Crescer com saúde

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Janeiro 2011. 179 CRESCER COM , SAUDE Dieta equilibrada da gestante e do bebê reduz risco de obesidade s FAPESP Multas travam pesquisas Marcador identifica carne macia

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Pesquisa FAPESP - Ed. 179

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Janeiro 2011. N° 179

CRESCER COM , SAUDE Dieta equilibrada da gestante e do bebê reduz risco de obesidade

s FAPESP

Multas travam pesquisas

Marcador identifica carne macia

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Page 4: Crescer com saúde

l7 9 I JANEIRO 2011

SEÇÕES

3 IMAGEM DO MÊS

6 CARTAS

7 CARTA DO EDITOR

8 MEMÓRIA

22 ESTRATÉGIAS

42 LABORATÓRIO

60 SCIELO NOTfCIAS

62 LINHA DE PRODUÇÃO

94 RESENHA

95 LIVROS

96 FICÇÃO

98 CLASSIFICADOS

WWW.REVISTAPESOUISA.FAPESP.BR

CAPA 16 Introdução de outros

alimentos durante

a amamentação altera o paladar e aumenta o

risco de obesidade

ENTREVISTA 10 Ex-ministro da Fazenda

Maílson da Nóbrega

lança sua autobiografia com os

bastidores do poder político nacional

CAPA LAURA TEIXEIRA

16 28

PQLÍTJCA CiENTÍFICA E TECNOLÓGICA CiÊNCiA

28 BIOPROSPECÇÃO 38 INTERNACIONALIZAÇÃO 46 GEOLOGIA 56 SAl Multas acirram Grupo da Unesp em Manchas de cerrado Res divergências entre Rio Claro é referência surgiram sobre leitos ai te pesquisadores para biólogos de antigos rios apn

e autoridades estrangeiros da Amazônia ter ·

ambientais sobre lei antibiopirataria 50 ASTROFÍSICA 58 EV<

Simulação feita por ÜSI

34 CONFERÊNCIA brasileiro explica anti DE CANCÚN por que a Terra não aus·

Combate à mudança colidiu com o Sol ter ·

do clima avança em Am' encontro no México, 54 IMUNOLOGIA mas acordo global fica Marcação de células

em suspenso permite conhecer como

ocorre a seleção de

anticorpos mais eficazes

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56 SAÚDE Responsável por alterações cardíacas, apneia do sono pode ter teste diagnóstico

58 EVOLUÇÃO Os parentes mais antigos dos marsupiais australianos podem ter vivido na América do Sul

56

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66 FÍSICA Acelerador de partículas é projetado e construído no Instituto de Física da USP

70 BIOTECNOLOGIA Identificados marcadores moleculares de carne macia em gado nelore

74 NOVOS MATERIAIS Embalagens e produtos para uso agrícola são feitos com milho,

mandioca e fibras

78 ENGENHARIA MECÂNICA Empresa desenvolve sistema que purifica e umidifica o ambiente

HUMANIDADES

80 SOCIOLOGIA A polêmica relação que o Brasil criou com o automóvel

86 HISTÓRIA A liberdade dos judeus no Brasil de Nassau

90 EDUCAÇÃO Ensino de música volta a ser obrigatório

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Pelletron

Gostaria de apresentar algumas obser­vações sobre a reportagem "De volta à ativa" (edição 177). De início aponta­ria que o título é totalmente inadequa­do, pois, com base no relatório recente do LAFN, o Pelletron, apesar das difi­culdades crescentes em função de sua idade (quatro décadas em operação), não tem estado inativo, apresentando uma produção científica condizente com sua situação, como a própria reportagem afirma, " ... mesmo nos piores dias o Pelletron não parou de gerar dados", contradizendo o próprio título. Não é o caso aqui de apontar sucessos e/ou dificuldades das várias gestões do laboratório, mas de ofere­cer uma opinião sobre as perspectivas futuras. Entendemos que uma revis­ta como Pesquisa FAPESP é dirigida a um público amplo, que também inclui cientistas não especialistas no assunto apresentado. Portanto, a linguagem utilizada, mesmo que não rigorosa, não pode conter erros conceituais graves. Gostaríamos de apresentar al­guns deles, a começar com a primeira frase: "Núcleos exóticos são como es­trelas de cinema: seu comportamento nem sempre é fácil de explicar". Con­tinuando a leitura do artigo, as frases seguintes:" ... Para piorar, a eletricidade descontrolada ... "," ... Idealmente, o Pelletron opera com 8 milhões de volts e essa potência não foi totalmente re­cuperada ... ", "Com o novo sistema, o acelerador deve voltar a alcançar os 8

6 • JANEIRO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 179

EMPRESA QUE APOIA A CIÊNCIA BRAS ILEIRA

BiOLAB FARMACÊUTICA

milhões de volts de energia .. . " contêm erros conceituais importantes, que o revisor da matéria deveria ter corrigi­do. Se o estudo dos núcleos exóticos constitui uma das fronteiras do conhe­cimento na Física Nuclear de Baixas Energias (FNBE), é inegável que o Ri­bras tem um papel importante nesse contexto, assim como, por exemplo, o espectrógrafo magnético split-pole, instalado no Pelletron na década de 1980, pode ter também. Entretanto, afirmar que o Ribras é um produtor de núcleos exóticos corresponde a um sério erro conceituai. O Ribras é um seletor/detetor muito eficiente. Ou­tro erro conceituai corresponde ao entendimento de que o Ribras pode transformar o acelerador Pelletron num laboratório de núcleos exóticos. Os laboratórios de núcleos exóticos existentes e/ou planejados no mundo são/serão capazes de produzir, com elevadas taxas, centenas de espécies de núcleos instáveis, coisa que o Ri­bras não é capaz de produzir na sua configuração atual. O artigo, desta vez corretamente, afirma que no momen­to é possível separar feixes de dois ou três elementos (6He, 8Li principal­mente) , em taxas insuficientes para a investigação adequada da dinâmica de reações envolvendo núcleos instáveis. Portanto, se quisermos (e devemos) incorporar o LAFN no conjunto de laboratórios mundiais, competitivos, com feixes de íons instáveis, devemos

adotar outra política científica que am­plie a capacidade de produção de fei­xes instáveis de alta intensidade e com maior variedade, o que certamente deve incluir o Ribras no seu parque experi­mental. Entendemos que está mais que na hora de propor um plano decenal para a área de física nuclear de baixa energia e um esforço coletivo com o ob­jetivo de, não "voltar à ativa", pois isso nunca foi o caso, mas sim propor um plano de ação que recoloque o LAFN num plano de destaque na produção do conhecimento que certamente ocupou no passado. Gostaria de ressaltar que qualquer proposta viável passa necessa­riamente pela conclusão da construção do acelerador linear supercondutor (Li­nac), atualmente em fase final.

ALE) AN DRO SZAN TO DE TOLEDO

Instituto de Física/USP São Paulo, SP

Correção

Na reportagem "Versatilidade mari­nha" (edição 178) a alga da página 66 é a Dictyota sp, e não a Gracilaria te­nuistipitata, como foi publicado.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail ca [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727 - 100 andar- CEP 05415-012 - Pinheiros -São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por mot ivo de espaço e clareza.

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FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CELSO LAFER PRESIDENTE

EDUARDO MOACYR KRIEGER VICE-PRESIDENT E

CONSELHO SUPERIOR

CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PI V A. HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD, MARIA JOSt SOARES MENDES GIANNINI. JOSt DE SOUZA MARTINS, JOSt TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO. SEDI HIRANO. SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESI DENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTiFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DI RETOR A DM IN ISTR ATI VO

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENT{FICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CYLON GONÇALVES DA SILVA, FRANCISCO ANTÓNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER. JOÃO FURTADO, JOSÊ ROBERTO PARRA, LUÍS AUGUSTO BARBOSA CORTEZ, LUÍS FERNANDES LOPEZ, MARIE-ANNE VAN SLUYS, MÁRIO JOSt ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, StRGIO QUEIROZ, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN

EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRICIO MARQUES (POLITICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CitNCIA)

EDITORES ESPECIAIS CARLOS riORAVANTI. MARCOS PIVETTA

EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO

REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÓ NEGRO

EDITORA DE ARTE LAURA DAVI NA E MAYUMI OKUYAMA (COORDENAÇÃO>

ARTE MARIA CECILIA FELLI E JÚLIA CHEREM RODRIGUES

FOTÓGRAFO EDUARDO C ESA R

EDITORA ON-UNE: MARIA GUIMARÃES

WEBMASTER SOLON MACEOONIA SOARES

SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS

COLABORADORES ANA LIMA, ANDRt SERRADAS (BANCO DE DADOS), CRISTINA CALDAS, DANIELLE MACIEL. EVANILDO DA SILVEIRA, FLORA REBOLLO, JOCA REINERS TERRON, JOSELIA AGUIAR, LAURA TEIXEIRA, LAURABEATRIZ, LUANA GEIGER. PAULA MUNIZ E YURI VASCONCELOS

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O equilíbrio necessário

A capa desta edição trata de um as­sunto a princípio conhecido por todos, a importância da dieta equi­

librada das gestantes e dos bebês para que estes cresçam saudáveis. A obvieda­de do tema, porém, é apenas aparente. Sempre se soube que recém-nascidos amamentados só com leite materno nos seis primeiros meses de vida, filhos de mulheres que se alimentaram correta­mente durante a gravidez, têm grande chance de se tornarem menos suscetíveis às doenças. O que não se conhecia e foi revelado por pesquisadores que traba­lharam em estudos populacionais em países em desenvolvimento é que há um período específico em que os pais devem agir para diminuir o risco de transformar uma criança saudável em um adulto obeso. Esse espaço de tempo foi chamado de mil dias de oportuni­dade. Trata-se dos 270 dias da gestação somados aos 730 dos dois primeiros anos de vida em que os cuidados com a dieta devem ser constantes. O relato é do editor de ciência, Ricardo Zorzetto, a partir da página 16.

Um tema mais espinhoso é tratado pelo editor de política científica e tec­nológica, Fabrício Marques. Ele conta os embates entre o Ministério do Meio Ambiente e cientistas que dependem de coletas de espécies retiradas da natureza para fazer pesquisa (página 28). Para ca­da trabalho é preciso pedir autorização, que, em alguns casos, pode levar anos para sair. As razões do ministério são de ordem legal, já que a tua para evitar o contrabando da biodiversidade bra­sileira. O excesso de rigidez burocrática acaba por emperrar linhas de pesquisa em todo o país, embora haja a promes­sa de se diminuir as exigências. Quem decide não esperar pelos trâmites exces­sivamente demorados ou não cumpre com rigor o que é exigido recebe multas pesadas que chegam frequentemente a milhões de reais.

Na edito ria de tecnologia voltamos às boas notícias: o Instituto de Física da Universidade de São Paulo já tem um novo acelerador de partículas funcio­nando, segundo relata o editor Marcos de Oliveira (página 66). Os testes ini­ciais do mícrotron, que acelera elétrons até perto da velocidade da luz, come­çaram em agosto. O equipamento foi projetado e construído por pesquisa­dores brasileiros. Com ele será possível fazer pesquisa básica e com finalidades médicas, como estudos sobre a intera­ção entre radiação e corpo humano. Também em tecnologia, destaque para uma nova ferramenta biotecnológica que permitirá usar marcadores mole­culares para identificar os animais -no caso, bovinos - com predisposição genética para ter carne mais macia, de acordo com reportagem de Evanildo da Silveira (página 70). O trabalho ga­nha importância quando se sabe que o Brasil tem o segundo rebanho do mundo - o primeiro está na Índia - e é o segundo maior produtor de carne, atrás dos Estados Unidos.

A relação entre o Brasil e o automó­vel é o tema da principal reportagem da editoria de humanidades, escrita pelo editor Carlos Haag (página 80). Ele conta que, por décadas, o carro foi transformado em força motriz do pro­gresso nacional e fonte de poder e hie­rarquização. Segundo os pesquisadores entrevistados, mesmo que fosse um bem de consumo ao qual apenas uma parce­la ínfima da população tinha acesso, o carro mobilizou a atenção dos poderes públicos e largas fatias do orçamento em prol do asfalto nas cidades e das es­tradas. Essa origem da introdução do automóvel no Brasil tem efeitos até hoje, já que o frequente comportamento tão pouco civilizado observado no trânsito das cidades brasileiras resulta do fato de todos se sentirem superiores aos pedes­tres apenas por estarem no volante.

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Gonçalves Dias, etnógrafo

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Adornos com bicos de tucano e espelhos coletados pelo poeta

Maior poeta do Romantismo brasileiro pesquisou, escreveu e coletou material sobre índios

NELDSON MARCOLIN

procura pelas origens brasileiras foi uma das motivações do Indianismo, movimento literário que teve o poeta maranhense Antonio Gonçalves Dias e o romancista cearense José de Alencar como seus principais

criadores em meados do século XIX. Gonçalves Dias, porém, levou essa busca para além da literatura. O poeta escreveu um ensaio, coletou material e produziu notas e diários que se perderam no mesmo naufrágio em que ele morreu, no litoral do Maranhão. O autor de um dos mais conhecidos poemas da língua portuguesa, a Canção do exílio, foi também etnógrafo e participou da Comissão Científica do Império, a primeira a contar apenas com especialistas brasileiros.

Gonçalves Dias (1823-1864) nasceu em Caxias, no Maranhão. Em 1838 foi para Portugal terminar os estudos secundários e, em seguida, cursar direito na Universidade de Coimbra. Na Europa conheceu e recebeu influência dos escritores e poetas românticos. Em 1845 voltou ao Brasil e fixou-se no Rio de Janeiro onde ensinou história e latim no Colégio Pedro II. Junto com Manuel de Araújo Porto-Alegre e Joaquim Manuel de Macedo criou a revista Guanabara em 1849, para divulgar o Romantismo.

Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1850 o escritor estava interessado em conhecer a história do Brasil pelo ponto de vista dos seus primeiros habitantes.

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"Ele chegou a ir a Portugal, em missão do IHGB, em busca de documentos que ajudassem a compor uma história brasileira", diz a historiadora da ciência Kaori Kodama, da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz. Foi naquele ano que dom Pedro II encomendou a ele um estudo comparando os indígenas nacionais com os da Oceania. O poeta dedicou-se à tarefa e produziu Brasil e Oceania, usando como base relatos de viajantes. "Ele admirava naturalistas como Von Martius, mas se preocupava em desmentir 'calúnias' e 'exageros' publicados sobre o Brasil no exterior", conta Kaori. O escritor também tinha uma visão diferente da corrente na época e considerava que

a civilização era que havia desvirtuado o "índio puro".

De 1859 a 1860 Gonçalves Dias integrou a Comissão Científica do Império. A meta era levar especialistas brasileiros (geógrafos, zoólogos, botânicos, geólogos e astrônomos) a conhecer a natureza brasileira de modo objetivo. A expedição foi analisada no livro Comissão Científica do Império, organizado pela historiadora da ciência Lorelai Kury (Andrea Jakobsson Estúdio Editorial, 2009). O Ceará foi o estado escolhido para a missão por ter sido pouco explorado. Ao constatar que não havia "tipos puros" entre os indígenas daquela região, o escritor rumou para o Amazonas, onde anotou observações sobre as línguas faladas e enviou objetos etnográficos para o Rio, incorporados depois à coleção do Museu Nacional.

A maior parte do seu trabalho na comissão ficou desconhecida.

O escritor (acima) e estatueta trazida por ele da fronteira com a Venezuela

Peças da Amazônia reunidas por Gonçalves Dias para exposição de 1861

Supõe-se que o material estava no navio que naufragou quando ele voltava da Europa, em 1864. Em 2002, a Academia Brasileira de Letras publicou Gonçalves Dias no Amazonas: relatórios e diário da viagem ao rio Negro, com introdução do escritor maranhense e acadêmico Josué Montello, com informações sobre aquele período.

"A etnografia feita por Gonçalves Dias era muito diferente da que é praticada hoje", afirma o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor do Museu

Nacional. No século XX esse ramo da antropologia se tornou um trabalho de pesquisa de campo sistemático e de contato direto com as culturas que se quer estudar. Já o trabalho científico do poeta era realizado por meio de leituras e comparações entre os relatos de viajantes e naturalistas implicando hipóteses sobre o desenvolvimento e difusão das culturas. "Ele estava sintonizado com seu tempo tanto ao fazer literatura quanto ciência, sendo o impacto de sua obra equivalente à de Castro Alves com o tráfico negreiro."

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Maílson da NóbreÇJa

O economista tranquilo Ex-ministro da Fazenda lança sua autobiografia com os bastidores do poder polít ico nacional

CARLOS HAAG

ós criamos no Brasil uma ideia equivocada de que quem resolve o problema do país são os economistas. São aqueles sujeitos que têm a capacidade de análise profunda, macroe­conômica etc. e tal, e que se sentam à mesa e formulam um programa e assim vai. Ares­ponsabilidade maior de atacar os problemas

de uma sociedade, a sua modernização, enterrar o passado etc., isso não é tarefa de economistas. Isso é tarefa da classe política", afirma o economista Maíl­son da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda entre 1988 e 1990, durante o governo de José Sarney (1985-1990). Uma ponderação importante em face da tendência nacional de conceder superpoderes aos responsáveis pela política econômica. Ao contrário dos "magos" da economia, Maílson pautou sua carreira pela compe­tência do "técnico", como se percebe na leitura de sua recém-lançada autobiografia Além do feijão com arroz (Civilização Brasileira), o retrato de uma trajetória de self made man, iniciada na minúscula Cruz do Espírito Santo, na Zona da Mata paraibana, aos lO anos, como descastanhador de caju e vendedor ambulante.

Seu nome é tão singular quanto sua história, em­bora característico da região: o Ma vem da mãe, Maria José, e o Ilson do pai, o alfaiate Wilson. Sua ascensão seguiu os passos seguros da então mais do que honrosa carreira no Banco do Brasil (BB) que o levaram a Brasí-

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lia, onde foi secretário-geral do Ministério da Fazenda, e, mais tarde, ao posto de ministro de Estado. Foi um dos responsáveis pela modernização das finanças pú­blicas e conseguiu extinguir, como ministro, a famosa "conta de movimento" do BB, um orçamento paralelo que não passava pela aprovação do Congresso.

Esse agir com raízes tecnocráticas, herança de sua passagem pela economia dos governos militares, se manteve em sua gestão pública, marcada sempre por uma visão austera e controlada do fazer econômico. Subiu os degraus da burocracia com passadas modes­tas e contínuas, um perfil muito diverso do de seus colegas de cargo, em geral, como ele mesmo recorda, economistas acadêmicos ou empresários de suces­so. Maílson foi, por muito tempo, o assessor modelo de ministros que duraram pouco em suas funções. Assumiu como ministro da Fazenda numa situação complexa de inflação altíssima, que atingiu temerários 416% em 1987, imenso déficit público e falta de acesso ao crédito internacional, consequência da moratória unilateral da dívida externa decretada por Sarney.

Diante da pasta cercada por expectativas de mu­danças radicais optou pela economia "do feijão com arroz", sem congelamento de preços e salários. En­frentou a ira de um Roberto Marinho, empresário dono da Rede Globo, fez, como era prerrogativa do seu cargo, um plano econômico, o Plano Verão (que,

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como os outros do mesmo período, não funcionou), encerrando sua gestão com um plano de renúncia do presidente da República. Entregou o cargo para Zélia Cardoso de Mello para descobrir, no dia seguinte ao Plano Collor, que não tinha dinheiro para financiar seus pla­nos futuros de uma consultaria, como a que dirige hoje em São Paulo, a Ten­dências. Do alto da sabedoria de quem já lutou com o "dragão da inflação", sem, no entanto, domá-lo, Maílson é otimista sobre o futuro do Brasil, que, afirma, é "intolerante à inflação e ao voluntarismo inconsequente de maus governantes". Embora se considere um "economista prático", Maílson foi pro­fessor visitante da Faculdade de Econo­mia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), onde fez a pesquisa que rendeu o livro O futuro chegou. Leia trechos da sua entrevista à Pesquisa FAPESP.

• Lendo o seu livro sente-se um paralelo entre sua história e a do país em busca da modernização e da redemocratização. Como o senhor vê a trajetória do Brasil em paralelo com a sua? -Acho que o Brasil, nesse tempo, superou muitos de seus obstáculos, entre os quais os das restrições ao de­senvolvimento e o pessimismo sobre o futuro. É um percurso extraordinário porque, da nação que mal conseguia exportar café e açúcar, o Brasil se tor-

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nou uma sociedade complexa, com uma base industrial ampla, ainda que muito ineficiente em algumas áreas, e construiu uma democracia sólida. Isso porque fincamos alicerces que servi­rão de sustentáculo para a construção do nosso futuro . O primeiro deles é a democracia, que se consolidou como um valor da sociedade, ainda que nem todas as pessoas percebam isso. Difi­cilmente haverá no Brasil alguém com coragem de defender a volta do regime militar. É uma democracia jovem, com muitos defeitos, e nosso desafio é r'!­dicalizá-la com reformas institucionais que melhorem seu sistema eleitoral, aumentem a capacidade decisória do Congresso, ampliem a participação po­pular na definição do destino do país, enfim, que sejamos uma democracia como a das sociedades mais madu­ras. O outro alicerce é a estabilidade. Uma das grandes transformações da sociedade brasileira do pós-guerra foi a percepção, finalmente, de que inflação é algo indesejável. Nos tornamos into­lerantes à inflação. Houve uma época em que não era assim. Eu me recordo que aprendi que a inflação tinha um papel no desenvolvimento. Lembro de ter lido uma entrevista do Celso Fur­tado, e eu já era economista, e ele dizia que uma inflação de 15% não fazia mal nenhum, era inclusive uma forma de financiar de maneira mais barata o se­tor público. O pilar mais importante,

porém, é a educação. Até pelo menos os anos 1980 havia uma percepção de que a educação seria o subproduto do de­senvolvimento: bastava o Estado atuar com a proteção à indústria, concessão de subsídios, incentivos fiscais, oferta de serviços de infraestrutura, crédito subsidiado, e assim por diante, que o desenvolvimento geraria o ambiente para a educação. Acho que invertemos essa lógica e há uma percepção cres­cente de que a educação é base, e não consequência do desenvolvimento. Se você olhar o que aconteceu da redemo­cratização para cá, particularmente nos governos Fernando Henrique e Lula, a educação avançou muito. Não tanto quanto se gostaria ou precisa, mas o contingente de analfabetos no Brasil está diminuindo. Não por conta de programas de alfabetização, mas co­mo dizia um amigo meu, economista, muito cruelmente, mas corretamente, o contingente de analfabetos está di­minuindo porque eles estão morrendo. Estão chegando à idade adulta, à velhi­ce, estão morrendo e não estão sendo substituídos. Então a tendência doBra­sil é a redução do analfabetismo formal. Claro que temos que enfrentar alguns tabus, entre eles a ideia de que a edu­cação superior tem que ser universal e gratuita. Quem pode pagar não deve estudar de graça. Eu não me conformo que um filho de um milionário paulista possa entrar na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e estudar de graça. Acho que não é a mensalidade que vai financiar a escola, mas é uma coisa de justiça social. Os pobres não podem subsidiar a educação superior dos ricos nas melhores escolas. Assim, com esses pilares já fixados, cruzamos o Rubicão, não tem mais retrocesso. O Brasil construiu instituições que inibem o retrocesso permanente na gestão da economia brasileira. Você pode ter até retrocessos, mas as ins­tituições funcionam no sentido de reverter e restabelecer a trajetória de estabilidade. Mesmo que tenhamos maus governos no Brasil, e vamos ter, isso não significa uma interrupção do processo, apenas uma pausa que não tira o país dessa sua trajetória. Dentro de duas décadas o Brasil será uma das cinco maiores economias do mundo. O país é muito mais aberto, mais integra­do aos fluxos mundiais de comércio e

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finanças, somos avaliados, acompanha­dos, não apenas por nós mesmos, mas por especialistas internacionais. E esses mecanismos funcionam no sentido de punir eventuais irresponsabilidades na condução da economia.

• O senhor, então, não acredita em pro­blemas no novo governo? -Vamos dar um exemplo concreto: digamos que a nova presidente decida que é contra a ação do Banco Central e como o Banco Central ainda não é for­malmente autônomo ela poderá deter­minar o nível da taxa de juros que acha adequado para manter a estabilidade dos preços. Ao tomar uma decisão dessas, ela emite um sinal de irresponsabilidade e isso acende várias lâmpadas de alerta que vão criar outro ambiente. A confiança no país despenca, os estrangeiros que estão investindo acreditando no nosso futuro vão embora, porque são covardes. Eles sabem "precificar" [riscos], mas não têm o poder de impor qualquer coisa a governos, e a "precificação" do risco significa a fuga de capitais, que produz uma rápida desvalorização da moeda, acarreta uma queda brutal da bolsa de valores, os mecanismos de mercado fu­turo sinalizam uma piora de ambiente e tudo isso recebe uma atenção forte, intensa, da imprensa, dos jornais, da TV, do rádio, e vai reverberando em ondas sucessivas, criando um ambiente de insegurança para o eleitor. O eleitor percebe que a inflação pode voltar, que ele pode perder seu emprego, perder seu patrimônio, e muda de opinião em rela­ção ao governo e a popularidade cai, o que significa dizer: a legitimidade polí­tica do presidente da República e de seu governo, que implica a capacidade de articulação, de condução do país, de go­vernar o país, cai abruptamente. E como a democracia já está consolidada, isso equivale a um suicídio político, porque a popularidade despenca e abre espaço para a ascensão de outra pessoa. A de­mocracia fornece uma blindagem contra a irresponsabilidade. E o Brasil se distan­cia, sob esse aspecto, do populismo lati­no-americano. Isto é, os presidentes da República até têm o poder de fazer coisas erradas, de enveredar por caminhos da aventura, mas eles serão barrados pela operação das instituições. O Brasil é um país muito bem-sucedido, até porque, enquanto a Europa começa sua marcha

Eu tenho a convicção hoje de que nenhum dos planos anteriores ao Real tinha condições de dar certo. Nenhum deles

para a prosperidade por volta do final do século, nós fomos tardios nesse pro­cesso, mas estamos queimando etapas e talvez cheguemos, em mais três gerações, a ombrear, em matéria de bem-estar e democracia, as nações ricas hoje.

• Como é acatar ordens de alguém q~e não é um especialista em economia? -Acho um equívoco no Brasil achar que precisamos de um gestor na Pre­sidência da República. Acompanhei a campanha eleitoral e se evidenciou essa qualidade de gestor tanto na Dil­ma quanto no Serra. O presidente da República não precisa entender de eco­nomia. Na verdade, nem o ministro da Fazenda precisa ser um especialista em economia. O fato de nomearmos mi­nistros da Fazenda economistas é um cacoete do período militar. De 1964 pa­ra cá foram pouquíssimos os ministros da Fazenda que não tinham diploma de economista. É interessante notar que o ministro da Fazenda que foi capaz de coordenar um conjunto de pessoas, de ideias, de ações para pôr fim ao grande mal da inflação era um sociólogo, Fer­nando Henrique Cardoso.

• Como o ministro da Fazenda se rela­ciona com a política, com o Congresso? Em geral, eles se queixam de que os pla­nos econômicos não dão certo por culpa dos políticos. - É um mito que os planos anteriores ao Real não deram certo por questões de dificuldade de relacionamento polí­tico. Eu tenho a convicção hoje de que nenhum dos planos anteriores ao Real tinha condições de dar certo. Nenhum deles. O Plano Cruzado, o mais pro­missor de todos, tinha probabilidade de dar certo próximo de zero. Por uma razão muito simples: um congelamen­to de preços numa inflação altíssima como era a brasileira naquela época, de 15%, 20% ao mês, contexto em que surgiu o Plano Cruzado, provoca transformações também muito inten­sas. A primeira delas, a interrupção da corrosão inflacionária dos salários. A segunda, a criação de um ambiente de confiança, de que a inflação acabou, que o cálculo econômico é possível. Nasce a disposição do sistema finan­ceiro de ofertar mais crédito, porque está mais confiante na estabilidade das regras, na estabilidade da renda de seus clientes. E tudo isso forma um contexto que se associa a uma propensão a con­sumir do brasileiro, que é muito alta, por conta de necessidades não atendi­das, o que produz uma explosão de consumo. E essa explosão de consumo não é correspondida com a ampliação da oferta. A demanda subia de elevador e a oferta de escada. Rapidamente as mercadorias sumiam das prateleiras. Por que o Plano Real deu certo? O pro­blema do descompasso entre oferta e demanda não existia: a demanda subiu de elevador e a oferta também, suprida por importações.

• Uma economia "feijão com arroz" foi novidade num país com a tendência de trabalhar com ideias ''grandiosas"? -A ideia do "feijão com arroz" foi um acidente. Fiz a primeira reunião com a minha equipe antes da posse e discuti­mos. "Precisamos desmontar a ideia de que vamos sair amanhã com um plano, que vamos congelar preços, salários." Sabíamos que não íamos fazer um congelamento, mas era preciso desfa­zer essa expectativa, porque as pessoas começavam a agir preventivamente e isso geraria problema de aumento de

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preços, estocagem de produtos etc. Não havia a ilusão de se fazer grandes transformações no país. E nessa con­versa surgiu esse conceito de "vamos fazer o feijão com arroz", a ideia de que vamos fazer o trivial. Eu quis mostrar que vinha da burocracia e o burocrata não é dado a grandes voos. Na minha primeira entrevista como ministro, uma jornalista falou: "Ministro, qual é sua política?" Eu respondi: "Vamos fazer o feijão com arroz", achando que a entrevista já havia terminado. No outro dia, o Estadão botou na primeira pági­na: "Ministro anuncia política de feijão com arroz". Ficamos preocupados: "Es­cuta, o que vão dizer? Essa turma de burocratas não tem mesmo nenhuma imaginação. Não está preparada para enfrentar os desafios?". Então recebi algumas ligações: "Que sacada! Quem assessorou vocês?':

• O senhor foi sabatinado pelo jorna­lista Roberto Marinho antes de assumir seu cargo de ministro e ele, mais tarde, tentou derrubá-lo de sua posição. Como foi isso? -Figuras como o Roberto Marinho existiram em outros países, inclusive num país de democracia muito sólida, os Estados Unidos: Cidadão Kane é isso, não é? Eu não procurei esse confronto com ele, mas foi a revelação de que o Brasil havia mudado. Ou seja, o doutor Roberto, que foi um grande empresá­rio, acho que o país deve muito a ele, imbuiu-se do poder que possuía e o exerceu de forma muito intensa. To­dos os presidentes da República iam ao aniversário dele, inclusive Lula. Ele se indignou na primeira reunião que tivemos porque, confesso, fui inábil. Ele tinha um projeto de exportação de casas prefabricadas. O governo tinha oferecido o benefício de trocar dívida externa por exportação. Mas interrom­pemos o programa quando ele já esta­va embalado. Roberto Marinho deve ter pensado: "Fui induzido a investir tempo e dinheiro nesse projeto e esse ministro da Fazenda quer mudar a re­gra do jogo". No fundo, ele pensou que iria mudar tudo novamente porque ti­nha acesso à Presidência da República e conseguiu marcar um almoço com o presidente Sarney, que me convi­dou para participar. Cheguei no fim do almoço e aí percebi que ele estava

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O doutor Roberto se juiQava um homem benfeitor do país mais do que era e não admitia ser fiscalizado

tentando gerar um constrangimento com o presidente para restabelecer o programa. Minha inabilidade foi dizer: "Doutor Roberto, esse programa não interessa ao país': Ele se sentiu ofendido e me perguntou: "Ministro, você acha que estou propondo algo contra o pCl­ís?". E nasceu naquele momento uma animosidade. Ele dizia que eu era um ingrato porque ele tinha sido respon­sável por minha nomeação, o fato de ele ter conversado comigo para dar o sinal verde para o presidente me no­mear. A partir daí eu diria que trincou essa relação. Mas, antes disso, eu estava há poucas semanas no ministério e ele me convidou para almoçar com ele lá no Jardim Botânico. Sem eu perguntar, ele disse: "Indiquei o Antônio Carlos Magalhães e o Leônidas Pires para os ministérios, são minhas indicações". Eu fiquei pensando: "Que poder!". Ou ele estava se exibindo ou estava dizendo: "Você é o terceiro". Outros fatores con­tribuíram para azedar essa relação, que foi a ação de um delegado da Receita Federal do Rio de Janeiro. O doutor Roberto se julgava um homem ben­feitor do país mais do que era e não

admitia ser fiscalizado. Ele achava que era tão bom para o país que fiscalizá­-lo era quase uma ofensa. A televisão brasileira foi equipada com câmeras, spots, mesas de edição e tudo mais, grande parte de importação irregular. Certamente o Roberto temia que uma fiscalização pegasse lá, vamos dizer, não sei se era isso, um equipamento sem nota, um equipamento irregularmente importado. Acho que isso o preocupava também. E aí quando entrava o fiscal na TV Globo, ele estrilava. Lembro que, uma das vezes, ele pegou um avião e foi ao presidente protestar. Até que ele, não entendo a razão, decidiu que eu teria que sair. E o presidente come­çou a negociar um pacto social com as principais lideranças do Congresso, em que o governo se comprometia com uma série de medidas. Ao que tudo indica houve uma reunião para fechar o pacto e um senador perguntou ao presidente: "Bom, e com isso temos que substituir a equipe econômica, refazer o ministério". O presidente disse: "Per­feitamente". Um senador ligou para o Roberto Marinho dizendo: "O Maílson está fora". O doutor Roberto, impru­dentemente, foi à redação do jornal às 21 horas e mudou pessoalmente a primeira página com um título que não esqueci jamais: "Inflação derruba Maílson". E aí acho que ficou clara a mudança que ele não tinha percebido: toda a imprensa ficou do meu lado. A reação foi tão forte que ele teve quere­cuar. Enfim, os ministros militares con­versaram com o presidente que ele não podia demitir o ministro da Fazenda naquele momento. Pegava muito mal. E o doutor Roberto cometeu, primeiro, um erro de avaliação e, segundo, não percebeu que fazendo isso me fortale­cia. E aí eu fiquei até o fim. Eu sobrevivi ao Roberto Marinho.

