, esticá-la, batê-la, para a tornar mais suave e

Page 105: Crescer em valores

tão sólida como o couro. Só faltava levá-la ao curtidor.Aquele que curtia todas as peles da tribo morava sozinho fora da aldeia, perto do

rio. O seu trabalho requeria muita água. E os outros não tinham querido que ele se instalasse perto, devido ao cheiro insuportável das peles molhadas. Mas, por mais longe que o curtidor morasse, também ele tinha ouvido falar da árvore abatida. Por sua vez, reclamou uma parte, como prémio do seu trabalho.

— Mas já não há nenhuma árvore! — lamentou-se o pequeno homem. Ficou apenas um tambor!

— De acordo — concluiu o curtidor. — Contentar-me-ei com um bocado do tambor.

E o pequeno homem cortou e deu-lhe a madeira, e a pele foi curtida, seca e ficou pronta a ser colocada no djembé. Quando quis esticá-la, deu-se conta de que lhe faltava uma corda para o fazer. Foi então à procura daquele que na aldeia melhor sabia entrançar cordas. É que a corda que estica a pele de um djembé tem de ser sólida. Tal como os outros, o entrançador de cordas pediu um pouco de madeira. Apesar dos seus protestos e lamentos, o pequeno homem nada conseguiu. E o tambor ficou ainda mais pequeno.

Regressou a casa perturbado, com a corda ao ombro. Ao ver o tambor tão

Page 106: Crescer em valores

pequeno, perguntou-se se teria valido a pena o trabalho. Depois, recordou a árvore que se erguia no meio da savana. Lembrou-se da promessa que lhe tinha feito e sentiu de novo coragem. Depressa a pele de cabra foi colocada no djembé, em arco, e muito esticada por uma rede de nós sólidos e complicados.

* * *

O homem olhou para o seu djembé, finalmente pronto! Claro que era um djembé muito pequenino, bem diferente daquele tantã que ele quereria ter talhado e no qual toda a tribo teria tocado em conjunto. No entanto, o homem não ficou dececionado, porque era um belo djembé: esculpido, polido, suficientemente largo para as suas pequenas mãos, e suficientemente grande para lhe caber entre os joelhos. Então, quis experimentá-lo. Com as palmas e os dedos pôs-se a tocar. E a voz que saía deste tambor, tão pequenino que mais parecia um tambor de criança, era ampla e vasta e profunda como a floresta.

O homem sentiu-se arrebatado e as suas mãos continuaram a tocar… E a voz imponente do pequeno djembé estendeu-se a toda a aldeia e à savana inteira.

Um por um, todos os membros da tribo aproximaram-se dele. Tinham vindo todos: desde o mais ancião dos Anciãos à pequena guardadora de cabras, do mais forte dos homens fortes ao vizinho crocodilo. Tinham deixado as suas fogueiras, as

Page 107: Crescer em valores

suas conversas enfadonhas e as suas sestas, para formar um círculo em redor do pequeno tambor. E faziam silêncio.

Do pequeno djembé elevavam-se palavras e frases que diziam toda a savana: o medo da zebra que foge à azagaia do caçador ávido, o sofrimento da erva que curva perante a chama acesa pelo homem, a doçura do vento que murmura nos ramos da árvore… E os homens escutavam. Eles, que só pensavam na caça, na guerra e nas fogueiras, faziam silêncio.

Assim, até aos limites da montanha e do deserto, cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. E, graças às mãos do pequeno homem, todos partilharam de novo o seu saber, por muito tempo ainda. Porque, ao som do djembé, o cepo da antiga árvore germinou. Do jovem rebento brotou uma nova árvore.

E, sob a sua corcha de árvore, corria a seiva da sabedoria de África.A seus pés, por entre as ervas altas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se

tinham afastado do grupo. Os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. E as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, e os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta.

Até mesmo os homens…

Page 108: Crescer em valores

Do SpillersL’arbre qui parle

Toulouse, Milan Poche, 1999

Page 109: Crescer em valores

Compaixão

Não desprezes aqueles

a quem a vida desfavoreceu,

mas ajuda-os no que estiver

ao teu alcance.

Cada pessoa tem em si algo

de bom que é preciso

fazer desabrochar.

Page 110: Crescer em valores

Uma estrela subiu ao céu

Estava no chão do recreio, no meio da sujidade. No fim do intervalo grande, Regina pegou nela. Era uma bolacha de Natal em forma de estrela, escura e com uma espessa cobertura de açúcar.

Na sala, Regina pôs a estrela na secretária, em frente da professora, a D. Mariana.

— Encontrei-a no recreio — disse.— Alguém a deitou fora — disse Carolina.— Está suja e já ninguém pode comê-la — disse Francisco.— Se alguém tivesse fome de verdade, comia-a — assegurava Regina.— Ugh! Eu nunca iria metê-la à boca — disse Francisco.A D. Mariana, em silêncio, ouviu as crianças durante algum tempo.— Qual de vocês já teve fome de verdade, uma fome a sério? — perguntou por

Page 111: Crescer em valores

fim.Alguns dedos levantaram-se.— Uma vez, eu tive de ir para a cama sem jantar.— Num passeio, no verão, esquecemo-nos do cesto do piquenique.— Nós fomos visitar a nossa tia Emília, mas ela não nos ofereceu nada para

comer.— E a vossa fome era tão grande que seriam capazes de comer a estrela? —

perguntou a professora.— Não, não era assim tão grande — respondeu Sandra, por todos. — Se se comer

uma coisa dessas, fica-se doente.Então, a D. Mariana contou a história do pequeno Sindra Singh, que vive na Índia

longínqua e que tem aproximadamente a idade dos alunos da turma B da terceira classe.

