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Revist'Entrevista

Entrevista com Angela Gutiérrez, em 17 de novembro de 2008.

Emanuele - Angela, você passou sua in-fância e juventude vivendo em casarões,como até hoje vive. Então, a primeira pergun-ta seria: como é que você se sente morandohoje num lugar como esse, numa casa quefica rodeada por edifícios (localizada no Mei-reles, zona leste de Fortaleza, um dos bairrosmais 'verticais' e de maior valor imobiliáriona cidade)?

Angela - Primeiro, eu tenho pena dos ou-tros (risos). Eu ainda sou uma privilegiada.Muitas pessoas que moram nesses prédios,que conhecem meus filhos, elas sempre di-zem que aqui é o oásis do Meireles. Então,eu tenho pena da descaracterização da ci-dade, da cidade ter crescido tanto vertical-mente, e que poucas pessoas ainda tenhama possibilidade - e nem sei até quando terei- de ter um espaço gostoso de ficar ... Comobrinca o meu marido dizendo: "Ter lá dentro

• e lá fora", né? Aqui em casa, de manhã, euacordo ainda com os passarinhos cantando.Ainda tem beija-flor, borboleta, então é umacoisa rara. Se essa cidade tivesse sido bemplanejada, ela poderia ter crescido mais ho-rizontalmente. Mas pra mim é bom, porqueuma casa grande é uma casa em que cabemmuitas recordações.

Andréia - Ouais as lembranças que vocêguarda dos primeiros casarões onde viveu?

Angela - É interessante, eu tenho uma me-mória de longa data. Por exemplo, eu tenholembranças de (quando tinha) três anos deidade, de quatro. Porque eu saí do casarão,que era a casa de Thomaz Pompeu (ThomazPompeu de Sousa Brasil, advogado, escritor,empresário e político cearense, que viveuentre 1852 e 1929. Tinha o mesmo nome dopai, o senador Pompeu. Foi um dos fundado-res da primeira faculdade de Direito no Cea-rá e da Academia Cearense de Letras) meubisavô, eu não tinha ou ia completar cincoanos. É claro que são lembranças um poucoesfumaçadas, algumas delas foram, vamosdizer, mais delineadas pelas histórias que aminha mãe conta, e eu fui juntando com aminha própria memória, e compondo aqueleambiente, mas muitas, eu pergunto a ela (amãe): "O que era isso, isso assim, assim ...",

e conto uma história, ela fica pasma: "Comoé que você lembra?".

E, é engraçado o quanto eu lembro tendovivido tão pouco lá. Então, eu lembro muitode uma coisa especialíssima da casa. É quea casa era do meu bisavô. A todo momen-to, isso nos era lembrado: "Não mexa nessacadeira porque seu bisavô gostava de ficaraí sentado". "Olhe, cuidado com esse vasochinês, que isso o seu bisavô comprou numaviagem que ele fez". Então, a casa era povoa-da. Ele, morto já há muito tempo, né? - a mi-nha mãe era mocinha quando ele faleceu eeu sou a sexta filha do casal. Ele era a pessoamais presente daquela casa! E tinha um re-trato dele muito bonito, (modifica a posturatentando imitar a pose do retrato do bisavô)com aqueles colarinhos duros, muito elegan-te ... (fecha os olhos)

Mas eu não tenho só boas recordaçõesdo casarão. Ele (o casarão) juntava bibliote-ca e museu, porque, ao mesmo tempo, tudoera do bisavô, da bisavó - eu tenho o nomeda minha bisavó Angela, ela era Angela Pom-peu. Então, era um pouco assustador pramim, criança muito imaginativa. O que acon-tecia: à noite eu não podia dormir com tantasmemórias, tantas recordações daquele casa-rão. E os casarões antigos - vocês sabem -,eram compridos. Por exemplo, era na 24 deMaio (uma das ruas mais movimentadas deFortaleza devido ao comércio no Centro dacidade, abriga referências históricas comoa Casa de Thomaz Pompeu e a Praça Joséde Alencar), esse casarão, perto da Igreja doPatrocínio (Igreja de Nossa Senhora do Pa-trocínio). E tinha portas, umas janelas que seabriam e umas sacadas ... E a primeira salaficava com todas aquelas poltronas de ve-ludo de damasco, ficava tudo coberto comumas capas brancas que só eram retiradasem dia de festa. E também a longa bibliotecado bisavô ficava fechada, meu pai abria e euentrava com ele. E depois tinha um corredorcheio de espelhos que ia dar, aí sim, num lo-cal alegre, claro, com um jardim interno, coma sariema, com alguns animaizinhos domés-ticos e tal, aí então (respira fundo) eu podiarespirar. Quando eu entrava na casa, entrava

GE G E EZ o

Depois de entrevistar oscantores Daniel Peixoto eNey Matogrosso, o próxi-mo desafio do grupo eratravar o "diálogo possível"com uma personalidadeda literatura.

o nome escolhido foi ode Angela Gutiérrez, indi-cado por Emanuele, quehavia lido e se apaixonadopor O Mundo de Flora.

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Angela Gutiérrez é es-critora, membro da Aca-demia Cearense de Letras(ACL). professora de Lite-ratura Brasileira na UFC euma das maiores pesqui-sadoras da ficção latino-americana do País.

Ela já publicou vanostrabalhos sobre o tema emrevistas especializadas,além do livro "Vargas Llo-sa e o romance possível daAmérica Latina"

Herdeira da tradição deuma família importantena história das letras e dapolítica cearense, Angelamantém a veia literária dobisavô materno ThomazPompeu, um dos fundado-res da ACL.

sem respirar até chegar naquele momentode vida. Então, isso aí me marcou muito. Eulembro que de noite ficava escutando o sino,não era bem um sino, acho que era o relógioda Igreja do Patrocínio. Ficava escutando eficava vendo que estava acordada, que esta-va acordada, que não ia dormir e ficava commedo ...

Se por um lado ela (a casa do bisavô) metraz recordações maravilhosas, como a demeu pai, um homem inteligentíssimo, culto,que me colocou os livros na mão, que eramuito carinhoso comigo, que me tinha mui-ta atenção, que me chamava de caçulinha,que foi quem me fez gostar de ler, gostar dearte ... Ele sempre estava me mostrando umquadro da casa ou uma revista. Estava ou-vindo música e dizia: "Você gosta?" "Gosto.""Preste bem atenção, você tá notando? Issoé Bach" (Johann Sebastian 8ach, compositoralemão falecido em 7750). Ou, então, tavaouvindo jazz. Depois ouvia Noel Rosa (Noelde Medeiros Rosa, cantor e compositor ca-rioca falecido em 7937), Bossa Nova (um dosmovimentos da música popular brasileiramais conhecidos internacionalmente. Surgiuno final dos anos 7950).

E tudo isso eu fui aprendendo desdea casa. Continuou, mas foi ali que eu, pelaprimeira vez, folheei um livro. E sabem quelivro foi? (olha para todos) A Divina Comédia(poema narrativo escrito pelo poeta italianorenascentista Dante Alighieri. Narra umaodisséia dividida em três partes: Inferno,Purgatório e Paraíso), o "inferno de Dante".Eu me lembro, era um livro grande e eu fo-lheava ... Quase morria de medo, não podiadormir de noite pensando naquelas almas seagarrando, aquela barca que Virgílio (poetaromano do século Ia. C: autor do poema épi-co Eneida. Aparece como personagem em A

"Eu tenho muitoda minha mãe. (...)Quando eu, ainda

pequena, levantavaa cabeça e afirmavauma coisa, diziam:

"Essa é Angelamesmo". Porqueas Angelas são

decididas."