No início do seu livro o senhor diz "como um menino pobre da Paraíba pode chegar e procurar o presidente para ele renunciar e ser levado a sério': Como foi isso? -Acho que o país teria enfrentado uma inflação menor se ele tivesse acei­tado a minha proposta. O que temía­mos, felizmente, não aconteceu. Está­vamos com uma aceleração da inflação, que começava a se aproximar dos SOo/o. Quando as eleições se aproximaram, o processo começou a se agravar. E nós

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e associamos a incerteza das eleições co­mo tendo um efeito na aceleração dos preços. Eu me lembrava bem do que tinha acontecido na Argentina. Me­nem, candidato à Presidência, tinha uma plataforma populista, prometendo um "salariaço", uma irresponsabilida­de total, e foi eleito. No momento em que isso ocorreu, o sistema de preços argentino enlouqueceu e a inflação foi rapidamente a 200o/o ao mês. Na Ar­gentina eram quase sete meses entre a eleição e a posse e o país ia se arrastar por esse tempo todo com uma inflação parecida com a da Hungria. Então hou­ve um acordo entre o presidente Raúl Alfonsín e Menem, e a posse foi ante­cipada. Quando ele assumiu antes do prazo previsto, a inflação acabou. No Brasil, eram três meses entre a eleição e a posse. Temíamos que nesses meses o processo fugisse do controle. Conversei com o presidente Sarney sobre a hipó­tese da sua renúncia. Não porque ele não pudesse governar o país, mas como uma ação para a súbita renovação de legitimidade. E que um presidente elei­to, com grande apoio popular, tivesse as condições de enfrentar o problema de maneira crível e com grande apoio da opinião pública e do Congresso. O presidente ouviu minha argumentação. O presidente disse: "Vou pensar". Um dia me ligou e disse: ''Acho que está na hora de discutirmos essa sua ideia". Fi­zemos uma reunião secreta, em Brasília, com 10 ministros. Foi um debate muito

tenso, com momentos dramáticos, em que as vozes se levantaram. O ministro do Exército achou que era covardia o presidente sair. Ele pediu um tempo para pensar e eu saí com a sensação de que tinha decidido ficar. Hoje acho que foi o melhor, porque poderíamos ter tido um efeito inflacionário danoso à sociedade e à economia menor do que foi, mas eu diria que esse custo foi mui­to inferior ao benefício da conclusão do período de governo, de transição tran­quila, apesar dos dramas da economia e da entrega do poder ao presidente elei­to em ambiente de plena normalidade institucional e política. Eu diria qu~, se hoje voltasse no tempo e me sentasse àquela cadeira, provavelmente estaria sendo contra minha própria ideia.

• Para finalizar, quais são as suas expec­tativas sobre o novo governo? - O discurso da nova presidente no dia da vitória teve um conteúdo muito animador, porque ela assumiu com­promissos muito sérios em áreas fun­damentais. Compromissos com a de­mocracia, com a liberdade de imprensa, com a autonomia das agências regula­doras (algo que, no governo Lula foi considerado um "estorvo"), compro­misso com a gestão macroeconômica responsável, com o câmbio flutuante, superávit primário, com a autonomia do Banco Central. Diria que todos de­vemos dar à nova presidente um crédi­to de confiança. A escolha do ministro

da Fazenda a permanecer no cargo, em princípio, é contraditória com essa ideia, porque ele foi o responsável pe­la deterioração grave da situação fiscal e dos princípios que regem um bom sistema de finanças públicas. Ninguém mais hoje acredita nos números do go­verno. Mas eu também dou o benefício da dúvida. O ministro passou a falar coisas que são incompatíveis com sua própria ação, mas entendo que ele já externa uma orientação recebida da nova presidente. Creio que duas indi­cações nos levam a reforçar esse crédito de confiança. A escolha do Alexandre Tombini para a presidência do Banco Central. Ele é um dos melhores técni­cos do Banco Central. Outra coisa boa é a indicação do Antonio Palocci, um dos mais sensatos membros do PT em questões econômicas. Ter um homem como ele num posto-chave como a Casa Civil é algo que tranquiliza. Ele será uma barreira a eventuais tentativas de desvio dessas bases fundamentais que a presidente anunciou no dia da sua vitória. Mas a presidente assume num ambiente muito desafiador. Ela vai exercer o seu poder sem ter tido a oportunidade de enfrentar um desa­fio parecido ou de passar mais tempo em atividade executiva de governo. A economia, que vinha num ritmo forte, deve desacelerar, porém o emprego e a renda continuarão em alta; a taxa de câmbio ficará estável; a inflação ficará perto da meta, se for mantida a políti­ca econômica; e a taxa de juros voltará a subir já nesse início do ano. Temos um sistema financeiro sólido, resulta­do do antigo Proer e da estabilidade macroeconômica (câmbio flutuante, Banco Central autônomo, superávits primários no setor público, inflação baixa e sob controle) e uma situação externa confortável com reservas inter­nacionais superiores à dívida externa. A presidente tem como desafios reverter a deterioração fiscal e promover inves­timentos em infraestrutura e supôs co­mo pouco prováveis grandes reformas. Mas, como já disse, no Brasil de hoje as instituições inibem o populismo ou o autoritarismo e a legitimidade de­pende da estabilidade econômica, sem esquecer do papel da imprensa, que pune politicamente ações voluntaris­tas inconsequentes. Enfim, o país vai continuar a dar certo. •

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Introdução de outros alimentos durante a amamentação altera o paladar e aumenta o risco de obesidade

RICARDO ZoRZETTO

!LUSTRAÇÕES LAURA TEIXEIRA

s pais têm uma oportunidade rara de in­fluenciar o desenvolvimento dos filhos e de ajudá-los a se tornarem adultos mais saudáveis. Mas é preciso estar atento e agir rápido. Essa chance surge cedo e du­

ra pouco. Começa na concepção e segue por apenas mil dias- os 270 da gestação mais os 730 dos dois primeiros anos de vida. Em princípio, a possibilidade de fazer uma criança que nasce com boa saúde crescer desse modo e assim permanecer por décadas exige a adoção de medidas aparentemente simples: oferecer proteção e aconchego ao bebê e alimentá-lo adequadamente. A alimentação apro­priada inclui uma dieta equilibrada da mãe na gravidez, o aleitamento materno exclusivo nos seis primeiros meses de vida e, a partir daí, a amamentação acompanhada de água, sucos, chás, papinhas e alimentos sólidos ricos em proteínas, vitaminas e sais minerais, como recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS).

A receita não é nova, mas pode evitar problemas graves de saúde mais tarde. Experimentos com roedores indicam que a substituição do leite materno por outros alimentos­outros tipos de leite, inclusive- nessa fase do desenvolvimen­to altera o paladar e instala no organismo um desequilíbrio hormonal que pode durar a vida toda e favorecer o ganho de peso. Já a nutrição correta reduz o risco de desenvolver na idade adulta obesidade e doenças cardiovasculares, ates­tam estudos populacionais conduzidos em cinco países em desenvolvimento (Brasil, África do Sul, Guatemala, Filipinas e Índia). Ainda segundo esses trabalhos, o aleitamento ex­clusivo favorece o desempenho intelectual.

Por algumas décadas equipes desses países, entre elas a do epidemiologista brasileiro César Victora, avaliaram regularmente o crescimento de 10.912 crianças. Aquelas que começaram a receber outros alimentos antes dos 6 meses de idade- o que ocorreu antes do terceiro mês com 69% dos bebês da amostra brasileira- acumularam mais

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gordura corporal ao longo da vida. E quanto mais cedo consumiam papinhas, sucos e outros tipos de leite mais gordura concentravam, o que eleva o risco de problemas no coração e de acidente vascular cerebral, responsáveis por 30% das mortes no mundo, relataram os pesquisadores em setembro no International ]ournal of Epidemiology. "O que mais influenciou o a cúmulo de gordura não foi a duração do aleitamento, mas a precocidade da introdução de outros alimentos na dieta da criança", afirma Victora, professor da Univer­sidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, e da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.

H á quase 30 anos Victora, Fernando Barros e uma equipe de epidemiologistas acompa­nham periodicamente a saúde de todas as

crianças nascidas em 1982, 1993 e 2004 em Pelotas, município de 330 mil habitantes no extremo sul do país. Esse seguimento de longo prazo, conhecido como coorte, levou Victora e colaboradores de outros países a rever anos atrás o padrão adequado de desenvolvi­mento até os 5 anos de idade e a propor uma nova curva de crescimento, reconhecida pela OMS em 2006 e adotada por pediatras de mais de 100 países.

As coortes feitas em Pelotas e em outras regiões do mundo mostraram que as crianças que só recebiam leite materno até o sexto mês de vida cresciam em ritmo diferente das que tomavam mamadeira. Bebês que só mamaram ao peito ganharam peso e ficaram mais altos mais rapidamente nos quatro primeiros meses de vida. Depois se desenvolveram mais devagar. "São crianças saudáveis, mas mais magras", afirma Victora. Já as que receberam leite em pó e outras formulações que tentam imitar o leite humano engordaram mais rapidamente a partir do segundo semestre após o nascimento.

Uma possível explicação para o crescimento ace­lerado tardio é o consumo de mais calorias que o recomendado. Marina Rea, do Instituto de Saúde (IS)

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de São Paulo, e Ana Maria Corrêa, da Universidade Estadual de Campinas, verificaram anos atrás que as crianças que recebiam mamadeiras e outros alimentos nos primeiros meses de vida consumiam até 50% mais calorias que o ideal (ver Pesquisa FAPESP no 123).

"Nunca é demais repetir: o leite materno é o único alimento de que a criança precisa nos primeiros seis meses", diz Victora. Mais rico em açúcares e gorduras do que o leite de vaca, o leite humano contém ainda níveis adequados de proteínas e outros nutrientes para o bebê, além de mais de uma centena de com­postos imunologicamente ativos.

Mesmo assim, não é fácil seguir a indicação da OMS. A participação maior das mulheres no mercado de trabalho, aliada à desinformação sobre como e por quanto tempo amamentar, contribui para que a dieta das crianças mude antes da hora. "Além disso", conta Victora, "muitos médicos não respeitam a orienta­ção da OMS e introduzem cedo na dieta alimentos desnecessários nessa fase da vida".

O resultado é qÚe a proporção de mulheres que amamentam exclusivamente ao peito por seis me­ses no Brasil é baixa, comparada à de outros países. Mas mais alta que a de 10 anos atrás. Hoje 51 o/o das mães alimentam os filhos exclusivamente ao peito nos quatro primeiros meses de vida- eram 36% em 1999- e 41 o/o amamentam até o sexto mês, segundo levantamento do Ministério da Saúde coordenado pela pediatra Sonia Venancio, do IS. Ainda aquém do desejável, esse índice melhorou muito. Em 1974 metade das crianças recebia só leite materno por 2,5 meses. Esse tempo passou para 14 meses em 2006.

Sonia avaliou dados de 2008 de 34,4 mil crianças de todas as capitais e do Distrito Federal e notou que, ape­sar da melhora recente, a evolução é lenta. No primeiro mês após o parto 18% dos bebês já tomavam outros líquidos e aos dois meses metade não mamava só ao peito. "Há muito a fazer': comenta Sonia, que publicou os dados em meados do ano no Jornal de Pediatria.

Os benefícios da alimentação adequada no início da vida não são apenas físicos. Em outro estudo, pu­blicado em fevereiro no Journal of Nutrition, Victor a

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e colaboradores analisaram o desempenho escolar de 7.945 crianças da Índia, da Guatemala, das Filipinas, do Brasil e da África do Sul. As que apresentaram crescimento saudável na gestação, indicador de dieta materna adequada, e nasceram com peso superior ao da média tiveram mais chance de sucesso. Cada 500 gramas a mais de peso ao nascer representaram 2,5 meses a mais de escolaridade na vida adulta e risco 8% menor de repetir uma série. Mesmo as crianças que no parto tinham menos de 2,5 quilos, peso inferior ao desejável, conseguiram bom desenvolvimento intelec­tual quando, com dieta adequada, alcançaram o ritmo normal de crescimento e recuperaram o peso ideal para a idade até o segundo ano de vida. Nesse período, elas ganharam em média 9 quilos, e cada 700 gramas que cresceram além da média significaram cinco meses a mais de escolaridade.

"Nos dois primeiros anos a criança ainda tem oportunidade de crescer acima da média e se tor­nar um adulto saudável se, além da amamentação adequada, receber imunização e boa assistência à saú­de", diz o epidemiologista. Nessa fa-

Só 41% das llrasileiras alimentam

os filhos exclusivamente ao peito

nos seis primeiros meses de vida

se crucial do desenvolvimento, que Victora chama de "mil dias de oportunidade': os órgãos ainda se encontram em formação: os ossos estão se alongando, os músculos se fortalecendo e o cérebro ganhando volume (atinge 70% do tamanho final no segundo ano). "A partir do terceiro ano, o crescimento acelerado acarreta o acúmulo de gordura", explica.

A s mudanças que os epidemiologistas ob­servam usando balanças e fitas métricas começam a ganhar uma explicação fisio­

lógica. Experimentos com roedores vêm ajudando a descortinar os mecanismos bioquímicos pelos quais a introdução de outros alimentos no período de ama­mentação exclusiva leva ao acúmulo de gordura.

Um deles é a mudança no paladar. Em pesquisa orientada por Raul Manhães de Castro e Sandra Lopes de Souza, da Universidade Federal de Pernambuco, a nutricionista Lisiane dos Santos Oliveira interrompeu a amamentação de um grupo de ratos separando-os da mãe no 15° dia após o nascimento, o equivalente a três meses de vida de um bebê humano, e os deixou comer ração à vontade. Periodicamente, os animais foram pesados e o consumo alimentar foi medido, mas não houve diferença de peso nem de ingestão entre os desmamados cedo e os que receberam leite até o 30° dia de vida.

O contraste só apareceu em um teste de preferên­cia alimentar. Assim que os animais atingiram a idade adulta, os pesquisadores deixaram, simultaneamente, duas dietas distintas à disposição dos ratos por alguns dias: a ração padrão do biotério e outra mais palatável (à base de chocolate e avelã), mais calórica e rica em gorduras. Os dois grupos preferiram a dieta mais saborosa à ração comum. Mas os ratos que pararam de mamar antes comeram bem mais, relatam os pes­quisadores em artigo a ser publicado na Behavioural Processes. "Embora não houvesse mudança no peso nem no padrão diário de alimentação dos animais, a preferência por uma dieta mais calórica se manifestou assim que esse tipo de alimento se tornou disponível",

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comenta Lisiane. "No longo prazo a preferência por alimentos com alta densidade calórica pode levar a distúrbios metabólicos", diz a nutricionista.

Outro teste feito pelo grupo de Pernambuco mos­trou que os ratos desmamados aos 15 dias, quando adultos, demoravam o dobro do tempo para se saciar. Após breve jejum, eles comiam continuamente por 42 minutos, enquanto os animais que receberam leite materno até o 30° dia davam-se por satisfeitos em 23 minutos. Segundo o trabalho, que será veiculado pela mesma revista, os roedores desmamados cedo apresentaram ainda alterações no padrão diário ( cir­cadiano) de consumo de alimentos: comiam mais em momentos do dia ou da noite diferentes daqueles em que os ratos amamentados por mais tempo se nutriam, embora o total fosse semelhante.

Por trás das alterações de com-portamento há mudanças hormo­nais e metabólicas. Em trabalhos apresentados nos últimos anos no fournal of Endocrinology e no fournal of Physiology, a equipe do endocrinologista Egberto Gaspar de Moura, da Universidade do Es­tado do Rio de Janeiro, mostrou

Animais desmamados

precocemente desenvolvem

a síndrome metabólica

que o desmame precoce altera a composição corporal e reduz a sensibilidade ao hormônio leptina, que induz à sa­ciedade e à puberdade (leia texto ao lado).

Adotando um modelo experimental diferente do anterior, o grupo do Rio provocou o desmame antecipado aplicando na rata um composto que impede a produção de prolactina, hormônio que induz a secreção do leite, em vez de tirar os filhotes de perto da mãe. Os animais que desmamaram mais cedo chegaram à idade adulta com peso 10% maior, 40% mais gordura total e até 300% mais gordura visceral (que se forma no interior dos órgãos e é mais nociva). Confirmando o efeito deletério da obesidade visceral, os roedores desmamados antes do tempo tinham níveis sanguíneos mais altos de glicose, colesterol e triglicerídeos e taxas menores de HDL, proteína que retira o colesterol do sangue e evita a formação de placas de gordura nos vasos.

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Reunidas, essas alterações configuram o que os mé­dicos chamam de síndrome metabólica, condição que potencializa o risco de desenvolver diabetes e problemas cardiovasculares.

Os animais que mamaram menos, quando adul­tos, também apresentavam níveis sanguíneos de lep­tina três vezes superior ao normal, observou a equipe do Rio. Apesar da quantidade brutal desse hormônio, que é produzido pelas células de gordura e indica ao corpo a hora de parar de comer, a leptina não produ­zia efeito nesses animais. Após jejum de 12 horas, os pesquisadores deram leptina a dois grupos de ratos: um amamentado pelo tempo habitual e outro cujo aleitamento fora interrompido. Os roedores do pri­meiro grupo, como esperado, comeram menos, mas os do segundo seguiram se alimentando - sinal de que não respondiam ao hormônio.

M oura observou ainda outro desequilíbrio hormonal: os ratos desmamados preco­cemente desenvolveram hipotireoidismo.

Eles apresentavam níveis sanguíneos 50% mais bai­xos do hormônio tireotropina, que ativa a glândula tireoide, produtora de hormônios que estimulam o consumo de energia. Segundo o endocrinologista, o hipotireoidismo pode ser consequência da resistência à leptina. Como a leptina age numa região do cérebro chamada hipotálamo, que comanda a produção de outros hormônios (entre eles a tireotropina), a in­sensibilidade à leptina pode afetar o funcionamento da tireoide. "Aparentemente essa alteração hormonal e metabólica é um fenômeno de programação epige-

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nética [alteração no funcionamento dos genes]", diz Moura. Mas ainda é preciso comprovar.

Enquanto não se descobre o que dispara essas alterações e como as controlar de modo eficiente, o melhor é prevenir o problema por meio do aleita­mento exclusivo por ao menos seis meses. Em Recife, a equipe da pediatra Sonia Coutinho mostrou que é possível estimular as mães a amamentarem por mais tempo adotando ações baratas, como o treinamento de profissionais da saúde, em especial os agentes co­munitários do Programa de Saúde da Família, para orientá-las (ver Pesquisa FAPESP n° 119).

Na Universidade de São Paulo, uma equipe do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) tem uma proposta mais ousada, que não previne as alterações metabólicas associadas ao desmame precoce, mas pode amenizar os problemas de saúde por elas provocados. A sugestão é melhorar a dieta do brasileiro incentivando o consumo de frutas, verduras e legumes, que atualmente é inferior a um quarto do recomendado. Uma das razões do baixo consumo é o preço elevado. Rafael Claro, do Nupens, calculou quanto custaria para as pessoas consumir a quantidade indicada desses alimentos, que deveria corresponder a 12% do total de calorias ingeridas. Como resultado, a dieta ficaria 30% mais cara.

Mas, com redução no preço, mesmo os mais po­bres poriam mais vegetais no prato. Em 2007, du­rante alguns meses, a equipe do Nupens montou no Grajaú, um dos bairros mais pobres da cidade de São Paulo, um ponto que vendia frutas e hortaliças por um preço subsidiado. Como se imaginava, o con­sumo desses produtos aumentou. "O custo desses alimentos é uma barreira importante ao consumo", afirma Claro. Como saída, ele propõe que o Estado reduza os impostos sobre esses alimentos e sobre­taxe os ultraprocessados, que contêm conservan­tes, corantes e estabilizantes, além de mais açúcar, gordura e sal. "O dinheiro que o Estado deixaria de recolher", diz, "seria economizado com a redução em tratamentos de saúde". •

Puberdade antecipada Ação do hormônio leptina em região do hipotálamo desencadeia o amadurecimento sexual

A neurocientista brasileira Carol Elias deu um passo para desvendar um fenômeno que alarma os médicos norte-americanos: a antecipação da puberdade feminina. Carol e equipe identificaram a região cerebral em que o hormônio leptina age e desperta o amadurecimento sexual. É o núcleo pré-mamilar ventral.

Anos atrás surgiram pistas de que a leptina, secretada por células de gordura e conhecida por reduzir a fome, induzia o desenvolvimento dos órgãos sexuais e a fertilidade. Sem leptina, camundongos e seres humanos não passavam pelas transformações fisiológicas que preparam o corpo para procriar.

Quando esteve na Universidade Harvard, Carol, hoje pesquisadora da Universidade do Texas, ajudou a identificar as regiões cerebrais que produzem receptores de leptina, proteínas às quais o hormônio se liga e estimula o funcionamento dos neurônios. Entre as regiões do hipotálamo que expressam esses receptores, chamou a atenção o núcleo pré-mamilar ventral (NPV), grupo de células que se conecta a uma área cerebral que produz hormônios sexuais.

Mas comprovar que a ação da leptina no NPV induzia a puberdade demorou. Convidada a integrar a equipe de Joel Elmquist no Texas, Carol e os pesquisadores José Donato Júnior, Roberta Cravo e Renata Frazão desenvolveram camundongos geneticamente alterados para, em certas condições, produzir receptor de leptina só nesse núcleo. Segundo artigo publicado em dezembro no Journal of Clinical lnvestigation, fêmeas inférteis entraram na puberdade com o estfmulo da produção desse receptor no NPV.

Há uma explicação: os neurônios desse núcleo acionam células secretoras do hormônio liberador de gonadotrofinas que, por sua vez, ativa a liberação de hormônios sexuais. Esse efeito ajuda a entender por que há mais meninas com 7 e 8 anos de idade na puberdade nos Estados Unidos. "É possível que as taxas mais elevadas de leptina nas crianças obesas estejam estimulando regiões cerebrais que normalmente só seriam ativadas mais tarde", diz Carol.

Artigos científicos

l. VICTORA, C.G.; et ai. Maternal and child undernutrition: consequences for adult health and human capital. Lancet. v. 371 (9.609), p. 340-57. 26 jan. 2008. 2. DE MOURA, E.G. et ai. Maternal prolactin inhibition during lactation programs for metabolic syndrome in adult progeny. Journal ofPhysiology. v. 587(20), p. 4.919-29. 15 out. 2009. 3. OLIVEIRA, L. S. et ai. Early weaning programs rats to have a dietary preference for fat and palatable foods in adulthood. Behavioural Processes. No prelo.

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ESTRATÉGIAS MUNDO

I JANELA DE OPORTUNIDADE

A África pode tornar-se autossuficiente na produção de alimentos nos próximos 20 anos se adotar técnicas agrícolas lastreadas pela ciência. A afirmação é do relatório Inovação Agrícola na África, elaborado por 20 especialistas e financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates. O continente tem uma janela de oportunidade para tomada de decisões que pode levá-lo a acabar com a fome, diz o documento. Ele cita histórias de sucesso como a de Malawi, um dos países mais pobres do mundo situado na África Oriental. Lá, a importação de sementes melhoradas e o subsídio a fertilizantes fizeram dobrar a área plantada de milho, transformando o país em

exportador do grão em apenas dois anos. "A África agora tem acesso a uma grande quantidade de conhecimento científico", disse à agência SciDev.Net o coordenador do relatório, o queniano Calestous Juma, professor da Universidade Harvard. Conforme afirmou, é preciso reconhecer o esforço de líderes e formuladores de políticas da África para incorporar a tecnologia à agricultura. O relatório foi taxado de otimista em demasia por Bruce Campbell, chefe do programa de segurança alimentar do Grupo Consultivo em Pesquisa Agrícola Internacional, consórcio de centros de pesquisa. "Devemos ter noção de que há tremendos desafios que não são fáceis de superar", disse.

22 • JANEIRO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 179

JÁ ESCREVI ISSO ANTES ...

O autoplágio é uma infração muito mais leve do

que a apropriação de dados alheios, mas a prática

de publicar como originais achados que o pesqui­

sador já divulgara anteriormente vem sendo de­

batida após uma controvérsia surgida na Queen's

University, em Kingston, Canadá. Reginald Smith,

professor emérito de engenharia de materiais, é acusado de publicar pelo menos 20 papers con­

tendo material copiado de artigos que ele próprio

escrevera antes. Pelo menos três artigos foram

cancelados pelos periódicos que os haviam pu­

blicado. "Smith sempre foi um bom cientista, mas

algo aconteceu para ele entrar no negócio dos

papers duplicados", disse à revista Nature Chris

Pickles, também professor de Queen's. O expe­

diente costuma prestar-se a inflar currículos, su­

gerindo uma produtividade maior do que a real. "Embora não seja impróprio reproduzir textos no

tópico sobre a metodologia da pesquisa, espera-se

que os resultados, a discussão e os resumos tragam dados

novos", diz Harold Garner, especialista em bioinformática do

Instituto Politécnico de Virgínia, nos Estados Unidos. Uma

análise feita por Garner na base de artigos Medline mostra

que a republicação de papers está caindo desde 2006. Ele

credita isso à vigilância dos editores de periódicos, que usam

softwares para checar os artigos propostos.

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Page 23: Crescer com saúde

I MUITO DINHEIRO, POUCO PROJETO

Universidades peruanas não estão conseguindo aproveitar uma parte significativa dos recursos públicos destinados a ciência e tecnologia, segundo estudo da Sociedade de Comércio Exterior do país (ComexPeru). A legislação peruana prevê que universidades estatais instaladas em áreas de exploração de petróleo, gás e minérios recebam 20% do total dos rendimentos e ganhos obtidos pelo Estado na exploração econômica desses recursos naturais, além de 5% dos royalties da exploração de minerais. As instituições estão obrigadas a destinar os recursos a atividades de pesquisa científica e tecnológica com impacto em sua região. De acordo com dados da ComexPeru, foi destinado em 2009 às universidades públicas o equivalente a US$ 283 milhões, mas elas só conseguiram gastar em pesquisa US$ 13 milhões. "Depois nos queixamos de que o Estado não destina recursos para a ciência", disse à agência SciDev.Net Rafael Zacnich, economista que coordenou o estudo. Os dados, segundo ele, mostram a baixa capacidade de administrar recursos e tocar projetos para o desenvolvimento regional. Enquanto a Universidade Agraria La Molina, de Lima, investiu 45% dos recursos disponíveis para pesquisa, a Universidade Nacional San Antonio Abad Dei Custo usou apenas 2,2% do quinhão a que teria direito.

I EM BUSCA DE TALENTOS

Um instituto de física teórica canadense anunciou a abertura de cinco novas cadeiras para atrair pesquisadores de primeira linha e batizou-as com os sobrenomes de alguns dos maiores físicos da história: Newton, Maxwell, Einstein, Bohr e Dirac. O Perimeter Institute for Theoretical Physics, na cidade de Waterloo, foi fundado graças a uma doação de US$ 100 milhões feita por Mike Lazaridis, criador do celular multifuncional BlackBerry, em 1999, e desde então busca atrair bons pesquisadores- hoje há 14 deles em tempo integral e 12 em tempo parcial. Mas ainda não conseguiu rivalizar com centros tradicionais em física teórica, como o Instituto para Estudos Avançados, em Princeton. Há dois anos, contratou como pesquisador visitante o astrofísico Stephen Hawking, quando ele se

LABORATÓRIO EM ÓRBITA

Encerrada a fase de mon­

tagem que durou 12 anos, a

Estação Espacial Internacio­nal (ISS, na sigla em inglês)

prepara-se para mergulhar em

sua vocação original e se tor­

nar um laboratório científico

multidisciplínar. O Congresso

norte-americano aprovou uma lei criando uma entidade in­

dependente para gerenciar a

ISS. "Com isso será possível

desenvolver novas categorias

de pesquisa", disse à revista

Nature Jeanne DiFrancesco,

da consultaria ProOrbis, con­

tratada pela Nasa para criar um modelo de administração para

a ISS. A estação já abrigou centenas de experimentos, mas,

segundo DiFrancesco, há ceticismo dos cientistas em relação ao seu potencial. Por isso deve ser lançada uma campanha

demonstrando o compromisso da ISS com as necessidades

dos cientistas. Um dos papéis da entidade independente será

conciliar interesses da Nasa e de instituições de pesquisa, em

moldes semelhantes aos do Space Telescope Science lnstitute,

que supervisiona a pesquisa em telescópios espaciais.

aposentou do posto de professor lucasian? de matemática da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. "Procuramos talentos excepcionais",

disse à revista Nature Neil Turok, atual diretor do instituto. "Queremos reunir massa crítica para enfrentar questões fundamentais", disse.

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 23

Page 24: Crescer com saúde

FIASCO JAPONÊS EM VÊNUS

A Agência de Exploração Aeroespacial do Japão (Jaxa) mergulhou numa crise no dia 6 de dezembro, quando a sonda Akatsuki fracassou em sua tentativa de penetrar na órbita de Vênus sete meses após ter partido da Terra. A próxima chance só virá em seis anos, mas a nave talvez não tenha combustível suficiente para sobreviver até lá. A hipótese mais provável é que a sonda não conseguiu desacelerar o suficiente para entrar na órbita, segundo a agência local Kyodo. Foram investidos 25,2 bilhões de ienes (US$ 300 milhões) no desenvolvimento da Akatsuki, que viajou 520 milhões de quilômetros desde seu lançamento em 21 de maio. O fracasso, que compromete um ambicioso program a de pesquisa sobre a atmosfera de Vênus, é o terceiro problema mecânico enfrentado pela Jaxa em missões a outros astros do sistema solar. Em 1998, uma válvula defeituosa causou uma perda de combustível

na nave Nozomi, impedindo-a de entrar na órbita de Marte. E a sonda Hayabusa, que retornou à Terra em 2010 com uma quantidade diminuta de amostras de asteroide, por pouco não se perdeu. "Estamos fazendo o nosso melhor para abandonar ideias preconcebidas e tentar compreender o que aconteceu", disse à revista Nature um dos astrofísicos responsáveis pela missão, que pediu anonimato.

24 • JANEIRO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 179

CAPITAL DA SEDE

Um relatório da empresa de con­

sultaria McKinsey encomendado

pelo governo do lêmen, país si­

tuado na península da Arábia, diz

que a escassez de água no país

vai causar prejuízos à agricultura

a ponto de extinguir 750 mil em­pregos e deixar sem água a capital

Sana até 2025. A cidade, localiza­

da 2.150 metros acima do nível do

mar, enfrenta o esgotamento de

suas reservas de água subterrâ­

neas. A perfuração indiscrimina­

da de poços exauriu os aquíferos,

disse à agência SciDev.Net Nayef

Abu-Lohom, vice-presidente do

Centro de Água e Ambiente da

Universidade de Sana. Antigamen­

te era possível encontrar água a

20 metros de profundidade. Agora é preciso perfurar 200

metros. "Isso é agravado pela falta de gestão dos recursos

hídricos, usados indiscriminadamente para irrigar as plan­

tações de khat", diz Abu-Lohom, referindo-se a uma planta

estimulante usada por dois terços dos iemenitas. Só em Sana, o

cultivo de khat consome 60 milhões de metros cúbicos de água

por ano, o dobro do consumo das pessoas. Moufeed El Halemy,

do Ministério de água e Ambiente, disse que uma reforma no

setor "vai reforçar a regulação sobre perfurações de poços e a eficiência na irrigação do khat, entre outras medidas".

ACESSO ABERTO NA EUROPA

Pesquisas científicas financiadas pela União Europeia foram disponibilizadas na plataforma de acesso aberto OpenAIRE ( Open Access Infrastructure for Research in Europe) . Lançada na Universidade de Gent, Bélgica, reúne uma rede de repositórios que compartilha documentos e artigos nas áreas de saúde, energia, ambiente, tecnologias da informação e das comunicações, entre outras. "A informação

científica tem a capacidade de melhorar as nossas vidas. E os cidadãos europeus têm o direito de acesso ao conhecimento produzido com recurso de fundos públicos", disse ao jornal O Público Neelie Kroes, vice-presidente da Comissão Europeia e responsável pela Agenda Digital, que coordena a iniciativa. A OpenAIRE conta com uma rede de especialistas e um portal de ferramentas para ajudar os pesquisadores a divulgar on-line seus estudos. A OpenAIRE está disponível no sítio www.openaire.eu.

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Page 25: Crescer com saúde

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I DIRIGENTES NOMEADOS

O então governador de São Paulo, Alberto Goldman, nomeou no final de 2010 Eduardo Moacyr Krieger como vice-presidente da FAPESP e reconduziu Ricardo Renzo Brentani para um novo mandato de três anos como diretor­·presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da Fundação. Krieger é professor emérito da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Programa de Cardiologia Translacional do Instituto do Coração (InCor). Desde agosto de 2007 é conselheiro da FAPESP. Formado em medicina pela

Faculdade de Medicina de Porto Alegre, Krieger foi presidente da Academia Brasileira de Ciências, da Inter-American Society of Hypertension, da Sociedade Brasileira de Hipertensão, da Sociedade Brasileira de Fisiologia e da Federação das Sociedades de Biologia Experimental. Entre os prêmios e condecorações que recebeu estão a Ordem Nacional do Mérito Científico (Grã-Cruz), a TWAS Medal Lectures e o Prêmio Almirante Álvaro Alberto. Ricardo Brentani é professor titular da Faculdade de Medicina da USP, diretor-presidente do Hospital do Câncer A.C. Camargo e coordenador do Centro Antonio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer, um dos Centros

ESTRATÉGIAS BRASIL

FORMAÇÃO DE LIDERANÇAS

Um livro recém-lançado pela FAPESP reúne informações sobre

953 projetas apoiados pelo programa Jovens Pesquisadores

em Centros Emergentes. Criada pela Fundação em 1995, a

iniciativa busca formar novas lideranças científicas. Oferece

oportunidade de trabalho a doutores talentosos com propostas

cientificamente sólidas, das quais se possa esperar a criação

de novos núcleos de pesquisadores em instituições que ainda

não têm tradição em pesquisa ou a criação de novas linhas de

pesquisa em instituições consolidadas. Os projetas abordados

no livro, intitulado Investindo no futuro: o programa Jovens

Pesquisadores, abrangem diferentes áreas do conhecimento:

Ciências Agrárias e Veterinárias (com 88 resumos de pesqui­

sas), Ciências Biológicas (207), Ciências Exatas (261), Ciên­

cias Humanas (79), Engenharias (151) e Saúde (167). O último

capítulo traz uma seleção de reportagens sobre os projetas

publicadas em Pesquisa FAPESP. O programa foi o primeiro

no Brasil a permitir que pesquisadores em início de carreira pudessem solicitar apoio para desenvolver seus estudos sem

que fosse exigido um vínculo empregatício com uma institui­

ção. Para pesquisadores já vinculados a instituições, o apoio é

concedido na modalidade auxílio à pesquisa. Àqueles

sem vínculo, adiciona-se

a concessão de bolsa. O programa permite tam­

bém o investimento na

infraestrutura de pesqui­

sa dos centros, que, co­

mo contrapartida, devem

comprometer-se com as

metas do pesquisador. O

livro está disponível no

endereço: www.fapesp.br/

publicacoes/jp2010.pdf.

de Pesquisa, Inovação e Difusão da FAPESP. Foi diretor do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. Como pesquisador, atua principalmente com estudos relacionados ao papel do nucléolo no processamento de mRNA, à caracterização de mRNAs de colágenos e

à adesão celular e metástase. Entre os prêmios e condecorações que recebeu estão a Ordem Nacional do Mérito Científico (Grã-Cruz), o Prêmio Costa Junior, da Academia Nacional de Medicina, e o Prêmio Ciência e Cultura da Fundação Conrado Wessel.

