Crentes no Tribunal?

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Janeiro de 2012 8 Brasil Presbiteriano BP LEGAL pós tratarmos, na edição anterior, da disciplina eclesiástica sob a jurisdição civil, alguns leitores perguntaram se as Escrituras autorizam que um crente promova ação judicial contra o seu irmão na fé, tendo em vista as palavras de Paulo em 1Coríntios 6.1-11, que censurava o litígio entre cristãos. Sendo assim, indaga- se qual o papel ocupado pela jurisdição civil sobre relações interpessoais e possíveis conflitos entre pessoas que comungam da fé cristã, a quem é dada a missão de pregar o evan- gelho da salvação e do amor de Deus e, entre as quais situações de litígio se mostrariam incompatíveis. Três aspectos devem ser considerados: a) as rela- ções entre o reino de Deus e o poder estatal; b) as funções do governo esta- tal estabelecidas pelo pró- prio Deus, especialmente em sua função jurisdi- cional sobre atos da vida civil; e c) o significado e extensão da reprovação de Paulo, dentro do contexto vivenciado pela igreja de Corinto. Em primeiro lugar, deve- se reconhecer a distinção entre governos estatal e espiritual, a superioridade do reino de Deus sobre governos estatais, mas também a natureza divina da autoridade conferida aos magistrados civis. Todos estamos sujeitos a duas ordens de poder: um de natureza estatal, com efeitos jurídicos, transitó- rios e terrenos sobre nossa vida e outro, de nature- za espiritual, que ascende sobre o primeiro, e que cujos efeitos perduram eternamente. A Bíblia também ensi- na que, embora distintos, governos estatal e espi- ritual não são contrários. Logo a jurisdição civil não deve ser rejeitada pelos crentes, visto ser tida por potestade legítima, divi- namente ordenada, estan- do o magistrado civil em honrosa função e a serviço do Reino de Deus (Rm 13.1-2). Conforme Calvino (in As Institutas”, v. 4, p. 468), “[...] quando Paulo atesta claramente que o magistrado nos é ministro de Deus para o bem [Rm 13.4], disso entendemos que ele foi devidamente ordenado para que, por sua mão e meios de pro- teção, sejamos defendidos contra a improbidade e as violações de homens facciosos e levemos a vida quieta e segura [1Tm 2.2]”. Em segundo lugar, sobre as prerrogativas e papeis conferidos à jurisdição do Estado, destaque-se a vedação à vingança pri- vada (Lv 19;18; Mt 5.39; Rm 12.17), do que decorre a possibilidade da impre- cação a Deus (Sl 3,35,58) e a prerrogativa estatal de distribuir justiça conside- rando ser o magistrado um ministro de Deus para o benefício da sociedade (Rm 13.4). Até mesmo a nossa Constituição preconiza que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ame- aça de direito (artigo 5º, XXXV, CF/88)”, confir- mando o dever estatal de atuar em todo e qualquer conflito submetido a sua jurisdição. Saliente-se ainda que dentre os papeis conferi- dos ao magistrado civil encontra-se a relevante função de promover a con- ciliação das partes (arti- go 125, IV, do Código de Processo Civil), o que evi- dencia a máxima de que um bom acordo é sempre melhor do que uma sen- tença, numa alusão à fun- ção jurisdicional substitu- tiva da vontade das partes em conflito, como recurso último a ser utilizado. Em terceiro lugar, resta verificar em que termos se deu a censura do após- tolo Paulo aos crentes de Corinto. Paulo distinguia as demandas pela proteção normal de direitos, con- sideradas lícitas, das pos- turas insanas de se litigar por qualquer coisa, para causar o mal, prejudicar ou vingar. Dizia Calvino que “[...] se