Todos os dias, Sindra recebe na estação uma mão-cheia de arroz. São aproximadamente 300 grãos. Um dia Sindra contou-os. Come 150, assim que o senhor da estação lhos dá. Mete 100 grãos à boca quando o sol está alto e guarda o resto para a altura em que o sol se põe. Às vezes, faz batota e começa a comer

Page 112: Crescer em valores

quando o sol ainda está por cima das árvores.— O que acham? — pergunta D. Mariana às crianças. — Acham que o Sindra

Singh comeria esta estrelinha?— Eu acho que sim — admitiu Regina.— Mas, aqui, a bolacha estava caída no recreio, no meio da sujidade.— O meu avô disse-me que não se deve deitar pão fora — contou Matilde. — Ele

disse que aprendeu isso na Rússia, quando esteve preso depois da guerra. — Em África, as pessoas também passam fome — disse Francisco.— E no Brasil também. Lá, numa certa região, não choveu durante dois anos —

contou Carolina.— O meu tio escreveu da Anatólia — relatou Zeki. — Houve lá um terramoto e as

pessoas já não têm quase nada para comer.Até ali, Maria não tinha dito nada. Agora pedia para falar.— Ontem à noite, na festa de Natal, cantámos e tocámos para os pais — disse. —

Juntámos algum dinheiro. Com ele, podíamos fazer uma encomenda…Maria hesitou e sentou-se novamente.

Page 113: Crescer em valores

— Um embrulho de Natal! — exclamou Francisco.— Depois de amanhã, parte da igreja um camião para o local do terramoto —

disse Carolina. — De certeza que levava o embrulho!As crianças estavam entusiasmadas. Escreveram no quadro tudo o que queriam

meter no embrulho: chocolate e maçapão, farinha, açúcar, biscoitos, conservas, etc.Quando tocou para o intervalo, cada criança da turma sabia o que devia comprar

nessa tarde, para se mandar a encomenda. Era o único trabalho de casa desse dia.No fim, a D. Mariana ergueu a estrela.— Estou enganada, meninos, ou ela está mesmo a brilhar um bocadinho? — As

crianças também acharam que estava um pouco mais clara.A professora voltou para casa relativamente cansada, mas satisfeita. À noite, o

telefone tocou. Era o Sr. Mateus, o pai de Francisco, a queixar-se.O dinheiro tinha sido reunido para a turma. O dinheiro estava pensado para papel

e lápis de cor. O dinheiro era para proveito das crianças da classe B. O dinheiro não era para deitar pela janela.

A D. Mariana objetou que tinham sido as crianças a terem a ideia de, no Advento, fazerem algum bem com aquele dinheiro.

Page 114: Crescer em valores

O Sr. Mateus disse que a escola não existia para isso.— Mas, Sr. Mateus, então o Francisco não contou nada da estrela?— Estrela? — perguntou o Sr. Mateus. — Mas que estrela?— Bem — disse a D. Mariana um pouco desamparada — a bolacha de Natal.

Quando as crianças tiveram a ideia do embrulho, de repente, ela começou a brilhar. Quero dizer…

— Quer enfiar-me o barrete, não é? — resmungou o Sr. Mateus. — Vou tomar outras medidas. O ministro…

— Pergunte ao Francisco sobre a estrela. Ele também viu! — podia ainda ter dito a D. Mariana, mas o pai de Francisco já tinha desligado.

Na manhã seguinte, a professora foi para a escola um pouco abatida. O marido tinha-a animado, e sugerido, caso fosse preciso, que pagasse ela própria as coisas para a encomenda, mas a D. Mariana achava que não seria a mesma coisa.

No recreio, Francisco veio logo a correr ao seu encontro e entregou-lhe uma carta. A professora abriu apressadamente o envelope e a nota de vinte euros que vinha lá dentro quase voou. O Sr. Mateus tinha escrito ainda algumas linhas.

Page 115: Crescer em valores

Cara D. Mariana,

Falei com o meu filho Francisco. Ainda não sei se é correto o que pensa fazer, mas tive a impressão de que ainda se via nos olhos do Francisco o brilho da estrela.

Desculpe, por favor, o meu telefonema de ontem. A minha mulher diz muitas vezes que eu sou uma pessoa impetuosa.

Alexandre Mateus

No dia seguinte, saiu o camião para a Anatólia com muitas encomendas. No embrulho da turma B, ia uma carta.

Estava escrito FELIZ NATAL! Cada uma das vinte e seis crianças escrevera o seu nome por baixo.

— Algures, na Anatólia, uma estrela vai subir ao céu — disse a D. Mariana às

Page 116: Crescer em valores

crianças.Willi Fährmann

Jutta Modler (org.)Frieden fängt zu Hause an

München, DTV Junior, 1989

Page 117: Crescer em valores

. Responsabilidade Existem no mundo

muitas pessoas que sofrem

e não recebem qualquer auxílio.

Pensa nas formas possíveis

de ajudar aqueles que necessitam

Page 118: Crescer em valores

Chico

Chico vive numa aldeia perdida num dos muitos países de África. Podia ser em Angola, no Senegal ou no Ruanda. Podia chamar-se Chico, Abuabar ou N’gouda. Há muitos Chicos em África. Chicos de olhos brilhantes e pés descalços, com a cabeça povoada de sonhos, com vontade de ter um futuro para viver.