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 25

Page 26: Crescer com saúde

RIQUEZA DIGITAL

A biblioteca eletrônica SciELO lançou um sítio na internet que disponibiliza em acesso

livre milhares de obras, artigos, mapas e do­

cumentos históricos sobre a biodiversidade brasileira. O Portal BHL ScieLO conta até

o momento com cerca de 110 mil registras

digitalizados e integrará a rede global The

Biodiversity Heritage Library (BHL), consór­

cio que reúne museus de história natural e

bibliotecas de botânica no mundo, como a Academy of Natural Sciences e o American

Museum of Natural History, nos Estados Uni­

dos, e o Natural History Museum, na Ingla­

terra. "A rede mundial já conta com cerca de 130 mil obras e mais 32 milhões de páginas

digitalizadas", disse Abel Packer, coordena­

dor operacional do programa SciELO, man­

tido pela FAPESP em convênio com o Centro

Latino-Americano e do Caribe de Informação

registras sobre biodiversidade

em Ciências da Saúde (Bireme). O projeto

conta com a participação do programa Biota-FAPESP, da

Biblioteca Virtual do Centro de Documentação e Informação

da FAPESP e do Ministério do Meio Ambiente, entre outros.

O endereço da biblioteca é biodiversidade.scielo.br.

I IMAGENS COMPARTILHADAS

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) celebrou em Johannesburgo memorando de

entendimento com a Agência Espacial Sul-Africana ( Sansa, na sigla em inglês), que permitirá a recepção na África do Sul das imagens do satélite sino-brasileiro

26 • JANEIRO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 179

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Cbers-3, programado para entrar em órbita no final deste ano. A iniciativa de proporcionar a países em desenvolvimento o uso de dados do satélite começou a tomar forma em 2007, quando Brasil e China, parceiros no desenvolvimento do satélite, lanç~ram o programa Cbers for Africa. Desde então o Inpe tem firmado cooperações para instalar infraestrutura de recepção de dados em todo o continente africano. O memorando é destinado à recepção e distribuição na África do Sul, mas também beneficiará Angola, Botsuana, Lesoto, Moçambique, Suazilândia, Namíbia, Zâmbia e Zimbábue. O satélite fornecerá dados de desmatamento, de áreas agrícolas e sobre o crescimento de áreas urbanas, apenas para citar alguns exemplos.

I INVESTIMENTO EM SOROCABA

O governo do estado de São Paulo assinou convênio com a prefeitura da cidade de Sorocaba para investir na construção das instalações do parque tecnológico do município. O acordo prevê a liberação de R$ 6 milhões para erguer um edifício de dois pavimentos que abrigará uma incubadora de empresas de base tecnológica e o centro administrativo. O Parque Tecnológico de Sorocaba será implantado em uma área de 814 mil metros quadrados e terá vocação para pesquisa e desenvolvimento de produtos e processos inovadores nas áreas de eletro-metal-mecânica, automotiva, energias alternativas, tecnologia da informação e comunicação (TIC) e farmácia. A Toyota, empresa âncora do empreendimento, iniciou

em2010ac de sua terce no país, em 400 mil me localizada a parque tecr impulsiona setor auton prevê ainda de laborató desenvolvir para eventc

I OS VE~ DO PRE

A Fundaçã• Wessel (FC vencedore5 de Ciência O ganhadc Ciência foi professor< Departam Orgânica c Federal do Sul (UFRC projetas d, catálise e I 160 artigo internacio a escolhid Habr-Gan titular de, FaculdadE Universid É presider Society of and Recta (2008-20] Brasileiro Digestiva Organiza, Gastroen coordena Program< Câncer C e preside Brasileira do CâncE cineasta l Santos g< Membro Brasileir< dos pree1

Page 27: Crescer com saúde

em 2010 a construção de sua terceira fábrica no país, em uma área de 400 mil metros quadrados, localizada ao lado do parque tecnológico, e deve impulsionar pesquisas no setor automotivo. O projeto prevê ainda a construção de laboratórios de pesquisa e desenvolvimento e ambientes para eventos, entre outros.

I OS VE~CEDORES DO PREMIO FCW

A Fundação Conrado Wessel (FCW) divulgou os vencedores do Prêmio FCW de Ciência e Cultura 201 O. O ganhador na categoria Ciência foi Jairton Dupont, professor associado do Departamento de Química Orgânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele desenvolve projetos de pesquisa em catálise e publicou mais de 160 artigos em periódicos internacionais. Em Medicina, a escolhida foi Angelita Habr-Gama, professora titular de cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. É presidente da International Society of University Colon and Rectal Surgeons (2008-2010) e do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva. Foi indicada pela Organização Mundial de Gastroenterologia como coordenadora no Brasil do Programa de Prevenção do Câncer Colorretal. Fundou e preside a Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino. O cineasta Nelson Pereira dos Santos ganhou em Cultura. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi um dos precursores do Cinema

RECONHECIMENTO EM CANCÚN

A jornalista Maria Guimarães, responsá­

vel pela edição de Pesquisa FAPESP On­

line, ganhou o primeiro lugar do Prêmio

de Reportagem sobre Biodiversidade da

Conservação Internacional, entregue em Cancún, no México. A premiação foi um

reconhecimento pelo trabalho jornalísti­

co sobre meio ambiente. O segundo lugar

foi para a jornalista boliviana Mi riam Je­

mio. Maria já havia ganhado o primeiro e o segundo lugares na categoria jornalis­

mo impresso da 10a edição do Prêmio de

Reportagem sobre a biodiversidade da

Mata Atlântica, promovido pela Aliança

para a Conservação da Mata Atlântica.

Na ocasião, as reportagens premiadas

foram "As jardineiras fiéis" (publicada em julho de 2009) e "O futuro da natureza e da agricultura" (outubro de 2009).

Em Cancún, o texto "As jardineiras fiéis" foi escolhido

como o melhor trabalho entre os laureados da Bolívia,

Colômbia, Equador, Peru e Madagascar. "O trabalho dos jornalistas premiados é particularmente importante em razão da riqueza da biodiversidade de seus países", disse

Fred Boltz, da Conservação Internacional.

Troféu: escultura do artista Vlavianos

Novo. Todos receberão R$ 300 mil e um troféu feito pelo artista plástico Vlavianos em cerimônia na Sala São Paulo, na capital paulista, em junho próximo.

I ESALQ TEM NOVO DIRETOR

José Vicente Caixeta• Filho, 48 anos, é o novo diretor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP). Professor titular do Departamento de Economia, Administração e Sociologia (LES), ele foi escolhido pelo reitor da USP, João Grandino Rodas, após ter obtido 101 votos durante a eleição que compôs a lista tríplice de candidatos. Engenheiro civil formado pela Escola Politécnica da USP, Caixeta é mestre em economia pela Universidade New England, da Austrália,

- prêmio de reportagem

doutor em engenharia de transportes pela Politécnica da USP e livre-docente pela Esalq. Foi professor-visitante da Christian-Albrechts­Universitat zu Kiel (Alemanha), entre 1993 e 1994. Para Caixeta, a preferência pelo seu nome demonstra que a Esalq, que hoje tem 22 tipos distintos de formação profissional entre seus professores, passa por uma transformação ao escolher um engenheiro civil para assumir o cargo de diretor. Ele atua no LES desde 1989, onde é responsável por disciplinas das áreas de "Transporte e logística" e de "Pesquisa operacional". Dirigiu o Centro de Informática do Campus Luiz de Queiroz (Ciagri), entre 1989 e 1993, e coordenou o programa de pós-graduação em economia aplicada da Esalq, entre 1995 e 1998 e entre 2008 e 2009. É também coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão em Logística Agroindustrial (Esalq-Log).

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 27

Page 28: Crescer com saúde

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BUROCRATICO Multas acirram divergências entre pesquisadores e autoridades ambientais sobre lei antibiopirataria

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Page 29: Crescer com saúde

ano de 2011 promete um novo round no estra­nhamento entre cientistas e ambientalistas cau­sado pela rigidez da legislação sobre biopirataria que, criada para evitar o desvio das riquezas da biodiversidade brasileira, vem trazendo sérios problemas para várias linhas de pesquisa no país. O Ministério do Meio Ambiente (MMA)

definiu uma nova estratégia para avaliar pedidos de li­cença de pesquisadores interessados em coletar e estudar espécies. De um lado, promete diminuir as exigências burocráticas- permitindo que licenças mais amplas se­jam concedidas e que vários órgãos além do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Conselho Nacional de Desenvol­vimento Científico e Tecnológico ( CNPq), como a Anvisa e o Ministério da Agricultura, possam oferecê-las. A má notícia é que o MMA também ensaia uma ofensiva contra infratores- e os pesquisadores que, nos últimos tempos, levaram adiante seus estudos sem seguir a legislação à risca têm motivos para se preocupar. "Até agora punimos quem descumpriu a legislação mas havia nos procurado para regularizar sua situação. Daqui por diante vamos atrás de quem não se deu ao trabalho de pedir licenças e as penas serão muito mais severas", avisa Braulio Dias, secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA.

A disposição do MMA deverá atiçar a percepção de vulnerabilidade dos pesquisadores, que se torna mais aguda sempre que é anunciada alguma nova punição- a última delas ocorreu em novembro com a autuação, em R$ 21 milhões, da empresa de cosméticos Matura por uso da biodiversidade sem autorização. "Com a multa da Natura, a comunidade acadêmica de pesquisa com acesso ao patrimônio genético ficou extremamente apreensiva. Se a Natura, que é uma empresa, e teria tudo a perder por cometer uma infração judicial, foi autuada, imaginem os pesquisadores", diz Roberto Berlinck, professor do Insti­tuto de Química de São Carlos da USP. Berlinck acompa­nha os efeitos da legislação desde que ela foi criada, como medida provisória, em junho de 2000, e estabeleceu regras de acesso ao patrimônio genético existente no país, ao conhecimento tradicional associado a ele e à repartição dos benefícios resultantes de sua exploração. Logo após a publicação da MP, 10 anos atrás, Berlinck entrou com um pedido de autorização de coleta em diferentes locais. "Minha solicitação levou sete anos para ser atendida. Claro que é necessário haver uma legislação que combata a biopirataria, mas ela não pode ser um obstáculo para o trabalho dos cientistas", diz ele, que, no entanto, vem observando melhoras nos últimos tempos. O principal avanço foi a possibilidade de os pesquisadores pedirem a licença não somente ao Ibama, mas atualmente também

POLÍTICA I CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA I

I

Page 30: Crescer com saúde

ao CNPq, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. "Agora a licença sai rapidamente, mas só permite que se façam coletas para estudos básicos. Se houver alguma possibilidade de aplica­ção comercial, o pedido tem uma tra­mitação muito mais detalhada e longa, uma vez que inclui a possibilidade de se solicitar patentes", afirma Berlinck.

Ciclo de vida - No caso da Natura, a punição ocorreu porque a empresa não quis esperar os trâmites demorados do MMA. Pela regra atual, qualquer acesso a espécies da fauna e da flora brasileiras para pesquisa depende de uma autori­zação prévia do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético ( CGEN), colegia­do vinculado ao MMA e criado tam­bém por uma medida provisória, essa de agosto de 2001. Para um produto ser colocado no mercado, é necessá­ria a permissão do chamado provedor (seja o governo ou uma comunidade tradicional ou indígena) e um contra­to de repartição de benefícios, que é a compensação econômica do detentor da biodiversidade. A Natura diz que 100% de seus produtos têm reparti­ção de benefícios, mas reclama que não pode esperar dois anos por uma auto­rização de pesquisa do CGEN. "Dois anos é o ciclo de vida de um produto no mercado", disse Rodolfo Guttilla, dire­tor de assuntos corporativos e relações governamentais da Natura. "A empresa foi pioneira no Brasil em acordos de repartição de benefícios com comuni­dades tradicionais. Também possui a maioria dos pedidos de autorização de acesso à biodiversidade no Brasil, sendo responsável por 68% das solicitações ao órgão regulador", afirma.

Pesquisadores também receberam autuações por descumprirem a legis­lação enquanto tentavam levar adian­te seus estudos. Em 2006, o professor Massuo Kato, do Instituto de Química da USP, foi abordado por fiscais do Ibama no Aeroporto de Belém e não pôde embarcar para São Paulo, por transportar partes aéreas secas (folhas e ramos finos) de espécimes de Pipere Peperomia, coletadas na Floresta Nacio­nal de Caxiuanã. O material havia sido coletado legalmente por uma botânica do Museu Paraense Emílio Goeldi e se imaginou que a licença para coletá-lo permitia também o seu transporte. Ka-

30 • JANEIRO DE 2011 • PESQU ISA FAPESP 179

Se houver alguma

possibilidade

de aplicação

comercial, o

pedido de licença

tem uma tramitação

mais longa

e demorada

to prepara-se para pedir novas licenças e está fazendo de tudo para seguir a legislação à risca. "Estamos tentando interpretar corretamente as normas para que nossas solicitações de licença para coletas sejam enviadas ao CNPq e ao Sistema de Autorização e Informa­ção em Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, o Sisbio", diz. "De uma forma geral, o processo foi sim­plificado e, para várias atividades que envolvem somente pesquisas básicas, não há necessidade sequer de licenças", afirma. "Por outro lado, até hoje o Sis-

bio ainda não conseguiu regularizar o recebimento de relatórios de licenças concedidas e com vencimento expira­do", complementa.

A exigência de várias licenças e a demora em obtê-las tornam inviáveis a pesquisa, diz a professora Maria Fa­tima das Graças Fernandes da SiJva, do Laboratório de Produtos Naturais da Universidade Federal de São Carlos. Ela cita um estudo de que vem participando para combater pragas de madeiras no­bres, como cedro e mogno, no norte do país. "Introduziu-se o mogno-africano, que é resistente a um inseto que ataca o mogno da região, mas ele agora vem sendo atacado por um fungo. Precisá­vamos trazer para São Paulo o material doente e o fungo, mas isso no aeroporto não passa", exemplifica. A falta de uma licença do Ibama para transportar o material é o problema. "Os funcioná­rios do Ibama são sempre atenciosos, mas há um problema burocrático que parece insolúvel. Temos lutado contra isso na Sociedade Brasileira de Química (SBQ) há um bom tempo. Já mandamos cartas, votamos moções em congressos, mas pouca coisa mudou. A licença do CNPq facilitou um pouco, mas há sem­pre questionamentos e nem sempre é possível deslocar-se com vegetal e inseto de uma região para outra", afirma.

O medo da punição é um detalhe secundário quando se avalia o prejuízo

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Page 31: Crescer com saúde

que a legislação vem impondo à pesqui­sa sobre a biodiversidade no país. Van­derlan Bolzani, professora do Instituto de Química de Araraquara da Universi­dade Estadual Paulista (Unesp ), chama atenção para um paradoxo: ao criar di­ficuldades para a pesquisa básica que se faz nas universidades e institutos de pes­quisa, a legislação está impedindo que se estude em profundidade o universo micromolecular e que posteriormente se descubra se algumas substâncias da biodiversidade podem ter valor real. "A falta de conhecimento mais profundo sobre biologia, química e farmacologia de alguns ambientalistas e fiscais induz a análises simplistas sobre a biodiver­sidade, e a impressão que se tem é que as plantas dos biomas brasileiros são fontes milionárias- folhas representam dólares!", diz Vanderlan. "Em seu estado fundamental, a biodiversidade não tem o valor que lhe é atribuído. A natureza é uma fonte inesgotável de formas de vida, levou muitos anos de evolução, regulação, adaptação, mas não dá nada de mão beijada a ninguém. Nós é que temos que entendê-la, estudá-la em todos os aspectos para que possamos descobrir seu funcionamento e o que ela pode oferecer, ou o que podemos copiar desta riqueza", afirma a professora, que coordena o Bioprospecta, iniciativa de procura de novas moléculas da nature­za que tenham interesse econômico no âmbito do programa Biota-FAPESP.

"Sobrestado" - Vanderlan coordenou um projeto temático financiado pela FAPESP, com 40 cientistas envolvidos, voltado para a busca e o estudo de mo­léculas com potencial farmacológico entre espécies do cerrado e da mata atlântica. O projeto começou em 2005 e se encerrou em 2009 sem que a pes­quisadora obtivesse licença para estudar as plantas de que precisa. O processo foi "sob restado" (interrompido) porque o CGEN julgou não dispor de proce­dimentos internos capazes de avaliar e conceder a autorização. Ainda assim, foram aplicadas multas vultosas, na ca­sa dos milhões de reais, devido a uma confusão. "Houve um mal-entendido. O Ibama considerou que o grupo ha­via enviado patrimônio genético para o exterior quando o que ocorreu, na verdade, foi um depósito de patente via Tratado de Cooperação de Matérias de

Patentes (PCT, na sigla em inglês), em que foi dado prosseguimento em fases nacionais em determinados países", diz Leopoldo Zuaneti, assessor jurídico da Agência Unesp de Inovação. "Estamos elaborando um recurso administrativo e tentando uma aproximação maior com os órgãos responsáveis pela matéria para a regularização do processo", afirma.

Vanderlan Bolzani defende a exis­tência de uma legislação ou mecanismo que proteja as riquezas naturais do país. "Não é à toa que me empenhei muito para obter licença no CGEN, seguindo todo o protocolo. Antes de cientista sou

Ao criar dificuldades

para a pesquisa

básica, a legislação

impede que se

descubra o

verdadeiro valor

da biodiversidade

cidadã e como tal não posso agir fora da legalidade", afirma. "Não coletamos nada desde 2005 devido a um despacho emitido pelo CGEN, não nos dando a licença que pleiteávamos ansiosos, mas nos informando de que o processo es­tava 'sobrestado'. É difícil de entender! A lei não se aplica? Juridicamente, não deveríamos ser multados se desde en­tão nunca nos foi enviado qualquer documento acusando irregularidade na solicitação. Estamos formando re­cursos humanos na área e produzindo pesquisa que elevam o patamar cientí­fico do país nos índices internacionais, usando os extra tos de plantas coletadas na primeira fase do Biota. Fomos, aliás, um grupo pioneiro neste programa da FAPESP, hoje um modelo bem-suce­dido de pesquisa organizada sobre a biodiversidade", conta. Em 2007, Van­derlan foi convidada pela American Chemical Society para ministrar confe­rência num congresso internacional na cidade norte-americana de Las Vegas, onde relatou os problemas de coleta enfrentados pelos pesquisadores brasi­leiros que atuam em produtos naturais e farmacologia. "Um dos pesquisadores que coordenavam o evento enfatizou: professora, venha coletar na América. Nós não proibimos pesquisadores de fazer ciência aqui", disse.

PESQU ISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 31

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Segundo a professora, há uma certa dificuldade do CGEN de lidar com pro­jetas diagnosticados como "bioprospec­ção". "Ultimamente tenho refletido muito sobre o estresse que tem sido fazer pes­quisa em química de produtos naturais e se vale a pena! Penso muito se em meu próximo projeto vou usar esse termo, que é malcompreendido e tem trazido tan­tos problemas. O fato de uma pesquisa vislumbrar algum potencial econômico não significa que esse potencial econô­mico será alcançado. Isso é imprevisí­vel e não faz sentido bloquear qualquer pesquisa que trate da busca de modelos ou protótipos de fármacos, cosméticos, agroquímicos, suplementos alimentares'; afirma. Um caminho, diz Vanderlan, seria expandir o modelo de licença do CNPq, que ela ajudou a testar, como convidada do conselho. "Na época elogiei muito e achei que foi um enorme avanço que poderia ser ampliado para agilizar as licenças para pesquisas com potencial comercial e assegurar que, se adiante surgir uma patente, as partes interessadas tratariam de discutir a repartição de be­nefícios."Vanderlan enfatiza que o Brasil tem uma vocação natural para pesquisa em produtos naturais e que existe um número enorme de pesquisadores atuan­do sem se dar conta de que está ilegal. "Muita gente continua a fazer pesquisa sem perceber que está vulnerável'; afirma a professora. "No Ano Internacional da Biodiversidade, durante a Conferência das Partes, ocorrida em Nagoya, o mun­do comemorou avanços substanciais, in­cluindo a comitiva brasileira, tida como forte negociadora do acordo. Enquanto Nagoya era exemplo de avanço político, a avalanche de multas emitidas pelo Iba­ma para empresas nacionais que geram emprego e riqueza e para instituições públicas que desenvolvem pesquisa de alto nível, e com verba pública, não dá motivo para comemorar", diz.

Coleção -A Extracta Moléculas Natu­rais, empresa especializada em explo­ração da biodiversidade sediada no Rio de Janeiro, também se ressente da bu­rocracia. Em 2004, a empresa obteve do CGEN uma licença para constituir uma coleção de extra tos com finalidades co­merciais, que vem sendo renovada a ca­da dois anos. Na prática, essa coleção já estava pronta, pois a empresa começou a criá-la em 1999, antes das medidas pro-

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visórias. A licença obtida, contudo, não permite que a extratoteca, hoje com 30 mil substâncias potencialmente ativas, possa ser utilizada pela própria Extracta para pesquisar e desenvolver produtos. "A regulação vigente exige que cada pro­jeto seja registrado no CGEN e isso é um processo de pelo menos ll meses, antes que se possa iniciar a bioprospec­ção do banco", afirma Antonio Paes de Carvalho, presidente da empresa e pro­fessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Enquanto isso, a Extracta obteve apoio da Finep e da Faperj para dois projetas de inovação, com poten­cial de realização econômica e parcerias industriais. Ambos os projetas foram registrados no CGEN. Recentemente fo­mos informados de que devem seguir o ritual de ll meses. Deve haver algum problema de informação, pois seguir a instrução ao pé da letra seria um malefí­cio para a possibilidade de utilizar nossa biodiversidade na inovação de fármacos no Brasil", diz Carvalho.

Bois de piranha -Em 1999, a Extracta celebrou um contrato com a multina­cional farmacêutica GlaxoSmithKli­ne, prevendo atividades de coleta para formação da extratoteca, transferência de tecnologia, investimentos na infra­estrutura de triagem robótica de alta velocidade, além de bioprospecção da coleção para isolar pelo menos lO mo­léculas capazes de atingir alvos de in­teresse da pesquisa em saúde humana. "Na época, foi o maior contrato de ter­ceirização tecnológica de uma grande empresa farmacêutica no hemisfério Sul e chegou a ser noticiado na revista Nature. E tudo foi feito respeitando a Convenção da Diversidade Biológica de 1992", lembra Carvalho. Com as medi­das provisórias de 2000 e 2001, o tra­balho da Extracta retraiu-se e a Glaxo optou por não renovar o contrato. "O marco regulatório gerou uma fuga do empresariado internacional da arena da bioprospecção e do aproveitamento de nossa biodiversidade", diz.

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Braulio Dias, o secretário de Biodi­versidade e Florestas, afirma que a le­gislação veio para ficar. "Quem apostar que voltaremos à situação anterior sairá perdendo", ele diz. "O mundo muda, a sociedade é dinâmica e as expectativas da sociedade se refletem no marco legal. Há 100 anos, por exemplo, não havia pedidos de patente no Brasil. Qualquer um se apropriava do conhecimento ge­rado pelos outros. E havia quem achas­se que isso era bom. A patente surgiu como um incentivo para a empresa ter garantias e houve a necessidade de se adequar à nova realidade." Segundo ele, a questão de acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios é parecida. "A Constituição reconhece os direitos in­dígenas, dos quilombolas. E a Conven­ção da Diversidade Biológica apontou a necessidade de assegurar repartição de benefícios. Respeitar esses direitos é importante do ponto de vista ético e ambiental. Se não valorizar a floresta, ela não vai permanecer de pé", afirma.

O governo

quer incentivar

as autorizações

especiais,

extensivas

a todos os

pesquisadores

de uma

instituição

O secretário admite, porém, a pro­cedência de críticas dos pesquisadores e diz que será feita uma revisão dos proce­dimentos internos do CGEN para agili· zar a concessão de licenças. "Na fase ini­cial, as autorizações para uso comercial eram mais demoradas. Tivemos uma curva de aprendizado e, na verdade, ain­da não saímos dessa curva. Os primeiros pedidos sofreram mais, foram bois de piranha", afirma. Uma das frentes que o ministério pretende atuar é o da conces­são de autorizações especiais, extensivas a todos os pesquisadores de uma insti­tuição. "Hoje esse tipo de autorização já é possível e a intenção é aperfeiçoar e desburocratizar a avaliação", diz Dias. O secretário também concorda com uma crítica contumaz à legislação, que é de exercer controle e estabelecer penas, mas não criar instrumentos de incen­tivo à pesquisa. "Temos de ampliar os esforços de pesquisa. O governo come­çou a fazer isso, ao lançar programas como o PPBio e o Sisbiota, mas não é

suficiente", diz. O secretário referiu-se ao Programa de Pesquisa em Biodiver­sidade (PPBio), criado pelo MCT para dar suporte a coleções e a inventários biológicos e financiar projetas em ma­nejo sustentável da biodiversidade e bioprospecção, e ao Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade (Sisbio­ta), rede de pesquisa com a finalidade de aumentar o conhecimento sobre a biodiversidade, lançado com recursos do governo federal e de 18 fundações estaduais de amparo à pesquisa, entre as quais a FAPESP. ''A ação do Ibama é um paradoxo. É o governo autuando o governo. Sem tornar o sistema de regis­tro eficiente, as ambições do PPBio e do Sisbiota poderão ficar comprometidas", diz Vanderlan Bolzani.

Marco definitivo -Ainda que a legisla­ção tenha vindo para ficar, Braulio Dias afirma que ela precisa ser aperfeiçoada. "Medida provisória é legislação de ur­gência. É preciso votar um marco defi­nitivo", afirma. Essa tarefa não será fácil nem mesmo dentro do governo federal. Em 1995, a senadora Marina Silva apre­sentou um primeiro projeto de lei sobre recursos genéticos e o Congresso iniciou um debate sobre o assunto. A discussão acabou atropelada pela edição das medi­das provisórias de 2000 e 2001, mas em 2004 o CGEN encaminhou à Presidência da República um anteprojeto para regu­lar o assunto. As divergências entre o Mi­nistério do Meio Ambiente e as pastas da Ciência e Tecnologia, Agricultura, Defesa e Relações Exteriores levaram o projeto à gaveta. Para Braulio Dias, a aprovação do Protocolo de Nagoya (ver Pesquisa FAPESP no 178) traz boas perspectivas para a mudança da legislação brasilei­ra. "Não será necessário tanto controle para ver se o material saiu ilegalmente do Brasil, pois os países que receberem esse material terão legislações restritivas também", afirma. Os pesquisadores pre­ferem não esperar, pois serão necessários ao menos dois anos para que o acordo de Nagoya comece a vigorar. "É necessária uma grande mobilização de pesquisa­dores, instituições de ensino e pesquisa e agências de fomento para discutirmos com o CGEN uma mudança radical na legislação", afirma Carlos Joly, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas e coordenador do programa Biota-FAPESP. •

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urante a tarde da sexta-feira dia 10 de dezem­bro em Cancún, no México, a atmosfera era de desânimo. Último dia da 163 Conferência das Partes sobre mudanças do clima, a COP-16, tudo levava a crer que não seria possível um acordo, sobretudo devido à resistência da Bolívia e da Venezuela. O jogo começou a virar

às 18 horas, quando a chanceler mexicana Patricia Es­pinosa, presidente da conferência, apresentou os docu­mentos elaborados sobre o Protocolo de Kyoto e as ações de cooperação de longo prazo (LCA) e não permitiu discussões na plenária do prédio Azteca, sede de parte das reuniões. Ao adiar a sessão por duas horas para que o trabalho se desse em grupos menores, foi aplaudida por vários minutos pela maior parte dos delegados dos cerca de 190 países presentes. Um ano antes, na COP-15 em Copenhague, foi nesse momento que a conferência desmoronou em discordâncias incendiadas. "Nos 11 anos em que venho participando das negociações ligadas ao clima, nunca tinha visto um apoio em massa como a me­xicana teve", diz a estatística Thelma Krug, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudan­ças Climáticas (IPCC). Foi o sinal para uma mudança de ânimos e para um esforço final de trabalho no texto que seria aprovado- ainda sem o aval da Bolívia- cerca de 1 O horas depois.

Pouco antes da chegada da mexicana, Thelma, co­mo parte da equipe técnica da delegação brasileira, se preocupava com discordâncias de alguns países sobre as

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propostas em relação às emissões decorrentes de quei­madas de florestas e mudanças no uso da terra. "Depois de Copenhague, em que não se conseguiu um acordo, precisávamos sair de Cancún com algum resultado", co­mentou depois da conferência. O texto aprovado, mesmo que ainda distante dos anseios gerais, é fonte de alívio. "Saí confiante de que o processo está vivo." Consciente de que é melhor construir resultados ao longo do tem­po, a pesquisadora do Inpe comemora a aprovação do texto sobre Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação, o REDD+, que destina fundos para que países compensem emissões com projetos de redução de desmatamento.

O processo da conferência é comparável ao futebol, diz Paulo Gustavo Prado, diretor de Política Ambiental da organização não governamental (ONG) Conservação Internacional (C I) do Brasil, integrante técnico da dele­gação brasileira na COP. "É como uma final de campeo­nato cujo placar se mantém em 2 a 2 até os 45 minutos do segundo tempo", compara. "Nas últimas oito horas de uma conferência, que correspondem aos pênaltis, é que a vontade política fala mais alto, abandonando diferenças menores." A delegação boliviana protestou até o final, mas num desfecho coerente com a transpa­rência e firmeza com que conduziu as duas semanas de reunião, Patricia Espinosa declarou que um único país não deveria impedir avanços, mesmo que modestos. Na falta do apoio de outros países, a bola afinal entrou: gol para o combate às mudanças do clima por meio do RE­DD+. Um dos avanços importantes é o estabelecimento

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do Fundo Verde, que contará, até 2020, com US$ 100 bilhões anuais para finan­ciar projetos de redução de emissões, adaptação e transferência de tecnologia com o objetivo de ajudar os países me­nos desenvolvidos a se adaptarem às já inevitáveis mudanças do clima.

Ainda não está definido quanto ca­da país desenvolvido contribuirá nem quais serão contemplados. Para Paulo Prado, o Brasil está numa posição pri­vilegiada, uma vez que pode (e deve) avançar no processo de redução do des­matamento e das emissões decorrentes da mudança do uso da terra. "Temos a capacidade científica e condições de orçamento interno." Prado acredita que o Brasil está bem encaminhado na direção correta, já que as metas assu­midas pelo governo- reduzir, até 2020, o desmatamento da Amazônia em 80% e do cerrado em 40%- devem ser atin­gidas quatro anos antes do esperado, de acordo com previsões do Minis­tério da Ciência e Tecnologia. É um ponto importante, afinal entre 1990 e 2005 61% das emissões de carbono do Brasil se deveram a desmatamento de floresta tropical. O especialista da CI afirma que o país tem boas condições para trabalhar nos três pilares do acor­do- mitigação, adaptação e redução de emissões - controlando emissões enquanto promove um crescimento apoiado em bases sustentáveis.

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Recuperação

de confiança

no processo

multilateral é a

grande conquista

da conferência

de Cancún

Ambientalismo lucrativo- "Não se tra­ta de amor cego pela natureza", afirma Prado deixando o romantismo de lado. ''A mitigação e a adaptação em relação ao clima envolvem forte interesse social e econômico." E haverá lucros e oportu­nidades na transferência de tecnologia para os planos de adequação dos países com economias emergentes. Essa trans­ferência de fundos já acontece, mas não o suficiente, como afirmou o presidente da Guiana, Bharrat Jagdeo, em evento sobre REDD+ paralelo à COP-16. Seu país tomou a dianteira numa economia

baseada em valorizar a floresta, mesmo que signifique um crescimento econômi­co mais lento. Mas a estratégia só pode funcionar se o financiamento se tornar mais eficiente. "Mostramos que atingi­mos nossas metas, mas isso não significa que receberemos os fundos", protestou.

Países que não têm a riqueza de florestas também podem entrar no processo se concentrando em desen­volver novas fontes de energia, segun­do o meteorologista kuwaitiano Essa Ramadan, pesquisador do Instituto de Meteorologia do Kuwait e integrante técnico da delegação de seu país. "É preciso que nos tornemos verdes", afir­ma o pesquisador. É possível, acredita, desde que os políticos e os homens de negócios ouçam o que a ciência tem a oferecer. Esse tipo de visão não é problema nem mesmo para um país cuja economia se baseia no petróleo. "Há muitas coisas para se fazer com petróleo além de queimá-lo", lembra Ramadan. Ele defende que se invista em usos alternativos, além de mudar a matriz energética para solar e eólica.

No Kuwait, assim como em muitos outros países, as mudanças do clima já se fazem sentir. O meteorologista informa que, até os anos 1980, o res­sequido país recebia em média 125 mi­límetros anuais de chuva. Depois disso os índices foram caindo e hoje a média está em 115 milímetros por ano. Uma mudança perigosa para uma região de água já tão escassa. "No inverno che­gamos a zero grau Celsius (°C), mas no verão muitas vezes a temperatura vai aos 49°C", conta. "Em 2010 tivemos uma sequência de quase um mês com essa temperatura." Com isso aumenta a incidência de tempestades de pó que chegam a altitudes e distâncias suficien­tes para danificar aviões em voo sobre a Europa, e os problemas de saúde se multiplicam. "É difícil fazer projeções de mudanças no clima, são muitos os fatores envolvidos", comentou, no ônibus para o centro da conferência, depois de traçar com o dedo, sobre a tela de um iPad, uma série de curvas fictícias de emissões de gás carbônico até o ano 2050. Conforme a projeção ali improvisada, o programa lhe dava quantos graus o mundo estará mais quente, em média. Segundo o aplicativo que se prestava a testar, o resultado era quase sempre mais de 2°C, o máximo

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almejado por quem teme as consequên­cias do aquecimento, a não ser que fosse bem ousado nas reduções. "É pouco realista", lamentou.

Na busca por reduzir emissões, já em Copenhagen fico u definido que os países deveriam produzir inventários de quanto lançam na atmosfera. A ideia fico u reforçada agora, mas de acordo com Thelma Krug, que colabora com a produção do relatório brasileiro jun­to com uma equipe do Ministério da Ciência e Tecnologia, ainda não está claro quem vai pagar pela sua elabo­ração nos países em desenvolvimento. Agora se busca reduzir o prazo para a produção de inventários, talvez a cada dois anos. O Brasil entregou em Can­cún o documento sobre emissões entre 1994 e 2002, com estimativas até 2005. Segundo a pesquisadora do Inpe, em breve o país será capaz de gerar infor­mações mais detalhadas, com base em dados do Inpe, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outras

México e ONU: anfitriões da COP-16

instituições. "O Brasil está assumindo de forma doméstica um compromisso maior do que o exigido e faz avaliações mais rigorosas até do que muitos países desenvolvidos", afirma.