Divina Comédia) vai guiando até o inferno.Enfim, foi muito bom porque eu entrei emcontato com a literatura, com as artes, comas histórias.

Andréia - Você fala muito nas suas entre-vistas sobre a referência que foi o seu pai nasua vida. E a sua mãe, quais foram as refe-rências que ela deixou pra você, o que vocêacha que carrega dela?

Angela - Muito, muito ... Talvez eu carre-gue até mais dela do que do meu pai. Primei-ro, nós temos uma semelhança física - quemesteve lá com ela (olha para Emanuele) podedizer. Ela tinha os cabelos bem negros comoos meus. Bom, agora eu estou um pouqui-nho mais gorda, mas eu sempre fui maisfininha, né?! E ela é muito imaginativa. Eusempre digo que eu não sou sequer a me-lhor escritora da família! Quando começam afazer muito "auê" em torno de mim, eu digo:"Menos! Eu não sou sequer a maior escrito-ra da família, a maior escritora da família éa minha mãe, com 91 anos de idade". Umaimaginação ... Eu digo que ela tem uma ima-ginação alada. Ela conta história divinamen-te, a mamãe prende todo mundo que estáem torno dela, contando história. Eu achoque eu herdei fisicamente muita coisa dela,herdei muito desse dom dela para contar his-tória, para narrar.

Agora, a mamãe é muito tímida, e eu eramuito tímida (risos da turma). Não, não fi-quem rindo, não. Eu era muito tímida, é queeu venci a minha timidez. A minha timidez foiaquele tipo que joga pra frente. Quando eutinha medo, aí eu (estufa o peito) ia pra fren-te. Se eu estava no colégio e tinha medo deenfrentar uma turma, aí é que eu ia mesmoenfrentar, aí é que eu me oferecia pra falar. Enisso, acho que fui vencendo essa timidez.

Eu herdei da mamãe, também, gostar dedar presente. A mamãe fica feliz em dar pre-sente. Euacho que dou um pouquinho de mimmesma quando dou um presente. A mamãe éassim também. No Natal, ela fica desespera-da, porque se ela pudesse ... Eu tenho muitoda minha mãe. Também as Angelas são con-sideradas decididas. A minha bisavó, a minhamãe, eu. É sempre assim. Quando eu, aindapequena, levantava a cabeça e afirmava umacoisa, diziam: "Essa é Angela mesmo". Por-que as Angelas são decididas.

Henrique - É curioso como você trata a me-mória, ela tem um pouco de ambigüidade, nosentido de que, na medida em que ela é umabênção, ela tem um peso. Você identificavapartes da casa que tinham um peso maior?

Angela - A memória, se você não souberlidar com ela... Aí é que geralmente o escri-tor tem de aprender a lidar com sua própriamemória, né? Eu acho que eu fiz isso com

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o Mundo de Flora (1990). Eu fiz um pouco oque o Vargas Llosa (Mario Vargas llose, pe-ruano, um dos maiores escritores de línguaespanhola) chama de "expulsar os demô-nios", não no sentido da maldade, mas da-queles seres que povoam insistentemente asua cabeça e você quer poder respirar, vocêquer poder criar e, se você não liberar ... Apalavra exata é liberar os demônios!

Havia locais no casarão que me eram mui-to pesados. Um, sobretudo, que era o quartodo meu bisavô. Ele era conservado da ma-neira em que ele estava quando meu bisa-vô morreu. Então, eu acho que morte e vidanaquele casarão estavam muito intrincadas,sabe? Uma vez - eu nunca sofri, da parte dosmeus pais, violência no sentido de levar umapancada, nada. Para não dizer nunca, no diaem que eu - que idade teria? Quatro anos!- e um irmão meu - teria seis, sete anos - en-tramos no quarto do meu bisavô. Nós entra-mos no localsaqrado. Nós subimos, porqueo quarto do bisavô era assim: tinha o térreo,você subia para o primeiro andar, aí, para osegundo andar, era uma escada de mognopreto luzidio, era uma escada linda! Você su-bia e só tinha o quarto dele. Então nós, péante pé, magricelinha, fomos subindo paraver aquele mistério. Quando nós abrimos,tinha uma rede armada, um livro aberto emuma determinada página e uma série de coi-sas assim colocadas. A gente olhou, mexeunas páginas do livro, balançou a rede ... E eume lembro como se fosse hoje, eu pode-ria ter quatro anos. A mamãe entrou, disseque nós tínhamos feito algo que não deveriaser feito, mandou qué nós colocássemos asmãos assim (mostra a palma das mãos). Nãoteve nenhum peso, eu sei. Ela fingiu nos daruma palmadinha (risos) na mão. Mas aquiloteve uma importância tão grande pra mim!Quer dizer, eu - pela primeira vez na vida -,a caçula mimada, recebia uma repreensão eum gesto, que, embora não tenha sido comforça, um gesto de aparente violência, né?Quem é que vai chamar isso de violência!?De aparente castigo.

Emanuele - De certa forma, esse aconte-cimento foi uma descoberta também, né?

Angela - Foi.Emanuele - E a vida em Mondubim (bair-

ro de Fortaleza composto por muitos sítios ecasas populares), também foi uma descober-a s a ãe nos contou que vocês passa-a radas lá, no sítio do seu bisavô ...

e a - as depois nós fomos morar lá.a época não entendi. Eu viaorar, chorar. Chorava tantoos fizemos malas, fizemos

m:JO,imOS pra Mondubim. Eu sabiaso imento ali, mas eu não

sabia bem o que era.Um primo da mamãe tinha feito a doação,

tinha conseguido as assinaturas, enfim, algofeito de uma forma pouco transparente. Ti-nha doado a casa ao Instituto do Ceará (so-ciedade civil de caráter científico e culturalsediada em Fortaleza e fundada 7887). Mas,afinal de contas, foi uma doação tão sem cui-dado, que a casa acabou retornando acaba-da. Enfim, não foi bom porque o que a famí-lia desejava era continuar dentro da casa eabrindo a casa para estudantes, professores,abrindo a biblioteca.

Em Mondubim, toda aquela escuridão seacabou. Era tudo claro, árvores, manguei-ras, cajueiros, coqueiros (sorrindo)! Olha, sóde manga nós devíamos ter uns dez tipos:manga itamaracá, manga peitinho de moça- bom, o formato diz tudo -, manga - não seise sapo ou cururu, uma manga grosseira -,manga jasmin, manga rosa, manga espada,enfim ... Sapoti, pitomba, árvores de frutasmuitas. E ali o meu mundo também se am-pliou, porque pessoas ... Em frente morava oEstrigas (Nilo de Brito Firmeza, pintor, ilus-trador e crítico de arte cearense) com a Nice(Nice Firmeza, pintora cearense casada comNilo Firmeza. O casal ainda hoje mora lá.),né? Então, tinha aquele sítio em frente tam-bém, que às vezes a gente atravessava e iapra lá. A mamãe era amicíssima, ainda é, daNice. Ao lado da casa da Nice, havia umascrianças que eram amigas nossas, dos meusirmãos, e uma delas era muito amiga minha.Outras pessoas que moravam na própria vilavinham também brincar. Entraram aquelasbrincadeiras de roda, brincadeiras infantis:(cantando) "Passarinho ninho / cobra no bu-raco". Se você escondia uma coisa embaixo,era cobra no buraco. Se você escondia umacoisa mais em cima, era passarinho no ninho.

"Eu fiz um pouco oque o Vargas Llosachama de 'expulsar

os demônios',não no sentido

da maldade, masdaqueles seres

que povoaminsistentemente a

sua cabeça"

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Foi através da irmã vesti-bulanda que Manu conhe-ceu a obra. O Mundo deFlora, primeiro romancede Angela, é leitura reco-mendada desde 2007 parao Vestibular da UFC.