Como quase todos os seus companheiros, Chico levanta-se bem cedinho pela manhã. Ajuda a mãe a tratar das duas cabrinhas, Flor e Kenchú, e só depois parte para a escola. Chico gosta particularmente de Flor. Foi ele quem lhe pôs o nome, no mesmo dia em que ela chegou à palhota, apertada nos braços fortes do pai, ainda mal se segurando nas patinhas frágeis, e a berrar pela mãe. Fora um vizinho que lha dera, como forma de pagar a ajuda no arranjo da cabana.

Na primeira noite, Flor berrou todo o tempo a chamar pela mãe e nem deixava que Kenchú a tentasse acalmar, lambendo-a. Deitado na sua esteira, Chico não conseguia adormecer. Entendia tão bem a cabrinha! O pai dele arranjara trabalho longe, lá na cidade, e só podia vir a casa de quinze em quinze dias. Às vezes, para fazer mais algum dinheiro, ficava fora mais tempo. Quando chegava a hora de

Page 119: Crescer em valores

regressar à cidade, o pai dizia-lhe que se portasse como o chefe da casa e que devia obedecer à mãe. Como se fosse preciso dizer-lho! Ele bem sabia que a mãe, com o trabalho na fazenda do Sr. Macedo, com os gémeos de três anos e Linita, de oito, não podia fazer tudo, e precisava da ajuda dele.

De todas as vezes que o pai partia, Chico ficava triste o resto do dia, mas depois passava. Quando a saudade lhe enchia o peito até cima e parecia querer saltar pelos olhos, apertava na mão com muita força o seixo que o pai lhe dera naquela tarde em que Chico pescara o maior peixe da sua vida. O pai explicara-lhe que tinha arranjado na cidade um bom trabalho, mas que ia deixar de poder vê-los todos os dias. Depois, metera a mão na água e tirara dois seixos, os mais bonitos que Chico alguma vez vira, e colocou-lhe um na palma da mão.

— Quando tiveres muitas saudades minhas, apertas com força esta pedrinha. A tua saudade vai passar para a minha pedra e eu vou recebê-la e tu vais sentir-te acompanhado.

Em certas ocasiões, as saudades eram tantas que acabavam por conseguir irromper para fora e duas lágrimas teimosas, quentes e grossas, deslizavam suavemente pela face castanha-escura de Chico. Ah, como ele compreendia a cabrinha malhada com a manchinha branca na testa! Esgueirou-se para fora da palhota sem acordar os pais e os irmãos que dormiam, saiu para a noite quente e

Page 120: Crescer em valores

húmida e entrou na cabana dos animais. Passou a noite inteira deitado ao lado de Flor, que se acalmou e acabou por adormecer com a cabeça poisada no peito de Chico. No dia seguinte, já aceitou de bom grado o leite que Kenchú lhe oferecia.

Os pais estranharam a mudança mas, durante algum tempo, a causa dessa transformação ficou um segredo entre Chico, Flor e Kenchú. Só depois de ordenhadas as cabras e de lhes ter deitado de comer, é que Chico saía para a escola. À saída da aldeia encontrava-se com Djimbu e Mkembé, os seus dois melhores amigos, e juntos faziam o caminho até à escola das Missões.

Ir à escola era o que Chico mais gostava. O seu maior sonho, já segredado para dentro das orelhas de Flor e contado ao pai, durante uma tarde de pesca, era, um dia, poder ensinar outros meninos como ele a ler e a escrever. E haveria de trabalhar tanto, que iria até conseguir dinheiro para comprar uma bicicleta novinha para os irmãos, igual a uma que vira um dia. Bem, do que ele gostava mesmo, mesmo, era de um dia poder ter um carro como o do Sr. Macedo, o dono da fazenda onde a mãe às vezes ia trabalhar.

Mas esse era o seu maior segredo e ainda nem se atrevera a contar a ninguém, nem mesmo a Flor. Claro que, se o contasse a Djimbu ou a Mkembé, eles também iam querer, e deixava de ser um desejo só dele… De cada vez que o Sr. Macedo vinha à casa grande, somente de tempos a tempos, Chico ficava parado no caminho a

Page 121: Crescer em valores

observar o grande carro branco e brilhante, tão brilhante que, quando o sol cintilava nos vidros, até fazia doer os olhos, e assim ficava perdido no seu segredo.

Ao chegar à escola, Chico notou um alvoroço desacostumado. Alguns homens em manga de camisa transportavam caixas para dentro do edifício da escola. Pareciam todos muito bem dispostos, e até o Palhinhas, o cão acastanhado do professor, soltava latidos alegres e abanava a cauda, bem disposto. Chico, Djimbu e Mkembé estugaram o passo. Que confusão! Quando a velha furgoneta partiu, deixando a velha escola atafulhada de caixas, sentaram-se, de pernas cruzadas no chão e o professor deu início à abertura das caixas.

Era uma encomenda vinda da Europa com uma oferta de material para a escola. Perante o olhar fascinado das crianças, o professor foi retirando, com largos gestos teatrais mas sinceros, folhas soltas, restos de cadernos, cadernos e blocos novos e usados. Chico nem queria acreditar! Aquele material podia não ser novo, mas para eles isso não tinha a menor importância e era-lhes muitíssimo útil. Quem o enviara parecia adivinhar exatamente aquilo de que estavam a precisar!

O professor continuou a retirar lápis, lápis novos e usados, restos de lápis, lápis de cor – que bonitas as cores! – canetas – eram tão poucas as que lhes chegavam à escola! – borrachas que apagavam o que o lápis escrevia. Mas o melhor de tudo vinha no último caixote… Quando o professor o abriu, o rosto iluminou-se num sorriso. Muito

Page 122: Crescer em valores

lentamente, como um mágico que tira um coelho da cartola, o professor foi erguendo o braço. As crianças, mortas de curiosidade e com os olhos a brilhar, sustinham a respiração. O professor mostrou…

Livros!! Livros com imagens cheias de cor! Chico sentiu o coração a bater mais rápido. Parecia-lhe que estava a viver um sonho e só tinha medo de que a mãe o acordasse naquele momento.