é permitido entrar em juízo com um irmão, nem por isso é lícito odiá-lo, ou ser con- tra ele impulsionado por furioso empenho de pre- judicá-lo, ou persegui-lo pertinazmente” (ob. cit., p. 469). Paulo opunha-se ao mal uso dos tribunais. Em Corinto, o litígio se torna- ra prática recorrente, com objetivos astutos e ardilo- sos, ao ponto de atrair a maledicência dos ímpios e provocar o descrédito do evangelho entre os infi- éis. Paulo também conde- nava a indisposição para suportar eventuais perdas ou ofensas, por causa do evangelho. Havia ânimo oportunista, uma sede de se beneficiar às custas alheias em vez de sim- plesmente preservar o que era devido. A Palavra de Deus respalda o ingresso nos Tribunais por quem tenha sido injustamente tratado ou oprimido. Também age licitamente quem, sendo acusado, compareça a um tribunal para defender sua causa com os melhores procedimentos e razoes que puder, no intuito de conservar que é seu por justiça (At 16.37; 24.12- 21; 25;10-11). A Bíblia, todavia, con- dena o desejo de vingança, o ódio, o rancor e o pra- zer de litigar. Nosso Deus nos estimula e capacita a que tenhamos a disposi- ção para suportar ofensas ou perdas materiais se isso for necessário para a paz da igreja e honra do evangelho. Logo, a cari- dade é preferível à justiça, embora esta não seja nega- da a ninguém que dela necessitar. Finalmente, Calvino (ob. cit., p. 469): “[...] nin- guém pode formar proces- so contra outro, por boa e justa seja a sua causa, se não tem para com a parte contrária o mesmo afeto e benevolência que lhe teria se o assunto que têm em mãos seja amisto- samente transacionado e resolvido”. Crentes no Tribunal? Ricardo Barbosa A Ricardo de Abreu Barbosa, é advogado e presbítero da 1ª IP de São Bernardo do Campo, SP “Todos estamos sujeitos a duas ordens de poder: um de natureza estatal, com efeitos jurídicos, transitórios e terrenos sobre nossa vida e outro, de natureza espiritual, que ascende sobre o primeiro”

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  1. 1. Janeiro de 20128BrasilPresbiterianoBP LEGALps tratarmos, naedio anterior, dadisciplina eclesistica soba jurisdio civil, algunsleitores perguntaram seas Escrituras autorizamque um crente promovaao judicial contra o seuirmo na f, tendo emvista as palavras de Pauloem 1Corntios 6.1-11, quecensurava o litgio entrecristos.Sendo assim, indaga-se qual o papel ocupadopela jurisdio civil sobrerelaes interpessoais epossveis conflitos entrepessoas que comungam daf crist, a quem dada amisso de pregar o evan-gelho da salvao e doamor de Deus e, entre asquais situaes de litgio semostrariam incompatveis.Trs aspectos devem serconsiderados: a) as rela-es entre o reino de Deuse o poder estatal; b) asfunes do governo esta-tal estabelecidas pelo pr-prio Deus, especialmenteem sua funo jurisdi-cional sobre atos da vidacivil; e c) o significado eextenso da reprovao dePaulo, dentro do contextovivenciado pela igreja deCorinto.Em primeiro lugar, deve-se reconhecer a distinoentre governos estatal eespiritual, a superioridadedo reino de Deus sobregovernos estatais, mastambm a natureza divinada autoridade conferidaaos magistrados civis.Todos estamos sujeitos aduas ordens de poder: umde natureza estatal, comefeitos jurdicos, transit-rios e terrenos sobre nossavida e outro, de nature-za espiritual, que ascendesobre o primeiro, e quecujos efeitos perdurameternamente.A Bblia tambm ensi-na que, embora distintos,governos estatal e espi-ritual no so contrrios.Logo a jurisdio civil nodeve ser rejeitada peloscrentes, visto