Por esse motivo, a escri-tora tem sido convidada adar palestras em diversosequipamentos culturais eescolas em Fortaleza.

Manu esteve presentea um desses encontros.Mais de 20 pessoas aguar-davam a desistência deum dos 35 inscritos parapassarem uma tarde fla-nando pela cidade.

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A guia era Angela Guti-érrez e o percurso seguiapela Fortaleza histórica,esquecida por muitos,mas amada por Flora noromance.

Henrique aderiu pronta-mente à indicação. Além

, de conhecer a obra da es-critora, ele já a havia entre-vistado para o jornal ondetrabalha. Andréia e o res-tante do grupo concorda-ram. Entrevistada votada,próximo passo: o convite.

o primeiro contatoocorreu via e-mail. Henri-que escreveu para Ange-Ia falando sobre a revistae convidando-a para serentrevistada nesta edição.Dias depois, o nosso ami-go comunicava ao restan-te da equipe de produçãoa resposta afirmativa deAngela.

E O outro ia ter de encontrar. Uma vez eu as-sisti - nunca esquecerei - o bumba-meu-boi.Foi um dos maiores terrores da minha vida!Criança imaginativa demais é assim, né?Quando vinha aquele boi, "ô õ", pra cima demim, eu pensava que meu coração ia sairpela boca, que eu ia morrer!

Mas, infelizmente, aquela insônia que vi-nha lá do casarão continuou no sítio. Bastaque eu diga a vocês que eu conhecia todosos barulhos da noite! Se fosse "ploff", erauma manga-sapo que caía, se desmanchavatoda no chão, mole, grudenta. Se fosse "tuc",era uma manga verde, que por algum motivocaiu ainda bem durinha. Se fosse "flec-flec-flec-pa", era de uma mangueira maior, quea manga quando caía ia batendo. Mas o ba-rulho que mais me assustava era ... A gentecriança ouve muita história, né? E umas pes-soas que trabalhavam, que vinham passarroupa, que vinham contar uma história queos morcegos, os ratos se transformavam emmorcegos de noite ... E quando eu ouvia unsbarulhos - porque a casa era toda forradacom madeira - "Ai, meu Deus, os morcegos!Os ratos estão se transformando em mor-cegos!" E ficava com medo de, de repente,um morcego daqueles descer e cair em cimade mim. Então, eu continuei uma insone. Euacho que, por causa do meu medo infantil- que se chama hoje em dia terror noturnoinfantil, e eu acho que era fruto dessa ima-ginação e dessa vivência em espaços meiofúnebres, meio misteriosos - eu não tenhosaudade da minha infância. Tanto que a Flo-ra (protagonista do romance O Mundo deFlora) diz assim: "Ai que saudades que eunão tenho da infância da minha vida", fazen-do uma intertextualidade com Casemiro deAbreu (poeta romântico brasileiro falecidoem 1860. Escreveu As Primaveras)

Henrique - As brincadeiras eram comuns,dos meninos e das meninas?

Angela - Era. Ah! Sim, algumas. Outras,não. Tinha umas brincadeiras que nós ficá-vamos numa fila ... Não sei como é o nome,um dizia uma história e o outro ia contando.Quando chegava no último, o último tinhaque dizer o que era. A gente morria de rirporque já saia uma coisa completamente di-

ferente.Edgel- Telefone sem fio.Angela - Telefone sem fio. A brincadeira

também de chicote queimado, que é o quetem "passarinho no ninho / cobra no bura-co", também era comum. Agora, as brinca-deiras de roda ... Por nada desse mundo elesentravam na brincadeira de roda, isso erabrincadeira de menina! Eles tinham muitomais liberdade, sem dúvida nenhuma! Euaté hoje sonho em ver o rio Siqueira (um dosprincipais rios da periferia de Fortaleza). Por-que o rio Siqueira ficava perto de Mondubime, em determinados dias, meus irmãos maisvelhos pediam permissão ao papai (para irao rio). Ia um grande grupo lá de Mondubim,os que eram três, quatro anos mais velhosdo que eu iam também e eu absolutamenteproibida de ir. Ao rio Siqueira eu não podiair. Os meninos podiam ir ao cinema nos diasde sábado, eu só podia ir se fosse com meupai e com a minha mãe.

Emanuele - Nessa época já tinha quem tecontasse histórias, além da sua mãe?

Angela - Ah, no (casarão) de Mondubimtinha muito! Tinham pessoas que trabalha-vam na casa. A minha casa sempre foi muitoaberta para agregados. Uma pessoa tinha tra-balhado há vinte anos na casa da minha avó:ela vinha constantemente todos os meses,recebia uma ajuda e tal. O meu bisavô, porexemplo, quando morreu, deixou uma casi-nha para cada pessoa que trabalhou pra ele.Sempre houve essa relação muito forte entreas pessoas que trabalhavam na casa, mesmodepois que elas saíssem. Cada uma dessaspessoas que vinham contavam uma história.E tinha uma delas que não tinha trabalhadona casa, tinha trabalhado na fábrica (FiaçãoThomaz Pompeu, a Fábrica Progresso, cujoum dos donos era Thomaz Pompeu, bisavôde Angela. Foi fundada em 1904, época emque houve intensa exportação de redes dedormir tecidas com fios de algodão para oNorte do Brasil).

Um operário de lá sempre ia para Mondu-bim contar (estórias). E, nesta casa, ele veioinúmeras vezes. Ele se chamava Barbosinha.E ele tinha tido uma vida riquíssima! Eu la-mento não ter gravado todas aquelas con-versas com Barbosinha, porque eram mara-vilhosas. Era como se... Claro, eu não estoume comparando com Guimarães Rosa (JoãoGuimarães Rosa, um dos maiores escritoresbrasileiros de todos os tempos), estou sócomparando a situação. Era como se o Gui-marães Rosa tivesse conhecido Manuelzão(personagem da novela escrita por Guima-rães Rosa Uma estória de amor, publicadaem 1956) porque o Manuelzão contou tantashistórias pra ele e tudo, né? Então, o Barbo-

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sinha me contava histórias maravilhosas! Eletinha sido embarcadiço - embarcadiço é ummarinheiro lá da Marinha Mercante. Tinhaestado em Paris, ele contava, ele tinha esta-do em Lisboa. Eu achava que muito do queele contava era imaginação, porque ele tam-bém esteve nas volantes que se batiam como Lampião. Ele esteve em Mossoró (cidadecapixaba distante 285 km da capital Natal)quando Mossoró foi atacada. Ele me contavatudo! Conheceu aqueles cangaceiros todos.E eu achava sempre que tinha um pouco deexagero, mas nunca dizia nada. E a única vezem que eu achei de duvidar dele, ele tinhaa mais absoluta e completa razão e era umahistória verdadeiríssima! Ele dizia assim: "Láem Mossoró, se você furar e der num buraco,sai a água quente fervendo!". Eu dizia assim:-o 8arbosinha, será assim mesmo?". Foi aúnica vez na minha vida em que eu duvidei!(risos de todos) Ele ficou sentidíssimo. "Vocêtá duvidando?" "Não, num tô duvidando não,eu só tô querendo mais uma explicação, etal." Mas ele era delicioso, foi um grandecontador de história!