Livros! Chico era capaz de ficar horas a fio mergulhado e perdido nas páginas de um livro. Ainda não tinha lido muitos. Só três dos meros vinte que constituíam a magra biblioteca da escola. Podia ser muito reduzida, mas os meninos achavam-se importantes por os terem e manuseavam-nos carinhosamente e com muito cuidado. Chico tinha lido os três mesmo até ao fim, e tantas, tantas vezes, até saber as histórias de cor e poder contá-las à noite, em volta do lume, à mãe, ao pai e aos irmãozinhos, que o escutavam com os grandes olhos castanhos muito abertos de espanto e com a respiração suspensa. Se Chico pudesse, levaria um daqueles para casa para lhos ler. Ficariam certamente ainda mais orgulhosos dele. Se algum dia conseguisse ganhar dinheiro, haveria de poupar até conseguir juntar o suficiente para comprar um grande livro de histórias ou de aventuras para ler aos irmãos. O maior e o mais grosso que houvesse à venda.

Os pensamentos de Chico foram interrompidos pela passagem do professor. Já

Page 123: Crescer em valores

tinha partido os lápis em pedaços mais pequeninos, que distribuía naquele momento pelos alunos. Cada um ia encaixar o seu pedacinho de lápis numa caninha ou num pau para conseguir aproveitá-lo até ao fim. Tinham autorização para levar o material para casa, mas ninguém o levava com medo de perder as preciosas folhas de papel ou os lápis.

Chico pegou no seu, como quem recebe em mãos uma relíquia ou um tesouro. Não, hoje ia ter muito cuidado. Da última vez que preparara o lápis, no preciso momento em que estava a cortar a cana, o Sr. Macedo apareceu no seu carro brilhante, a apitar a uma gazela que se atravessara no caminho. Por momentos, Chico esqueceu tudo o que estava a fazer, imaginando-se sentado nos bancos macios, por trás do volante, com o vento a acariciar-lhe a face, e a apitar a empalas, zebras e macacos. Zás! Deixou cair o braço e cortou o bico do lápis, que, se já era pequeno, ainda mais reduzido ficou.

Que tristeza! Até deu pontapés no velho baobá que se erguia à saída da cabana, de tão furioso que ficou. Porque é que o Sr. Macedo tinha de aparecer precisamente naquele momento? Por causa daquele carro enfeitiçado, já não teve lápis para escrever ao pai – o encarregado da fábrica lia as cartas aos empregados – por aquela altura em que esteve muito tempo sem vir a casa. Não, desta vez iria estar com mil olhos. Nem que passassem dois carros a apitar mesmo ao lado dele, ele ia ceder à

Page 124: Crescer em valores

tentação de olhar!Ao regressar a casa, Chico apertava com força o seixinho do rio Tinha tantas

novidades para contar! E tanta coisa para escrever ao pai! Queria dizer-lhe que, da próxima vez que viesse a casa, ele, Chico, iria ter novas histórias para contar à noite, junto ao fogo.

I. Birnbaum

Page 125: Crescer em valores

Sinceridade

Procura ser sempre sincero

contigo e com os outros.

Aquele que tem

por hábito mentir

acabará sozinho.

Page 126: Crescer em valores

O caminho para a verdade

A chuva que caía há dias parara finalmente nessa tarde. Um suspiro de alívio percorreu a turma toda. Os rapazes sabiam agora que o jogo de futebol, há tanto ansiosamente esperado, poderia ter lugar e já não seria cancelado por causa do mau tempo.

— Bom, às três horas no campo de jogos, mas em ponto! — diz Matias para Ricardo, ao irem juntos para casa no final das aulas.

Ricardo meneia a cabeça e murmura algo de ininteligível de cada vez que Matias dá pontapés nas pedras do caminho para ensaiar golos. Tenta acertar num tronco, numa pedra, ou até em determinada folha de um ramo. Ricardo já não suporta este hábito. É que Matias tem tudo menos boa pontaria.

As suas brincadeiras com as pedras já tinham causado aborrecimentos que chegassem. Matias achava que era precisamente por isso que devia treinar mais. Como se dar pontapés a pedras fosse de uma importância vital!

Ainda Ricardo não tinha acabado de pensar isso e já se ouvia o barulho de vidros

Page 127: Crescer em valores

partidos: a última pedra de Matias tinha voado direita à janela da entrada do Sr. Gilberto. Ricardo ficou a olhá-la, petrificado.

— O melhor agora é fugir! — ouviu Matias sibilar. E, com um grande salto, o autor da asneira desapareceu a correr pela rua abaixo.

Ricardo ainda estava a olhá-lo, confuso, quando sentiu que alguém o agarrava pela gola e o puxava com força. À sua frente, furioso e ofegante, estava o senhor Gilberto.

— Até que enfim que te apanhei, rapazinho! Espera lá, que vou levar-te já ao teu pai, e vais ver o que vai acontecer-te!

Às três horas em ponto, Matias apareceu no campo de jogos mas, por mais que procurasse Ricardo, não o encontrou. “Afinal sempre o apanharam”, pensou Matias “e, ou assumiu ele a culpa, ou não o deixaram falar. Já é costume. O pai dele, às vezes, é muito severo.”