Vitória apertada - Mas a regulamen­tação internacional avança devagar. O acordo obtido na madrugada do dia 11 de dezembro foi fraco no que toca à limitação de emissões, avalia o diplomata Sergio Serra, até dezembro embaixador extraordinário para a mu­dança do clima. "Isso já se sabia, ago­ra não há condições para metas mais ambiciosas, como as preconizadas pelo IPCC, devido ao momento político nos Estados Unidos e à crise econômica na Europa", afirma o diplomata cujo cra­chá pendia, em Cancún, de um cordão que dizia "Kyoto: just do it", e que me­dia o quanto andava pela conferência com ajuda de um aparelhinho preso ao cinto, parte de uma campanha da ONG Greenpeace que preconiza que se caminhe mais e se fale menos. Ele prevê ainda que um acordo assim ainda não está no horizonte próximo, visto que 2011 é ano pré-eleitoral nos Estados Unidos e sem a sua adesão outras gran-

des potências continuarão hesitando em assumir grandes compromissos. "Falar de mudança do clima, lá, é co­mo falar de aborto ou de maconha, há muitos interesses em jogo." Avançou-se, portanto, o quanto era possível dentro da conjuntura internacional.

Mesmo assim, para o embaixador a saída está no contexto da Organização das Nações Unidas, a ONU. Por isso, a recuperação da confiança no processo multilateral, desacreditado em Cope­nhague, é justamente, para ele, a grande conquista da COP-16. Neste ano devem acontecer pelo menos três grandes reu­niões em preparação para a COP-1 7 em Durban, na África do Sul.

Para o climatologista do Inpe Car­los Nobre, coordenador do Programa FAPESP sobre Mudanças Climáticas Globais, ainda não é hora de comemo­rar. Ele atribui o otimismo pós-Cancún à baixa expectativa que havia em re­lação aos resultados da conferência. "Mas uma somatória de micropro­gressos não equivale necessariamente a um macroprogresso", alerta. Para ele, avanços incrementais não são suficien­tes para se evitar as consequências das mudanças climáticas. "É necessária uma mudança paradigmática, que só pode ser atingida por um grande acordo global", afirma. O estabeleci­mento do Fundo Verde é um avanço, mas não além do que se esperava. É preciso também mudar com urgência a matriz energética e entrar para valer

• na economia de baixo carbono. Até 2020, US$ 100 bilhões podem

estar longe de ser suficientes. "O Fundo Verde é uma proporção da nossa ina­ção; se não houver mitigação, os custos se tornarão proibitivas na escala mun­dial", diz Nobre. E mesmo que metas sejam cumpridas, em 2020 o mundo te­rá um enorme excesso de emissões em relação ao que seria necessário, ideal­mente abaixo dos níveis de 1990. Ele alerta que o clima muda mais depressa do que as negociações, mas concorda com Sergio Serra num ponto: avanços reais só podem vir de um grande acor­do multilateral. Vale lembrar que o jogo só termina no apito final. •

(*) MARIA GuiMARÃES viajou para Can­cún a convite da Conservação Internacio­nal (mais informações na página 27).

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 37

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[ INTERNACIONALIZAÇÃO ]

Interesse em diversidade

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Grupo da Unesp em Rio Claro é referência para biólogos estrangeiros

laboratório do zoólogo Célio Fernando Bap­tista Haddad, professor do Instituto de Bio­ciências de Rio Claro da Universidade Esta­dual Paulista (Unesp ), tornou-se referência para pesquisadores de várias nacionalidades interessados em participar de estudos so­bre a biodiversidade brasileira. Nos últimos

tempos, ele recebeu estudantes e pesquisadores dos Estados Unidos, Alemanha, Argentina e Portugal, apenas para citar alguns exemplos. "Minha rede de colabo~adores internacionais começou a crescer de­pois que passei um período sabático na Universidade da Califórnia, Berkeley, em 1997", diz Haddad, que é membro da coordenação do Programa Biota-FAPESP. "O Brasil, como país megadiverso, é uma plataforma de pesquisa importante. E meu grupo foi se tornando um interlocutor de vários pesquisadores estrangeiros. Eu praticamente não tenho tido trabalho de procurá­-los, pois muita gente me procura", afirma.

A trajetória acadêmica de Haddad credenciou-o a fazer as parcerias. O foco principal de sua pesquisa são os anuros, ordem de animais que inclui sapos, rãs e pererecas, cuja taxonomia e comportamento serviram de mote para uma extensa produção acadê­mica, que já reúne mais de 100 trabalhos em revistas indexadas, com 1.675 citações associadas. Sua coleção científica, a terceira maior do Brasil, tem cerca de 30 mil exemplares e 700 espécies de anfíbios. Ele pró­prio já descreveu mais de 30 espécies de sapos, rãs e pererecas, mais do que as que existem no Canadá.

Esta série da pf

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Esta é a quinta reportaQem de uma série sobre a internacionalização da pesquisa científica em São Paulo

A mata atlântica abriga grande abundância de anuros, com os mais diversos tamanhos, cores e vozes. Essa diversidade envolve dezenas de estratégias reprodu­tivas, ciclos de vida, composições químicas e estados de conservação. Para estudar essa imensidão, Haddad trabalha com estudantes e colaboradores, que em conjunto buscam desvendar a riqueza natural da flo­resta brasileira- o pesquisador e sua equipe produ­ziram um CD com amostras do canto de 70 espécies de sapos, rãs e pererecas da mata atlântica. Em 2006, Haddad participou de uma iniciativa internacional que mudou a classificação dos anfíbios: o Amphibian tree oflife, publicado em 2006 no boletim do Museu Americano de História Natural. "Havia outro grupo, apoiado pelo NSF americano, que tinha sido contra­tado para fazer esse trabalho, mas nós publicamos na frente, com apoio da Nasa" diz Haddad.

Até recentemente, Célio Haddad abrigava em seu laboratório dois pesquisadores estrangeiros que obti­veram auxílios no programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes da FAPESP: o argentino Julian Faivovich e o português João Alexandrino. Ambos permaneceram em Rio Claro por cerca de quatro anos, seguem vinculados ao programa de pós-graduação da Unesp orientando estudantes, mas trabalham em outras instituições. Alexandrino passou num concur­so e se tornou professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Diadema, enquanto Faivovich retornou à Argentina, como pesquisador do Museu Argentino de Ciências Naturais Bernardino

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Rivadavia. "O programa Jovens Pes­quisadores é muito importante, pois ampliou nossa capacidade de atrair ta­lentos de fora", diz Haddad. Lançado em 1995, o programa busca estimular a independência e o amadurecimento de doutores, naquela fase da carreira em que se enfrentam percalços co­mo a falta de vínculo empregatício e as dificuldades materiais para liderar projetas robustos. Nesse programa, um recém-doutor com currículo excelente e capacidade demonstrada para criar um novo grupo de pesquisa num cen­tro emergente pode receber auxílio de valor significativo para seu projeto e, caso não tenha vínculo empregatício com a instituição na qual desenvolve suas atividades, também uma bolsa com duração máxima de quatro anos, além de uma soma anual destinada ao financiamento de viagens para partici­pação em eventos e atividades de inter­câmbio com centros no exterior.

Filogeografia- Entre 2001 e 2004, João Alexandrino fizera um estágio de pós­-doutoramento na Universidade da Ca­lifórnia, Berkeley. "Na Califórnia, me sugeriram que viesse para o Brasil, onde poderia desenvolver um trabalho origi­nal, e que procurasse o Célio Haddad", diz Alexandrino, cuja especialidade é a filogeografia, o estudo geográfico da diversidade genética, que permite inferir a história das populações no tempo e no espaço. "Havia, na época, poucos trabalhos usando ferramentas moleculares em estudos sobre a diver­sificação da biodiversidade", afirma. Haddad gostou do perfil do biólogo português e viu no interesse do pesqui­sador a oportunidade de reforçar seu grupo nesse campo do conhecimento. Alexandrino foi para Rio Claro estudar padrões filogeográficos de seis espécies de anuros com ampla ocorrência na mata atlântica. Ele passou o primeiro ano com uma bolsa da União Europeia e obteve em 2005 o apoio da FAPESP. "Fiquei admiradíssimo com o progra­ma Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes. Uma das razões de ter dei­xado os Estados Unidos foi justamente a impossibilidade de ser responsável por um projeto. E o que me oferece­ram aqui era exatamente a chance de

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Haddad trouxe

um pesquisador

portuquês e

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proqrama Jovens

Pesquisadores

em Centros

Emerqentes,

da FAPESP

liderar um projeto. Consegui nuclear um pequeno grupo de pesquisa que contribuiu para a formação de alunos de mestrado e de doutorado", diz. Para Alexandrino, a internacionalização da pesquisa brasileira está tomando con­tornos semelhantes aos que ele teste­munhou em Portugal, com a integra­ção do país à União Europeia. "O Célio é extremamente aberto a colaborações internacionais, o que ajuda o grupo' a se tornar referência", afirma.

Já Julian Faivovich é especialista em filogenética, que é o estudo das relações evolutivas entre espécies conhecidas, e trabalhava no Museu Americano de História Natural. "Conheci o Julian ainda como aluno de graduação na Argentina e me impressionou a dedi­cação com a qual ele desenvolvia suas pesquisas já nesta fase. Posteriormente soube do trabalho fora do comum que ele desenvolvia nos Estados Unidos co­mo parte do seu doutorado, o qual ter­minou em 2005. Ele pensava em voltar para a Argentina, mas sabia do seu inte­resse em trabalhar no Brasil. Procurei-o e propus que viesse trabalhar comigo. Disse: venha que você vai ter recurso", diz Haddad, que o aconselhou a solici­tar o auxílio ao programa Jovens Pes­quisadores em Centros Emergentes.

O doutoramento de Faivovich na Columbia University versou sobre a filogenia da família Hylidae, as pere­recas, e de um gênero chamado Sci­nax, que são encontradas do México até a Argentina. "Eu aceitei o convite porque já conhecia o Célio. Tínhamos trabalhado juntos durante minha tese. E, além disso, o Brasil combinava duas circunstâncias únicas: é o país com maior diversidade da família com que mais trabalho, a Hylidae, e tinha tam­bém as pessoas que mais conhecem sua taxonomia e biologia", explica. Ele elo­gia o programa Jovens Pesquisadores. "É dos melhores que eu conheço e acho muito valioso que a FAPESP mantenha essa iniciativa", diz. A presença do pes-

Célio Hé colabore

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Célio Haddad: colaborações

quisador argentino ajudou o grupo de Haddad a tornar mais robusta a pes­quisa em filogenia. "Embora o Célio já tivesse muito interesse no assunto, essa linha de pesquisa não estava tão desen­volvida como outras. Agora há vários estudantes com interesse em filogenia, inclusive eu oriento com o Célio dois alunos de lá", afirma.

Temporadas - A teia de colaborações criou situações curiosas. Atualmente, o laboratório de Célio Haddad está recebendo dois estudantes de dou­torado, um da Universidade Técnica Braunschweig, na Alemanha, e outra da Universidade do Porto, em Portu-

gal, que passam temporadas anuais em Rio Claro realizando estudos de campo. Os dois doutorandos são brasileiros que procuraram o exterior para aperfeiçoar sua formação, mas acabaram retornan­do ao Brasil graças ao elo que seus orien­tadores europeus mantêm com o grupo de Rio Claro. Marcelo Coelho Gehara, de 28 anos, fez mestrado na PUC do Rio Grande do Sul em filogeografia de leões­-marinhos. Em 2009 conseguiu uma bolsa de uma fundação católica alemã e foi admitido no programa de douto­rado de Braunschweig, sob orientação do biólogo Miguel Vences. "O Miguel e o Célio se conhecem e, como queria trabalhar com anfíbios, a aproximação foi natural", diz Gehara, que pretende seguir fazendo pesquisa na Europa depois que concluir o doutoramento. Em Rio Claro, ele trabalha no mesmo ambiente de Tuliana Oliveira Brunes, bióloga graduada pela Universidade Católica de Goiás, que desde 2006 se transferiu para a Universidade do Por­to, onde concluiu mestrado em 2009 com um estudo da diversificação de um complexo de anuros, orientada por João

Alexandrino, no Brasil, e por Fernando Sequeira, em Portugal. Atualmente está fazendo doutorado, com bolsa de uma fundação vinculada à Universidade do Porto. "Como queria estudar anfíbios endêmicos da mata atlântica, parte de minha pesquisa é feita no Brasil", afirma Tuliana, que planeja retornar ao país quando concluir o doutoramento. Fer­nando Sequeira, que trabalha na Uni­versidade do Porto, faz pós-doutorado sob a supervisão de Haddad.

Haddad também mantém colabo­rações produtivas com duas pesquisa­doras dos Estados Unidos. Kelly Zamu­dio, pesquisadora do Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade Cornell, frequentemente passa temporadas no Brasil- sua pró­xima estada deve acontecer em meados de 2011. Um carro utilizado pela equipe de Haddad para fazer estudos de campo foi cedido pela Universidade Cornell, como parte da parceria. Em colabora­ção com Haddad, Kelly liderou um pro­jeto financiado pela Fundação Nacional de Ciências norte-americana (NSF, na sigla em inglês), em que compara três espécies de anuros com níveis diferen­tes de especialização ecológica: uma que vive somente em bromélias, outra que circula por qualquer lugar ao longo da mata atlântica e uma terceira que depende de áreas mais úmidas para se reproduzir. O pesquisador também de­senvolve um projeto importante com a bióloga brasileira Ana Carolina Carna­val, doutora em biologia evolucionária pela Universidade de Chicago e atual­mente pesquisadora da City University de Nova York. "Nós estamos estudando anfíbios de baixada e de altitude para tentar entender como se processou a evolução nestas condições. Este proje­to envolve alunos e colegas de outras universidades do Brasil e dos Estados Unidos e já resultou em um artigo na revista Science", diz Haddad. O estudo, publicado em fevereiro de 2009, utiliza dados coletados por Haddad e explica a alta biodiversidade do sul da Bahia por meio da antiguidade de sua floresta. A vegetação de mata atlântica permane­ceu ali, mesmo durante o auge da últi­ma era glacial, há 21 mil anos. •

FABRÍCIO MARQUES

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 41

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LABORATÓRIO MUNDO

A LUZ CURVA DE UM QUASAR

O e-Merlin, um conjunto de radiote­lescópios no Reino Unido, começou a funcionar efetivamente. A primeira imagem produzida (ao lado) exibe a luz emitida por um tipo de galáxia co­nhecida como quasar, um objeto astro­nômico muito energético (à direita, na

imagem), que libera centenas de vezes mais luz que uma galáxia inteira com bilhões de estrelas. A imagem mostra que a luz do quasar se curva ao redor de uma galáxia, exemplificando a cur­vatura do espaço prevista por Einstein. A curvatura do espaço resulta em uma lente gravitacional, que produz várias imagens do mesmo quasar. A luz do quasar viajou 9 bilhões de anos antes de alcançar a Terra. O e-Merlin, formado por sete radiotelescópios espalhados por até 220 quilômetros que funcionam como um só, reúne 300 astrônomos de 20 países interessados em estudar, entre outros temas, o nas­cimento e a morte de estrelas, buracos negros, evolução de galáxias e planetas jovens.

Açúcares e proteínas, os atuais vilões

I UMA CAUSA DA ALERGIA A VINHO

Oito por cento das pessoas que bebem vinho apresentam reações alérgicas. A razão pode estar não nos sulfitos, compostos usados na preservação do vinho que explicam apenas parte das reações alérgicas, que incluem espirros, coceira na pele, dor de cabeça ou acesso de asma. Tantos inconvenientes podem ser disparados por glicoproteínas, moléculas formadas por açúcares e proteínas, de acordo com um estudo de Giuseppe

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Palmisano, da Universidade do Sul da Dinamarca (Journal of Proteome Research). Palmisano, com a colaboração de especialistas de um centro de pesquisas em vinho em Turim, Itália, identificou 28 glicoproteínas em uvas usadas para fazer vinho branco qtle são similares às encontradas em materiais de origem vegetal como o látex e o óleo de oliva, que causam alergias.

CONSEQUÊNCIAS DA DIETA

Um experimento com camundongos indicou que o efeito sanfona- a diminuição temporária de peso, seguida pela volta ao peso anterior ou até maior -pode alterar a atividade de genes e de hormônios ligados ao estresse e deixar quem faz dieta para emagrecer mais suscetível

a voltar a ganhar peso mais tarde. Animais que haviam feito dieta e depois foram submetidos a situações estressantes comeram mais alimentos gordurosos do que os animais que passaram por situações estressantes similares mas não sofreram restrição calórica. Após três semanas consumindo menos calorias, os camundongos do primeiro grupo tinham perdido de 10% a 15% do peso corporal, proporção semelhante à que emagrecem as pessoas em um regime feroz. Mas o nível de um hormônio do estresse, a corticosterona, estava mais alto que nos animais do outro grupo (Journal of Neuroscience, 1° de dezembro). Esse trabalho indica que a dieta aumenta o estresse, dificultando a perda de peso, e pode modificar as respostas do cérebro às situações de estresse gerado pela alimentação.

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Page 43: Crescer com saúde

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I QUAt--!TO MEDE O PROTON

O próton, uma das partículas elementares, pode ser ainda menor do que se pensava. Uma comissão internacional havia determinado que o raio (ou raio de carga) do próton era de 0,8768 x 10· 15 metros (m). Agora fís icos da Alemanha, Croácia, França e Eslovênia, depois de fazerem 1.400 medições no acelerador de partículas do Instituto de Física Nuclear da Universidade de Mainz, Alemanha, concluíram que o raio de carga do próton pode variar de 0,879 a 0,777 x 10·15 m (Physical Review

MAIS ANIMAIS, MENOS DOENÇAS

Letters, 10 de dezembro). Os resultados concordam com os valores que já haviam sido aceitos, mas outra medida, obtida no Instituto Paul Scherrer, Suíça, e apresentada em junho na Nature, havia indicado outro valor, levemente menor que a média consensual, 0,8418 x 10·15 m. Essas sutis diferenças podem levar a uma revisão na medida do raio do próton, uma das medidas fundamentais da natureza, difícil de determinar porque nem os átomos nem as partículas que os constituem, como os prótons, têm limites definidos.

Conservar a riqueza biológica, maior

em ambientes como as florestas, e

reduzir o contato com animais sil­

vestres protege contra a dissemi­

nação de vírus, bactérias e outros

organismos causadores de doenças

infecciosas (Nature, 1° de dezembro).

Uma equipe coordenada por Felicia

Keesing, do Bard College, Estados

Unidos, examinou as relações entre a

biodiversidade e a propagação de 12

doenças, como a febre causada pelo

vírus do Oeste do Nilo, descritas em

26 estudos publicados desde 2005.

Uma das explicações é que as espé­

cies que servem de reservatórios

naturais para os patógenos, evitan­

do que se espalhem, tendem a desa­

parecer. Esse levantamento indicou

que a disseminação de doenças está

ligada a mudanças no uso da terra e interações com animais

silvestres, por meio, por exemplo, da caça. Os pesquisadores

recomendam manter intactas áreas amplas e minimizar o con­

tato com a vida silvestre como forma de evitar doenças.

~

I o BRILHO DO MUNDO

As células da retina conhecidas como cones e bastonetes não são as únicas a converter

Caçar, hábito que pode custar a saúde

estímulos luminosos em elétricos, que seguem ao sistema nervoso central e indicam se o que está à frente é um tigre ou um ônibus. Essa habilidade pode ser estendida a um pequeno número de neurônios da retina que expressam a proteína melanopsina, antes vista apenas como sensor de luz capaz de regular o ciclo circadiano. Pesquisadores da Universidade de Manchester e da University College London, ambas na Inglaterra, e do Instituto Salk, Estados Unidos, verificaram que a melanopsina pode transmitir informações sobre a variação de intensidade e de brilho dos objetos diretamente aos centros visuais do cérebro, mesmo sem a ativação de cones e bastonetes (PLoS Biology, 7 de dezembro). Esse estudo, feito em camundongos, ajuda a entender por que muitas das pessoas que apresentam variados graus de cegueira por degeneração dos cones e bastonetes percebem diferenças no brilho dos objetos que as cercam.

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 43

Page 44: Crescer com saúde

LABORATÓRIO BRASIL

I O REBROTAR, DEPOIS DO FOGO

Como as plantas se recuperam do fogo? Com essa pergunta, Sâmia Paula Santos Neves, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), examinou os efeitos da queimada de outubro de 2005 sobre a vegetação de campo rupestre em uma área no Parque Nacional da Chapada Diamantina, no município de Lençóis, Bahia. Alvo frequente de incêndios muitas vezes provocados, a Chapada Diamantina é uma região montanhosa que abriga tipos peculiares de florestas, caatingas, cerrados e campos rupestres. As espécies dominantes de plantas reapareceram a partir de gemas subterrâneas

ou aéreas protegidas do fogo por várias folhas sobrepostas, como pétalas de rosa. Outras, como a Dactylaena microphylla, brotaram de sementes, de acordo com Sâmia e Abel Augusto Conceição, também da UEFS (Acta Botanica Brasilica, dezembro). As plantas que brotaram de sementes nos espaços abertos pelo fogo ampliaram a diversidade, enquanto espécies exclusivas da Chapada ~

Diamantina sensíveis ao fogo, como Vellozia punctulata, sobreviveram por estarem em ilhas de vegetação isoladas por superfícies rochosas.

Chapada Diamantina:

renascer contínuo

44 • JANEIRO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 179

LEMBRANÇAS DE VIAGENS As diarreias são os problemas de saú­de mais comuns que os viajantes ga­nham quando visitava a América do Sul, a África e o Sudeste Asiático. Em novembro em São Paulo, um congres­so de epidemiologia indicou que esses problemas devem se tornar mais fre­quentes: o número de pessoas em visita a outros países deve passar de 1 bilhão em 2010 para 1,6 bilhão em 2020. Mui­

tos imprevistos podem ser prevenidos evitando o consumo de alimentos crus e água não tratada. Para a malária, há medicamentos preventivos, eficazes em 90% dos casos se usados com repe-lentes e outras medidas contra pica­das de insetos. "As pessoas viajam sem

informação sobre o que é a malária, não se protegem e às vezes encontram médicos que não sabem diagnosticá-la",

diz o médico Jessé Reis Alves, do Núcleo de Medicina do Viajante do Instituto de lnfectologia Emílio Ribas. "Os Ano­

pheles [mosquitos transmissores da malária] também estão nos resorts", acrescenta Tânia Souza Chaves, médica desse núcleo. Em novembro, dois viajantes - um vindo da Nigéria

e outro da CÓsta do Marfim - morreram de malária em São Paulo depois de passarem por hospitais cujos médicos não souberam identificar a doença. De cada 100 mil pessoas que permanecem por um mês em países pobres, 50 mil apresen­

tam algum problema de saúde ligado à viagem.

UM AC CENTf

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Page 45: Crescer com saúde

UM AGITADO CENTRO-OESTE

A região central do Brasil, atualmente calma e plana, já foi palco de uma intensa atividade magmática, incluindo vulcanismo em ambiente de fundo oceânico (um mar ocupou o atual centro-oeste brasileiro há milhões de anos). Ao reconstituir essa história, um grupo de pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) identificou uma faixa de 350 quilômetros, nos quais estão hoje os municípios goianos de Goianésia, Barro Alto, Niquelândia e Canabrava, marcada por dois episódios de idades distintas. Do primeiro, ocorrido há 1,25 bilhão de anos, resultaram estruturas indicativas de vulcanismo basáltico semelhante às encontradas em regiões oceânicas. Já o segundo evento, de cerca de 790 milhões de anos, foi marcado pelo alojamento de magma em profundidade na crosta (Precambrian Research, dezembro). "Os resultados desse trabalho ajudam a entender a história geológica do planeta, ao relacionar eventos magmáticos da região central do Brasil com outros de mesma idade em outros continentes", comenta Cesar Ferreira Filho, professor do Instituto de Geociências da UnB e coordenador desse estudo.

I LEITE COM ANTIBIÓTICOS

O leite pasteurizado vendido na cidade do Rio de Janeiro pode conter resíduos de antibióticos

usados para tratar vacas que podem causar alergias em pessoas ou aumentar a resistência a bactérias. Christina Maria Queiroz de Jesus Morais e outros pesquisadores do Instituto

Nacional de Controle de Qualidade em Saúde da Fiocruz chegaram a essa conclusão analisando 57 amostras de leite B e C coletadas entre abril e agosto de 2006. Os resultados dos testes indicaram que antimicrobianos (betalactâmicos, tetraciclinas e estreptomicina I diidroestreptomicina) estão sendo usados acima das dosagens recomendáveis para tratar infecções do gado leiteiro (Ciência e Tecnologia de Alimentos, dezembro). Os pesquisadores da Fiocruz expõem um método de análise, por meio de ensaios imunoenzimáticos, que, eles acreditam, poderia ser usado para embasar medidas legais que controlem a qualidade do leite com mais precisão.

--- - --- - . ---~------

ONDE O CLIMA VAI PEGAR

Quem vive no litoral tem boas

razões para se inquietar - e não

só com as levas de turistas que

chegam nesta época. Cidades

costeiras densamente povoadas

apresentam alta vulnerabilidade

às alterações climáticas, de acordo

com um estudo realizado por João

Nicolodi, do Instituto de Oceano-

grafia da Universidade Federal de Rio Grande (Furg), no Rio Grande do Sul,

e Rafael Petermann, da empresa Datageo, de ltajaí, em Santa Catarina.

Eles classificaram cada trecho do litoral brasileiro em cinco níveis de vul­

nerabilidade (de muito baixa a muito alta) com base em três tipos de risco:

naturais, como deslizamentos, inundações e erosão costeira; sociais, como

a precariedade das moradias e da infraestrutura; e tecnológicos, definidos

pelo tipo e pelo potencial poluidor das indústrias (Revista da Gestão Costeira

Integrada). Esse estudo indicou os municípios ou regiões de vulnerabilidade

mais alta: Macapá, Belém e São Luís, na Região Norte; Fortaleza, Aracati,

Natal, João Pessoa, Recife, Salvador e Recôncavo Baiano, no Nordeste;

Vitória, Cabo Frio e Grande Rio, Santos e municípios vizinhos, no Sudeste;

e Joinville, o Vale do ltajaí e a Grande Florianópolis, no Sul.

Santos: alta vulnerabilidade aos efeitos de chuvas mais fortes

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 45

Page 46: Crescer com saúde

[ GEOLOGIA ]

Manchas de cerrado surgiram sobre leitos de antigos rios da Amazônia

MARCOS PIVETTA

Page 47: Crescer com saúde

ista de longe, a Amazônia é quase sempre ho­mogênea. Um mar verde, de floresta. O desma­tamento (ainda) se concentra em suas bordas, nas áreas de fronteira agrícola, como o norte de Mato Grosso e Rondônia e o centro-sul do Pará. Nesses lugares em que antes havia uma vegeta­ção densa e fechada surgiram pastos, plantações,

cidades ou simplesmente regiões devastadas. É razoável supor que zonas desflorestadas pelo homem há poucas décadas e posteriormente abandonadas podem dar ori­gem inicialmente a uma formação verde mais aberta, no estilo dos campos e cerrados. Mas o que explicaria a ocorrência de grandes manchas de savana- vegetação de clima bem mais seco do que da Região Norte- coladas a florestas em lugares da Amazônia onde quase não houve desflorestamento recente, como na porção leste da ilha de Marajó, em trechos às margens do rio Madeira e também do rio Branco, em Roraima?

Para a geóloga Dilce Rossetti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos (SP), a resposta está intimamente relacionada à história natural que moldou as características das bacias hidrográficas e do relevo da Amazônia. Antigos leitos de rios, por onde não corre mais água há alguns milhares de anos, sofre­ram um processo de sedimentação, viraram paleocanais e paleorrios- e foi justamente em cima desses segmentos aterrados de rios do passado que uma vegetação mais esparsa, com predomínio de gramíneas e poucas árvores, floresceu de forma natural. E não foi só isso. De acordo com o cenário proposto pela pesquisadora, especiali­zada na reconstituição de paisagens do passado com o auxílio de dados de sensoriamento remoto, mudanças

Page 48: Crescer com saúde

No sul do Amazonas, imagem de satélite mostra leito antigo e atual do rio Madeira

climáticas podem não ter sido o único fator que alterou o curso dos rios de outrora. "A reativação de falhas tectôni­cas deve ser a responsável por esse fenô­meno", afirma Dilce. "As pessoas pensam que a Amazônia é extremamente estável, mas ela tem oito regiões de ocorrência de sismos." Embora não costumem gerar notícias, pois seu epicentro é em geral em zonas despovoadas e de floresta, al­guns terremotos na região podem ser de grande magnitude e atingir até 6 ou 7 graus na escala Richter.

Essa teoria ganhou corpo depois que Dilce coordenou entre 2005 e 2008 um amplo trabalho multidisciplinar numa área piloto da Amazônia, a região do baixo Tocantins e da ilha de Marajó, no nordeste do Pará. O projeto Marajó, como os pesquisadores denominam a iniciativa que contou com financiamen­to da FAPESP, reconstituiu a história geológica da área desde o período Neó­geno, há 23 milhões de anos, até.os dias atuais. Vários aspectos da região foram estudados: as variações dos padrões de vegetação no tempo geológico; a ocor­rência de deslocamentos de terrenos por movimentação ao longo de falhas tectô­nicas; os sedimentos formados dentro de antigos ambientes, como rios, lagos,

48 • JANEIRO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 179

A atividade

tectônica pode ter

mudado de lugar

o leito de rios da

Amazônia e criado

condições para

o surgimento de

áreas de cerrado

planícies de inundação; a variação do nível do mar; e as mudanças climáticas. Diversas ferramentas de análise foram empregadas nos estudos. Imagens de satélite e de radar foram utilizadas pa­ra caracterizar espacialmente a área e amostras de sedimentos em profun­didades de até 120 metros foram cole­tadas. Foram ainda usadas técnicas de datação e de análise química da maté­ria orgânica preservada nos sedimentos para melhor reconstituir a sucessão de paisagens ao longo do tempo.

Localizada na foz do rio Amazo­nas, distante alguns quilômetros do continente, a ilha de Marajó se es­tende por quase 50 mil quilômetros

quadrados - 33 vezes a área da cidade de São Paulo -e apresenta um padrão de cobertura vegetal com disposição singular: cerca de dois terços de sua área, em especial na porção centro­-oeste, são tomados por mata fecha­da, a típica floresta equatorial; o outro terço, na parte leste, apresenta um mo­saico de matas mais abertas cortadas por campos alagados e formações no estilo da savana. Essa divisão da ilha em dois perfis distintos de vegetação tem origem em sua história geológica, segundo a pesquisadora do Inpe.

Separação do continente - Até cerca de 10 mil anos atrás, havia praticamen­te apenas florestas fechadas em Marajó, com exceção das áreas cortadas por sua antiga bacia hidrográfica. A ilha ainda fazia parte do continente e sua porção norte atual estava sob o mar. Braços do rio Tocantins serpenteavam por seu território. Então começou o seu processo de separação da terra firme. A reacomodação de uma falha tectôni­ca mudou o curso do Tocantins, cujas águas trocaram o sentido noroeste pelo nordeste, e abriu caminho para cortar a ligação física de Marajó, hoje consi­derada a maior ilha fluviomarinha do mundo, com o resto do Pará. Uma fa­lha que divide grosseiramente a ilha ao meio também se movimentou. "Isso fez com que a porção leste da ilha sofresse um afundamento suave e ficasse mais sujeita a alagamentos, inicialmente por invasão da água do mar e, depois que este se retirou, por inundação nos pe­ríodos de chuva", afirma Dilce. Estavam criadas as condições naturais para que a ilha passasse a apresentar dois tipos distintos de vegetação.

À medida que o Atlântico se retirou da ilha, areia e lama foram tampando o leito de antigos estuários e rios. As cheias periódicas nesse setor inviabili­zaram a permanência de matas densas e criaram as condições ambientais pa­ra que, há 6.700 anos, se desenvolvesse uma vegetação de campos abertos em determinados períodos do ano. Em pa­ralelo, no trecho ocidental de Marajó, mais estável, a floresta permaneceu in­tacta. Desconectados do rio Tocantins desde o início do processo de separação da ilha do continente, boa parte dos cursos d'água dessa zona secou e, com o tempo, tornou-se sítios onde a ve-

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Page 49: Crescer com saúde

getação passou a crescer, inicialmente como gramíneas e arbustos, e depois como espécies de floresta.

Com as imagens de satélite, sobre­tudo as de radar, que esquadrinham as características do terreno mesmo em dias cheios de nuvens, o esqueleto da rede de paleorrios e paleocanais pode ser divisado pelos olhos treinados dos cientistas. Vêm à tona feições que hoje se encontram encobertas e camufladas pelo solo e sua vegetação. Às vezes, o antigo leito abandonado, hoje cober­to por floresta ou savana, se encontra numa área em que não sobrou mais nenhum curso d'água nos arredores. Tudo foi aterrado. Em outras ocasiões, está próximo ao que restou do velho rio, que, devido ao tectonismo, teve de alterar o caminho pelo qual suas águas cortavam o relevo. Situado na porção dominada pela savana em Marajó, o atual maior lago da ilha, o Arari, está encaixado no paleoestuário que era ali­mentado por um rio hoje desaparecido que se originava no continente.

Em outras partes da Amazônia, o movimento nas falhas tectónicas igual­mente alterou o curso de importantes rios e deixou uma série de paleocanais interconectados como vestígios desse chacoalhão na topografia . No centro­-sul de Roraima, numa região dentro do Parque Nacional do Viruá a cerca de 190 quilómetros da capital Boa Vista, foi encontrada uma rede de paleorrios próximo da margem esquerda do atual rio Branco. Nessa mesma zona há uma extensa porção de savana em meio à flo­resta. "Alguns desses paleocanais ainda são ativos e podem ser tomados pelas águas na época das cheias", diz o geógra-

O PROJETO

Integração de dados biológicos e geológicos no baixo Tocantins-ilha de Marajá: chave na análise da biodiversidade - n° 2004/15518-6

MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa

COORDENADOR

Dilce Rossetti- lnpe

INVESTIMENTO

R$ 423,269.10 (FAPESP)

• FLORESTA

PALEORRIO

• RIO ATUAL

fo Hiran Zani, que estuda a área em seu trabalho de doutorado sobre sensoria­mente remoto no Inpe. "Datações preli­minares da matéria orgânica preservada em amostras de sedimentos indicam que houve ali uma alteração de paisagem ao longo dos últimos 20 mil anos."

Novo e velho Madeira - Um caso se­melhante é o do rio Madeira na porção mais ao sul do estado do Amazonas. Nessa área, um segmento de 200 quiló­metros de extensão do rio foi deslocado para leste em razão de um rearranjo de falhas tectónicas ocorrido há alguns milhares de anos. Vários dos afluentes da margem direita do Madeira também mudaram de lugar. Sobre os antigos lei­tos desses rios, que foram entupidos com sedimentos arenosos, cresceu uma vegetação do tipo campo ou cerrado. Em imagens de sensoriamente remoto e em fotos aéreas, esse tipo de vegetação mais aberta contrasta fortemente com a floresta de seu entorno. "Como na ilha de Marajó, as manchas de savana nessa região coincidem exatamente com os cursos dos antigos rios, hoje abando­nados na paisagem", afirma Dilce. "So­mente mudanças climáticas no passado não teriam sido capazes de produzir faixas de savana que serpenteiam den­tro da floresta e mimetizam os rios."