ser tida porpotestade legtima, divi-namente ordenada, estan-do o magistrado civil emhonrosa funo e a serviodo Reino de Deus (Rm13.1-2).Conforme Calvino (inAs Institutas, v. 4, p.468), [...] quando Pauloatesta claramente que omagistrado nos ministrode Deus para o bem [Rm13.4], disso entendemosque ele foi devidamenteordenado para que, porsua mo e meios de pro-teo, sejamos defendidoscontra a improbidade eas violaes de homensfacciosos e levemos a vidaquieta e segura [1Tm2.2].Em segundo lugar, sobreas prerrogativas e papeisconferidos jurisdiodo Estado, destaque-se avedao vingana pri-vada (Lv 19;18; Mt 5.39;Rm 12.17), do que decorrea possibilidade da impre-cao a Deus (Sl 3,35,58)e a prerrogativa estatal dedistribuir justia conside-rando ser o magistradoum ministro de Deus parao benefcio da sociedade(Rm 13.4).At mesmo a nossaConstituio preconizaque a lei no excluirda apreciao do PoderJudicirio leso ou ame-aa de direito (artigo 5,XXXV, CF/88), confir-mando o dever estatal deatuar em todo e qualquerconflito submetido a suajurisdio.Saliente-se ainda quedentre os papeis conferi-dos ao magistrado civilencontra-se a relevantefuno de promover a con-ciliao das partes (arti-go 125, IV, do Cdigo deProcesso Civil), o que evi-dencia a mxima de queum bom acordo sempremelhor do que uma sen-tena, numa aluso fun-o jurisdicional substitu-tiva da vontade das partesem conflito, como recursoltimo a ser utilizado.Em terceiro lugar, restaverificar em que termosse deu a censura do aps-tolo Paulo aos crentes deCorinto. Paulo distinguiaas demandas pela proteonormal de direitos, con-sideradas lcitas, das pos-turas insanas de se litigarpor qualquer coisa, paracausar o mal, prejudicarou vingar. Dizia Calvinoque [...] se permitidoentrar em juzo com umirmo, nem por isso lcito odi-lo, ou ser con-tra ele impulsionado porfurioso empenho de pre-judic-lo, ou persegui-lopertinazmente (ob. cit.,p. 469).Paulo opunha-se ao maluso dos tribunais. EmCorinto, o litgio se torna-ra prtica recorrente, comobjetivos astutos e ardilo-sos, ao ponto de atrair amaledicncia dos mpiose provocar o descrdito doevangelho entre os infi-is. Paulo tambm conde-nava a indisposio parasuportar eventuais perdasou ofensas, por causa doevangelho. Havia nimooportunista, uma sede dese beneficiar s custasalheias em vez de sim-plesmente preservar o queera devido.A Palavra de Deusrespalda o ingresso nosTribunais por quem tenhasido injustamente tratadoou oprimido. Tambm agelicitamente quem, sendoacusado, comparea a umtribunal para defender suacausa com os melhoresprocedimentos e razoesque puder, no intuito deconservar que seu porjustia (At 16.37; 24.12-21; 25;10-11).A Bblia, todavia, con-dena o desejo de vingana,o dio, o rancor e o pra-zer de litigar. Nosso Deusnos estimula e capacita aque tenhamos a disposi-o para suportar ofensasou perdas materiais seisso for necessrio para apaz da igreja e honra doevangelho. Logo, a cari-dade prefervel justia,embora esta no seja nega-da a ningum que delanecessitar.Finalmente, Calvino(ob. cit., p. 469): [...] nin-gum pode formar proces-so contra outro, por boae justa seja a sua causa,se no tem para com aparte contrria o mesmoafeto e benevolncia quelhe teria se o assunto quetm em mos seja amisto-samente transacionado eresolvido.Crentes no Tribunal?Ricardo BarbosaARicardo de Abreu Barbosa, advogado e presbtero da 1 IP deSo Bernardo do Campo, SPTodos estamossujeitos a duasordens de poder:um de naturezaestatal, comefeitos jurdicos,transitrios eterrenos sobre nossavida e outro, denatureza espiritual,que ascende sobre oprimeiro