Matias ficou de pé, na tribuna, a olhar para o campo vazio. Combinavam quase sempre encontrar-se uma hora antes, para arranjarem um bom lugar. Mas, de um momento para o outro, Matias perdeu o entusiasmo pelo jogo. Pensava no vidro da janela, em Ricardo, e a má consciência atormentava-o. Devagar e de cabeça baixa, abandonou o campo e encaminhou-se, hesitante, para a casa dos pais de Ricardo.

Page 128: Crescer em valores

Foi o pai em pessoa que lhe abriu a porta. Irado como estava, nem sequer deixou Matias falar, dizendo-lhe asperamente:

— É inútil, rapaz! O Ricardo está fechado no quarto, de castigo, a fazer os trabalhos de casa… Ele que te conte tudo na segunda-feira, na escola. Já só faltam dois dias e meio — e voltou para dentro, fechando a porta com força.

Matias voltou a tocar à campainha insistentemente e, desesperado, acabou por bater à porta com os punhos. Não podia aceitar uma injustiça daquelas. Mas dentro da casa, ninguém se moveu. Os pensamentos atropelavam-se-lhe na cabeça. “Muito bem”, pensava ele, “então vou contar-lhe a verdade pelo telefone. E se ele também não me deixa falar pelo telefone?”

De repente, Matias tem uma ideia e volta a correr para casa. A mãe ainda não tinha regressado do trabalho. Procurou papel de carta e um envelope, escreveu a toda a pressa umas linhas no papel e levou a carta à estação dos correios mais próxima. Mostrou ao empregado o dinheiro que lhe sobrava da semanada e perguntou:

— Chega para mandar uma carta por correio-expresso para a cidade?— Chega e sobra, rapaz.— E a carta é entregue agora mesmo?

Page 129: Crescer em valores

O empregado olhou-o sorrindo e respondeu:— Há fogo? Não tenhas medo, que estás com sorte. A carta pode chegar ao

destino em meia hora. Ex-ce-cio-nal-mente!Matias entregou a carta, feliz.Uma meia hora mais tarde, o pai de Ricardo abria uma carta, entregue por um

estafeta motorizado. E, admirado, leu:

Caro Sr. Pinto,

Venho, por este meio, provar-lhe que a verdade, afinal, consegue entrar em sua casa. Fui eu que parti o vidro da janela e vou pagá-lo com a minha próxima semanada. Espero pela resposta em frente da sua casa.

Com os meus cumprimentos

Matias

A resposta que o pai de Ricardo mandou a Matias pesava quase 40 kg e vinha a rir-se. Era o Ricardo. Assim que viu o amigo sentado à espera na soleira da porta, disse:

Page 130: Crescer em valores

— Matias, tu és o maior maluco do mundo! O que tu fizeste… bem, nunca hei de esquecer.

— Ora — resmungou Matias — não fales tanto, senão perdemos também a segunda parte do jogo.

Eva Rechlin

Jutta Modler (org)Brücken Bauen

Wien, Herder,1987

Page 131: Crescer em valores

Generosidade

Sempre que ajudares alguém,

procura passar despercebido.

Quanto menos te evidenciares,

mais a tua ajuda terá valor.

Page 132: Crescer em valores

O Senhor Palha

Conto japonês

Era uma vez, há muitos e muitos anos, é claro, porque as melhores histórias passam-se sempre há muitos e muitos anos, um homem chamado Senhor Palha. Ele não tinha casa, nem mulher, nem filhos. Para dizer a verdade, só tinha a roupa do corpo. Ora o Senhor Palha não tinha sorte. Era tão pobre que mal tinha para comer e era magrinho como um fiapo de palha. Era por esse motivo que as pessoas lhe chamavam Senhor Palha.

Todos os dias o Senhor Palha ia ao templo pedir à Deusa da Fortuna que melhorasse a sua sorte, mas nada acontecia. Até que um dia, ele ouviu uma voz sussurrar:

— A primeira coisa em que tocares quando saíres do templo há de trazer-te uma grande fortuna.

O Senhor Palha apanhou um susto. Esfregou os olhos, olhou em volta, mas viu

Page 133: Crescer em valores

que estava bem acordado e que o templo estava vazio. Mesmo assim, saiu a pensar: “Terei sonhado ou foi a Deusa da Fortuna que falou comigo?”

Na dúvida, correu para fora do templo, ao encontro da sorte. Mas, na pressa, o pobre Senhor Palha tropeçou nos degraus e foi rolando aos trambolhões até o final da escada, onde caiu por terra. Ao levantar-se, ajeitou as roupas e percebeu que tinha alguma coisa na mão. Era um fiapo de palha.

“Bom”, pensou ele, “uma palha não vale nada, mas, se a Deusa da Fortuna quis que eu a apanhasse, é melhor guardá-la.”

E lá foi ele, com a palha na mão.Pouco depois, apareceu uma libélula zumbindo em volta da cabeça dele. Tentou

afastá-la, mas não adiantou. A libélula zumbia loucamente ao redor da cabeça dele. “Muito bem”, pensou ele. “Se não queres ir embora, fica comigo.” Apanhou a libélula e amarrou-lhe o fiapo de palha à cauda. Ficou a parecer um pequeno papagaio (de papel), e ele continuou a descer a rua com a libélula presa à palha.

Encontrou a seguir uma florista, que ia a caminho do mercado com o filho pequenino, para vender as suas flores. Vinham de muito longe. O menino estava cansado, coberto de suor, e a poeira fazia-o chorar. Mas quando viu a libélula a zumbir amarrada ao fiapo de palha, o seu pequeno rosto animou-se.