Atribuir em boa medida a origem desses pontos isolados de savana na

Rede de paleorrios se

entrelaça com leito atual

de rio na ilha de Marajó

Amazônia à ocorrência de paleocanais de origem tectónica é uma ideia nova e ainda não consensual. O físico Luiz Carlos Pessenda, do Centro de Ener­gia Nuclear da Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP), que participa de alguns estudos com Dilce na ilha de Marajó e em outros pontos da Região Norte, concorda apenas em parte com a tese da pesquisadora do Inpe. "Os dados geológicos são impor­tantes, mas complementares", afirma Pessenda. "A questão climática é sem­pre relevante independentemente dos dados sobre tectonismo." Segundo o físico, as manchas de campos e cer­rados surgiram devido à maior ari­dez do clima na região entre 9 mil e 3 mil anos atrás . Estudos isotópicos e geoquímicos em solos e sedimen­tos lacustres indicam que pode ter chovido bem menos na Amazônia e na Região Nordeste durante esse pe­ríodo, inviabilizando a manutenção da floresta tropical em certas zonas e abrindo caminho para a instalação de campos e cerrados.

Numa questão Pessenda e Dilce es­tão 100% de acordo: as áreas de savana natural parecem estar perdendo espaço nos últimos anos e as florestas densas e fechadas caminham para tomar seu território. Isso deve ocorrer- a menos que haja novas mudanças de fundo no relevo ou no clima da Amazônia. •

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 49

Page 50: Crescer com saúde

Sol e novo comp evita

Page 51: Crescer com saúde

novo modelo

situação era desconcertante. Nas duas úl­timas décadas, toda vez que um astrofísico fazia uma simulação computacional sobre a origem do sistema solar o resultado era, in­variavelmente, o mesmo: a Terra deveria ter desaparecido há muito tempo. Cerca de 100 mil anos depois de sua gênese, antes mesmo

de ter se formado por completo, o planeta deveria ter entrado numa espiral suicida que o faria colidir com o Sol. De acordo com os modelos tradicionais que tentam explicar o surgimento de sistemas planetá­rios, a Terra seria mais um corpo celeste destinado a trombar com a estrela-mãe. Claro que nada disso ocorreu e o impacto fa tal nunca houve. Mas só recen­temente alguns pesquisadores formularam uma teoria alternativa capaz de explicar por que o planeta não foi engolido pelo astro-rei. "Conseguimos a primeira simulação em que a Terra não 'cai' no Sol", afirma o as­trofísico Wladimir Lyra, um brasileiro de 29 anos que faz pós-doutorado no Museu Americano de História Natural (AMNH, na sigla em inglês) de Nova York. O pesquisador foi o responsável por abastecer de dados e conduzir o ensaio digital que, nos computadores, mudou o curso da história evolutiva da Terra.

Como os demais planetas de nosso si ma, a Terra surgiu a partir do acúmulo de oeira e gás do disco protoplanetário, nuvem que envolvia o Sol logo após essa estrela ter se formado, há cerca de 4,6 bilhões de anos. Hoje há quase um consenso entre os cientistas de que os planetas do sistema solar- e também os mais de SOO mundos extrassolares até agora desco­bertos (ver quadro na página 53) -não se originaram no mesmo lugar em que se encontram atualmente. Nasceram num ponto do disco e, depois de uma série

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 51

Page 52: Crescer com saúde

Ilustração mostra estrela jovem com disco de gás a partir do qual se formam os planetas

de interações gravitacionais com o gás e os objetos do sistema, migraram pa­ra outra região. Ali encontraram uma órbita de equilíbrio em torno do Sol e se estabeleceram.

Nos últimos 20 anos, os modelos computacionais adotados por vários grupos de astrofísicos partiam do prin­cípio de que, embora a temperatura ao longo de todo o disco variasse (quanto mais próximo do Sol, mais quente), qualquer flutuação térmica sofrida pelo gás num determinado ponto era instantaneamente irradiada para o ambiente externo. Na prática, isso equivalia a dizer que o eventual excesso de calor num lugar específico era trans­ferido para o espaço e a temperatura em cada ponto do disco se mantinha sempre constante. As consequências de tal forma de pensar, que é usada sem problemas no estudo de galáxias, eram catastróficas nas simulações so­bre a evolução do sistema solar: não só a Terra, mas todos os planetas tromba­varo com o Sol. "Quando introduzimos flutuações locais de temperatura no disco, os planetas começaram a migrar para órbitas mais afastadas do Sol", diz Lyra, que foi o primeiro autor de um artigo publicado na edição de 1° de ju­nho de 2010 do Astrophysical ]ournal Letters (Ap]L) com os resultados das novas simulações.

52 • JANEIRO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 179

Nas antigas

simulações todos

os planetas se

chocavam com o Sol

durante o processo

de formação de

nosso sistema

De acordo com os pesquisadores, o novo modelo prevê a evaporação total da nuvem protoplanetária após 5 mi­lhões de anos e é capaz de explicar a migração de planetas com massa até 40 vezes maior do que a da Terra. "Du­rante seu processo de evolução, o disco perde gás e fica com uma densidade tão baixa a ponto de não conseguir mais mover os planetas, que acabam então entrando em sua nova órbita", explica o astrofísico Mordecai-Mark Ma c Low, coordenador do trabalho do brasileiro no AMNH e coautor do estudo.

As ideias centrais que permitiram abastecer a simulação computacional derivam em grande medida de traba­lhos recentes de outro astrofísico da nova geração. Desde 2006, o holandês

Sijme-Jan Paardekooper, de 31 anos, que hoje faz pós-doutorado no De­partamento de Matemática Aplicada e Física Teórica da Universidade de Cambridge, Inglaterra, publica estudos sobre os possíveis efeitos decorrentes de variações de temperatura no gás de um disco protoplanetário. "Sempre procu­ramos o modelo teórico mais simples que possa explicar um fenômeno fí­sico", diz Paardekooper, que também assinou o artigo na ApJL.

A questão-chave é entender como a trajetória dos embriões de planetas podia mudar de curso numa simulação em função de alterações térmicas em pontos específicos da nuvem de gás. Antes disso, é preciso ter em mente que a órbita final de um planeta em formação é determinada por uma série de variáveis, sobretudo as interações gravitacionais com os demais compo­nentes do sistema (a estrela-mãe, ou­tros planetas e o disco de gás). "Alguns fatores favorecem a ocorrência de uma migração na direção do Sol e outros para longe dele", comenta Paardeko­oper. Por didatismo, a explicação que se segue aborda o mecanismo central que, segundo as simulações de Lyra e seus colegas, tirou a Terra da rota de colisão com o Sol.

Em um disco protoplanetário, a for­ça gravitacional de um planeta modifica a órbita original do gás que o circunda. Em resposta a esse fenômeno, o plane­ta também altera sua órbita, só que na direção oposta da que o gás foi deslo­cado. Até aí nada de novo. Tudo isso é previsto pela lei da ação e da reação de Isaac Newton. O pulo do gato vem ago­ra. De acordo com as novas simulações, ao incorporar eventuais variações locais de temperatura no disco protoplanetá­rio, os pesquisadores perceberam que o gás se torna mais denso nas zonas mais próximas ao Sol e é capaz de deslocar a Terra para uma órbita segura.

Terras troianas - Antes do trabalho sobre por que a Terra não migrou pa­ra dentro do Sol, Lyra produziu outra simulação computacional com discos protoplanetários que também gerou grande interesse. Num estudo publi­cado com destaque de capa numa das edições de janeiro de 2009 da revista científica Astronomy & Astrophysics, o brasileiro e outros três autores divulga-

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Page 53: Crescer com saúde

ram cálculos e equações que indicam a possibilidade de haver mundos rocho­sos, de massa semelhante à da Terra, escondidos bem "nos ombros" de exo­planetas gigantes e gasosos. Seriam as Terras troianas. Objetos que seguem a mesma órbita de um corpo celeste muito maior, sem no entanto nunca se chocarem com esse avantajado com­panheiro de viagem, são denominados troianos. Eles se situam em duas regiões,

nos chamados pontos lagrangianos da órbita, 60 graus antes e 60 graus depois do local em que se encontra o objeto maior. Os pontos são assim chamados porque foram propostos pelo matemá­tico e astrônomo ítalo-francês Joseph Louis Lagrange (1736-1813).

Não faltam objetos celestes que car­reguem o adjetivo troiano. O gigante gasoso Júpiter gira em torno do Sol em companhia de dois grupos de rochas

Baco em vez de HD 128311 b r'"'fÍ::> co propõe a adoção de nomes da mitologia co-romana para os exoplanetas conhecidos

Não são nomes de planetas. São placas de carros. Assim Wladimir Lyra define a terminologia empregada para se referir aos mais de 500 exoplanetas, mundos desabitados localizados fora do sistema solar, descobertos desde outubro de 1995. Até agora, a regra tem sido chamá-los com o nome da estrela em torno da qual orbitam acrescido de mais uma letra (b, c, d e assim por diante). Três planetas giram, por exemplo, ao redor de uma estrela da constelação de Virgem, o pulsar PSR 1257+12 (ilustração acima). Na literatura científica, são conhec idos como PSR 1257+12 b, PSR 1257+12 c e PSR 1257+12 d. Lyra propõe batizá-los com nomes da mitologia greco-romana associados à constelação da estrela.

O trio de planetas seria então denominado Sísifo, Íxion e Tântalo.

Não se trata de brincadeira. O brasileiro escreveu uma proposta formal, com nomes para mais de 400 exoplanetas, e a submeteu à União Astronômica Internacional (IAU, na sigla em inglês), órgão que trata desse tipo de assunto. A ideia não foi aceita. Disseram que os cientistas usam a sopa de letras e números para se referir aos planetas sem qualquer problema. "Eles se esquecem de que os astrofísicos também fizeram parte um dia do público em geral", diz Lyra. "Com 6 anos de idade, fiquei fascinado pela ideia de que havia outros mundos como a Terra e passava dias decorando nomes de satélites como a Lua." Lyra ainda não desistiu da proposta e vai reapresentá-la à IAU.

celestes situados nos pontos lagran­gianos, os asteroides troianos (de cujo nome veio a inspiração para denomi­nar o fenômeno) e os asteroides gregos. Saturno, Marte e Netuno também são escoltados por objetos troianos. Mas nunca foi encontrado um planeta troia­no, nem mesmo fora do sistema solar, onde foram descobertos exoplanetas orbitando mais de 420 estrelas. "As si­mulações do W1adimir mostram que precisamos dos seguintes ingredientes para que haja Terras troianas: planetas gasosos gigantes, como Júpiter, têm de se formar rapidamente num disco pro­toplanetário cheio de seixos e pedregu­lhos", afirma o astrofísico dinamarquês Anders Johansen, de 34 anos, da Uni­versidade Lund, Suécia, um dos coau­tores do estudo com Lyra. "À medida que se concentram nos pontos lagran­gianos, os sólidos originam um corpo tão denso a ponto de formar planetas similares ao nosso."

Ao menos esse foi o resultado do modelo computacional rodado pelo brasileiro. Na simulação, os seixos e os pedregulhos que se juntaram para gerar Terras troianas virtuais tinham entre 1 centímetro e 1 metro. "Começamos o ex­perimento com objetos menores': conta Lyra. "Dessa forma, conseguimos resol­ver a hidrodinâmica do gás, a força de arrasto nas partículas e sua atração gra­vitacional conjunta:' Os cientistas sabem que diminutos grãos de poeira se juntam facilmente em discos protoplanetários,

• mas a manutenção do processo se torna incerta à medida que os corpos sólidos ficam maiores. Ainda assim, se os cálcu­los dos astrofísicos estiverem corretos, a possibilidade de haver Terras troianas na vizinhança de grandes exoplanetas gasosos é real. Faltaria apenas o homem ter meios de detectá-las. •

MARCOS PIVETTA

Artigos científicos

l. LYRA, W. et ai. Orbital migration of low-mass planets in evolutionary radia tive models: Avoiding catastrophic infall. Astrophysical Journal Letters. v. 715, n.2,p. L68-L73. l 0 jun. 2010. 2. LYRA, W. et ai. Standing on the shoulders of giants- Trojan Earths and vortex trapping in low-mass selfgravitating protoplanetary disks of gas and solids. Astronomy & Astrophysics. v. 493, n . 3, p. 1.125-39. jan. 2009.

PESQUISA F'APESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 53

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[ IMUNOLOGIA ]

Lanterna microscópica

Marcação de células permite conhecer como ocorre a seleção dos anticorpos mais eficazes

CRISTINA CALDAS, DE BosToN

abriel Victora estava acostumado a longos ensaios solitários quando era pianista profis­sional. Hoje, como imunologista, passa horas sozinho em uma sala escura e fria de um labo­ratório buscando entender como amadurecem os linfócitos B, as células produtoras de anti­corpos. Ele ainda acha que tocar piano é mais

difícil do que marcar células, mas a disciplina herdada da música o ajudou a persistir em uma pesquisa lide­rada pelo imunologista brasileiro Michel Nussenzweig na Universidade Rockefeller, Estados Unidos, cujos re­sultados foram apresentados em novembro na revista Cell. Os pesquisadores começam agora a entender um fenômeno velho conhecido e pouco compreendido dos imunologistas: a maturação da afinidade- produção e seleção dos linfócitos B que geram os antiéorpos mais efetivos conforme uma infecção progride.

Acreditava-se que tal refinamento ocorria à medida que os linfócitos B entravam em contato com antígenos, moléculas reconhecidas pelos anticorpos. Agora se viu que é a interação com outras células do sistema imune que determina quais linfócitos B se tornarão produ­tores de anticorpos. "É preciso considerar a interação entre essas células no desenho de vacinas. Olhar só para a interação do linfócito B com o antígeno não é necessariamente a saída", diz Victora. O trabalho rece­beu destaque na Cell e mereceu o comentário de Jason Cyster, da Universidade da Califórnia em São Francisco, um dos líderes mundiais da pesquisa na área, na mesma edição da revista.

Numa infecção, os linfócitos B migram do sangue para órgãos linfoides como as amígdalas ou os linfa­nodos da axila. Ali se agrupam no chamado centro germinativo, onde há alta concentração de pedaços dos agentes infecciosos (antígenos) presos à superfície de outras células do sistema imune, as células dendríticas foliculares, além de linfócitos T recrutados por esses an-

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tígenos. Nesses centros os linfócitos B inserem alterações aleatórias nos genes que codificam os anticorpos e geram células com genoma diferente do das demais células do corpo.

Mutantes- A maioria das células mu­tantes é menos eficiente que o linfócito B original, mas umas poucas se tornam altamente eficazes e são selecionadas para produzir anticorpos. Nesse senti­do, os centros germinativos são como bibliotecas: guardam grande quantida­de de informação que pode estimular e aperfeiçoar habilidades ou propagar dados após uma sugestão instigadora. "É ali que os anticorpos evoluem em tempo real e permitem responder a patógenos com ciclo evolutivo mais rápido que o nosso", explica Victora. "Sem isso, sempre perderíamos a cor­rida evolutiva contra as infecções."

O centro germinativo abriga aconte­cimentos desconhecidos que controlam o percurso e o destino das células em

amadurecimento. Para saber como os linfócitos B são selecionados, Victora teve de entender a dinâmica das duas regiões desses centros: uma com poucos núcleos de células, a zona clara; e outra repleta de linfócitos B, a zona escura.

Na zona clara, o·s linfócitos B mistu­ram-se às células dendríticas foliculares carregadas de antígenos e aos linfócitos T. Os imunologistas acreditavam que os linfócitos B se replicavam na zona escura e migravam para a clara. Com a evolução de técnicas para obtenção de imagens, começaram a notar um movimento bidirecional, com células da zona clara voltando para a escura. Faltava saber como elas migram e no que isso influencia a seleção.

Para delimitar as duas zonas, Victo­ra desenvolveu uma forma de marcar com precisão microanatômica as célu­las dos centros germinativos para, em seguida, acompanhar seus percursos em tempo real no animal vivo, antes de resgatá-las para estudos de caracteriza-

ção fenotípica e de perfil de expressão gênica. Isso só foi possível com o uso de camundongos transgênicos que expres­sam uma versão modificada da proteína verde fluorescente, a GFP, ativável pela luz de um laser de dois fótons. Como tem comprimento de onda mais longo, esse laser penetra em órgãos intactos e ativa regiões profundas. É como se Vic­tora usasse uma lanterna para iluminar uma região específica das células.

Com uma combinação de técnicas, ele ativou os linfócitos B de cada zona e mediu quanto tempo levavam para ir de uma a outra. Após quatro horas da fotoativação, metade dos linfócitos B da região escura migrou para a clara. Mas, passadas seis horas, só lSo/o dos linfócitos B tinham ido da área clara para a escura, sugerindo que é nesse retorno que acontece a seleção dos mais aptos a combater a infecção.

Após separar os linfócitos B das duas regiões, os pesquisadores avaliaram a expressão gênica deles. Nas células da zona escura predominou a ativação de genes ligados à divisão celular e à ocorrência de mutações. Na zona clara, os linfócitos tinham mais genes ativos envolvidos com a seleção, que depen­de do reconhecimento de antígenos. Eles mostraram ainda que ao facilitar a interação dos linfócitos T da zona cla­ra com os B, estes migram em massa para a região escura, onde embarcam em outro ciclo de divisão celular e mu­tação. Trabalhos recentes indicam que á presença de um número elevado de linfócitos T da zona clara pode levar as células B a produzir altas quanti­dades de anticorpos contra o próprio organismo, como ocorre em doenças autoimunes, a exemplo do lúpus.

No congresso da Sociedade Brasilei­ra de Imunologia, realizado em novem­bro, Nussenzweig destacou que, caso se encontre um modo de estender o tempo da seleção de linfócitos B nos centros germinativos, talvez se possa gerar uma grande diversidade de anticorpos de alta afinidade e eficazes em captar e inativar patógenos invasores, como o HIV. •

ArtiCJO científiCO

VICTORA, G. D. et ai. Germinal center dynamics revealed by multiphoton microsco­py with a photoactivatable fluorescent repor­ter. Cell. v. 143, p. 1-14. 12 nov. 2010.

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I '

[ SAÚDE ]

Coração sufocado

o embalo do sono, quando o corpo relaxa e se prepara para deixar entrar o mundo dos sonhos, de repente o ar não passa pela gar­ganta. Sem consciência disso, o dormidor acorda apenas o suficiente para aspirar uma boa dose de ar. É o que acontece, dezenas de vezes por noite, com quem

sofre de apneia obstrutiva do sono. Essa falta de ar intermitente causa uma série de problemas de saúde e, de acordo com o grupo da médica Dalva Poyares, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp ), é responsável por alterações estruturais e funcionais no coração. Os pesquisadores agora buscam reverter esses efeitos e encontrar um marcador diagnóstico barato e eficiente para detectar a apneia obstrutiva do sono, um mal que na capital paulista aflige um terço da · população. A pesquisa é parte de um projeto desenvol­vido e coordenado pelo médico Sergio Tufik, diretor do Instituto do Sono, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP e referência mundial em distúrbios do sono.

"Quando a pessoa tem apneia, ela faz todo o mo­vimento de respirar, mas o ar não entra", conta Dalva. O resultado é uma pressão negativa dentro do tórax que reduz o retorno de sangue do pulmão para o lado direito do coração e impede que se encha por inteiro, forçando o átrio esquerdo a se contrair mais. Essa mus­culação cardíaca altera a estrutura do átrio esquerdo, a ponto de reduzir o volume de sangue bombeado.

O efeito não tinha sido detectado até agora porque os estudos anteriores usaram ecocardiografias conven­cionais, de imagens bidimensionais. "Esse exame usa parâmetros em duas dimensões para medir as partes do coração", explica Dalva, "mas o resultado é pouco preciso porque o órgão tem formas irregulares". Com a ecocardiografia mais detalhada, em três dimensões, feita pelo médico ecocardiografista Wercules Oliveira, o grupo da Unifesp conseguiu detectar um aumento do átrio que, embora não saia do espectro considerado normal, é típico dos pacientes apneicos. Essa caracte­rística pode explicar pelo menos parte dos problemas cardiovasculares comuns em quem sofre dessa dificul­dade respiratória noturna.

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Responsável por alterações cardíacas, apneia pode ter diagnóstico sanguíneo

MARIA GUIMARÃES

Um átrio esquerdo aumentado já tinha sido apontado pelo estudo Framingham, um projeto norte-americano de epidemiologia cardiovascular, como associado a uma maior incidência de acidentes vasculares cerebrais e indicador de aumento de mortalidade. O estudo da Unifesp, publicado no final de 2009 na Heart, avaliou 56 pacientes com diagnóstico de apneia recente e mostrou que parte do funcionamento do átrio esquerdo pode ser restabelecida com o uso de CPAP, um aparelho acoplado a uma máscara que, durante o sono, lança ar nariz adentro e re­gulariza a respiração e deve ser usado todas as noites por quem tem apneia. O achado sublinha a participação da apneia no de­senvolvimento das dificuldades cardíacas e ressalta a eficácia do CPAP como tratamento não só para amenizar a falta de ar e tornar o sono mais constante e restaurador, mas também para contra-arrestar as consequên­cias da apneia no organismo.

O experimento feito no Instituto doSo­no limitou o uso do CPAP a 24 semanas, o suficiente para melhorar a capacidade de esvaziamento do átrio esquerdo, mas não para diminuir a força contrativa do átrio e reduzi-lo ao tamanho normal. "Ainda não

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Page 57: Crescer com saúde

sabemos se é possível reverter a mudança de forma, talvez seja preciso ampliar para um ano o uso de CPAP", diz Dalva.

É um avanço, mas uma dificuldade permanece: detectar a apneia do sono. O exame definitivo é a polissonografia, em que o paciente dorme ligado a aparelhos que medem parâmetros como respira­ção, atividade do cérebro e do coração. Mas muitas pessoas que sofrem de hi­pertensão, tosse e depressão, por exem­plo, acabam consultando médicos de várias especialidades sem que nenhum deles perceba que os problemas estão relacionados à qualidade do sono. Ainda não há um exame simples e barato que possa ser feito por qualquer médico, mas o grupo de Dalva pode estar prestes a sanar essa deficiência.

Diagnóstico -Eles mediram no sangue de 75 pacientes e 75 voluntários sau­dáveis substâncias ligadas ao estresse oxidativo, uma característica da apneia. Os resultados, publicados este ano na Chest, indicam o aminoácido cisteína como um possível marcador da doença. Quanto mais grave a apneia, mais alta a

concentração de cisteína no sangue. "É a única substância, entre as que examina­mos, cujos níveis elevados só estão rela­cionados à apneia, e não à hipertensão, à obesidade ou a outros fatores comuns nos apneicos", Dalva afirma.

A descoberta se deu um pouco ao acaso. A cisteína é parte do metabolis­mo da homocisteína, um aminoácido que já se sabia estar ligado a problemas cardiovasculares. "Mas ninguém presta atenção à cisteína", conta a bióloga Vânia D' Almeida, também da Unifesp. Ela é uma das autoras do trabalho da Chest e desde 1997 estuda a homocisteína (ver Pesquisa FAPESP n° 60). Alterações nos níveis da cisteína foram uma surpresa no doutorado de Juliana Perry, orientado por Tufik e por Vânia, e publicado em 2007 na Respiratory Physiology & Neu­robiology. Num modelo que reproduz a falta de ar intermitente dos apneicos, ratos expostos a uma baixa concentração de oxigênio - com 1 O o/o de oxigênio em vez dos 21 o/o normais- e com privação de sono têm mais cisteína no sangue do que o normal. Veio daí a ideia de medir esse parâmetro em seres humanos.

Agora é preciso examinar pessoas com apneia em fase inicial, ainda sem sintomas. "Precisamos saber se a ciste­ína é apenas um marcador da progres­são da doença ou se pode servir como

.diagnóstico precoce", afirma Vânia. Um bom banco de dados seria o Episono, mas só a homocisteína foi medida nos mais de mil participantes do estudo. "Precisamos reanalisar as amostras para medir a cisteína, além de repetir as dosagens com os voluntários que participaram do estudo", planeja Vâ­nia. Não são planos vagos. O assunto já foi discutido com Tufik, que declarou: "Precisamos disso para ontem': •

Art igos científicos

l. CINTRA, F. et ai. Cysteine: A potential biomarker of obstructive sleep apnea. Chest. on-line jul. 201 O. 2. OLIVEIRA, W. et ai. Impact of continuous positive airway pressure teatment on left atrial volume and function in patients with obstructive sleep apnea assessed by real-time three-dimensional echocardiography. Heart. v. 95, n. 22, p. 1.872-8. nov. 2009.

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 57

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[ EVOLUÇÃO ]

Buenos días, cangurus Os parentes mais antigos dos marsupiais australianos podem ter vivido na América do Sul

CARLOS FIORAVANTI

arsupiais como o canguru e o coala começa­ram a se diversificar na Austrália há milhões de anos a partir de espécies do mesmo grupo que viveram na América do Sul, de acordo · com uma hipótese recente que ganha força. Essa abordagem sustenta que os marsupiais brasileiros- os mais conhecidos são o gambá, a

cuíca e a catita- formam o ramo mais antigo desse grupo de animais ainda com representantes vivos. As linhagens que viveram na Europa ou na Ásia se extinguiram (apenas uma espécie vive nos Estados Unidos e Canadá), restando apenas as da América do Sul e da Austrália.

Essa visão, reforçada por um estudo de pesquisadores da universidade alemã de Münster publicado em julho de 2010 na revista PLoS Biology, indica que o ramo de marsupiais que abarca as espécies brasileiras deu origem a outro, hoje com apenas uma espécie viva, o monito deZ monte (Dromiciops gliroides), animal de até 25 gramas· das matas do Chile e da Argentina. O pequeno moni­to pode ser o parente vivo mais distante das quase 200 espécies de marsupiais australianos, incluindo as varie­dades mais encorpadas de cangurus, que podem pesar 70 quilogramas (kg) .

"Geneticamente", diz Ariovaldo Cruz Neto, pesqui­sador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro que estuda esses animais em colaboração com colegas australianos, "o monito exibe um grau de paren­tesco maior com as espécies australianas do que com as da América do Sul': Os marsupiais brasileiros, embora mais antigos, não guardam mais parentesco direto com nenhum dos que vivem na Austrália. Segundo outra hi­pótese, apresentada em 2008 na PLoS One por um gru­po da universidade australiana de Nova Gales do Sul, a espécie que originou os marsupiais australianos teria sido outra, a Djarthia murgonensis, que viveu há 30 mi­lhões de anos a leste de um supercontinente que incluía as atuais América do Sul e Austrália.

Apesar da distância, os marsupiais americanos e australianos guardam outras semelhanças além do fato

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de os filhotes nascerem incompletos, sem pelo e cegos, após uma gestação de uma ou duas semanas, e seguirem para as mamas da mãe, normalmen­te protegidas por uma bolsa chamada marsúpio, onde crescem por mais dois ou três meses antes de verem a luz. Cruz Neto e seus colaboradores da Austrália verificaram que o organismo dos mar­supiais da América do Sul e da Austrália funciona de modo muito semelhante para produzir e queimar energia, inde­pendentemente do porte ou do tipo de ambiente em que vivem.

A maioria das quase 90 espécies de marsupiais das Américas pesa en­tre 10 gramas e 1 kg, vive em geral em florestas e se alimenta principalmente de insetos. Já um canguru pode ter o porte de um homem adulto, embora

O PRO"'ETO

Energética de morcegos e marsupiais: bases estruturais e significado funcional da taxa metabólica basal - n° 00/09968-8

MODALIDADE

Jovem Pesquisador

COORDENADOR

Ariovaldo Pereira da Cruz Neto­Unesp

INVESTIME NTO

R$ 441.455,78

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Page 59: Crescer com saúde

a menor das 21 espécies desse grupo pese 400 gramas. Na Austrália, os mar­supiais vivem em túneis, no deserto ou em florestas úmidas e, como os ame­ricanos, se alimentam principalmente de invertebrados e frutos pequenos, embora uma espécie prefira néctar e a outra seja carnívora.

Organismos semelhantes - Os pesqui­sadores examinaram o metabolismo de representantes de duas espécies de cuíca da América do Sul, a Gracilinanus agilis e a Micoureus paraguayanus. A primeira apresentou uma temperatura corporal média de 33,5° Celsius e a outra, de 33,3° Celsius, pelo menos dois graus abaixo da temperatura média dos mamíferos pla­centários, o grupo ao qual pertencemos. Outra medida foi a da taxa metabóli­ca basal, que indica o nível mínimo de energia de que o animal necessita para manter as funções vitais do corpo. Para manter essa taxa, cada uma das duas es­pécies gasta, respectivamente, 4,8 quilo­calorias (kcal) e 5,5 kcal por dia.

A temperatura corporal e a taxa metabólica dos dois marsupiais bra­sileiros estavam muito próximas às de outros marsupiais australianos que já haviam sido examinados. "Do ponto de vista fisiológico", diz Cruz Neto, "uma vez marsupial, sempre marsu­pial, apesar dos milhões de anos de evolução independente e das diferen­ças de dieta e hábitat das espécies que vivem na América do Sul e na Austrá­lia". Segundo ele, aparentemente não houve pressão seletiva que levasse à modificação do plano fisiológico, que foi suficiente para esses animais co­lonizarem a Austrália. "É como se os marsupiais tivessem uma mala com roupas que lhes permitissem viver em diferentes ambientes."

Os marsupiais da América do Sul, embora menos diferentes entre si do que os autralianos, exibem distinções sutis e relevantes no tamanho e no for­mato do crânio, da mandíbula, da es­cápula e da pélvis que expressam seus hábitos alimentares e os ambientes em

que vivem. Diego Astúa, professor da Universidade Federal de Pernambuco, comparou as medidas do crânio de 2.932 animais da família dos didelfí­'deos, que abarca a maioria dos marsu­piais brasileiros, de marsupiais que vivem nos Andes e do monito deZ mon­te. Em um trabalho publicado em 2010, ele mostrou que metade dos didelfí­deos apresentava diferenças no tama­nho e na forma do crânio - em todos os casos, os machos eram mais cabe­çudos que as fêmeas. •

Artigos científicos

l. ASTÚA, D. Cranial sexual dimorphism in New World marsupiais and a test of Rensch's rui e in Didelphidae. Journal of Mammalogy. v. 91 , n. 4, p.1011-24. 2010. 2. COO PER, C.E.; WITHERS, P.C.; CRUZ-NETO, A.P. Metabolic, ventilatory and hygric physiology of a South American marsupial , the long-furred woolly mo use opossum. Journal of Mammalogy. V. 91, p 1-10. 2010.

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet I www.scielo.org

\\ENGENHARIA DE MINAS

Simulador de operação de lavra

No método de lavra câmaras-e-pilares, o sistema de lavra por conjuntos mecanizados teve, nos Estados Unidos, seu auge de aplicação entre as décadas de 1950 e 1960, dando lugar ao sistema de mineração com minerador contínuo. No Brasil, conjuntos mecanizados ainda são utilizados em minas subter­râneas de carvão na região sul de Santa Catarina. O trabalho "Simulação de produção em mina subterrânea de carvão com uso de conjuntos mecanizados", de Sandro Pinzon Pereira, da Minera San Gregório (Uruguai ), João Felipe Coimbra Leite Costa, Paulo Salvadoretti e Jair Carlos Koppe, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, descreve um simulador de ope­rações de lavra, onde todas as operações unitárias necessárias à extração do carvão foram incluídas. Foi desenvolvido para a empresa Carbonífera Metropolitana S.A. um modelo compu­tacional de simulação que auxilia na ordenação da ocupação das frentes de lavra e nas estimativas de produção. A técnica de simulação usada se denomina simulação por eventos discretos. Depois de construído e validado, o simulador mostrou-se eficaz na previsão de produção diária de carvão. Adicionalmente, o simulador ajuda a diagnosticar gargalos no ciclo de produção e esperas na realização das operações unitárias.

REM: REVISTA EsCOLA DE MINAS - VOL. 63 - N° 3 - OuRO

PRETO- JUL./SET. 2010

\\ECONOMIA RURAL

Mecanização agrícola

As organizações líderes dos mais diferentes setores têm como caracte­rística medir o próprio desempenho de modo sistêmico. Porém nas em­presas agrícolas ainda não é comum o emprego desse conceito, incluindo o setor de mecanização, que tem um forte impacto na composição dos custos de produção, e conhecer o seu desempenho é primordial para o sucesso de empresa agrícola. A importância que as medidas de desempenho têm no auxílio à gestão e o que a mecanização representa para os custos de produção justificaram o desenvolvi­mento deste trabalho, que tem como objetivo propor um sistema de medição de desempenho integrado para dar suporte à gestão

da mecanização agrícola. A metodologia foi dividida em duas etapas: adaptação de um modelo conceituai sistêmico, com base no Balanced Scorecard- BSC; e aplicação do modelo a um estudo de caso na agro indústria canavieira. A adaptação e a aplicação do modelo conceituai permitiram obter indicadores de desempenho de modo sistêmico e associados a custo e prazo (tradicionalmente utilizados) ; ao controle e melhoria na qualidade de operações e processos de apoio; à preservação ambiental; à segurança, saúde, satisfação, motivação e capacitação de colaboradores; e ao desen­volvimento de sistemas de informação. No trabalho- descrito no artigo "Proposta de um sistema de medição de desempenho aplicado à mecanização agrícola': de Paulo R. Peloia e Marcos Milan, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz­concluiu-se que o modelo auxiliou na elaboração do sistema de medição de desempenho para a gestão de sistemas mecanizados e que os indicadores permitem uma visão integrada da empresa e associada aos objetivos estratégicos.

ENGENHARIA AGRÍCOLA - VOL. 30- N° 4- JABOTICABAL­

)UL./ AGO. 2010

\\ANTROPOLOGIA

Autores indígenas

O artigo "Falas, objetos e corpos: autores indígenas no alto rio Negro", de Geraldo Andrello, da Universidade Federal de São Carlos, focaliza um fenômeno recente entre os grupos indíge­nas do noroeste amazônico: a publicação regular de livros de mitologia e histórias de clãs específicos, pertencentes a diversos grupos da região. Os livros são de autoria compartilhada, com um homem mais velho narrando o texto a seu filho, que, mais versado no português, traduz a narrativa, contando em geral com o apoio de um antropólogo para transformá-la em texto escrito. Essa iniciativa, respaldada pela Federação das Organi­zações Indígenas do rio Negro e alguns de seus aliados gover­namentais e não governamentais, tem despertado interesse no âmbito dos debates aluais em torno dos direitos intelectuais de povos indígenas e tradicionais e de como proceder ao seu reco­nhecimento e proteção. Por outro lado, no âmbito local, o uso da escrita e dos livros atualiza uma dinâmica ritual, por meio da qual esses textos eram transacionados oralmente no passado. O artigo levanta hipóteses acerca das formas de subjetivação ~ objetificação em questão, levando em consideração as relações dos grupos indígenas entre si e destes com os brancos.