Um outro contador de história - e eramhistórias de vários níveis, espaços e tempos- foi o meu avô, doutor César Rossas, médi-co, quem me recebeu no mundo, quem mesegurou quando eu nasci. O vovô fez todosos partos da minha mãe, ele não queria queela fosse pra hospital. E a minha tia-avó porlado de pai foi a primeira médica do Ceará,doutora Menininha. Os dois, em cada partoda mamãe, preparavam tudo lá em casa efaziam os partos. Não quer dizer: "eu nas-ci na casa dos meus avós", foi "dentro" dacasa do meu bisavô mesmo que eu nasci. Eesse meu avô era um homem muito elegante(corrige a postura), era eJegantíssimo! Dizemque quando ele foi estudar no Rio - foi fazerMedicina, não tinha faculdade de Medicinaaqui no Ceará - e voltou, ele trouxe duzentasgravatas, não sei lá quantos colarinhos, pale-tós, sapatos. Ele era um homem muito fino,elegante e falava Francês muito bem. E con-tava as histórias com uma finesse impressio-nante! Ele tinha uma fineza pra contar, tinhauns olhos claros, os cabelos claros também,(ele era) bem branco.

Débora - Angela, com sete anos você vol-tou a morar aqui em Fortaleza, né?

Angela - Não, com nove.Débora - Você veio pra estudar aqui, né?Angela - Eu já estudava na Escola Nor-

mal, Instituto de Educação (do Ceará). O meupai achava que era uma escola modelo e nóstivemos de ir para lá. Mas, como a minhairmã mais velha ... Ele achava que o ensinopara mim estava bom, mas para ela, na ida-de em que ela estava - ela é seis anos mais

velha do que eu -, não estava bom. Quandonós nos mudamos, ele resolveu nos passarpara o Colégio da Imaculada (Colégio daImaculada Conceição, uma das escolas maistradicionais de Fortaleza, fundada no séculoXIX pelo primeiro bispo do Ceará, Dom LuísAntônio dos Santos). Nós ficamos morandoperto, eu ia para o colégio a pé. E, enquan-to morando lá no Mondubim, nunca chegueiatrasada no colégio (risos), morando a duasou três quadras do colégio, constantementeme carimbavam! Porque bastava atrasar cin-co minutos, carimbavam "Atrasada"! (risosde todos)

Alan - Você falou de contadores de histó-ria na sua vida. E contadoras de história?

Angela - Minha mãe, minha mãe ... Ela eminha tia, irmã dela (Maria Rossas Freire).Minha avó - que se chamava Laís PompeuRossas, era filha de Thomaz Pompeu - e omarido dela, doutor César Rossas, os dois ti-veram três filhos. Deles três, a única que estáviva agora é a minha mãe.

Mas os três tinham o dom de contar his-tória muito bem. A minha tia Maria e a minhamãe foram as guardiãs da memória familiar.Tudo o que eu sei da minha família, foi con-tado por elas duas. Muito do que está n' OMundo de Flora transformado - e mesmo emLuzes de Paris e o Fogo de Canudos (2006)- foram as duas que me contaram. Mas euera também uma ouvinte muito atenciosa.Eu buscava, ouvia as histórias. Se tivessemcontando história eu largava tudo o que tavafazendo para ouvir aquelas histórias.

Roberta - Angela, a sua paixão por For-taleza é bem transparente, dá pra perceber,inclusive nessas histórias. Eu queria saber deonde veio essa paixão, se já veio da sua fa-mília, que já nasceu, de geração e geração,que já nasceu aqui. De onde veio essa paixãotoda?

Angela - É, eu acho que tem muito a vercom isso. Porque quando eu era pequena- até os cinco anos - eu vivi no Centro dacidade. Levada pela mão do meu pai ou daminha mãe, eu passeei por ali. E meu paisempre gostou de contar tudo. Se passasseem frente à estátua de José de Alencar (es-critor cearense considerado '0pai do roman-

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A pré-entrevista acon-teceu na casa de Angela.Além de conferir dadospresentes na pauta, a pro-dução conheceu parte davida da escritora: o espo-so, doutor Oswaldo Gu-tiérrez, e o lar construídopelos dois.

Apesar do receio em es-tar tomando muito tempoda entrevistada, Manu eAndréia tiveram dificul-dade em concluir a pré-entrevista. Angela é umapessoa muito agradávele, à medida que conver-savam, surgiam mais as-suntos interessantes de sepautar.

Para felicidade geral daequipe de produção, aose despedir de Angela noportão da casa, a duplaencontrou a mãe da es-critora, dona Angela Laís,que vinha visitá-Ia.

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Feitas as apresentações,as garotas arriscaram umconvite para entrevistarD. Angela, ao que ela res-pondeu: "Claro, marquema data!" ,

A visita à dona AngelaLaís acabou sendo funda-mental para a consolida-ção da pauta. Ela forneceumuitas informações comodatas, nomes de pessoase lugares, usados na ela-boração dos campos deabordagem da entrevista.

Também foi constatadoque mãe e filha são muitoparecidas em vários as-pectos.

tismo brasileiro'), ele dizia: "Olhe, você sabeessa estátua? Era José de Alencar. Vocêsabe quem foi José de Alencar? Foi quemescreveu isso, fez isso ... Você sabe quemia inaugurar essa estátua e morreu já com odiscurso pronto? Seu bisavô é quem ia inau-gurar essa estátua, já estava com o discursopronto!". Ele tava sempre dizendo: "Ah, essaigreja! A história dessa igreja é muito antiga,té-té-té ... ". Minha mãe também. As históriasda família estavam muito entremeadas coma história da cidade. "Seu trisavô, o senador(Thomaz Pompeu de Sousa Brasil, o sena-dor Pompeu, político e escritor cearense queviveu entre 1818 e 1877), foi quem fundouo Liceu do Ceará (uma das mais antigas es-colas de Fortaleza, fundada em 1845). O seuavô fundou a Faculdade de Direito /primeirainstituição de ensino superior do Ceará, fun-dada em 1903. Hoje integra a UniversidadeFederal do Ceará - UFC}, fundou a AcademiaCearense de Letras (a mais antiga das Aca-demias de Letras no Brasil, fundada 1894)".

Então, tudo da família estava misturadocom a cidade, e nós somos cearenses, querodizer, fortalezenses de - como você chamouatenção - algumas gerações. Aqui no Bra-sil, se fosse na Europa ... Aqui, três gerações(respira fundo) já é uma grande tradição, né?Mas por exemplo, a minha geração já erafortalezense, meu pai e minha mãe são forta-lezenses, meus quatro avós - ou seja, meusavós paternos e maternos - são fortalezen-ses. A partir do bisavô - o bisavô é fortale-zense, Thomaz Pompeu =, alguns já eram,outros não, mas sempre com essa ligaçãomuito forte com a cidade. O que eu ouvi du-rante minha infância das histórias do PasseioPúblico (como é conhecida popularmente aPraça dos Mártires, a mais antiga praça deFortaleza) ... Eu tenho vontade de escreverum livro, só um livro de amor a Fortaleza.Porque eu estou vendo essa cidade desapa-recer e isso me dói profundamente no cora-ção. Todos os marcos dessa cidade, todas asreferências desaparecendo.

Andréia - Angela, e de tanto ouvir essashistórias você acabou querendo contar suashistórias também, né?

Angela - É (sorrindo).

Andréia - Mas quem foram as maiores in-fluências que levaram você a começar a con-tar as suas histórias?