Page 134: Crescer em valores

— Mãe, dás-me uma libélula? — pediu. — Por favor!“Bem”, pensou o Senhor Palha, “a Deusa da Fortuna disse-me que a palha traria

sorte. Mas este garotinho está tão cansado, tão suado, que ficará certamente mais feliz com um pequeno presente.” E deu ao menino a libélula presa à palha.

— É muita bondade sua — disse a florista. — Não tenho nada para lhe dar em troca além de uma rosa. Aceita?

O Senhor Palha agradeceu e continuou o seu caminho, levando a rosa. Andou mais um pouco e viu um jovem sentado num tronco de árvore, segurando a cabeça entre as mãos. Parecia tão infeliz que o Senhor Palha lhe perguntou o que tinha acontecido.

— Hoje à noite, vou pedir a minha namorada em casamento — queixou-se o rapaz. — Mas sou tão pobre que não tenho nada para lhe oferecer.

— Bem, eu também sou pobre — disse o Senhor Palha. — Não tenho nada de valor mas, se quiser dar-lhe esta rosa, ela é sua.

O rosto do rapaz abriu-se num sorriso ao ver a esplêndida rosa.— Fique com estas três laranjas, por favor — disse o jovem. — É só o que posso

dar-lhe em troca.

Page 135: Crescer em valores

O Senhor Palha continuou a andar, levando três suculentas laranjas. Em seguida, encontrou um vendedor ambulante a puxar uma pequena carroça.

— Pode ajudar-me? — disse o vendedor ambulante, exausto. — Tenho puxado esta carroça durante todo o dia e estou com tanta sede que acho que vou desmaiar. Preciso de um gole de água.

— Acho que não há nenhum poço por aqui — disse o Senhor Palha. — Mas, se quiser, pode chupar estas três laranjas.

O vendedor ambulante ficou tão grato que pegou num rolo da mais fina seda que havia na carroça e deu-o ao Senhor Palha, dizendo:

— O senhor é muito bondoso. Por favor, aceite esta seda em troca.E, uma vez mais, o Senhor Palha continuou o seu caminho, com o rolo de seda

debaixo do braço. Não tinha dado dez passos quando viu passar uma princesa numa carruagem. Tinha um olhar preocupado, mas a sua expressão alegrou-se ao ver o Senhor Palha.

— Onde arranjou essa seda? — gritou ela. — É justamente aquilo de que estou à procura. Hoje é o aniversário de meu pai e quero dar-lhe um quimono real.

— Bem, já que é aniversário dele, tenho prazer em oferecer-lhe a seda — disse o

Page 136: Crescer em valores

Senhor Palha.A princesa mal podia acreditar em tamanha sorte.— O senhor é muito generoso — disse sorrindo. — Por favor, aceite esta joia em

troca.A carruagem afastou-se, deixando o Senhor Palha com uma joia de inestimável

valor refulgindo à luz do sol. “Muito bem”, pensou ele, “comecei com um fiapo de palha que não valia nada e agora tenho uma joia. Sinto-me contente.”

Levou a joia ao mercado, vendeu-a e, com o dinheiro, comprou uma plantação de arroz. Trabalhou muito, arou, semeou, colheu, e a cada ano a plantação produzia mais arroz. Em pouco tempo, o Senhor Palha ficou rico.

Mas a riqueza não o modificou. Oferecia sempre arroz aos que tinham fome e ajudava todos os que o procuravam. Diziam que a sua sorte tinha começado com um fiapo de palha, mas quem sabe se não terá sido com a sua generosidade?

William J. BennettO Livro das Virtudes II – O Compasso Moral

Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996

Page 137: Crescer em valores

Delicadeza

Deves tratar as pessoas com

delicadeza, de contrário elas

afastar-se-ão de ti.

Lembra-te sempre:

um pequeno gesto

afetuoso pode ter um

grande significado.

Page 138: Crescer em valores

O cato

Sónia está quase a chorar. A chorar de raiva. Quer ser ela a decidir, sozinha, se vai ou não a uma festa de aniversário. Decidiu que NÃO VAI a casa de Catarina, mas a mãe insiste que se deve aceitar sempre um convite de aniversário, mais ainda quando o aniversariante é da mesma turma que nós. E quando a mãe do aniversariante é nossa amiga.

O pai compreende Sónia. Quando não gosta de ir a algum lado, ele também não vai.

— Deixa a Sónia em paz! — diz ele à mãe. — Se ela não quer ir à festa de anos, então que não vá.

— A Catarina só me convidou porque a mãe dela queria — barafusta Sónia. — Sabes muito bem. A mãe dela acha que, só por vocês serem amigas, nós também temos de ser!

É Sónia que escolhe as suas amigas e elas são todas muito diferentes de

Page 139: Crescer em valores

Catarina: não têm tranças sem graça, sempre do mesmo tamanho e da mesma grossura a caírem pelas costas abaixo, não usam blusas impecavelmente limpas, sem uma pontinha de sujidade, nem mesmo na gola, não usam meias altas de uma só cor, que nunca escorregam. As amigas de Sónia são barulhentas, gostam de roupas garridas e andam um pouco desarranjadas. E quando alguém precisa, estão sempre dispostas a ajudar. E Catarina?

Catarina, se tivesse um grande guarda-chuva preto, daqueles de homem, abri--lo-ia por cima do caderno para que ninguém pudesse copiar. Quando não tem a melhor nota da turma, Catarina parece ainda mais magra, mais macilenta e calada. Catarina nunca ri. É fechada como uma ostra.