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SoCIAIS - VOL. 25 - N° 73-

SÃo PAuLo- JUN. 2010

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Page 61: Crescer com saúde

\\ TRAUMATISMO

Transplante de células fetais

O estudo resumidamente apresentado aqui é um modelo experimental de transplante de células do sistema nervoso fetal de ratos wistar para o sítio de lesão medular de ratos adultos que permita sua sobrevivência e integração para possibilitar protocolos de pesquisa que identificarão outros fatores de regeneração e recuperação funcional pós-trauma raquimedular. Vinte ratos adultos foram submetidos à lami­nectomia (cirurgia executada na porção inferior da coluna) e à lesão de cinco milímetros na hemimedula realizada com au­xílio de microscópio óptico. Quinze desses ratos tiveram seu local de lesão medular transplantado com células do sistema nervoso central de fetos de rato. Os animais foram monitora­dos por dois dias e tiveram sua coluna vertebral extraída para análise histológica. Evidenciou-se que em 60% dos casos as células transplantadas permaneciam viáveis no sítio da lesão e que a reação inflamatória no grupo transplantado era sempre maior que no grupo de controle. O trabalho demonstrou a possibilidade de contar com o modelo de pesquisa para transplante de células fetais que permanecem viáveis dois dias após seu implante. Participaram do estudo "Viabilidade de células do sistema nervoso central fetal no tratamento da lesão medular em ratos" os pesquisadores Alexandre Fogaça Cristante, Marcelo Loquette Damasceno, Raphael Martus Marcon, Reginaldo Perilo de Oliveira e Tarcísio Eloy Pessoa de Barros Filho, da Universidade de São Paulo.

ACTA ORTOPÉDICA BRASILEIRA - VOL. 18 - N° 5 - SÃO

PAULO 2010

\\ZOOLOGIA

Sucesso reprodutivo das aves

O conhecimento atual sobre o sucesso reprodutivo e ca­racterísticas da história de vida da maioria das espécies de aves neotropicais é deficiente. A qualidade do hábitat onde o ninho é construído é um dos fatores que influenciam o sucesso reprodutivo das aves. O estudo "Biologia reprodutiva e uso do hábitat por Cantorchilus leucotis (Lafresnaye, 1945) (aves, Troglodytidae) no Pantanal, Mato Grosso, Brasil" teve oobjetivo de determinar atributos da história de vida, assim como o padrão de uso de hábitat a fim de compreender a dinâmica reprodutiva de C.leucotis (garrinchão-de-barriga­·vermelha) no Pantanal de Poconé, sujeito a alagamento de janeiro a abril. Foram encontrados 87 ninhos durante ases­tações reprodutivas dos anos pesquisados e, destes, 58 foram abandonados na fase de construção, quatro foram destruídos por intempéries climáticas e apenas 25 ninhos chegaram à fase de postura de ovos. A porcentagem simples de sucessos reprodutivos foi de 12%. A predação foi a maior causa de per­da de ninhos ati vos (76%). A espécie foi registrada ao longo de todos os anos de pesquisa, o que lhe conferiu o status de

residente. A pesquisa é de autoria de Paula Fernanda Albo­nette de Nóbrega e João Batista de Pinho, da Universidade Federal de Mato Grosso.

PAPÉIS AVULSOS DE ZOOLOGIA (SÃo PAULO) - VOL. 50-

N° 31 - SÃO PAULO - 2010

\\ARTES VISUAIS

A experimentação em fotografia

O artigo "Geraldo de Barros e José Oiticica Filho: experimentação em fotografia ( 1950-1964)", de Carolina Etcheverry, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apresenta os fo­tógrafos brasileiros Geraldo de Barros (ao lado, em Autorretrato, de 1949) e José Oiticica Filho e suas fotografias. Assim, contextualiza-se o período de fins da década de 1940 até 1964, ano da morte de Oiticica Filho, abordando

a história da fotografia brasileira e sua relação com a história da arte, bem como a questão da abstração. Desse modo, temos a história da fotografia moderna brasileira relacionada com os movimentos concretistas e neoconcretistas. O artigo busca também fazer uma revisão crítica dos textos escritos sobre esses fotógrafos e suas imagens, a fim de estabelecer sua importância além do campo fotográfico.

ANAIS DO MusEu PAULISTA: HISTÓRIA E CuLTURA MATERIAL

- VOL. 18- N° 1- SÃO PAULO- JAN./)UN. 2010

\\LITERATURA

A essência de Cyro dos Anjos

O artigo "Cyro dos Anjos e O amanuense Belmiro", de Rui Mourão, do Museu da Inconfidência em Ouro Preto e professor aposentado da Universidade de Brasília, aborda a linguagem de essencialidade machadiana do escritor mineiro e, em se­guida, parte para uma interpretação de seu livro mais famoso. O pesquisador, enveredando por caminho inédito na fortuna crítica do romance, que é considerável, propõe uma leitura es­trutural que subverte a visão que veio se firmando sobre a obra, revelando-a em dimensões bem mais amplas, como recriação brasileira do quixotismo de Miguel de Cervantes.

ESTUDOS AvANÇADOS- VOL. 24- N° 69- SÃo PAULO- 2010

\\ O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dispo· níveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

Page 62: Crescer com saúde

LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

HIDROGÊNIO NO HAVAÍ

Dez empresas, agências do governo federal

e universidades uniram-se a uma iniciativa

patrocinada pela empresa norte- americana

The Gas Company (TGC) e pela fabricante

de veículos General Motors (GM) cujo obje­

tivo é criar até 2015 uma frota de veículos

movidos a hidrogênio e desenvolver uma infraestrutura associada de abastecimen­

to no estado do Havaí. Batizado de Hawaii

Hydrogen lnitiative (H21), o plano tem como

objetivo fazer do hidrogênio um importante

componente na matriz de energia sustentá­vel do arquipélago. Ao oferecer à população

da ilha de Oahu, de 1 milhão de habitantes,

a possibilidade de usar o hidrogênio como

combustível para seus carros, as autorida­

des pretendem reduzir a dependência ha-

vaiana do petróleo - 90% desse combustível fóssil é impor­

tado. O plano foi estruturado em março de 2010 por meio de

um memorando de entendimento entre a TGC e a GM. A TGC

fabrica atualmente hidrogênio com gás natural suficiente para

abastecer 10 mil veículos movidos à célula combustível, equi­

pamento que gera eletricidade com o hidrogênio, mas, segundo

a empresa, tem capacidade para produzir muito mais.

CONEXÃO MICROFLUÍDICA

Engenheiros biomédicos do campus de Davis da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, criaram um pequeno aparelho dotado de conexão para celulares e notebooks

com chips microfluídicos que poderão formar a base da próxima geração de dispositivos compactos para análises químicas. A microfluídica envolve a manipulação de pequenas quantidades de líquidos em uma espécie de chip do tamanho de um selo

62 • JANEIRO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 179

de cartas composto por canais com alguns micrômetros de diâmetro em uma membrana de plástico. O aparelho permite uma ampla aplicação, como em análise de alimentos, diagnósticos clínicos e farmacêuticos e monitoramento ambiental. O problemá é a dificuldade de conectá-lo a aparelhos eletrônicos para leitura dos resultados, armazená-los, exibi-los ou transmiti-los. Os novos conectores devem ser integrados com um componente periférico interconectado (PCI, na sigla em inglês), padrão em equipamentos eletrônicos.

I CELULARES CIENTÍFICOS

Um celular do tipo smartphone dotado do software Epicollect poderá se tornar uma ferramenta comum entre biólogos, arqueólogos, epidemiologistas e demais pesquisadores que saem a campo para coletar dados e fotografias. O sistema foi desenvolvido pela Imperial College London, da Inglaterra, e financiado pela Fundação Wellcome Trust. Pode ser acessado pelo si te www. epicollect.net com um celular de qualquer marca, mas com sistema operacional Android, da Google, ou com um iPhone, da Apple. Com eles é possível coletar dados com informações referenciadas por GPS e mapas e enviar para o site, que se encarregará de arquivar dentro de um projeto previamente elaborado pelo usuário.

I NOV PRO

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Page 63: Crescer com saúde

I NOVA ESCALA DE PROCESSAMENTO

Está no horizonte da empresa IBM a construção de um supercomputador com capacidade de processar dados mil vezes mais rápido- com poder de executar um milhão de trilhões de cálculos em um segundo- do que a máquina mais avançada da atualidade. Esse sistema computacional irá funcionar na escala dos exaflops (10 18) , enquanto hoje o processamento está no nível dos teraflops (10 12).

A tecnologia que permitirá esse salto é uma nova solução para os chips, integrando nanodispositivos elétricos e ópticos num material semicondutor de silício. Assim, esses nanodispositivos poderão se comunicar com pulsos de luz em vez da exclusividade dos sinais elétricos. É o que a IBM chama de tecnologia do silício integrado

Chip integrado por dispositivos óptico e elétrico

à nanofotônica, resultado de 10 anos de estudos dos laboratórios da IBM Research, o centro de pesquisa e desenvolvimento da empresa. Com a luz integrada ao sistema de comunicação entre chips, a densidade de informação que é processada aumenta muito e o processamento ganha em rapidez.

GIGANTE NO FUNDO DO MAR

Um projeto piloto planejado para o estreito de Puget

Sound, no litoral do estado de Washington, nos Esta­

dos Unidos, deverá ser o primeiro conjunto de turbi­

nas de grande porte para extrair energia elétrica das

marés e das correntes marítimas do fundo do mar. A

previsão é que duas turbinas, de 10 metros de diâme­

tro e capazes de gerar uma média de 100 quilowatts

(kW), potência suficiente para abastecer entre 50 e 100 residências durante a fase de testes, sejam ins­

taladas em 2013. A velocidade das correntes maríti­

mas no local é de 15 quilómetros por hora. O projeto

e a instalação das turbinas, além do monitoramento

ambiental, são feitos por pesquisadores da Universi­

dade de Washington. Os resultados da iniciativa indi­

carão se essa tecnologia tem ou não potencial para

ser replicada em escala comercial.

I A MENOR BATERIA DO MUNDO

A corrida pela menor bateria do mundo continua. Pesquisadores do Laboratório Nacional Sandia, dos Estados Unidos, anunciaram ter conseguido criar um nanofio cuja aparência não lembra em nada as baterias convencionais existentes

no mercado. Recarregável, ela é feita de lítio, material base das baterias usadas atualmente em celulares e notebooks. O nanodispositivo consiste de um filamento de óxido de estanho de 10 nanômetros de espessura e 10 micrômetros de comprimento, um catodo de óxido de lítio-cobalto de três milímetros de comprimento e um eletrólito líquido. Segundo o pesquisador Jianyu Huang, do Centro para Nanotecnologias Integradas da instituição, o que motivou o desenvolvimento foi a constatação de que as baterias de íon lítio possuem hoje importantes aplicações, mas sua baixa energia e potência nem sempre satisfazem à demanda. Acredita-se que esse trabalho poderá ajudar no desenvolvimento de aparelhos com baterias otimizadas e menores e com maior durabilidade.

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 63

Page 64: Crescer com saúde

LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

I FILHA DA UNICAMP NA CHINA

A russa Yulia Eniseyskaya foi contratada como desenvolvedora de sistemas para internet pela empresa Ci&T, com sede em Campinas, no interior do estado de São Paulo, para trabalhar na cidade de Ningbo, na China. Ela foi anunciada como o milésimo funcionário contratado por essa empresa, que desenvolve soluções inovadoras baseada em softwares principalmente para grandes empresas. Ela possui filiais em várias cidades brasileiras, nos Estados Unidos, no Japão, na Inglaterra e na China, e atua em outros países, como África do Sul. É uma empresa global nascida como microempresa e criada por três engenheiros da computação formados na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em

1995 (ver Pesquisa FAPESP n° 84). A Ci&T faz parte do grupo das chamadas "filhas da Unicamp" que englobam cerca de 130 empresas de ex-alunos, professores, funcionários ou empresas ligadas à incubadora da universidade.

I PRIMEIRO VOO COM BIOQUEROSENE

Considerado um dos vilões do aquecimento global em razão das elevadas emissões de carbono dos aviões, o setor de transporte aéreo poderá em breve começar a virar o jogo. A TAM realizou um voo teste com um Airbus 320 abastecido com bioquerosene de aviação fabricado a partir do óleo de pinhão-manso. A iniciativa teve a participação da Curcas, empresa especializada em projetos de energia sustentável, e da Brasil Ecodiesel, produtora

64 • JANEIRO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 179

PARCERIA ILUMINADA

Desenvolver soluções inovadoras de iluminação para mercados emergentes utilizando a tecnologia Oled (diodo orgâ­nico emissor de luz, na sigla em inglês) é o objetivo da parceria firmada entre a multinacional Philips e a Fundação Cen­tros de Referência em Tecnologias Ino­vadoras (Certi), instalada no campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, para execução do Projeto EMO (Emerging Marketing Oled). Com a tecnologia, as lâmpadas e luminárias formadas por pontos de luz darão lugar a uma única lâmina capaz de produzir uma luz difusa, potente,

bastante semelhante à natural, porém de longa vida útil, baixa voltagem e com mais eficiência energética. Detentora de várias patentes da tecnologia, até

agora a Philips concentrava as pesquisas e desenvolvimento apenas em um de seus laboratórios na Alemanha. O diodo orgânico emissor de luz, que tem moléculas de carbono em sua composição, funciona por meio de uma corrente elétrica que passa por semicondutores prensados entre duas lâminas de vidro de cerca de 1,8 milímetro de espessura.

de biodiesel. A fabricante europeia Airbus e a Air BP, unidade de distribuição de combustíveis para aviação da inglesa BP, também apoiam o projeto, que terá seu estudo de viabilidade executado pela Universidade Yale, nos Estados Unidos. O bioquerosene encontra-se em estado avançado de homologação internacional, para que possa ser misturado ao querosene convencional em até 50% em voos comerciais. O projeto teve início em 2009 e a previsão é que o bioquerosene comece a ser produzido em escala comercial em 2013.

Combustível de óleo vegetal para av ião

I LIMI coe

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Page 65: Crescer com saúde

I LIMPEZA COM COCO-VERDE

A casca de coco-verde mostrou em testes realizados na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) um bom desempenho na etapa inicial de remoção da matéria orgânica em um sistema de tratamento de esgoto doméstico de pequenas comunidades. Como nesses locais normalmente a questão sanitária ainda está longe de ser resolvida, os filtros anaeróbios apresentam grande potencial de utilização, pelo baixo custo de instalação, manutenção e operação. Partindo dessa constatação, pesquisadores da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, sob orientação do professor Bruno Coraucci Filho, testaram o desempenho da casca de coco-verde, por ser bastante resistente à degradação, como suporte de filtros anaeróbios de fluxo ascendente em uma primeira etapa de um sistema de tratamento de esgoto. Os estudos, feitos com o esgoto bruto derivado de uma região

da universidade na qual circulam cerca de 1 O mil pessoas por dia, mostraram que o material conseguiu remover 69% da matéria orgânica em relação ao esgoto bruto.

I CALÇADOS APROPRIADOS

Para manter os pés com uma sensação de conforto térmico constante tanto em dias frios como quentes, pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) desenvolveram um sistema eletrônico que fica instalado em uma palmilha, capaz de regular a temperatura do calçado. "O controle de calor é feito por pequenos dispositivos semicondutores, que avaliam a temperatura externa e automaticamente controlam o fluxo de calor do pé para fora, ou vice-versa. "O próprio efeito da pressão do pé no solo gera a corrente elétrica que permitirá a transferência de calor de uma fase para outra", diz o professor Francisco Javier Ramirez Fernandez, que trabalha no desenvolvimento da

Nos países frios, por exemplo, ao sair de um ambiente com baixa temperatura para um local com calefação, as pessoas não precisarão mudar de calçado. "O calor gerado na cavidade do calçado ameniza o choque térmico", diz Fernandez. No Brasil, a palmilha poderá ser usada, por exemplo, em tênis para esportistas que precisam eliminar o calor acumulado nos pés em corridas de longa distância ou em sapatos

palmilha em parceria com o professor João Francisco Justo Filho, ambos

para idosos com problemas de circulação. O sistema teve patente elaborada

do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Poli.

pela Agência USP de Inovação e já atraiu o interesse de empresas.

INOVAÇÕES PREMIADAS

As regiões Norte e Nordeste venceram

três das sete categorias da 13a edição

do Prêmio Finep de Inovação 2010.

A Softwell, da Bahia, fornecedora de

tecnologias pará softwares, ficou com

o primeiro lugar na categoria Micro

e Pequena Empresa. A Oficina Es­

cola de Lutheria da Amazônia, que

oferece aos estudantes do ensino

profissionalizante oportunidades

para transformar os recursos flo­

restais em instrumentos musicais,

venceu como Tecnologia Social. O Cen­

tro de Estudos e Sistemas Avançados do

Recife (Cesar), de Pernambuco, ganhou

como Instituição de Ciência e Tecnologia.

A Embraco, de Santa Catarina, fabricante

de compressores, venceu nas categorias

Grande Empresa e Gestão da Inovação.

A Treetech, de São Paulo, especializada

em gestão on-line de subestações elétri­

cas, ganhou como Média Empresa. Julio

Abel Segalle, de São Paulo, ficou com

o prêmio de Inventor Inovador com um

projeto de mouse ortopédico.

Compressor desenvolv ido pela Embraco

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 65

Page 66: Crescer com saúde
Page 67: Crescer com saúde
Page 68: Crescer com saúde

Mícrotron total

Completo como mostra o esquema

ao lado, o mícrot ron ocupará

duas grandes salas do Instituto

de Física. Hoje está na primeira,

à esquerda, sem o acelerador

principal e com o alvo, o materia l a

ser analisado. A produção do feixe

começa no canhão. Depois segue

pelo injetor, ganha velocidade no

booster, atinge o alvo e gera

fótons. Como linhas aux iliares

existem as de irradiação pelo fe ixe

de fótons e por Bremsstrahlung,

além do absorvedor do feixe.

feixe contínuo, muito mais complexa que uma pulsada."

O feixe de elétrons na interação com um alvo-radiador, que é um material normalmente metálico colocado den­tro da tubulação antes do material a ser analisado, produz fótons, partículas ele­mentares de luz, com energia suficiente para investigar a estrutura nuclear de forma independente dos processos da interação que ocorrem entre prótons e nêutrons, o que garante uma nova ferramenta para o estudo do núcleo dos átomos. A colisão dos elétrons contra esse alvo-radiador também gera raios X e gama que são radiações penetrantes usadas em vários tipos de análise, inclu­sive as nucleares. "A interação do feixe de elétrons com uma amostra arranca elétrons da camada interna desse ma­terial e o preenchimento do buraco por outro elétron do átomo produz raios X. Pode acontecer também o efeito de bremsstrahlung, que é a radiação de freamento repentino dos elétrons pelo núcleo do átomo, fenômeno no qual se baseia a produção dos raios X nos apa­relhos de uso médico. Esses processos, mais a radiação óptica de transição, que é a luz gerada pelo elétron quando ele deixa o vácuo por onde transita para ingressar em um meio material, estão sendo estudados em nossos primeiros experimentos com o acelerador."

O projeto do novo acelerador co­meçou a tomar corpo por meio de um acordo com o IF da USP e o Laborató-

68 • JANEIRO DE 2011 • PESQU ISA FAPESP 179

INJETOR

CANHÃO DE ELÉTRONS

ABSORVEDOR DO FEIXE

LINHA DE BREMSSTRAHLUNG

rio Nacional Los Alamos, dos Estados Unidos, que forneceu um projeto para a construção das estruturas aceleradoras do mícrotron no início dos anos 1990. O instituto norte-americano também estava construindo um acelerador des­se tipo de maior energia que chegou a funcionar, mas mostrou-se instável

OS PRO~ETOS

1. Montagem da sala de controle do mícrotron - n° 98/15389-9 • 2. Aquisição de dados no laboratório do acelerador linear - n° 97/04084-0 3. Sistema de transporte do feixe do mícrotron booster - n° 03/07008-5 4. Instalação e caracterização da rede de micro·ondas de alta potência do acelerador mícrotron do IFUSP- n° 06/01017-0

MODALI DAD E

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa

COORDENADORES

1 e 3. Marcos Nogueira Martins - USP 2 e 4. Vito Roberto Vanin - USP

INVESTIMENTOS

1. R$ 40.835.45 e US$ 31.425,00 (FAPESP) 2. R$ 44.047,73 e US$ 55.659,50 (FAPESP) 3. R$ 166.665,00 (FAPESP) 4. R$ 124.812,50 e US$ 25.700,00 (FAPESP)

ACELERADOR PRINCIPAL

ALVO

e foi desativado. "Nós queríamos tra­balhar com energias mais baixas e o professor Jiro Takahashi [do próprio IF da USP] redesenhou o projeto e construiu as estruturas aceleradoras", diz Vanin. No início do projeto e cons­trução do acelerador, a coordenação dos trabalhos esteve com o professor Marcos Martins, que atualmente é di­retor de pesquisa e desenvolvimento da Comissão Nacional de Energia Nu­clear (Cnen). "Todos os componentes do mícrotron foram construídos com tecnologia nacional, comprados de indústrias brasileiras, com exceção da válvula Klystron, que amplifica micro­-ondas, e alguns acessórios. Ao cons­truir a máquina nós ganhamos o do­mínio das condições experimentais, conhecemos os limites e as possibili­dades de todos os componentes, além de a manutenção ser feita por nós e sabermos se as mudanças serão fáceis ou difíceis, caras ou baratas."

Parceiros da usinagem - Alguns com­ponentes, como as câmaras de vácuo de um equipamento chamado de booster, ao longo do mícrotron, foram usinados pelo Centro Tecnológico da Marinha, em São Paulo. É no interior dessas câ­maras, colocadas dentro de eletroímãs, que o feixe de elétrons dá voltas para repassar numa estrutura aceleradora e ganhar velocidade. Outra contribuição veio do Instituto de Estudos Avançados (IEAv), do Departamento de Ciência e

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Page 69: Crescer com saúde

Tecnologia Aeroespacial (DCTA), que usinou os canais por onde passa a água de refrigeração das estruturas acelera­doras. A máquina, neste estágio inicial, possui seis metros de comprimento para condicionamento dos elétrons e alguns metros quadrados para o booster.

A válvula klystron, de origem fran­cesa, foi financiada pelo Banco Intera­mericano de Desenvolvimento (BID), em 1989, num valor total, que inclui um equipamento de testes, de cerca de US$ 200 mil. Ela é um amplificador de micro-ondas que fornece ondas eletromagnéticas para servir de meio de aceleração dos elétrons no percurso ao longo do equipamento até atingir a amostra a ser analisada. São dezenas de quilowatts de potência inseridos na tubulação, o equivalente a uma centena de fornos domésticos de micro-ondas. Os elétrons são gerados num canhão, capaz de produzir 100 quilovolts, que retira essas partículas de um compo­nente eletrônico chamado de catodo. O feixe de elétrons possui uma corrente elétrica de 50 micro-amperes, que pa­rece pequena quando comparada ao consumo de um eletrodoméstico, mas corresponde ao fluxo de centenas de bilhões de elétrons por segundo. Oca­nhão foi projetado e construído no IF com o aperfeiçoamento de uma solda realizada em um forno a vácuo para a ligação entre peças metálicas e cerâ­micas. O tubo cerâmico do canhão de elétrons foi doado pela empresa NGK do Brasil, fabricante de velas de ignição para motores automobilísticos.

Viagem do feixe - Depois de produzido no canhão de elétrons, o feixe viaja em uma espécie de túnel com diâmetro de um centímetro e meio. Ao longo do tra­jeto, quando o túnel atravessa câmaras chamadas de cavidades, as micro-ondas são injetadas e formam um campo elé­trico na direção do feixe. Nas pontas da estrutura aceleradora do booster existem dois grandes eletroímãs que fazem o feixe retornar para ela, de modo a fornecer novo impulso ao feixe. Para que tudo funcione sem interferências externas, uma parte do equipamento possui uma blindagem magnética que bloqueia, inclusive, o campo magnético da Terra. Ao longo de todo equipamento há uma série de microcontroladores que checam vários parâmetros. Entre os sistemas necessários

' Com o avanço

tecnológico, haverá

necessidade de

aceleradores

industriais com

feixes de alta

energia, diz Vanin

ao bom funcionamento do mícrotron está o de proteção pessoal. "Existe um sistema de intertravamento que desliga o acelerador caso alguém entre no prédio da máquina, por medida de precaução contra possíveis problemas com a radia-

Complexidade para garantir um feixe rápido e contínuo

ção X ou gama - ninguém fica ao lado do mícrotron enquanto ele funciona." O controle do equipamento é feito de outra sala do instituto com um sistema dotado de um software exclusivo desen­volvido pela equipe do mícrotron.

O projeto e a construção do mícro­tron mostram o esforço de indepen­dência de um grupo de pesquisadores em dotar o país de um instrumento de grande importância não apenas para a ciência básica como também para a in­dústria. "Cada vez mais com o avanço tecnológico haverá necessidade de ace­leradores industriais para analisar peças com feixes de alta energia, por exemplo, e nós provamos que temos capacidade científica e tecnológica para a constru­ção de um acelerador de elétrons. Assim podemos transmitir conhecimentos em aceleradores para quem necessite cons­truir um", diz o professor Vanin. Ele con­ta também que o grupo do mícrotron tem interesse em manter intercâmbio com pesquisadores de outras institui­ções que desejem usar o acelerador. •

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 69

Page 70: Crescer com saúde

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Ferramenta genética

m breve não será mais necessário esperar o bife na mesa para saber se a carne é macia. Por meio de exa­mes biotecnológicos com o uso de sangue, pelos e até com amostras do sêmen será possível prever se de­terminado animal da raça nelore,

ainda bezerro de poucos meses, terá ou não uma carne tenra. A nova tecnologia usa mar­cadores moleculares, variações na sequência de DNA que permitem diferenciar os indi­víduos de uma espécie, para identificar os animais com predisposição genética para ter a carne mais macia. Desenvolvido por uma rede coordenada por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), unidade Pecuária Sudeste, em São Carlos, no interior paulista, e da Uni­versidade Federal de São Carlos (UFSCar), o trabalho resultou num pedido de patente internacional para o método de identificação de animais com esse potencial de qualidade. O nelore é responsável por cerca de 60% do rebanho nacional, que somou no final de 2009, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 205 milhões de bovinos. O Brasil é o segundo rebanho mundial, atrás da Índia, e o segundo produ­tor de carne, logo depois dos Estados Unidos, com 6,6 milhões de toneladas produzidas em 2009. Desse totall4% foram exportados

Identificados marcadores moleculares de carne macia em gado nelore

EVANILDO DA SILVEIRA

Gado canchim: genes

relacionados à espessura da gordura

Page 71: Crescer com saúde

e, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, nos primeiros 10 meses de 2010, a exportação, apenas para a Europa rendeu US$ 548 milhões.

Os importantes resultados para a pe­cuária nacional em relação aos marcadores moleculares do nelore é consequência de um estudo anterior realizado pela mesma Em­brapa Pecuária Sudeste com a raça canchim, que possui cerca de 90 mil animais registra­dos e tem importância principalmente no cruzamento com outras raças para a pro­dução de carne. "Vínhamos trabalhando, desde 1998, no desenvolvimento de mar­cadores moleculares para auxiliar a seleção nessa raça", explica a pesquisadora Luciana Correia de Almeida Regitano, líder dos dois projetas. "Havíamos encontrado marcadores para peso dos animais em diferentes idades, mas só a partir de 2003 conseguimos coletar informações sobre a espessura de gordura subcutânea (EGS), característica importante para um melhor desempenho econômico da raça porque ajuda a proteger a carne durante o armazenamento sob refrigeração."

A escolha do canchim é uma evolução natural dos estudos realizados em São Car­los. Foi lá que essa raça nasceu, desenvolvida a partir da década de 1940 na antiga Fazen­da de Criação do Ministério da Agricultu­ra, onde está instalada a Embrapa Pecuária

Sudeste. A raça canchim é formada por 5/8 de sangue charolês, de origem francesa, e 3/8 de gado zebuíno, como nelore e indu­brasil. O objetivo dessa composição foi reu­nir em uma raça as qualidades das outras duas, como a rusticidade e a capacidade de adaptação às condições tropicais do Brasil que os zebus (Bos taurus indicus), gado de origem indiana, possuem, e a produtivida­de e a carne macia do gado europeu (Bos taurus taurus), como o charolês. Assim, pesquisadores dessa unidade da Embrapa sempre mantiveram estreito relacionamento com o programa de melhoramento e com as associações de criadores da raça. Luciana explica que marcadores moleculares são va­riações na sequência de bases do DNA, que ocorrem naturalmente entre os indivíduos de uma espécie e são passados de pai para filho. "Nem sempre, no entanto, essas varia­ções produzem diferenças visíveis entre os indivíduos, mas podem ser usadas como se fossem 'placas de sinalização' em uma rodo­via, ajudando a localizar regiões do genoma que produzem essas diferenças. No nosso caso, estamos interessados em localizar os genes que contribuem para as diferenças na produção e qualidade da carne de bovinos criados em condições tropicais."

Nas pesquisas com o gado canchim, du­rante o trabalho de doutorado da aluna Gisele

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Experimentos genéticos medem transformação de alimentos

...,. _ _ _ ..._ __ -'-..._o...&.._. em carne

Batista Veneroni, da UFSCar, orientado por Luciana e apoiado pela FAPESP entre 2007 e 2010, foram estudados alguns genes que poderiam ter relação com a capacidade de o animal produzir e armazenar gordura corporal. Para um desses genes, o fator de diferenciação celular DDEF1 -uma proteína com a função de transmitir sinais para a célula e que está envolvida no processo de di­ferenciação-, havia relatos na literatura de que em camundongos e humanos ele transformava fibroblastos (célula do te­cido conjuntivo) em adipócitos, células que armazenam gordura nos animais. Mas não havia estudos com bovinos.

Olho na gordura - Luciana conta que o grupo resolveu, então, procurar va­riações nesse gene DDEF1, também conhecido como Arf-GAP ou Asap1, localizado no cromossoma 14 de bovi­nos e que produz a proteína do mesmo nome (DDEF1), para depois relacioná­-las com a quantidade de gordura sub­cutânea no canchim. Ela explica que para identificar as associações entre os marcadores e as características de interesse é necessário ter informações fenotípicas, como, por exemplo, espes­sura de gordura, área do olho do lombo - seção do músculo traseiro correspon­dente ao contrafilé- e maciez da carne de um grande número de animais. Co­nhecida como AOL, a área do olho do

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OS PRO~ETOS

1. Marcadores moleculares aplicados ao programa de melhoramento de bovinos da raça canchim -n° 2001/ 10036-5 2. Associação de SNPs em genes candidatos e de regiões cromossômicas com espessura de gordura subcutânea em bovinos da raça canchim -n° 2006/06237-9 3. Prospecção e validação de SNPs em genes candidatos para maciez de carne em famílias de referência da raça nelore -n° 2010/06515-4

MODALIDADE

1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 2 e 3. Bolsa de Doutorado

COORDENADORA / ORIENTADORA

Luciana Correia de Almeida Regitano - Embrapa

BOLSISTAS

1. Gisele Batista Veneroni - UFSCar 2. Polyana Cristine Tizioto - UFSCar

INVESTIMENTO

1. R$ 17.641,35 e US$ 6.029,00 (FAPESP) 2. R$ 99.864,96 (FAPESP) 3. R$ 111.318.48 (FAPESP)

lombo é usada como uma medida que tem relação com a produção de carne do animal. Quanto mais musculoso, mais ele terá carne em relação aos ossos e à gordura, por exemplo.

No caso do canchim, foram estu­dados 750 animais de diversas proprie­dades. Os pesquisadores submeteram os dados a modelos matemáticos que permitem incluir os efeitos ambientais e genéticos relacionados às características de produção. "Nesses modelos incluí­mos o efeito do marcador molecular", explica Luciana. "Com o avanço das me­todologias de análise de marcadores, em breve poderemos incluir nesses modelos os efeitos de um grande número de mar­cadores, cobrindo todo o genoma, o que permitirá predizer um valor genômico para cada animal." Esse valor indicaria com maior precisão qual o peso e a in­fluência dos genes nas características do animal. A outra influência vem do ambiente. De acordo com ela, o mapea­mento do genoma bovino - resultado do trabalho de um consórcio de 300 pesquisadores de 25 países, inclusive o Brasil, que durou seis anos e foi concluí­do em abril de 2009- foi uma etapa im­portante no desenvolvimento do mar­cador para características de qualidade da carne, porque forneceu informação sobre a sequência e localização do gene DDEFl nos bovinos. "Essa informação era essencial para iniciarmos os nossos estudos", diz Luciana. O projeto de Gi­sele deu origem ao primeiro depósito de patente. No caso, um método e um kit para identificação precoce de deposi­ção de gordura em bovinos, para uso da variação na sequência do gene DDEFl como indicador de potencial genético na deposição de gordura da raça canchim. Participaram desse projeto, além de Gi­sele, do Programa de Pós-graduação em Genética e Evolução da UFSCar, pesqui­sadores da Embrapa Pecuária Sudeste e da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, de Batuca tu, da Universidade Estadual Paulista (Unesp ).

Em 2007 o grupo deu início a ou­tro projeto, a formação de uma rede de pesquisa para estudos genéticos relacionados à produção de carne ou Rede Bifequali. Ela é composta por seis unidades da Embrapa pelas universi­dades de São Paulo, por meio da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), Unesp de Jaboticabal, Estadual

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de Campinas, e Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, na Bahia, além do Instituto de Zootecnia do Estado de São Pau­lo. Nessa rede, os pesquisadores avaliam, entre outras características, a variabili­dade genética de animais da raça nelore para atributos como a qualidade e a efi­ciência na transformação de alimentos em carne, além do temperamento deles. Para isso, eles estão criando, confinando e abatendo cerca de 250 machos por ano, durante três anos.

Acerto na variação - O primeiro abate foi feito em 2009, quando os pesqui­sadores investigaram a relação entre a variação na sequência do gene DDEF1 e diversas características de produção avaliadas no projeto. Eles não encontra­ram no nelore associação com a quan­tidade de gordura, mas descobriram uma ligação com a variação no peso do animal aos 18 meses, na área do olho do lombo. O mais surpreendente, segundo Luciana, foi que os estudos também re­velaram uma associação com a maciez da carne, uma das qualidades mais im­portantes para a aceitação do produto, principalmente no mercado externo. "O interessante é que a variante associada à maior área do olho do lombo também está associada à maior maciez da car­ne", diz a pesquisadora. "Assim, a seleção

Gado nelore: em maior número no rebanho brasileiro

' A seleção do nelore

com base em

variações genéticas

deve aumentar

a musculosidade

e a maciez da carne,

diz Luciana

do nelore com base nessa variação deve aumentar a musculosidade e a maciez da carne." Essa descoberta foi protegida pelo pedido de patente internacional. O projeto que deu origem a esse pedido fazia parte do mestrado, realizado entre 2009 e 2010, da aluna Polyana Tizioto, bolsista da FAPESP, na UFSCar.