Angela - Eu penso que há motivos maisremotos e há motivos mais próximos para euter me decidido a escrever minhas histórias.Os mais remotos vocês todos já conhecem,que é o casarão, é Mondubim, são as histó-rias que ouvi, os livros que meu pai me deupra ler, as histórias que tantos contadores dehistória me contaram, não é? E depois, quan-do eu fui fazer o vestibular, eu pensei em fa-zer Arquitetura. Mas acabei me decidindo porLetras e, também, é óbvio por que me decidi.E os meus padrões de leitura ... Vocês vejambem, sabe com que idade eu li Machado deAssis (escritor considerado '0 grande gênioda literatura brasileira')? (Aos) Treze anos eujá tava lendo Machado de Assis, com dozeeu já tinha lido a obra de (José de) Alencartodinha - eu estou indo de traz pra adiante-,mas com dez eu já tinha lido todo Júlio Verne(escritor francês do século XIX), já tinha lidotodo Alexandre Dumas (romancista francêsnascido em 1802), toda a obra de AlexandreDumas: Os Três Mosqueteiros, Dez anos de-pois, Visconde de Brajelogne, não sei o quê,"pá-pá-pá". Já tinha lido todos os livros deaventura, todos os livros de Conan Doyle (es-critor inglês inovador da literatura criminal ,e criador do personagem Sherlock Holmes),Sherlock Holmes completo. Eu li muito cedo,meus padrões ficaram muito exigentes.

Eu tinha vontade de escrever, tanto que,enquanto eu ainda estava na Imaculada, umavez fizeram uma enquete, cada aluno deveriadizer o que ele queria fazer quando cresces-se, e eu - lembro perfeitamente - "escritorade livros maravilhosos". Bom, escritora delivros, já consegui, agora maravilhosos (ri-sos), ainda vamos ver, né? Eu dizia isso, maseu não escrevia, eu lia, lia. Estou para dizercomo Borges (Jorge Luís Borges, escritorargentino): "Não me arrependo dos livrosque não escrevi, mas sim dos que não li."Eu sou muito mais leitora do que escritora,li muito, muito mais do que escrevi. E, comoos padrões eram tão altos, eu tinha medode escrever. Eu escrevia as monografias dafaculdade quando eu comecei a escrever. Eeram bem recebidos (os escritos), os profes-sores me granjeavam bastante antipatia (ri-sos), fazendo elogios especiais, até que umdia, um colega - havia a Revista Ceboré, dosalunos do curso de Letras (da UFC) - um co-lega disse: "Angela, pelo jeito que você fala,que você escreve, você deve ter uma gave-ta cheia de inéditos!" E eu calada, não tinhaum risco! Ele disse: "Me arranja pra amanhã,pega dos teus inéditos lá e traz um conto eum poema." Eu vim pra casa desesperada,

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desesperada. Cometi um conto, que é o PÓ

de Pirlimpimpim, e um poema, que é Umperdão para um Deus cruel - que estão n'OMundo de Flora, como sendo escritos pelaFlora Fernández - e entreguei. Pra que euentreguei? Passei uma semana terrível, meucoração "turn-tum-tum-tum-turn", morrendode medo. Fui buscar, disseram: "Não, já foipra imprensa!" Desesperada, morrendo deangústia: "E se lerem isso, todo mundo vaiachar ridículo, como eu escrevi mal, pra quêque eu escrevi ..." Eu esquecia que um Ma-chado de Assis nasce um num século, queum Guimarães Rosa nasce um num século,né? Eu só achava que valia a pena escreverse eu escrevesse assim, tal como os meusmestres.

Mas, aconteceram algumas coisas, porexemplo, eu perdi o meu primeiro filho, foiuma dor. Eu muito jovem - eu casei muito jo-vem, acho que tinha vinte anos quando tiveo bebê -, e ele morreu com alguns dias. Elenasceu prematuro e eu nem posso dizer queele morreu. Bateu as asinhas e foi-se embora,se encantou no 12º dia de nascido. Ele nas-ceu em véspera de (dia de) Santo Antônio emorreu em véspera de (dia de) São João. Eumuito nova ainda, aquilo foi muito doloroso.Imaginem só vocês, ele morreu antes do quedeveria ter nascido, ou seja, ele nasceu nodia 12 de junho, morreu no dia 23 de junho,ele deveria ter nascido em meados de julho(faz silêncio). Até o dia em que ele deveria

• ter nascido, eu tive uma angústia profundaporque, a todo momento, eu segurava as-sim (coloca a mão sobre a barriga) e dizia:"Mas ele ainda ia nascer ..." (os olhos ficamúmidos). Então, foi algo muito doloroso, eeu escrevi. Eu escrevi poemas, muitos poe-mas para ele. Um desses poemas constamda Canção da Menina (1997), na parte de -o livro tá dividido em várias partes: meninaantiga, mulher, Pietà (alusão à escultura deMichelangelo, que retrata uma mulher como filho morto no colo) -, na parte de Pietà.

Mas depois - diferentemente da Floraque só teve esse filho - eu tive outros filhos,grandes alegrias! Eu quis até engravidar logodepois, eu engravidei logo depois. O Oswal-do Filho nasceu um ano depois do neném.É interessante como nós íamos dar a ele (obebê falecido) o nome de Oswaldo Filho. Eunão pude colocar o nome dele no túmulo,eu coloquei "Bebê Gutiérrez" porque era onome do meu outro filho (com a voz pausa-da e embargada). E vivi uma vida de muitoamor. Eu tive uma sorte na vida! Eu tenhouma amiga que diz assim: "Angela, quan-do perguntarem assim: "E o seu marido?",você diz assim: "Dá pro gasto, porque vocêfaz um" - usando uma expressão antiga do

Ceará - "você faz um 'farol' muito grande doOswaldo, isso não é bom". Mas eu não mecorrijo, eu continuo fazendo "farol" dele por-que é difícil ... Olha, você imagine ter tido umpai extraordinário e depois um marido extra-ordinário também. Amigo, companheiro ...Eu digo que é amigo, amado, amante.

Emanuele - N'O Mundo de Flora, uma te-mática que eu observei que você explora é oamor da Flora pelo Diego. Eu tenho curiosi-dade em saber se o amor da Flora pelo Die-go é parecido com o amor da Angela peloOswaldo.

Angela - É parecido, mas o meu amorpelo Oswaldo é maior. Eu não teria coragemde deixá-I o, ou pelo menos pensar em deixá-10, eu não amaria mais a Literatura do que aele. Eu acho que é muito forte. Nós nos co-nhecemos eu, imagine só, estava fazendo 13anos de idade, e o Oswaldo tinha vindo praestudar - por isso eu sempre chamei o pro-fessor Antonio Martins Filho, o reitor funda-dor (da UFC), de "o meu cupido". E, no diaque tomei posse na Academia (cearense deletras), muitas pessoas ficaram assim (sementender), mas ele adorou, amou, me abra-çou depois mil vezes, porque na hora que euestava falando com ele, me dirigi ao presi-dente de honra da Academia, professor An-tonio Martins Filho, aí disse: "Meu cupido",Muitas pessoas não entenderam. Mas eleabriu a Universidade pra trazer estudantesestrangeiros que faziam vestibular lá e o ves-tibular valia aqui, um programa do Ministé-rio da Educação. O Oswaldo, de certa forma,veio pra cá porque o doutor Martins tinha es-sas idéias sempre, era um homem cem anosna frente e tinha essa cabeça muito aberta.

Quando eu conheci o Oswaldo, foi mui-to engraçado, foi o aniversário de um irmãomeu e um amigo dos meus irmãos pediu li-cença pra levar um jovem que estava sozi-nho, tinha chegado de fora, (perguntou) se

1I01ha,você imagineter tido um pai

extraordinário edepois um marido

extraordináriotambém. Amigo,

companheiro ... Eudigo que é amigo,amado, amante."

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A conversa foi tão agra-dável que Manu confessouter tido vontade de fazersozinha uma entrevistacom dona Angela para arevista, "boicotando" orestante do grupo. Olhe aousadia da moça!