— Coitada da Catarina — diz a mãe de repente. — Se não leva ‘Muito Bom’ para casa, o pai grita com ela. E a mãe não diz uma palavra. Com um marido com tão mau-génio, nem se atreve a falar. Só me admira que a Catarina possa até dar uma festa de anos. Numa casa como aquela, onde todos têm de andar em chinelos para não sujarem o chão e onde não se pode fazer barulho, porque o pai não suporta nenhum ruído!...

“Não gostava nada de ter um pai assim”, pensa Sónia. “Quando trago um “Satisfaz” para casa, o máximo que o meu diz é: — Bem, pelo menos não trouxeste nenhum ‘Não Satisfaz!’ — A Catarina é mesmo infeliz.”

Page 140: Crescer em valores

A mãe já embrulhou a prenda: papel de carta com linhas fluorescentes. Há muito tempo que Sónia queria ter um assim, mas com as cores do arco-íris.

Aquilo nem faz nada o género de Catarina.“Vou ficar com ele para mim”, pensa Sónia. “A Catarina nunca saberá o que ia

receber. E de certeza que as nossas mães não vão falar do papel de carta quando se encontrarem. O que eu queria mesmo era escrever uma carta assim:

Querida mãe,

A Catarina é uma palerma. Como não tenho vontade nenhuma de ir à festa de anos de uma palerma, vou ficar no meu quarto.

Sónia

Isto era bom mas, infelizmente, não pode ser.”Sónia pensa no que pode oferecer, em vez do papel de carta. O que gostava era

de lhe dar um cato. Um, com picos da grossura de um dedo. Sónia está a pensar naquela vez, ainda há pouco tempo, em que lhe emprestou o seu bonequinho de chumbo preferido e ela, no recreio, o deixou cair na grelha da água. E agora, em troca, vai receber um cato cheio de picos. Um dos da coleção da mãe. Ela já nem gosta deles. Nascem como cogumelos — costuma dizer, porque a família e os amigos

Page 141: Crescer em valores

só lhe oferecem catos. De certeza que a mãe não vai reparar se lhe faltar um vaso no meio dos cinquenta e nove!

Sónia escolhe um cato pequeno e torto com muitos cabelinhos e inúmeros picos. Na ponta tem uma espécie de espinho, mole e amarelo-acastanhado. Ainda fica a pensar se não devia cortá-lo, mas acaba por deixar o cato como está. Embrulha-o em quatro folhas de papel de seda para não se picar e põe-no junto dos chinelos de casa, dentro do saco de plástico. “Deve ser horrível ter de levar sempre cincos para casa”, pensa Sónia no elétrico a caminho de casa de Catarina. “E ter um pai que grita e de quem todos têm medo…”

Desde que soube aquilo sobre o pai, Sónia passou a ver Catarina com outros olhos. Tem pena dela. Olha para o saco pousado entre os pés. Se calhar não devia ter trocado o papel de carta bonito pelo cato feio. A viagem é longa e ele ainda se estraga metido no saco. De repente, Sónia lembra-se da cara que Catarina fez quando reparou que Sónia tinha colado uma cábula por baixo da carteira. Lançara-lhe um olhar ameaçador como se fosse fazer imediatamente queixa dela, mas até agora nada tinha feito. Aquilo é que fora um olhar zangado!

Não! Sónia nem sequer vai dar-lhe os parabéns. Só vai sorrir-lhe delicadamente, assim uma espécie de sorriso pequenino só do canto da boca, e apertar-lhe a mão. E dar-lhe o cato. O cato, que nem sequer tem perfume. O cato, que só pica.

Page 142: Crescer em valores

Sónia está em frente da casa de Catarina. Até que está muito barulho lá dentro para quem tem um pai que quer sempre silêncio.

— Ainda bem que vieste — diz a mãe de Catarina. — A Catarina vai ficar contente.

“Ora esta!” pensa Sónia. “Então ela pensou que eu não queria vir?”Catarina vem à porta a correr. Chega a transpirar, de cabelo solto, vestida com

uma camisola cor-de-rosa e umas calças verde-alface. — Olá! — grita alegremente. — Hoje estou diferente, não é? — diz, ao ver a cara

esquisita da Sónia.— Tive autorização para escolher isto, sozinha!Catarina aponta orgulhosamente para o rosa-choque e o verde--alface.— Muitos parabéns — diz Sónia baixinho. Aquela Catarina tão mudada apanhou-

-a completamente de surpresa.Desembrulha o cato com cuidado… e tem de olhar duas vezes até acreditar:— Não é possível! — murmura Sónia.Mas lá está ela, pequenina, delicada, amarela.

Page 143: Crescer em valores

Com o calor do saco, aquilo que dantes era castanho e murcho transformara-se numa florinha amarela.

— É tão querido! — exclama Catarina. — Um cato em flor! O meu primeiro cato!Catarina está sinceramente contente. Já não é uma ostra esquisita e calada. Em

casa, onde não tem de se esforçar para ter cincos, é completamente diferente.Levanta o cato no ar e vira-o de todos os lados. Ri por sair tão torto da terra.“É esquisito”, pensa Sónia. “Trouxe um cato feio a uma pessoa de quem não

gostava. Entretanto, o cato tornou-se bonito e, de repente, passei a gostar dessa pessoa!”

Evelyne Stein-Fischer13 Geschichten vom Liebhaben

München, DTV Junior, 1990

Page 144: Crescer em valores

Obediência

Deves obedecer à tua voz interior

quando ela te aconselha

a repartir uma guloseima

com um amigo, a fazer

os trabalhos escolares

ou a ajudar em casa.