De acordo com Luciana, também orientadora de Polyana, esse trabalho é apenas o primeiro passo para desvendar outros genes de interesse nos bovinos. Essa tarefa será facilitada pelas pesquisas que Luciana começará a desenvolver no começo de 2011. "Vou levar o DNA de 600 nelores produzidos nos três anos do projeto para um estudo em parceria

com o Bovine Functional Genomics Laboratory, do Agricultura! Research Service, dos Estados Unidos. Lá ela vai analisar os marcadores desses animais conhecidos como single nucleotide poly­morphism (SNPs) que podem estar em qualquer parte do genoma, dentro da sequência de genes ou em sequências não codificadoras, que não produzem proteína. São 700 mil marcadores inseri­dos no chip Bovine HD, uma placa com dados genéticos", revela. A tecnologia que Luciana irá usar nos Estados Unidos deverá ser implantada no Brasil com a compra de equipamentos por meio de um projeto do Programa Equipamentos Multi usuários da FAPESP, recém-apro­vado e coordenado pelo professor Luiz Lehmann Coutinho, da Esalq.

A tecnologia desenvolvida pelos pesquisadores ainda não está dispo­nível para os produtores. A próxima etapa do trabalho do grupo é identificar potenciais parceiros que possam co­mercializar a tecnologia. ''A seleção de animais mais eficientes traz benefícios não apenas econômicos", lembra Lu­ciana. ''A alimentação pode representar isoladamente de 5 a 26% dos custos de produção de gado de corte. Além disso, animais mais eficientes emitem menos gases de efeito estufa e necessitam de menor área para produção." •

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 73

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[ NOVOS MATERIAIS ]

Plásticos de vegetais

Embalagens e produtos para uso agrícola são fe itos com milho, mandioca e fibras

DINORAH ERENO

atéria-prima obtida de diversas fontes vegetais com muitas possibilidades de modificação química e física, o amido é um polissacarídeo que pode se transformar em um biopolímero promissor para o desenvolvimento de em­balagens biodegradáveis, filmes plásticos e outros produtos para uso na agricultura. Na

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior paulista, um novo material que deve ser util izado na fabri­cação de tubetes usados para mudas de reflorestamento e outras aplicações foi desenvolvido a partir de um plástico biodegradável feito de amido de milho e de resíduos ve­getais como fibra de coco, serragem de madeira e casca de mandioca. O resultado é um plástico rígido que se degrada em seis meses quando enterrado no solo.

O projeto surgiu da necessidade da empresa Corn Products Brasil de ampliar as aplicações de um plásti­co biodegradável conhecido como Ecobras, que já está no mercado, desenvolvido em parceria com a Basf. O Ecobras é um plástico flexível usado, por exemplo, na fabricação de sacolas de supermercado, que mistura na sua formulação amido de milho e uma resina polimé­rica termoplástica de nome Ecoflex, obtida pela Basf a partir de uma fonte petroquímica. "A mistura de 51% em massa de amido de milho ao Ecoflex resultou no pro­duto Ecobras, um plástico flexível biodegradável", diz o professor Elias Hage Júnior, professor do Departamento de Engenharia de Materiais da UFSCar, coordenador do projeto que resultou em um terceiro composto, o plástico biodegradável rígido. "A adição da casca da

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mandioca ao Ecobras confere rigidez ao material, enquanto a fibra de coco oferece maior resistência mecânica, tornando o plástico menos suscetível a rupturas", diz Hage Júnior.

Os testes de biodegradação do ma­terial foram feitos em uma espécie de aquário, em que corpos de prova são enterrados no solo e periodicamente retirados para análises. "Verificamos que os corpos de prova feitos com o plástico Ecobras em associação com a casca de mandioca e a fibra de coco desapareceram completamente em seis meses", relata Hage Júnior. Ou seja, se o material for utilizado em recipientes como tubetes para plantio de mudas de reflorestamento ele poderá ser enterra­do junto com a muda no solo e se bio­degradará enquanto a planta cresce.

Plástico rígido - Os tubetes feitos de plástico convencional, como polipro­pileno, não podem ser reutilizados, principalmente no caso de plantios em larga escala, porque se eles esti­verem contaminados com fungos e bactérias as doenças provavelmente serão transmitidas para a próxima ge­ração de plantas. O projeto, que teve início em 2008 como uma prestação de serviços da UFSCar, terminou em 2009. A primeira fase da pesquisa, que resultou no plástico biodegradável rí­gido, foi encerrada e repassada para a empresa. Na universidade as pesquisas continuam em busca de novas formas de aplicação para esse filme bioplásti-

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co. Entre elas está a incorporação de substâncias, por exemplo, que possam interagir com alimentos.

Na Universidade Estadual de Lon­drina (UEL), no Paraná, pesquisadores desenvolveram uma formulação com­posta por 80% de amido de mandioca e 20% de fibra de cana-de-açúcar des­tinada à fabricação de bandejas para produtos secos, como pães, frutas e verduras. "É um produto com boas propriedades mecânicas, biodegradável e com baixo custo de fabricação", diz a professora Suzana Mali de Oliveira, do Departamento de Bioquímica e Biotec­nologia da UEL, que coordena o proje­to de pesquisa dedicado ao desenvolvi­mento de bandejas biodegradáveis. Há lO anos o foco do grupo de pesquisa da UEL era apenas o amido de mandioca, mas faz quatro anos que começaram a misturá-lo com fibras. A incorporação de fibras como o bagaço da cana deu origem a um material rígido e de baixa densidade, que apresenta um aspecto similar ao do poliestireno expandido e pode ser moldado por termo formação. Mas seu uso, por enquanto, se restringe a produtos secos, porque a umidade pode degradar a embalagem.

Outra vertente das pesquisas lide­radas por Suzana trata do desenvolvi­mento de bandejas para alimentos feitas com amido de mandioca e reforçadas com nanocompósitos. "Temos usado nanoargilas, que são pós originários da decomposição de cinzas vulcânicas, na concentração de 2,5% a 5%, mistura-

dos a fibras vegetais", diz a pesquisa­dora, que está testando várias formu­lações com diferentes concentrações. O tempo em que o material permane­ce no ambiente varia de acordo com as condições. "Quando submetidos a bastante umidade, alguns materiais se degradaram completamente em 45 dias", diz a pesquisadora. O projeto, intitulado Aplicação de nanocompósi­tos no desenvolvimento de embalagens biodegradáveis de alimentos, faz parte do edital Jovens Pesquisadores em Na­notecnologia, lançado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí­fico e Tecnológico (CNPq).

O amido de mandioca também en­tra na composição de filmes plásticos biodegradáveis desenvolvidos pelo gru­po de pesquisa coordenado pela profes­sora Maria Victória Eiras Grossmann, do Departamento de Ciência e Tecno­logia de Alimentos da UEL, que podem ser usados para acondicionar mudas de plantas, proteger frutas no campo ou ainda como cobertura de solo para o cultivo de hortaliças e frutas. Para me­lhorar as propriedades mecânicas dos filmes os pesquisadores utilizam glice­rol- substância resultante do processo de produção de biodiesel- da ordem de 5% a 30%. "O glicerol funciona como um plastificante que deixa o material menos rígido", diz o professor Fabio Yamashita, que participa do grupo de pesquisa. Mais conhecido pelo nome

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comercial de glicerina, o glicerol pode ser obtido tanto de óleos vegetais co­mo de derivados de petróleo. "Estamos testando gliceróis da indústria do bio­diesel com vários graus de pureza para avaliar o desempenho de cada um", diz Yamashita. "Queremos saber se o grau de pureza tem ou não influência nas propriedades mecânicas e de barreira a vapor de água e gases dos filmes."

Respiração controlada - Os filmes plásticos biodegradáveis são obtidos pelo processo de extrusão, o mesmo empregado na produção de embalagens sintéticas convencionais, feitas de polie­tileno, polipropileno e outros derivados de petróleo. "Nosso trabalho consiste em fazer blendas de amido e Ecoflex com alguns aditivos e compatibilizantes para melhorar as propriedades mecâ­nicas e de barreira", explica Yamashita. Os filmes com permeabilidade seletiva a gases, por exemplo, podem ser usados para controlar a respiração de frutas e hortaliças, funcionando como uma em­balagem de atmosfera modificada. Ou para produzir saquinhos que envolvem as frutas no campo e funcionam como proteção ao ataque de pragas. Testes fei­tos com goiabas mostraram que as frutas se desenvolveram muito bem envoltas em embalagens feitas com os filmes biodegradáveis. Os testes também en­volveram o plantio de mudas de plantas medicinais em embalagens feitas com o

Filmes feitos com amido de mandioca

Na plantação

de morango, a

cobertura plástica

começou a se

degradar após três

meses no solo

plástico de amido de mandioca, Ecoflex e glicerol. Elas resistiram 120 dias, em média. "A grande vantagem desse ma­terial é que, por ser biodegradável, nãq é preciso tirar a muda da embalagem para fazer o transplante para o solo, o que, dependendo do tipo de planta, acaba danificando as raízes", diz Yamashita.

Quando usado como cobertura de solo, o filme é colocado para proteger hortaliças, frutos e flores do contato direto com a terra. Além disso, ele evita o desenvolvimento de ervas daninhas que concorrem com a produção.

Atualmente os agricultores usam para essas aplicações uma cobertu­ra plástica, também conhecida como mulch. A mistura de amido, Ecoflex e glicerol varia de acordo com o tipo de aplicação. "Na cobertura de solo para o morango trabalhamos com formulações que variam de 30% a 70% de amido ter­moplástico", diz Yamashita. Os melhores resultados foram obtidos com a mistura de 30% de amido termo plástico. A vida útil do material depende da aplicação. Na plantação de morangos, a cobertura

de solo entrou em processo de degrada­ção após três meses.

Uma nova linha de pesquisa de bio­plástico começou a ser desenvolvida re­centemente na UEL com o poli (ácido láctico), um polímero biodegradável também chamado de PLA. "O objetivo é o desenvolvimento de um PLA formula­do com até 70% de amido de mandioca, glicerol e compatibilizantes, para produ­ção de filmes para diversos tipos de em­balagem", diz Yamashita. Filmes de amido de milho, batata e trigo já são produzidos em escala industrial pela empresa Nova­mont, da Itália, com o nome comercial Ma ter-Bi. Mas os detalhes da formulação são um bem guardado segredo industrial. A empresa anuncia que o produto, em forma de grânulos, pode ser utilizado na fabricação de sacos de lixo e outras apli­cações, como garrafas, pratos e talheres, ou na fabricação de brinquedos. •

Artigos científicos

1. MALI, S.; DEBIAGI, F. et ai. Starch, sugarcane bagasse fibre, and polyvinyl alcohol effects extruded foam properties: A mixture design approach. Industrial Crops and Products. v. 32, p. 353-59. 2010. 2. MALI, S.; SAKANAKA, L. S. et ai. Water sorption and mechanical properties of cassava starch films and their relation to plasticizing effect. Carbohydrate Polymers. V. 60, p. 283-89. 2005. 3. BRANDELERO, R.P.H.; YAMASHITA, F. ; GROSSMANN, M.V.E .. The effect of surfactant Tween 80 on the hydrophilicity, water vapor permeation, and the mecha nica! properties of cassava starch and poly(butylene adipate-co-terephthalate) (PBAT) blend films. Carbohydrate Polymers. v. 82, p. 1.102-09. 2010.

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Empresa desenvolve sistema que purifica e umidifica o ambiente

YURI VASCONCELOS

s ambientes aclimatados artificialmente de prédios comerciais, escolas e hospitais, que podem abrigar microrganismos patogênicos e substâncias tóxicas, ganharam um novo sistema para tratamento do ar. Ele está presente em vários tipos de equipamentos desenvolvidos e produzidos pelaAquAr Air Systems, de Jundiaí,

no interior paulista. A tecnologia reduz as partículas em suspensão, prejudiciais à saúde, repõe a umidade do ar e elimina o odor com o uso de terpenos, essências extraí­das de laranjeiras, limoeiros e pinheiros. A empresa já registrou dois pedidos de patente relativos ao princípio flu idodinâmico dos equipamentos pertencentes à linha Forest Breeze (brisa da floresta, em inglês) que come­çaram a ser vendidos em 2009. Podem ser instalados no próprio ambiente ou junto a sistemas centrais de ar-condicionado. O engenheiro mecânico Antonio Car­los Neiva, criador da AquAr, diz que os purificadores convencionais limitam-se a atuar sobre determinados tipos de poluentes, dependendo da tecnologia aplicada, e os filtros de ar costumam ter eficiência restrita na eli­minação de microrganismos. "Os purificadores e filtros ressecam o ar- uns mais, outros menos -, o que não é saudável nem agradável", diz Neiva. O ar seco irrita as mucosas do trato respiratório superior, provocando tosse, e facilita o contato com bactérias e fungos.

O sistema AquAr é composto de lavadores de ar capa­zes de purificar o ambiente por meio de um mecanismo de coleta de partículas, eliminação de microrganismos e absorção de gases. O ar é umidificado e limpo por um processo em que a água funciona como o próprio filtro- o ar entra por um lado do aparelho, passa por dentro, onde sofre a ação desinfetante dos terpenos e as partículas são coletadas, e sai purificado do outro lado. "A ação biocida do terpeno elimina os microrganismos capturados e per-

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Ág ua dentro do aparelho faz o papel

de fi ltro

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Umedecedor e lavador de ar em contracorrente para uso domiciliar clínico pneumológico e outros fins - n° 02/12926-0

Programa Pesquisa lnovativa em Pequenas Empresas (Pipe)

COORDENADOR

Antônio Carlos de Barros Neiva -AquAr

INVESTIMENTO

R$ 238.828,60 (FAPESP)

fuma o ambiente com uma fragrância natural", destaca. "O único concorrente que considero direto é o Venta Air Wa­sher, da Alemanha. É um lavador de ar mas o princípio de funcionamento é diferente do nosso." Em relação à possi­bilidade de o terpeno provocar alergias, Neiva diz que o sistema teve boa acei­tação porque possui baixa alergenicida­de das matérias-primas, já comprovada em testes, e é utilizado em quantidades muito pequenas. Além disso, os biocidas sintéticos têm odor desagradável e apre­sentam maior risco de provocar algum tipo de reação alérgica.

Testes do aparelho - A história dos lavadores de ar da AquAr remonta ao início da década, quando o filho recém­-nascido de Neiva teve problemas res­piratórios. O engenheiro decidiu criar um aparelho simples para umidificar e purificar o ar do quarto da criança. Em 2003 obteve um financiamento do pro­grama Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP para conti­nuar a desenvolver o protótipo. No ano seguinte a empresa iniciou um período de incubação na Companhia de Desen­volvimento do PoJo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec), que durou qua­tro anos. Durante o aperfeiçoamento do sistema foram feitos vários ensaios microbiológicos e, em função• dos re­sultados obtidos, o comitê de ética do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) au­torizou testes com nove pacientes em tratamento domiciliar com problemas pneumológicos graves. "Os aparelhos melhoraram a qualidade do ar, redu­zindo os microrganismos", conta o en­genheiro. O trabalho foi coordenado pela professora e pneumologista Ilma Paschoal e pela doutoranda Márcia Di­niz, também pneumologista. "Nos en­saios laboratoriais o aparelho se mos­trou eficiente em diminuir o número de unidades formadoras de colônias de microrganismos nos ambientes, com a vantagem de poder ser higienizado com facilidade, sem a necessidade de substi­tuir elementos filtrantes. Os testes com pacientes, no entanto, foram realizados com um número pequeno de voluntá-

rios e não permitiram cone sões mais consistentes", diz Ilma. Ela explica que o processo físico básico do aparelhà-à AquAr é conhecido há muito tempo. "A vantagem está relacionada ao fato de o aparelho retirar partículas em suspen­são do ar, biológicas ou não, e não ter necessidade de usar materiais porosos, como colmeias e filtros, para aumentar a eficiência da evaporação que resfria e umidifica o ar ambiente. Portanto, a inovação está relacionada à limpeza e higienização do ar processado."

Um momento decisivo na história da AquAr ocorreu no fim de 2008, quan­do Neiva soube da existência da empresa paulista TerpenOil, que fabricava produ­tos para o desengraxe industrial, elimi­nação de odores com tratamento do ar e limpeza geral contendo terpenos. Essa tecnologia havia sido desenvolvida pelo professor Raul Correa, da Universida­de Federal do Ceará, no início dos anos 1990, e fora licenciada para a TerpenOil em 2006. "Naquela época, a empresa da­va seus primeiros passos em direção ao tratamento de ar e a AquAr já tinha sua linha de produtos. Foi um encontro de tecnologias complementares", recorda­-se Neiva. Ao final das negociações, a TerpenOil adquiriu o controle acionário da AquAr. Hoje a empresa vende lava­dores de ar de pequeno, médio e grande porte. Até novembro, foram vendidas 620 unidades do menor produto da li­nha que custa R$ 310,00. Os aparelhos de médio e grande porte são indicados para serem acoplados a sistemas de ar­-condicionado em edifícios. •

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 79

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[ SOCIOLOGIA ]

, FE NA MODERNIDADE

, E PE , NA TABUA

automóvel tinha "acabado" de che­gar ao Brasil, em 1892, com os irmãos Alberto e Henrique Santos-Dumont, quando, poucos anos depois, em 1903, se registrou um dos primeiros acidentes automobilísticos do país, envolvendo o abolicionista José do

Patrocínio e seu amigo O lavo Bilac, para quem ele emprestara seu carro recém-chegado da França. Após tentar aprender a dirigir por al­guns quilômetros e deixar muitos transeuntes em pânico, o poeta parnasiano "enfiou" o car­ro numa árvore. "Isso só aconteceu porque eu não fui batizado. Sem religião e com essas ruas vagabundas o progresso não é possível", teria exclamado Patrocínio. A história é representa­tiva do corno se deu a introdução do automóvel no Brasil, transformado em força motriz do progresso nacional e fonte de poder e hierarqui­zação para poucos durante décadas. "Para as eli­tes, o carro era a ferramenta perfeita para conse­guir o progresso com ordem. O automobilismo, nesse contexto, criaria um Brasil moderno e sem conflitos. Era um ícone do crescimento de um Estado democrático, desenvolvido e moderno", explica o historiador e brasilianista Joel Wolfe, da Universidade de Massachusetts, Armherst, autor do livro recém-lançado Autos and progress: the brazilian search for modernity (Oxford University Press).

A polêmica relação que o Brasil criou com o automóvel

CARLOS HAAG

"Para alcançar isso, esse grupo não se preo­cupava com as realidades sociais, mas com a maximização do potencial do carro como veículo do progresso e da civilização. Havia todo um discurso simbólico que colocava o carro como uma representação moderna de um espírito empreendedor do passado, das bandeiras e dos bandeirantes, que promove­ria uma espécie de comunhão com as nações modernas, em especial os Estados Unidos", afirma o historiador Marco Sávio, profes­sor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e autor de A cidade e as máquinas (Annablume/Fapemig). Assim, mesmo que fosse um bem de consumo ao qual apenas uma parcela ínfima da população tinha aces­so, o carro mobilizou a atenção dos poderes públicos e de largas fatias do orçamento em prol do asfalto nas cidades e das estradas de rodagem. "Era um reflexo dos interesses de um pequeno grupo de pessoas que queria desfrutar do prazer de dirigir, uma ideia de sociedade automotiva onde os deslocamentos eram livres de qualquer impedimento", analisa Sávio. Era a chamada "utopia possível", nos dizeres do prefeito paulistano Firmiano Pinto, que já nos anos 1920 defendia o asfaltamento de São Paulo para abrigar os carros, ainda que fossem poucos, em detrimento das necessida­des mais prementes da sociedade.

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"Era o ideal de uma sociedade sem conflitos, em que a livre circulação é o símbolo maior de status e liberdade. Os motoristas dessa elite se davam ao direito de transitar acima do bem e do mal, uma amoralidade abjeta que causa­va mortes. Era o privilégio da máquina acima dos direitos a outras formas de uso do espaço público", diz o pesquisa­dor da UFU. Aqui, novamente as "lições" do acidente de Bilac, totalmente alheio às pessoas ao seu redor, confortável em sua posição "superior" de motorista, e da ira de Patrocínio pela "culpa" das autoridades que não deram a ele as tão "fundamentais" condições de rodar sem ser detido por nada. "Criou-se, desde então, um padrão baseado numa ideia de domínio e de direito natural e in­contestável de usar os espaços da cidade para o trânsito, com o poder de usar a força sempre que algo interromper o direito sagrado ao tráfego livre e desim­pedido", nota Sávio.

"É notável que o automóvel tenha sido reinventado com um instrumen­to de nivelamento nos Estados Unidos, mas que, no Brasil, tenha ficado muito mais marcado como um elemento de distinção, indicando uma intrincada es­cala de inferioridade ou superioridade social", observa o antropólogo Roberto Da Matta, professor da Pontifícia Uni­versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor da pesquisa Igual­dade no Trânsito, agora transformada no livro Fé em Deus e pé na tábua: como e por que o trânsito enlouquece no Brasil (Rocco ). "Os comportamentos bárbaros no trânsito resultam menos de questões de obras e melhorias materiais que do fato de que todos se sentem especiais, superiores e com direitos a regalias e prioridades que justificam o desleixo e

' Os motoristas

dessa elite se

davam ao direito

de transitar

acima do bem

e do mal, diz

Marco Sávio

a impaciência para com a norma geral materializada num sinal e numa faixa de pedestres", observa. "O automóvel é uma opção que está em harmonia com o estilo aristocrático de evitar o contaro com a plebe ignara, o povo pobre, chulo e comum, desde os tempos das liteiras e dos palanquins. A nossa preferência por formas individualizadas de trans­porte representa um retrocesso. Por outro lado, a onda desenvolvimentista

de meados do século XX permitiu-nos os delírios de sermos donos de um carro como coroamento do sucesso indivi­dual. Fomos para a individualização dos meios de transporte pensando apenas na sua dimensão individual e deixamos de lado as normas e os requerimentos co­letivos." Para o antropólogo, há a ausên­cia histórica, que data da forma como o automóvel foi introduzido no país, de uma plena consciência igualitária, fruto de vícios coloniais, justamente num es­paço que a modernidade, supostamente adquirida com o carro, exige que seja marcado e construído pela igualdade. "É esse choque de expectativas hierár­quicas: quem se vê como 'mais rico' tem um carro 'mais caro', é 'branco' etc. e, assim, espera o reconhecimento de sua superioridade, em choque com a imposição da igualdade, que vale para todos e demarca o universo da 'rua'. Isso é o que produz a sensação geral de caos e estresse no nosso trânsito", diz.

S egundo Da Matta, ,~ parad~~? que aumenta o nosso estresse e que nenhum "jeitinho" pode ser dado

e nada podemos fazer para ultrapassar a igualdade que constrói o ambiente público no qual circulamos quando deixamos nossas casas. "Culpamos o governo e, assim, jogamos fora todo um processo de aprendizado de paciência que melhoraria nosso comportamen­to nessa área", analisa. Surgem Bilac e Patrocínio novamente, mesmo quando se misturam religião e gasolina. "Daí o 'fé em Deus e pé na tábua'. Este úl­timo evidencia o lado mais típico de nossa conduta pública, o sinalizador do desejo individual que representa a pressa e a impaciência ao ter o ca­minho obstruído por uma multidão de desconhecidos. Esses outros que não aceitamos como iguais e que são 'obstáculos' em nosso trajeto. Essa é

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uma visão de nós mesmos como seres especiais, dotados de posição singu­lar e, até prova em contrário, elevada e protegida no sistema, por termos um elo íntimo com o Ser Supremo", diz o antropólogo. "O automobilismo ganhou, no Brasil, qualidades de uma ideologia, uma promessa de curar todos os males nacionais. Pela primeira vez na história brasileira a tecnologia foi abra­çada como um instrumento de trans­formação econômica, política e social da sociedade. Essa tecnologia serviria para quebrar as barreiras da integração nacional de forma pacífica e ordeira. O carro iria destruir os obstáculos ao de­senvolvimento capitalista e fornecer as bases para a criação de uma verdadeira cultura brasileira e identidade", diz o brasilianista Joel Wolfe.

O automóvel chegou ao Brasil e se consolidou por aqui como uma grande conquista da civilização, a

vitória da ciência humana sobre a na­tureza. Isso funcionou especialmente bem para a elite paulista, para quem o carro deveria cumprir um papel-chave na conclusão da história da conquista bandeirante, uma segunda etapa de construção da nação brasileira, agora não mais pelo território, mas civilizan­do, por meio da presença do automóvel e da estrada de rodagem", afirma Sá­vio. Era o "neobandeirismo", onde se destaca a figura de Washington Luís, prefeito e governador de São Paulo e autor da famosa frase "Governar é abrir estradas". Ele investiu na moderniza­ção da infraestrutura de transportes, construindo 1.326 quilômetros de no­vas estradas, levando esse amor pelas "boas estradas" quando assumiu aPre­sidência da República em 1926. "Com ele e a elite paulista, o automóvel virou algo mais do que um meio alternativo de transporte, se transformando num paradigma de 'ser paulista'. A mentali­dade geral desses homens defendia a superação do 'atraso' nacional e esta­dual com a construção de estradas que possibilitassem uma ligação rápida do interior com a capital, de forma que todo o poder e a riqueza da civiliza­ção paulista pudessem influenciar a transformação do interior do Brasil", continua Sávio. "Curiosamente, a elite do café, que se beneficiava muito com a ligação da infraestrutura nacional à

ONDU~IR um cevallo ,de purp son(lUe, efil e viroroso, senH·lo obedecer, docil, ~~ m&IS subtis exlrnc•u, tem hesllaç6e~, t Pmpreendendo inslinetivamentt a vontade ~.o c.avl!llleiro, 0\.1 aindo lonç•-lo • iOiope pe.ra çontt-lo, repen!inomente, com umo Simples pre1sAo da mJiio ou do p~ - I preur identico ao que e:xperimen11 quem dirirc um carro Lincoln.

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O automóvel

chegou ao Brasil

e se consolidou

por aqui como

uma grande

conquista

da civilização

economia de exportação, popularizava perigosamente as máquinas, que, em pouco tempo, desafiaram o modelo econômico liberal. Afinal, o carro abria a possibilidade de, pela primeira vez, se unificar a nação e, com isso, abalar a predominância do estado paulista frente ao Estado", diz Wolfe. Reveladora dessa nova tendência, aberta pelo cul­to ao automóvel, foi a Lei de Estradas Federais, criada em 1927.

"Essa lei encorajava os estados a solicitar verbas do governo federal para a construção de estradas, com a condição de que essas fizessem parte de um sistema nacional de rodagem. Era mais uma novidade que ia de en­contro à longa tradição republicana de laissez-faire econômico. O carro, aos poucos, abria caminho para um Estado centralizado", continua o brasilianista. Para tanto contribuíram as empresas norte-americanas automobilísticas que

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vieram se estabelecer no país, como a Ford e a General Motors. "Elas eram vistas como instrumentos necessários de progresso, capazes de transformar imigrantes desordeiros do exterior e do campo numa classe trabalhadora disci­plinada que transformaria o país." Ou como escreveu o próprio Henry Ford em Hoje e amanhã: "O automóvel fará uma grande nação do Brasil. Os nati­vos, embora alheios ao maquinário e a qualquer forma de disciplina, irão logo assimilar o mundo da linha de monta­gem". "Ao encorajar o transporte por carro pelo interior do Brasil, as com­panhias norte-americanas ajudaram a mudar a geografia mental do país. E estimularam a construção de estradas tendo como meta aumentar a demanda por veículos, que deveria ser expandida para toda a nação", explica Wolfe.

"A estratégia da Ford do Brasil sem­pre foi difundir a ideia de que possuía um carro funcional e que era a resposta ideal para as condições do país, sempre ligando sua marca com a questão pre­mente da estrada de rodagem. Esses conceitos soavam como música para a elite de um Estado com pouquíssimas estradas em condições ideais para a prá­tica do automobilismo", completa Sávio. Ao mesmo tempo, a propaganda dessas companhias reforçava a modernização conservadora do automóvel, movida pe-

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O bonde era visto

como um meio

'inadequado',

já que colocava,

lado a lado,

membros de

classes separadas

la hierarquização da sociedade, em que mesmo os proprietários de carro menos valiosos, como o modelo T, da Ford, co­meçavam a ser considerados como uma classe inferior de cidadãos, acima apenas da imensa massa de pedestres que sofria com a ameaça do trânsito caótico. "Qua­se me atiro sob as rodas de um auto. Era um Ford. Não quis. Morte muito ordi­nária", explicou o personagem suicida de Automóvel de luxo (1926), livro do modernista Mário Graciotti.

S egundo Sávio, esses eram frutos de um movimento iniciado a partir de 1909, em São Paulo, quando os

projetos de transporte passaram a re­fletir mais os anseios de um pequeno grupo para que o automóvel passasse a assumir o lugar que um dia foi do bon­de como centro de preocupações do transporte. "A aparição de organismos como o Automóvel Club de São Paulo, em 1908, que congregava os cidadãos mais importantes do estado, ajudou a relegar o transporte coletivo a um se­gundo plano. O bonde, por exemplo, era visto como um meio 'inadequado', já que colocava, lado a lado, membros de classes separadas que sempre se segregaram." As pressões desse grupo cresciam não apenas contra os bondes, mas também contra as ferrovias, até en­tão aclamadas como força de progresso para a economia cafeeira. "A situação era ainda pior para os pedestres, contra os quais era legítimo usar da força e da violência para que saíssem das ruas, tornando-as livres para o tráfego." O bem comum, assim, nunca esteve nas preocupações dessas elites, que, conta o pesquisador, viam o espaço público

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como extensão do espaço privado e respondiam apenas a anseios de gru­pos que promoveram a construção de uma complexa infraestrutura dedicada ao carro, sem criarem contrapartidas para os grupos que tiveram suas vidas afetadas pelo novo meio de transporte. Ao final dos anos 1920, os veículos pas­saram a ser os senhores absolutos das ruas e os pedestres eram "empecilhos da utopia possível", invasores. O passado, histórico, reforça os problemas presen­tes. "Com a chegada do automóvel, esse virou dominante, algo que é coerente com o modelo dos segmentos aristo­cráticos brasileiros, que, tendo o carro, abandonam o bonde e o trem, reiteran­do um desdém pelo transporte público e reiterando o nosso viés hierárquico", analisa Da Matta. "No Brasil retoma­mos o uso da liteira quando adotamos o uso do transporte individual. Foi co­mo ficamos modernos e parecidos com os americanos e permanecemos fiéis ao nosso gosto por um espaço construído hierarquicamente. Fizemos a ginástica de a dotar os carros, mas não ensinamos os motoristas a internalizar normas."

Por isso, continua o pesquisador, a parada obrigatória, a espera por outro veículo ou pedestre é um sinal de "per­da de tempo", já que a igualdade é sem­pre vivida como inferioridade no Brasil. "Entre nós o verbo 'respeitar' conota escolha ou opção (sendo mais indicado para quem se pensa como superior); e o verbo 'obedecer' é compulsório (sendo aplicado a quem se pensa ou é imagi­nado como inferior). Afinal, como se diz por aí: 'Manda quem pode, obedece quem tem juízo!'. Esse verbo 'respeitar', aplicado a sinais, pessoas, pedestres e outros veículos no trânsito, revela o la­do opcional de uma sociedade que até hoje tem se recusado a encarar a igual­dade como um princípio da democra­cia", diz Da Matta. O resultado desse choque entre igualdade e desigualdade, continua o antropólogo, explica o uso frequente do "salve-se-quem-puder". "Em vez de esperar pela nossa vez, ape­lamos para o 'Você sabe com quem está falando?' e tentamos sair da situação de 'qualquer jeito'. Seja subindo na calçada sem pensar nos outros carros, sinais, faixas e pedestres; seja criando uma via extra; seja resmungando alto e discu­tindo inutilmente com os condutores dos veículos situados à nossa frente que,

' No Brasil

retomamos o uso

da liteira quando

adotamos o

uso do transporte

individual,

diz Da Matta

por sua vez, estão também gritando e reclamando", analisa. "Ou seja: hierar­quizamos por conta própria e violenta­mente, 'na marra', o espaço público por meio de uma ação pessoal, agressiva, sem pensarmos nas suas consequências, seja porque estamos estressados com a situação que nos faz perder tempo ou impedidos de chegar ao nosso desti­no." Nesse embate hierárquico, de ;aízes antigas, a força da lei é relativa. ''Apre­sença do guarda faz nascer as atitudes igualitárias; sua ausência traz de volta a ideia do mais ou menos, da gradação e das velhas precedências hierarquizadas. É a percepção da infração como norma e que está ligada à impunidade e tam­bém à certeza de que certas pessoas são punidas e outras não", diz.

A ausência de paciência relativamente ao outro é inegável, nota o pesqui­sador. Ela nasce desse sentimento

de superioridade, de acordo com o qual todos devem nos compreender e respei­tar, mas a recíproca não é absolutamen­te verdadeira. "Se o nosso carro enguiça e promove um congestionamento; se encontramos um velho amigo dirigindo ao nosso lado e batemos um papo; se paramos na porta da escola para nossos

filhos, não tem problema, pois os outros são invisíveis, não estamos atrapalhando ninguém, mas realizando algo normal (e legítimo). Daí nossa indignação quando alguém buzina e chama nossa atenção para o abuso; daí a nossa repulsa com a 'falta de educação' de quem reclama e deveria compreender e esperar não por sua vez, mas por nós." Mas quando nos transformamos no "outro" tudo muda de figura. ''A ausência de paciência, a pressa tão amiga da imprudência e irmã do acidente, faz parte do estilo brasileiro de dirigir. Ela trai a consciência e a in­capacidade para negociar cordialmente e põe a nu a incapacidade que revela a ausência de uma educação, de uma preparação para a igualdade", avalia o antropólogo. Outro elemento expressi­vo desse esquema, segundo Da Matta, é a forte identificação mental ou psicoló­gica entre o condutor e o veículo. Isso, aliás, revela o que está na raiz da falta de espaço no trânsito para a circulação de carros que ocupam uma área sig­nificativa quando transportam apenas uma pessoa, um supercidadão que fica encastelado em seu mundo. Assim, o carro vira um instrumento de proje­ção da personalidade do seu dono e um índice de ascensão social e capacidade de consumo: uma ofensa ao automóvel equivale a uma ofensa ao seu motorista. "Assim, um leve esbarrão involuntário ou uma colisão sempre é ponto de par­tida para 'cenas' e jamais como aquilo que é um evento promovido pelo acaso: um acidente. Daí a atitude inicial do drama de qualquer colisão é estabelecer uma 'culpa' com coação social ou físi­ca agressiva e o famoso 'Você sabe com quem está falando?'." Provavelmente o que Bilac e Patrocínio diriam se, em 1903, uma autoridade questionasse o que o carro fazia na árvore. •

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[ HISTÓRIA ]

O paraíso religioso holandês

om um pragmatismo superado apenas pela argúcia, o Padre Vieira afirmava sobre os judeus, lançando mão de um argumento emprestado de Santo Agos­tinho: "O esterco fora do seu lugar suja a casa, e posto no seu lugar fertiliza o campo. O mesmo vale para os judeus,

que no estrangeiro ajudam os hereges, mas em casa fornecem o capital para manter o Império. Por que transformar vassalos úteis em inimigos poderosos?". O mesmo senso prático se estabe­leceu no Brasil durante a dominação comercial e militar dos holandeses, entre 1630 e 1644, em Pernambuco, onde reinou um ambiente inédito de tolerância religiosa, em especial para judeus. "A capital pernambucana era uma verdadeira 'Jerusa­lém colonial' por causa da utopia da reconstrução do mundo judaico da diáspora. Era uma Babel cultural. Recife, por certo tempo, foi a única cida­de do mundo que reunia pessoas das três crenças (judeus sefarditas, católicos e calvinistas) em um único ambiente de tolerância religiosa", afirma o historiador Ronaldo Vainfas, professor da Uni­versidade Federal Fluminense (UFF) e autor de Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês (Civilização Brasileira), pesquisa apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). "Nunca antes os judeus alcançaram tamanha liberdade religiosa como no Brasil holandês, em especial durante o governo de Maurício de Nassau", analisa.