Na casa de dona Ange-Ia Laís há muitas relíquiasde família, dentre elas, umsantuário que foi da avóaçoriana do esposo Lucia-no Cavalcante Mota.

Das imagens abrigadaspelo móvel, uma era bas-tante diferente: um meni-no com o pé machucadopor um espinho. DonaAngela explicou que o me-nino simbolizava Jesus, eo espinho, os erros da hu-manidade.

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Angela é capaz de citaraté a 8ª geração ascenden-te de sua família. Ela temascendência portuguesamaterna e paterna.

Por parte da mãe, a fa-mília' Pompeu chegou aoBrasil vinda de Porto, jáa família Rossas, da qualtambém pertence o pai,veio da cidade de mesmonome em Portugal.

Quem adotou o nomePompeu foi o trisavô Se-nador Pompeu, que naverdade tinha sobrenomeSousa, "numa época emque queriam um abrasi-leiramento dos nomes",segundo a escritora.

podia levá-Io e a minha mãe disse que podia.Ele era tão educado, tão fino, que minha mãese encantou logo e ele sentiu, como ele sem-pre conta, amor a primeira vista. Ele me viue amou. Eu o vi e comecei a implicar. Mas euimplicava terrivelmente. Eu ficava atrás delefazendo assim (faz caretas). Ele me tirou pradançar e eu fiquei dançando com ele e fazen-do careta pros outros. Eu fui horrível, eu fuicruel!

E ele olhava pra mim, respirava profunda-mente, e um dia me disse assim, já uns doisou três anos que ele tentava namorar comi-go, (ele) vinha falar ... E eu fazia: "Ah! Eu nãoquero namorar!". Eu era entusiasmada pelasidéias de Simone de 8eauvoir (filósofa exis-tencialista), dos existencialistas. Como era onome daquela que se vestia toda de preto?Uma dessas existencialistas que só se vestiade preto ... Claro que a mamãe não me deixa-va vestir de preto tinha que ser cor de rosa,(risos da turma) mas eu achava aquilo muitoespetacular, lia muito, queria só ser intelec-tual, não usava ... Eu vim usar batom, a nãoser num casamento, eu vim usar batom eu jáestava com meus três filhos.

E o Oswaldo todo tempo insistindo, e umdia ele teve a audácia de me dizer assim:"Angela Maria ..." - ele ainda tinha sotaque,hoje em dia ele tem muito leve sotaque, eleé um dos estrangeiros que eu já vi falar me-lhor o Português ... Ele diz que é a professo-ra dele (risos da turma). Ele falou assim pramim: "Angela Maria, o mundo dá muitasvoltas e um dia você ainda vai se apaixonarpor mim". Eu fiquei revoltada! E não é que foimesmo assim!

Andréia - Você já participou de gruposde jovens católicos, sua mãe também tinhamuita preocupação de você se casar com umhomem católico. Como é que essa religiosi-dade tá presente na sua vida hoje e como semodifica ...

Angela - Religião é algo bonito e difícilde se lidar. Eu, culturalmente, sou católica.Fui educada assistindo à missa. Meu pai eraum homem que não tinha religiosidade, mastinha um senso religioso muito profundo,um sentido religioso. Eu fui educada assim.Apesar de ter sido sempre meio rebelde, eu

nunca me desliguei da religião. Sempre tiveum amor especial- como meu pai tinha e mi-nha mãe tem - à Virgem Maria. Mas, quandoeu entrei no colégio religioso, no ImaculadaConceição, eu não gostava muito de certosaspectos da religiosidade, como determi-nadas "ave-martas" que tinham de ser ditassem você está com vontade, e assistir a isso,assistir àquilo, certas obrigações exageradasreligiosas. E, nessa época, eu fui convidadapra ser Filha de Maria (congregação religio-sa de leigos, que se caracterizava mais peladevoção do que pela atuação social), mas euachava a organização algo muito quadrado.Foi quando algumas alunas do Colégio daImaculada, mais velhas do que eu, me cha-maram pra conversar e me falaram na AçãoCatólica (Ação Católica Brasileira, criada em1935 no Rio de Janeiro. Contava com três or-ganizações: a Juventude Estudantil Católica- Jec, formada por estudantes secundários, aJuventude Operária Católica - Joc, e a Juven-tude Universitária Católica - Juc). E eu tinhauma grande admiração pelo D. Helder Câ-mara (bispo católico cearense, falecido em1999. Foi um dos fundadores da ConferênciaNacional dos Bispos do Brasil e grande de-fensor dos direitos humanos durante o regi-me militar brasileiro). Foi ele quem realizouo casamento do meu pai e da minha mãe, opapai gostava muito dele, tinha muita ami-zade a ele. Eu comecei a ler textos escritospor ele e...

A Jec, naquele tempo, era uma espécie - ,entendam bem o que vou dizer - era uma es-pécie de PT (Partido dos Trabalhadores, fun-dado em 1980) do tempo glorioso do PT, ouseja, do tempo da militância gloriosa, em quevocê estava lutando pelo bem dos outros. Erauma missão social você lutar por melhoriassociais, contra injustiça, pelo patrimônio, porisso e aquilo. Tinha um tom rebelde, não erada rellqiãetradicional. Era uma (vertente da)religião com um matiz rebelde, que diferen-ciava de outros padrões do catolicismo tradi-cional, era "você é responsável pelo outro",e o "outro" era a humanidade inteira. Todasas questões sociais eram tema da JuventudeEstudantil Católica, então, eu a abracei commuito amor dos 13 aos 17 (anos). Quando euentrei na universidade, não deu nem tempode eu entrar na Juc, né? Porque logo veio arevolução ... Revolução, meu Deus! (balançaa cabeça negando) A ditadura (ditadura mili-tar no Brasil, 1964-1985) fantasiada de revo-lução, se dizendo revolução.

Lívia - Angela, a sua vida foi muito mar-cada por recordações. Eu queria saber o queé que do passado você resgataria para o pre-sente.

Angela - Indiscutivelmente, meu pai. Se

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ele tivesse vivo, eu podia dizer que eu estoupassando por um momento da minha vida ...Apesar de alguns acontecimentos desagradá-veis, mas eu estou passando por um momen-to de muito amadurecimento, de muita felici-dade na minha vida. No dia 14 (de novembrode 2008), que foi há três dias, ele teria feito95 anos. Preparei uma missa, mandei fazerum retrato dele, contratei a Aparecida Silvinopara cantar, porque ele adorava quando elacantava a Ave Maria. Indiscutivelmente ...

Eu tenho um netinho que tem 10 anosde idade, ele me chama de mamãe, ele émeio nosso filho, embora more agora como pai. Ele é quem me ajuda. A felicidade deleé grande nessa época, preparar os enfeitesde Natal. No Natal do ano da morte do meupai, que foi 2004, a gente sempre colocavaum disco de Natal e ficava cantando, dan-çando e arrumando, e eu não pus o disco eele olhou assim e disse: "Mamãe, esse Natalestá diferente, você está triste". O menino deuma sensibilidade, eu nunca vi para ter tantasensibilidade ... Eu disse: "É, meu filho". "Porquê?" Eu disse: "Porque é meu primeiro Na-tal sem meu pai." Ele ficou ..."Fácil! Tem umjeito." "O que é, meu filho?" "Você pede aoPapai Noel trazer de volta. O seu presente deNatal é o bivô!". A inocência da criança!