Page 145: Crescer em valores

O pássaro da alma

No fundo, bem lá no fundo do corpo, mora a alma.Ainda não houve quem a visse,

Mas todos sabem que ela existe.E não só sabem que existe,

Como também sabem o que tem dentro.

Dentro da alma,Lá bem no centro,

Pousado numa pataEstá um pássaro.

E o nome do pássaro é pássaro da alma.

Dentro do corpo, no fundo, bem lá no fundo, mora a alma.Ainda não houve quem a visse,

Page 146: Crescer em valores

Mas todos sabem que ela existe.E ainda nunca,

Nunca veio ao mundo alguémQue não tivesse alma.

Porque a alma entra dentro de nósNo momento em que nascemos

E não nos larga

— Nem uma só vez —Até ao fim da nossa vida.

Como o ar que o homem respiraDesde a hora em que nasceAté à hora em que morre.

E o mais importante é escutar logo o pássaro.Pois acontece o pássaro da alma chamar por nós,

E nós não o ouvirmos.É pena.

Page 147: Crescer em valores

Ele quer falar-nos de nós próprios.

Há quem o ouça muitas vezes,Há quem o ouça raras vezes,

E há quem o ouçaUma única vez na vida.

Por isso vale a penaTalvez tarde pela noite,

Quando o silêncio nos rodeia,Escutar o pássaro da alma que mora dentro de nós,

No fundo,Lá bem no fundo do corpo.

Michal SnunitO Pássaro da Alma

Lisboa, Vega Editora, 20000

Page 148: Crescer em valores

Disciplina Aprende a dizer não àqueles

que te propõem divertimentos

que te fazem mal

e te deixam infeliz.

Há um tempo para brincar

e um tempo para estudar.

Page 149: Crescer em valores

Jogos perigososÀs vezes, os ratinhos da turma fartavam-se de estar sentados. Quando chegava a

hora do recreio, era vê-los a gritar e a correr nos corredores! Brincavam ao elástico, jogavam à bola e às escondidas. Até que um dia, um grande rato branco troçou deles:

— Que jogos mais infantis! Eu cá jogo a outra coisa. Mas não posso dizer nada porque são jogos secretos. As famílias dos ratinhos não gostam de jogos para gente grande.

Foi assim que o grande rato branco lhes ensinou a puxar os bigodes do gato Isidoro. Mas era um jogo muito perigoso, até porque o gato apanhava sempre o ratinho mais lento.

— Ora, ora — comentavam os outros. — Este jogo é muito perigoso.Contudo, não ousaram contrariar o rato grande, que se tornou o chefe do bando.

Ninguém tinha coragem para confessar o seu medo. No dia seguinte, o rato propôs saltarem por cima de uma ratoeira, tentando apanhar o pedaço de queijo. Que terror! Todos se sentiam muito assustados, porque bastava um ligeiro toque para ficarem estrangulados.

Page 150: Crescer em valores

— Então, meus medricas? Quem vai ser o primeiro?Os ratinhos olharam uns para os outros, colocaram-se em fila indiana e saltaram.

A Rosinha ficou prisioneira. Da ratoeira e do gato Isidoro. Mas nem assim o rato branco desistiu.

— Já vos falei daquele jogo em que os ratinhos enrolam as caudas em torno do pescoço e apertam, apertam…

— Isso é idiota — disse o Luís. — Podemos morrer estrangulados.— Não morrem nada, seus patetas, porque param a tempo. Este jogo dá-nos a

sensação de estarmos a cair do alto de uma falésia. É superfixe!Os ratinhos começaram a experimentar e nem sequer deram pela aproximação

do gato Isidoro, que comeu logo três de uma vez. Era demais!Nessa tarde, o ratinho Júlio chegou a chorar a casa:— Há jogos na escola que fazem mal aos ratinhos. Não quero lá voltar!Os pais do Júlio nem queriam acreditar. Como pode haver alguém pequenino e

amoroso que queira magoar-se? Como se pode obedecer com tanta facilidade a quem nos quer fazer mal?

Page 151: Crescer em valores

O grande rato branco foi severamente punido e foi até preso, e todos os jogos perigosos foram proibidos na escola. E a professora teve de explicar aos ratinhos o que era verdadeiramente um jogo.

— Um verdadeiro jogo é quando um rato faz de conta que é um gato. Pode ser divertido e não implica perigo nenhum. Mas se o ratinho for atrás de um gato, isso já é um comportamento perigoso.

— Mas como havemos de distinguir entre os dois? — perguntaram os ratinhos.— Quando alguém vos disser para guardarem segredo e não contarem aos pais,

é sinal que o jogo é perigoso. E vocês também têm de aprender a ouvir a vossa pulguinha.

— O que é a pulguinha? — perguntaram todos.— A pulguinha é uma vozinha que vos avisa do perigo. É por isso que se diz: “ter

a pulga atrás da orelha”, ou seja, desconfiar de uma situação perigosa.A ratinha Lúcia lamentou-se:— Nunca ouvi a minha pulga. Será que tenho uma?— Claro que tens — assegurou a professora. — Mas tens de te esforçar por a

ouvir. Quanto mais te esforçares, melhor a ouvirás.

Page 152: Crescer em valores

Os ratinhos ficaram felizes por terem uma amiga interior que os avisava do perigo e aprenderam a escutá-la. Quando a pulguinha lhe dizia para desconfiarem, eles respondiam logo aos convites com um “Não quero brincar” ou “Não vou contigo”.

Desde então, os ratinhos não acompanham estranhos na rua e só jogam a jogos a sério, ou seja, a brincar. Jogos onde não encontrem gatos…

Sophie CarquainPetites histoires pour devenir grand (2)

Paris, Albin Michel, 2005