A liberdade dos judeus no Brasil de Nassau

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Rua dos Judeus, em Recife

No caso dos judeus, havia, como pregava Viei­ra, razões concretas para a boa vontade batava. "Os holandeses do governo colonial ou repre­sentantes da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) apoiavam enfaticamente os judeus porque eles eram os intermediários por excelência dos negócios coloniais", observa Vainfas. "O 'tole­rantismo' ou o Estado multirreligioso era visto por muitos governos da época como o caminho mais curto para a deslealdade e para a dissidên­cia interna. Não foi fácil para Nassau implantar essa política, tendo que lutar constantemente contra a ira da maior parte do clero calvinista local e contra pressões de uma política menos tolerante na colônia, exigida pelos diretores da WIC", afirma o historiador americano Stuart B. Schwartz, professor da Universidade Yale e autor de Cada um na sua lei (Companhia das Letras).

"Esse período oferece uma oportunidade limitada de imaginar as possibilidades de tolerância que existiriam na sociedade portuguesa com a redução do poder e da autoridade da Igreja e, acima de tudo, da Inquisição." Afinal, era a primeira vez que os judeus puderam se reorganizar depois de mais de um século de proibição do judaísmo em Portugal. O processo remonta a 1478, quando os reis católicos instituíram a Inquisição na Espanha, o que levou os conversas, vistos como hereges por se "judaizarem" em sigilo, a fugir para o reino vi­zinho. O grande afluxo de judeus espanhóis levou a nobreza e a Igreja de Portugal a clamarem por medidas equivalentes à espanhola e, em 1496, o rei português, que nada tinha contra seus súditos hebreus, decretou que todos os semitas deveriam se converter ao catolicismo, o que fez nascer a co­munidade dos cristãos-novos. Em 1536, quando a

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Inquisição chegou a Lisboa, mais uma vez os sefarditas iniciaram uma diáspo­ra, dessa vez em direção aos Países Bai­xos. Amsterdã passou a ser conhecida como a "Jerusalém do Norte':

Rituais - "Os imigrantes estavam separados por mais de 100 anos do judaísmo dos avós, não sabiam he­braico e só praticavam certos rituais domésticos. Não conheciam nada ou pouco do judaísmo. Para a maioria dos convertidos, a primeira comunidade judia que conheceram foi essa que criaram. Eram 'judeus novos' que, no fundo, eram cristãos por formação", explica Vainfas. O português era a lín­gua falada por eles, conhecidos por isso pelos holandeses como "gente da nação portuguesa", apelando para o castelha­no nas orações e cerimônias das sina­gogas. Aos poucos foram ampliando seus direitos, embora fossem uma mi­noria que se restringia a um gueto em Amsterdã. "Quando os holandeses se instalaram no Brasil, os judeus vieram para o país, a partir de 1635. Essa pro­teção aos judeus não foi uma decisão de Nassau, mas uma política da WIC", nota o pesquisador. "A Companhia não tinha fundos para financiar suas operações e foram obrigados a encora-

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Eram os únicos

que falavam

português e

holandês, o que

lhes permitia

dominar

o comércio

da colônia

jar a migração de judeus portugueses, que se transformaram em operadores e intermediários, fornecendo dinheiro, crédito e os suprimentos necessários para colocar a região de produção de açúcar novamente em funcionamento", afirma o historiador americano Jona­than Israel, professor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, autor de The expansion of tolerance: religion in dutch Brazil.

Judeus na sinagoga, obra de Rembrandt

"Eram os únicos que falavam por­tuguês e holandês, o que lhes permitia dominar o comércio da colônia, van­tagem combinada a um conhecimen­to profundo da indústria açucareira. E, ao contrário de Amsterdã, onde só podiam morar, em Pernambuco eram livres para ter lojas e tocar negócios em geral", diz o americano. "Essa tolerância, porém, não era gratuita, mas fruto da necessidade. A maioria das plantações de açúcar em Recife tinha sido destruí­da na conquista e não havia dinheiro da WIC capaz de restaurar a economia. Foi um caso especial, que não se repe­tiu em outras regiões dominadas pelos holandeses, como o Caribe ou a Nova Amsterdã", ressalta Israel. "Eles foram os grandes cobradores de impostos do Brasil holandês. Emprestaram dinhei­ro a juros para senhores de engenho holandeses ou luso-brasileiros e para cristãos-novos menos afortunados. Até para a WIC os grandes comerciantes judeus emprestaram dinheiro. Foram igualmente distribuidores de escravos", conta Vainfas. Com o financeiro resol­vido, houve espaço para a fé. A congre­gação Kahal Kadosh Zur Israel foi a pri­meira fundada nas Américas. "Era algo inimaginável numa colônia portuguesa católica e Nassau sofreu grandes pres-

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sões por parte dos pastores calvinistas", diz o professor da UFF. "Embora o go­verno holandês protegesse os judeus, os predicantes Calvinistas se revelaram mais intolerantes aqui, porque a visibilidade do judaísmo era maior e os privilégios desfrutados pelos judeus eram imen ­sos. Os pequenos e médios comerciantes holandeses odiavam os judeus porque perderam espaço e viram frustradas suas expectativas de enriquecer na colônia. Os calvinistas também nisso esposaram a causa dos negociantes holandeses", continua Vainfas. Nassau, no entanto, gostava de lembrar aos diretores da WIC que os judeus, ao contrário dos católi­cos, eram aliados fiéis. A comunidade teve desdobramentos.

Liberdade - "A presença de judeus confessas provocou tensões e senti­mentos diversos nos cristãos-novos daqui. Vários dentre esses aproveita­ram a relativa liberdade religiosa para se tornarem abertamente judeus", ana­lisa o historiador Bruno Feitler, profes­sor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor do livro Nas malhas da consciência (Alameda). "Mas muitos cristãos-novos que passaram pelo pro­cesso de 'retorno' não tinham nenhum conhecimento ou prática da religião ou dos costumes judaicos", observa. "Causava um grande desconforto aos católicos acompanhar a adesão diária

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Cerimônia em sinagoga holandesa de Amsterdã

de cristãos-novos à sinagoga, homens e mulheres que antes se diziam cristãos e frequentavam missas. A disposição de muitos cristãos-novos de 'regres­sar' ao judaísmo parecia confirmar o alerta da Inquisição contra o perigo da 'heresia' judaica que corria nó sangue dos cristãos-novos", avalia Vainfas. Na luta da restauração portuguesa, os lu­sitanos também se voltaram para os judeus, aconselhados por Padre Vieira, um curioso conflito de interesses. "No caso de Portugal, o dinheiro judaico foi essencial para a vitória sobre a Espa­nha. No caso holandês, era importan­tíssimo nos investimentos da WIC. Os judeus da Holanda investiram nos dois lados da contenda. O desempenho das redes mercantis sefarditas exprimiu a lógica de um capitalismo comercial avançado, capaz de operar entre sis­temas monopolistas rivais, colocando em segundo plano razões de ordem política e religiosa", lembra o pesqui­sador. Apoiar Portugal era investir na chance de os lusos retomarem o Brasil dos holandeses, responsáveis pela li­berdade experimentada pelos judeus.

Quando esses foram expulsos, a maio­ria dos sefarditas deixou o Brasil e foi para lugares controlados pela WIC, o que lhes permitiu superar a experiên­cia pernambucana.

''Alguns foram para a América, mas é um mito que tenham fundado No­va York. Os holandeses de Manhattan temiam que os judeus repetissem por lá o que haviam feito no Brasil: tomar conta do comércio. Isso não ocorreu, porque o português não tinha utilidade na Nova Amsterdã", diz Vainfas. "Um estudo da cultura brasileira mostra o legado deixado por aqui pelos cristãos­-novos, com suas ideias de tolerância e liberdade, com sua defesa de que 'cada um deve ter a liberdade de adorar Deus conforme sua consciência'. Eles podem, pela sua crítica à Igreja, aos dogmas e ao fanatismo, ser considerados os precursores da ilustração brasileira. Os judeus entraram intimamente na composição étnica do nosso povo, fa­to decisivo para a formação de nossa mentalidade e para a heterodoxia dos brasileiros", afirma a historiadora Anita Novinsky, professora da Universidade de São Paulo, autora do livro Cristãos­-Novos na Bahia (Perspectiva). •

CARLOS HAAG

PESQUISA FAPESP 179 • JANEIRO DE 2011 • 89

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[ EDUCAÇÃO ]

SONORIDADES ESCOLARES

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Ensino de música volta a ser obrigatório

JosELIA AGUIAR

ILusTRAÇÕES LuANA GEIGER

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os anos 1930, o canto orfeônico, importado das escolas francesas para as brasileiras desde o sé­culo anterior, se tornou disciplina obrigatória. Mais informal que o coral erudito, se adaptou ao ambiente escolar e assim foi difundido pela política educacional do governo de Getúlio Vargas (1930-1945), que viu naquelas aulas a

oportunidade de desenvolver nos alunos, além da própria técnica musical, disciplina e civismo. À frente do projeto, um nome mais do que respeitado: Heitor Villa-Lobos ( 1887 -1959), um dos grandes compositores eruditos do século XX. Essa passagem da história da música no país é quase sempre lembrada por quem faz parte dela: mesmo que a intenção fosse outra, as classes de canto orfeônico contribuíram para despertar talentos. Quase um século depois, a música voltará a ser conteúdo obrigatório no ensino básico em escolas públicas e privadas do país a partir do segundo semestre de 2011.

As circunstâncias são, certamente, distintas do que eram na época de Villa-Lobos. A inclusão ocorre após longa reivindicação dos educadores e pretende, de mo­do geral, fazer com que os alunos, ao mesmo tempo que são iniciados na linguagem musical, melhorem a concentração, o convívio e o desempenho até em outras disciplinas. As escolas tiveram três anos de prazo para se adaptar à nova lei, promulgada em 2008. Às vésperas do começo do ano letivo ainda existem, porém, diversas perguntas sobre como será a educação musical. "Uma nova lei, por si só, não garante tudo. A própria legislação diz que estados e municípios devem colaborar e o projeto pedagógico é da competência das escolas", lembra Regina Simão Santos, professora do Departamento de Educação Musical do Instituto Villa-Lobos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

A lei que determina o retorno da música às escolas estabelece apenas que seja ela conteúdo obrigatório da disciplina de educação artística, e não uma disciplina específica, como destaca Silvia Nassif, professora da Fa­culdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), campusde Ribeirão Preto. "Isso não é apenas um detalhe e tem passado despercebido em algumas discussões sobre o tema. Será muito mais difícil controlar o que realmente será oferecido em sala de aula e, sem querer ser pessimista, o espaço para 'fingir que faz' está bastante aberto", ressalta Silvia, que desenvolve com

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o grupo de pesquisa Musilinc (Música, Linguagem e Cultura), da Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp), projeto sobre educação musical de crianças. As discussões sobre "como" se vai colocar a lei em prática, diz a pes­quisadora, devem ser acompanhadas de outras, sobre "por que" a música deve estar na escola. "Sem uma consciência profunda desse valor, nenhuma lei fará com que a música volte de modo con­sistente", explica.

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sirvam a todas as situações de ensino, lembra Silvia. "Qualquer processo edu­cacional deve sempre levar em conta o contexto no qual se coloca. Para cada situação distinta, uma conduta distin­ta." Ela diz, porém, que há problemas a serem evitados, como o uso de "carti­lhas"- que já podem ser encontradas no mercado- propondo "aulas engessadas em repertórios estanques e elementos musicais descontextualizados".

Quem será respon­sável pelas aulas? Regi­na, da Unirio, lembra que a legislação é clara: a atuação na escola básica depende de licenciatura realizada em curso de formação de especialis­tas. Admitir a dispensa de curso de formação pedagógica, segundo ela, é o mesmo que ad­mitir que o conjunto de saberes construído a partir de uma reflexão

Não há, porém,

educadores musicais

em número suficiente

para a demanda,

diz Silvia Nassif

sistemática e embasada no ensino superior de música é desnecessário.

Como não há, porém, educadores musicais em número suficiente para a demanda, Silvia Nassif argumenta que restringir aos músicos formados a res­ponsabilidade pelas aulas poderá tornar inviável a aplicação da lei "O profissional deve ter sensibilidade e envolvimento profundo com música, mas não neces­sariamente formação técnica de músico. Há muito que pode ser feito em termos de uma vivência musical ativa e signi­ficativa sem adentrar necessariamente no âmbito técnico", acrescenta. Não há como fornecer "receitas" de aulas que

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Mais que saber música, é preciso sa­ber ensinar música, destaca Iveta Ávila Fernandes, professora do Instituto de Artes da Unesp, que defendeu a tese de doutorado Música na escola: desafios e perspectivas na formação contínua de educadores da rede pública. Um dos ob­jetivos foi descobrir os caminhos para que, mesmo sem formação acadêmica em música, esses professores possam superar o método tradicional do ensi­no dessa disciplina na escola. Se uma criança pode aprender a ler e escrever, também pode aprender a compor, ar­gumenta. Deve-se, assim, superar o modelo tradicional de ensino de músi­ca com a incorporação de novas formas de trabalho, que incluam atividades lú­dicas, como jogos, brincadeiras e ativi­dades didáticas em grupo. "A propos­ta é cantar, tocar, improvisar, compor, interpretar, apreciar", explica. De nada vai adiantar, diz ela, cantar músicas que não são de autoria própria, sem traba­lhar o desenvolvimento da linguagem musical. "A maneira repetitiva como a aula costuma ser ministrada e o ra­ro uso de instrumentos e do aspecto lúdico tornam o aprendizado menos atraente para a criança", afirma.

Barulho - Para Jorge Schroeder, que coordena o grupo de pesquisas Musi­linc, da Unicamp, antes de definir co­mo serão as aulas de música é preciso ter uma avaliação ampla sobre a escola e seus alunos. Alguns fatores a consi­derar são, por exemplo, se possui ins­trumentos musicais e local adequado, onde o "barulho" da aula não atrapalhe as outras atividades; se possui ou não

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instrumentos musicais; se há professor especialista na área; qual o gosto médio dos alunos; se existe alguma manifesta­ção cultural forte na região que inclua a música. "Esse tipo de avaliação, que geralmente só ocorre a médio ou longo prazo com o mergulho no cotidiano da escola, pode ajudar a definir as estraté­gias de ação educativa com referência à música, levando em conta também as possibilidades de cooperação com outros professores de outras áreas em projetas conjuntos e os li-mites e especialidades dos ' próprios professores de música." Schroeder lem-bra que há grande chan- É preciso contemplar ce de um licenciado em música que toca algum a diversidade instrumento escolher

caminhos e objetivos di- cultural brasileira e ferentes de um licenciado em música que é cantor ou compositor. os valores culturais,

Magali Kleber, pro­fessora de música na Universidade Estadual de Londrina (UEL), ressalta

diz Magali Kleber

a importância de oferecer nas aulas conteúdo que se relacione com a realidade sacio­cultural dos alunos. "É preciso contem­plar a diversidade cultural brasileira e considerar os valores socioculturais presentes no contexto dos estudantes, da escola e das redes que a constitui", explica Magali, que está à frente de gru­po de pesquisa sobre educação musical e movimentos sociais. A pesquisadora argumenta que as aulas devem privi­legiar os processos de criação, a escuta

crítica, a apreciação musical dos mais diversos estilos e gêneros musicais, abrangendo repertório de diferentes épocas e povos. Deve-se evitar, segundo ela, o preconceito contra estilos e gê­neros, mesmo que não seja do agrado do professor. "É importante também incorporar a agenda das festas e even­tos significativos do local, a cultura popular, as salas de concertos, enfim, os espaços da cidade que devem ser en­tendidos como locais educativos, des­pertando o pertencimento e o exercício da cidadania", diz.

As boas experiências em educação musical, segundo a pesquisadora da UEL, são aquelas que consideram as demandas da comunidade onde atuam e buscam interlocução entre os atares sociais, sejam eles estudantes, profes­sores, ou pessoas do bairro. Esses pro­jetas são em geral ligados a secretarias municipais ou estaduais de Cultura ou originados por organizações não governamentais (ONGs) que recebem apoio de órgãos públicos. Assim, po­dem suprir necessidades como trans­porte e infraestrutura para as aulas e as performances públicas, além de

oferecer aos alunos algum benefício financeiro (bolsa). Ela cita exemplos em cidades como Mogi das Cruzes e Franca (interior de São Paulo), Porto Alegre, Vitória e Goiânia. "Esses pro­jetas têm começo, meio e fim, não se caracterizam como política de Estado. Essa situação não garante uma pere­nidade na oferta e, muitas vezes, esses projetas acabam por falta de verba, frustrando os que tiveram oportunida­de de vivenciar experiências positivas", afirma Magali Kleber.

No estado do Rio, Regina Simão Santos enumera diversos exemplos de sucesso. Em Volta Redonda, no interior do estado, existe desde 1974 o projeto Cidade da Música, concebido e desen­volvido pelo maestro Nicolau Martins de Oliveira. Na capital há, por exemplo, a Escola de Música da Rocinha, projeto social de caráter educacional criado em 1994 pelo alemão Hans Ulrich Koch e sob a direção de Gilberto Figueiredo. Possui diversos parceiros, como apre­feitura e a Unesco. Na comunidade do Morro Dona Marta, o projeto Villa­Lobinhos é desenvolvido desde 2000, sob a direção geral do violonista Tu­ríbio Santos e já contou com diversos apoios: da ONG Viva Rio, do Instituto Moreira Salles e do Museu Villa-Lobos. E há ainda o Grupo CulturalAfroReg­gae, projeto que surgiu na favela de Vi­gário Geral em 1993 com a criação de um Núcleo Comunitário de Cultura, onde se desenvolveram oficinas, dentre as quais de percussão. "Embora todos visem à formação integral do cidadão, vislumbram a possibilidade de profis­sionalização de seus integrantes. Isso atrai, faz com que sala de aula e vida social fora da sala de aula se misturem", explica Regina. •

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RESENHA

Redes sociais, segregação e pobreza

Eduardo Marques

Editora Unesp

216 páginas, R$ 40,00

A pobreza que olha para os lados As relações entre redes sociais de indivíduos e condições de pobreza

GABRIEL DE SANTIS FELTRAN

O s padrões de sociabilidade e as con­dições de vida das camadas mais pobres da população, no Brasil,

têm sido marcados por transformações muito intensas nas últimas quatro dé­cadas. Nesse período, os mercados de trabalho populares se reconfiguraram inteiramente, na esteira da chamada "reestruturação produtiva". Simul­taneamente, declinou a migração ao Sudeste, fundadora dos territórios de moradia popular nas metrópoles, e se consolidou a inscrição das mulheres no mercado de trabalho, o que deslo­ca decisivamente as relações de gênero domésticas. Imersa nessas transfor­mações, a família popular tendeu à nucleação, em arranjos muito hetero­gêneos. No plano religioso, e especial­mente entre os mais pobres, o trânsito do catolicismo ao pentecostalismo foi também muito notável. Além disso, o acesso à infraestrutura urbana, aos ser­viços fundamentais e bens de consumo cresceu muito desde os anos 1970 e, embora ainda deficiente, possibilitou outros modos de inserção das novas ge­rações na cidade. Da mesma forma, as dinâmicas da criminalidade urbana se alteraram radicalmente nesse período e, com elas, os modos da disposição e gestão da violência nos territórios. Em suma, as categorias centrais das análises sociológicas sobre os pobres urbanos - o trabalho, a migração, a família, as políticas sociais e urbanas, a religião e a violência- estão hoje muito longe de

' ser o que foram. À luz desse cenário de deslocamen­

tos nada triviais, a literatura acadêmica sobre os temas em questão tem sido saudavelmente renovada. O livro Redes sociais, segregação e pobreza, de Eduar­do Marques, vem a público já como referência fundamental nesse processo de renovação analítica. O autor- pro-

fessor do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole, do qual já foi diretor- apresenta ao leitor os resultados de uma pesquisa empírica inovadora, e de muito fôlego, sobre as relações entre redes sociais de indivíduos e condições de pobreza urbana. Com ênfase no caso paulistano, o estudo dedica-se a mapear as redes sociais de centenas de indi­víduos em diferentes situações de pobreza e segregação espacial na cidade. Se este mapeamento já contribui de­cisivamente para demonstrar a enorme heterogeneidade intrínseca às pobrezas contemporâneas e a necessária ruptura analítica com as teses economicistas ou macro­estruturais, essa é só a contribuição inicial do volume. Um estudo qualitativo complementar, realizado a partir do mapeamento das redes pessoais, contribui ainda para desvelar alguns dos mecanismos causais implicados tan­to na variabilidade das redes quanto nos seus diferentes padrões ao longo dos ciclos de vida.

A análise criteriosa dos resultados obtidos em campo permite a Eduardo Marques dialogar tanto com as for­mas tradicionais de interpretar a pobreza (renda, ocu­pação, condições de moradia etc.) quanto com novos e promissores parâmetros para pensá-la no país (acesso a bens e s~viços obtidos em mercados, fora de mercados, padrões de trocas e ajudas entre indivíduos e grupos etc. ). Nesse diálogo reforça-se invariavelmente a importância da sociabilidade para a compreensão da pobreza con­temporânea. Ao final da leitura do livro, resta ao leitor especialista um olhar admirado ante a originalidade da proposta teórica e metodológica, que no entanto não dispensa a tradição do pensamento da questão urbana e das desigualdades sociais no Brasil; a qualquer leitor interessado, seguramente, restará o enriquecimento pro­vocado pelo contato com resultados empíricos muitas vezes contraintuitivos, que desmistificam uma série de teses apressadas sobre as causas e as características da pobreza contemporânea. O livro de Eduardo Marques é, assim, uma contribuição fundamental tanto para o debate acadêmico sobre pobreza e segregação quanto para a formulação de políticas que visem a sua mitigação.

GABRIEL DE SAN TIS FELTRAN é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar ), pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento ( Cebrap ).

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História do esporte no Brasil Mary Dei Priore e Victor A. de Melo (orgs.) Editora Unesp 568 páginas, R$ 68,00

O livro lança um olhar panorâmico sobre o esporte no Brasil, traçando uma traje­tória desde o século XIX até os dias de hoje. Os autores apoiam-se na noção de que o esporte é parte do patrimônio cul­tural de um povo, sendo uma importante ferramenta na construção de identidades de classe, de gênero, de etnia. No caso do Brasil, isso fica acentuado com o futebol em nossa formação cultural e histórica.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Um Nordeste em São Paulo Paulo Fontes FGV Editora 348 páginas, R$ 46,00

Trata-se da história dos trabalhadores mi­grantes nordestinos em São Miguel Paulista, bairro popular de São Paulo. Fontes analisa as relações da migração e seus impactos nos processos de urbanização e industrialização do país, em um momento de reconfigura­ção da classe trabalhadora no pós-Segunda Guerra Mundial, mostrando a importância das redes sociais e de um espaço público para criação de identidades e luta por direitos.

FGV Editora (11) 3799-4426 www.fgv.br/editora

Novas perspecti vas sobre os conflitos internacionais Reginaldo Mattar Nasser (org.) Editora Unesp 216 páginas, R$ 36,00

Obra que agrega contribuições de pes­quisadores nacionais e estrangeiros que trabalham com política internacional e resolução de conflitos, ampliando a dis­cussão sobre esta temática e abordando-a em cinco eixos: Direitos humanos e con­flitos internacionais; Política e direito pós­-11 de Setembro; Governança e segurança regional; Instituições internacionais.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Nações e diásporas Bela Feldman-Bianco (org.) Editora Unicamp 296 páginas, R$ 50,00

liVROS

Com ênfase na análise das ambiguidades nas relações de poder entre Portugal e Brasil por meio de um olhar sobre suas diásporas transmigrantes, o livro inten­ta revelar os interstícios da dominação, da subordinação, da inclusão (parcial) ou exclusão nos processos de formação e reconstrução da nação, tanto no Brasil quanto no Portugal pós-colonial.

Editora Unicamp (19) 3521-7718 www.editora.unicamp.br

Benjaminianas Olgária Chaim Féres Matos Editora Unesp 304 páginas, R$ 49,00

Os ensaios deste livro se organizam segundo a concepção benjaminiana da modernidade que, do Drama barroco alemão às Passagens, procura compreender o capitalismo atual, associando o fenômeno do fetichismo à vida política e ao estado de exceção. Os textos percorrem a obra de Benjamin a partir de três eixos: "Modernidade e fetiche"; "Racio­nalidade científica e mercado" e "Moderni­dade e fetiche: experiências do tempo':

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

A Democrac ia Corinth iana José Paulo Florenzano Editora PUC-SP (Educ) / FAPESP 512 páginas, R$ 50,00

O livro pretende responder questões co­mo: "Pode um grupo de atletas assumir o controle do time e dispensar a figura do técnico-comandante?"; "A concepção do futebol arte não implica a prática do jogo como liberdade?", procurando demons­trar a existência de uma longa tradição de autonomia no futebol brasileiro que a Democracia Corinthiana retoma para instaurar o autogoverno da equipe e para reivindicar o jogador como mestre de si.

Educ (11 ) 3670-8085 www.pucsp.br/educ

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FICÇÃO

A maçã

E ra 1968. Konstantin voltou ao laboratório e pegou dis­traidamente a maçã que sua mulher depositara na escri­vaninha na noite anterior para que fizesse o desjejum.

Lena andava preocupada com sua saúde, e com razão, pois ele se alimentava muito mal. Por dois segundos, ao observar o brilho da casca vermelha, Konstantin cogitou comer a ma­çã. Mas logo mudou de ideia e reuniu-a aos outros objetos no interior do protótipo. Na área de transferência estavam um velho relógio de pulso, que nunca atrasara sequer um segundo, e uma ampulheta que pertencera a seu bisavô. Sem piscar duas vezes, Konstantin pressionou o botão. Era a centésima ocasião que fazia isso sem obter resultado, e seu indicador começava a criar calo na ponta. Cinco minutos depois, ao abrir a portinhola, o relógio e a ampulheta per­maneciam intactos, mas a maçã havia desaparecido.

A partir dessa experiência, Konstantin nunca mais foi o mesmo. Todas as manhãs ele ia ao laboratório, estacionava diante do protótipo e observava a janelinha da área de trans­ferência como se vislumbrasse através dela uma paisagem do futuro repleta de macieiras. Não compreendia o sumiço sem registras. A perda de apetite do marido preocupou Lena, que deixou de escolher as maçãs mais vermelhas e roliças do mercado. Ela não se lembrava lá muito bem da origem de sua teoria, mas atribuía poderes inexplicáveis às maçãs. Talvez tudo se devesse àqueles contos de fadas dos quais tanto gos­tava quando menina, ou então à atração que sempre sentiu pelo intenso rubro da casca. Durante anos seguidos, desde a manhã seguinte ao dia no qual dormira pela primeira vez com Konstantin, ela o alimentara com maçãs escolhidas com devoção. Lena creditava sua felicidade às maçãs.

No entanto, depois de Konstantin relatar à mulher o que acontecera ao acionar o protótipo, ela hesitou. Lena nunca vira fruta tão reluzente como aquela que desaparecera na experiência do marido. Parecia perfeita tanto no formato quanto na cor. E o cheiro que soltava, então? Não parecia

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]OCA REINERS TERRON

uma maçã da Califórnia, nem de qualquer lugar dos Estados Unidos, mas da Rússia de sua juventude. Era a maçã ideal, que traduzia à perfeição o poder das maçãs e o amor que sentia por Konstantin. E ele a desperdiçara numa de suas pesquisas, veja só. Assim, com a crescente distração do marido, Lena abandonou de vez a predileção pela fruta. Passou a servir refeições mais calóricas. Adotou a comida congelada.

Konstantin nunca se conformou por não solucionar o enigma. Estava velho, e suas chances chegavam ao fim. Dia após dia ele notava que seu cérebro não tinha agilidade idêntica à de outras épocas, e até equações fáceis exigiam mais concentração do que jamais necessitara. "Se não fosse pela fidelidade e devoção de Lena, eu não me lembraria de comer", resmungava. Preocupado nem tanto com a morte mas com a perda da razão, ele deixara de prestar atenção às mudanças no cardápio. Por outro lado, entre uma e outra órbita de sua cabeça ao redor da Lua, Konstantin estranhava o comportamento da mulher. Lena parecia mais triste e passava horas diante da tevê. Também não lhe trazia mais maçãs para o desjejum. Não parecia a mesma pessoa.

Poucos dias após completar 72 anos, em dezembro da­quele ano, Konstantin deixou afixado um artigo na rede mundial alternativa à internet conhecida como thewall.net. Nele, explicava os motivos de seu fracasso como cientista. A rede thewall. net era o registro on-line mais antigo existente. Alguns especulavam sua origem desconhecida em cerca de cem anos. Lá havia dependurado todo tipo de pergunta sem resposta. A de Konstantin dizia assim: "O que você sabe sobre viagens no tempo? Alguém encontrou uma maçã aparente­mente surgida do nada?': Morreu sem receber resposta.

Com o falecimento do marido, a vida de Lena deixou de fazer sentido. Konstantin morreu tranquilamente, pois o Al­zheimer apagara as obsessões científicas de sua mente. Dessa forma, Lena pôde fazer o que melhor sabia: cuidar dele. Os meses finais haviam sido bem tranquilos. Depois de alguns

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I I

meses de sua morte e das festas de final de ano, entretanto, Lena tornou-se nostálgica. Ela acordava no meio da noite e estendia os braços longamente em direção ao outro lado da cama, não encontrando o corpo de Konstantin. Até mesmo de seu ressonar asmático ela sentia falta, e dava risadas ao se lembrar disso. Quantas noites Lena passou sem dormir por causa do ronco de Konstantin! É esquisito como aquilo que leva uma pessoa a se apaixonar depois de um tempo torna-se o principal motivo de ódio. Talvez agora ela estivesse dando a volta completa. Havia superado a mágoa. Retornara ao início e enfim podia amá-lo novamente. Ela adormeceu.

Era 1938. Konstantin e Lena se conheceram na universida­de de Moscou. Ela perdera os pais na adolescência e vivia so­zinha num apartamento minúsculo perto da estação Dimitro­vskaya, enquanto Konstantin concluía o doutorado no Insti­tuto de Engenharia Física. Ele tinha 42 anos e nunca se casara. Lena completara 30 anos em janeiro. Ainda era virgem.

Quase sempre sozinho pelos corredores da escola, Kons­tantin parecia um pássaro de asas atrofiadas pela ausência de voo. Ele não era particularmente bonito, mas tinha uma cabeleira ruiva e ouriçada que o distinguia da multidão de estudantes. Quando falava, parecia prestes a irromper em chamas. Certa vez, em um baile, uma amiga comum cha­mada Larissa os apresentou. Era uma boa amiga.

Lena e Konstantin dançaram feito loucos naquela noite. Ele tinha um modo trôpego de caminhar que, de início, Lena atribuiu à vodca. Descobriu que ele não bebia somente ao beijá-lo sob a luz amarelada dos postes à margem do Volga. Poucas horas depois, naquela mesma noite, Lena já teria se apaixonado pelo jeito tortuoso de Konstantin de caminhar e de existir no mundo. E no início da manhã seguinte Konstantin já se tornara o mundo inteirinho dela e somente dela e de mais ninguém.

Eles caminharam abraçados até a estação, e só descobri­ram ao chegar que os trens haviam parado de circular fazia muito tempo. No caminho, conversaram acerca das estrelas e falaram sobre o inverno e a neve e discutiram poesia e o fluir do tempo e Konstantin recitou bem alto uns versos de Pushkin que ela não conhecia. Ele então saltitou pela mureta ao longo do rio e Lena até perdeu o fôlego quando quase caiu. Os dois gargalharam abraçados, depois disso.

Ao passarem pela estação Dimitrovskaya, o sol começava a ser refletido pelos tetos de bronze da cidade ao longe. Dian­te de seu prédio, com o dia fulgurando no horizonte, Lena vacilou, mas acabou conduzindo o rapaz escadaria acima pelas mãos. Eles enroscaram-se no corrimão e se beijaram em celeb"ração a cada patamar vencido, até atingirem a porta estreita de madeira do apartamento de Lena; Konstantin ergueu-a nos braços e a levou até a cama.

Bem no início da tarde seguinte, Lena despertou faminta. Sentia-se emergindo de um sono infinito e circular após receber um longo beijo. Enquanto descobria a distância que Konstantin ressonava num volume talvez alto demais para o seu gosto, revirou a cozinha sem encontrar nada que pu­dessem comer. Ao retirar a segunda lata vazia da prateleira, porém, Lena encontrou uma maçã que não se recordava de ter guardado ali. Sua casca era tão vermelha - Lena partiu-a ao meio e sentiu seu cheiro rubro-, simplesmente a maçã mais bonita que jamais vira; no quarto, Konstantin se espreguiçava.

Cada um mordeu sua metade da maçã. Naquele exato ins­tante ambos souberam que estavam unidos para sempre.

JocA REINERS TERRON é autor de Curva de rio sujo (2003) e Sonho interrompido por guilhotina (2006). O livro Do fundo do poço se vê a lua recebeu o Prêmio Machado de Assis de ro­mance concedido pela Biblioteca Nacional em 201 O.

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1 - Biotecnologia 2- Engenhari a e lnsrrumcnraç~o Biomcd ic.1 3 - C iências Socia is Aplicadas

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