Então, se eu ganhasse de volta meu pai...De todo meu passado, o que eu mais gosta-ria... Era ter meu pai aqui, por exemplo ... Sótinha uma coisa, vocês iriam virar todos decostas para mim e iam ficar só olhando paraele, conversando com ele. Eu resgataria asnoites enluaradas, o meu pai gostava de, nasnoites de lua lá em Mondubim ... O papai co-locava as cadeiras lá fora, ia lá pra fora. E eletocava violão com muita graça. Não era umviolão extraordinário, mas muito bem ... Semdesafinar, muito bem afinado, ele tocava ...Músicas assim (cantando): "Foi numa noiteque a cabocla Marinda / ficou sendo a reti-rante que mais dava o que falar / Mas veio aseca lálálá ..." Cantava muito Noel Rosa...

Emanuele - A sua mãe, em entrevista ànossa produção, disse que fica muito emo-cionada quando se lembra da época em quevocês moravam no casarão. Ela falou inclu-sive da biblioteca do seu bisavô e disse quehoje não tem mais coragem de ver aquelacena, aquela biblioteca. E você é bibliófila,coleciona livros. Eu queria saber qual sua re-lação, hoje, com a biblioteca de seu avô ecom os livros.

Angela - Com a biblioteca do meu bisavô.Eu tenho ido várias vezes ao Instituto do Ce-ará e visto a biblioteca lá, assim como a me-sinha em que ele escrevia. Eu fico com muitapena porque vejo que ela está muito desfal-cada. Hoje eles (os dirigentes do Instituto do

Ceará) estão tendo muito cuidado, mas, aolongo do tempo, se perdeu muita coisa. Euvou lá e eu sinto alegria de rever algo que euvi na minha infância e sinto uma tristeza porver que não está como era. Ela era lotada,cheinha de livros bonitos, bem organizados ehoje você vê espaços vazios, enormes.

Mas eu estou falando de coisas muito an-tigas. O Renato Braga (Raimundo Renato deAlmeida Braga, agrônomo, diretor fundadordo Instituto de Zootecnia da UFC) escreveuum livro sobre a comissão científica, que erachamada Comissão das Borboletas (Comis-são Científica de Exploração, que chegou aoCeará em 1859 e passou por vários municí-pios do interior do Estado), que esteve aquino Ceará. Eu adoro essa história, ela estápresente em Luzes de Paris, tem algumaspáginas sobre ela. Conversando com o Ré-gis (Francisco Régis Lopes Ramos, professordo Curso de História da UFC), com a SylviaPorto Alegre (professora do Departamentode Ciências Sociais da UFC) e outros his-toriadores, nós combinamos que cada umescreveria algo e faria uma coleção sobre acomissão. A Sylvia Porto Alegre até fez. E ca-beria a mim analisar as cartas dirigidas ao se-nador Pompeu e que faziam parte do acervode Thomaz Pompeu, que foi doado ao Insti-tuto do Ceará. Até 1957, que foi quando Re-nato Braga escreveu esse livro, ele se referiua essas cartas, eram trinta e tantas cartas doCapanema (Guilherme Schüch, barão de Ce-panema. Naturalista, engenheiro e físico bra-sileiro falecido em 1908), do Gonçalves Dias(Antônio Gonçalves Dias, poeta românticobrasileiro falecido em 1864) do Reis (Josédos Reis Carvalho, pintor cearense falecidoem 1872), de vários membros da comissão.Meu objeto de estudo desapareceu. Isso medá uma tristeza profunda porque isso é umdéficit na nossa cultura. Você não poder exa-minar ... Tem uma história, maravilhosa, queo senador (Pompeu) recebeu na casa dele osmembros da comissão. Logo no dia seguin-te que chegaram, deu uma festa. Meu bisa-vô conta isso em um texto, que era meninode oito anos e viu Gonçalves Dias. Era tantacoisa linda pra se juntar, pra você ver comoera... Há muitas dúvidas de como foi a con-

ANGELA GUTIÉRREZI 109

o restante das famí-lias ascendentes era dosmunicípios cearenses deAracati e Maranguape e doestado de Pernambuco.

A bisavó paterna vindados Açores se chamavaMaria da Glória e foi inspi-ração para a personagem"pequena açoriana" nosromances.

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Angela usa nomes pareci-dos com os de sua família nospersonagens de seus livros.Em O Mundo de Flora, não sepode deixar de comparar Ro-

'meu e Pompeu, Fernandez eGutiérrez, etc.

Dona Angela Laís emocio-nou-se várias vezes durante aentrevista, sobretudo ao falardo marido, que faleceu em2004, e da infância no casarãodos avós. Ao recordar a mãe,ela disse ser tamanha sensibi-lidade herança dos Pompeu.

A família é numerosa. An-gela tem seis irmãos: LucianoFilho, Tomás de Aquino, LaísAlba, Carlos, César e Paulo.além de dois "irmãos de afe-to", como Angela definiu o so-brinho Alexandre e a afilhadada mãe, Luzia.

vivência da comissão com a intelectualidadecearense, e essa era uma possibilidade de seexaminar isso.

Débora - Você trabalha muito com frag-mentos de memórias, também na sua lite-ratura, tanto com memórias pessoais comoda cidade. Até relata numa entrevista ao jor-nal O Povo (jornal cearense) que começou aescrever O Mundo de Flora numa noite deinsônia, escrevendo direto, fragmentos dememória... Como foi depois construir dosfragmentos uma narrativa?

Angela - Ah, foi bem mais difícil! Eu digoque O Mundo de Flora teve dois momentos.Eu estava doente, eu tive uma síndrome reu-mática, com vinte e tantos anos, menos detrinta, e inchava tudo, inchavam todas as ar-ticulações, a ponto às vezes de eu não poderdirigir porque não podia mexer a mão, umsofrimento atroz. Eu estive em médico aquino Ceará e em São Paulo. Estive nos EstadosUnidos e todos disseram a mesma coisa:"Olha, vamos pensar no melhor, essa síndro-me pode regredir ou pode evoluir para doen-ças mais graves". Bom, a da Angela regrediu,graças a Deus.

Numa noite de muita insônia e dor, por-que congeminaram-se dor e insônia e eu melevantei, Oswaldo cansado, eu sentindo dore tudo. Até com dificuldade, peguei um lá-pis, um caderno espiral - ainda tenho essecaderno aí -, me sentei no chão do closet ecomecei a escrever. Parecia aqueles escrito-res românticos que recebem uma inspiraçãoe "pá-pá-pá-pá", e já saiu tudo. Eu sentia que

IIAí, começourealmente um

trabalho daprofessora Angela

Gutiérrez, ou.seja, começouum trabalho dequem conhece

Literatura, de quemestá realmente

construindo, comaqueles fragmentos,

um livro."

eu pulava uma linha e entrava com outro nar-rador, com outro material narrativo, e escrevio caderno todo e no final fiz o roteiro e fiz atéo fim. Claro que depois eu estava às vezesem qualquer lugar, às vezes até numa con-ferência, e eu virava o caderno e escrevia.Tinha uma gavetinha do meu estudo que eujogava dentro e pronto, ia jogando, ia jogan-do. A gaveta já estava cheia de pedaço depapel.

Talvez ainda estivesse lá se um dia umsobrinho meu, Augusto César Mota ... O Au-gusto entrou pra falar comigo e eu estavacom essa gaveta aberta. Ele: "0 que é isso,tia?" Pegou e começou a ler, os olhos se en-cheram de lágrimas. "Mas tia, isso é lindo. Oque é isso?" Eu contei o que era. "Não falepra ninguém." Ele disse: "Tá bom, eu guardosegredo, mas você só me promete uma coi-sa, tia.". Era um tempo muito antigo, era finaldos anos 80. "Mande datilografar." (risos) Atépra datilografar foi difícil, porque estava tododesmembrado. Aí, começou realmente umtrabalho da professora Angela Gutiérrez, ouseja, começou um trabalho de quem conhe-ce Literatura, de quem está realmente cons-truindo, com aqueles fragmentos, um livro.

Eu usava mesmo tesoura, high tech, aminha hightecnology era uma cola em bas-tão. Houve algumas dificuldades. Quem leuO Mundo de Flora sabe que existem váriosnarradores: narrador em primeira pessoa,que é a própria Flora; narrador em terceirapessoa, que é uma espécie de memória fami-liar ou memória da cidade; narradores oraisque entram; matérias narrativas que entramsem apresentação. Cartas, documentos, pe-daços de jornal, canções, poemas, diálogosdramáticos etc. E, pra eu montar, tinha deler todinho de novo. Primeiro, eu comeceia separar o material. Botei alguns símbolos.Digamos que fosse uma estrela pra quandofosse a Flora narrando, que fosse um triân-gulo pra quando fosse um narrador em ter-ceira pessoa, que fosse um circulozinho praquando fosse carta ... Saí separando material.Mas vi que eu tinha de ler. E comecei a botaruns nomezinhos pra me ajudar. Até a mãoem cima. "Que estória é essa? Ah! Boca debiquere", "Que estória é essa? Ah, Falta fi-nesse, sobra molecagem", que se transfor-maram nos intertítulos. Com isso na mão agente não precisava ler tudo. Eu comecei amontar. Houve várias montagens. A que estána mão de vocês, dos leitores, não é exata-mente a primeira.

Quando ele (o livro) estava pronto, man-dei tirar umas cópias. Agora, vocês pensamque eu mostrei logo a meu pai? Ave Maria!Aquela bondade personificada! Mas eu achoque eu não queria decepcioná-Io. Como ele

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acreditava demais que eu tinha muito talen-to ... Eu não queria decepcioná-Io. Eu fiz qua-tro cópias, dei uma a doutor Artur EduardoBenevides (escritor cearense e professor doCurso de Letras da UFC. Presidiu a ACL),outra a Moreira Campos (contista cearen-se, menbro da A CL e professor de Letras daUFC, falecido em 1994), outra a Horácio Dí-dimo (poeta, ficcionista e ensaísta brasileiro)outra a Sânzio de Azevedo (escritor ceeren-se, membro da A CL e professor do Curso deLetras da UFC). Entreguei ao meio-dia, na sa-ída do turno da manhã. Saí suando frio.

Quando eu cheguei em casa: "Pra que euentreguei?" Morrendo de medo. No dia se-guinte, às 7h 15 pra 7h30, eu tava entrandopra dar aula, o doutor Artur me entregou umenvelopão. "Será que ele não quis nem ler,tava tão ruim que ele deixou pela metade?"Eu, mesmo enquanto fazia a chamada, puxeiassim ... (o livro estava) Todo anotado, umacarta enorme, uma receptividade linda aotrabalho. Eu disse assim: "Bom, se o doutorArtur gostou, é certo que ele tem muita ami-zade a mim, mas se ele gostou ... Se fosseuma coisa que eu fosse passar vergonha, eleme diria".

Eu estava preparando o projeto do rnes-trado e tinha uma sala lá em cima e tododia o Moreira Campos vinha ... (levanta-see começa a imitar Moreira Campos) Ele vi-nha assim: "Angela, minha filha, você sabeque hoje ...", ele lia bem devagarzinho e liaalto pra dona Zezé, que era a mulher dele, amusa, mulher fina! ... Ele dizia "Hoje a Flor-zinha fez isso, fez aquilo e a Zezé tá achan-do que assim, assim ... Mas eu?! Sei não! Tôachando assim, assim, assado." Todo dia elepassava na minha sala e dizia o que estavalendo. Pode alguém viver uma experiênciatão linda como essa?

O Horácio Dídimo, uns dois, três dias de-pois, trouxe-me um poema que deu o nomeao livro de poemas: "A Flor menina do casa-rão / nunca termina sua canção" e continua.Esse jogo me deu a idéia para o título do li-

vro a Canção da Menina (1997). E o Sânziofez um artigo que, vindo dele, do maior pes-quisador, estudioso da Literatura Cearense,me honrou muitíssimo, porque ele começaassim: "Este ano ficará marcado para a Lite-ratura Cearense uma das estréias mais signi-ficativas. Angela Gutiérrez aparece-nos comum romance que nasce sem a maioria dostraços encontrados nos livros dos que se ini-ciam." Aí continua e termina dizendo: "Porisso e por tudo o quanto dissemos, voltamosa afirmar que a publicação do romance OMundo de Flora marcará época na histórialiterária do nosso Estado". Depois disso eutive coragem de mostrar ao meu pai. Ele leu,emocionou-se tanto, leu pra mamãe, os doisficaram tão emocionados, porque ela (a mãe)prometeu a tia Alba (Alba Pompeu, tia-avóde Angela), que ela chama Babo, manter vivaa memória do bisavô e da família. Através demim, ela sente que está mantendo viva estamemória, ela ficou muito feliz.

Alan - A senhora declarou ao jornal Di-ário do Nordeste, (jornal cearense. Angelainterrompe baixinho e diz para chamá-Ia de'você: todos riem) no dia 10 de outubro de2001, quando do lançamento do livro AvisRara, que a palavra literária é pra ser usadaem dia de festa, como um objeto preciosoguardado numa caixinha para o dia de festa.O fazer literário pra você também é um atofestivo, ou você se sente um pouco atormen-tada?

Angela - Olha, eu tenho de contar umacoisa pra vocês ... Durante muito tempo, euachei que não era escritora porque gosto deescrever e, no momento em que estou escre-vendo, sinto uma felicidade tão grande, umaepifania tão maravilhosa! Eu sempre vejo amaior parte dos escritores ... "Eu não possoser escritora porque escrever é um ato de so-frimento, é a pessoa estar angustiada" e euescrevo com um prazer tão grande! Encon-trando e escrevendo, aquilo ir crescendo, ascoisas acontecendo, tudo dando certo, tudose encontrando, o puzle se encaixando. Eu

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Dona Angela Laís disseque a filha foi uma crian-ça obediente e estudiosa,diferente dela, que era ar-teira e "não gostava muitode estudar", lembra. Aindasegundo a mãe, essas ca-racterísticas, como tantasoutras, foram herdadas dopai.

Dona Angela Laís lembraque o marido gostava mui-to de cantar e tocar violãopara ela e os filhos. Dissetambém que senhor Lu-ciano tinha uma facilidadeimensa de conversar comas pessoas, característicapresente na personalidadede Angela.

Dona Angela Laís reve-lou durante a entrevistaque chegou a rezar paraque Oswaldo e Angela seapaixonassem.

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As orações funcionarame o casal vive "em plenoamor", depois de 42 anosde casamento, ao lado dosfilhos: Oswaldo filho, mé-dico, cirurgião-plástico, ca-sado com Priscila; Daniel,advogado, casado comSunny; e Angela Laís, es-tudante de Psicologia

Angela fala com afetodos quatro netos. A casaonde mora, segundo ela,é meia-casa de OswaldoNeto (10 anos). filho deOswaldo Filho. Chama ca-rinhosamente as duas ne-tas, ainda bebês, de "Bela"Isabela e "Linda" Lina.

Moreira Campos foi co-lega de turma de senhorLuciano no Liceu. Sobreele, afirma ter sido umgrande amigo e leitor assí-duo, em quem encontrouum pouco do pai.

acho tão bom!Cada livro meu foi escrito de uma forma.

Por exemplo: O Mundo de Flora foi escritoda forma mais amadora possível e imaginá-ria porque foi romântica, aquela idéia de quedesceu a inspiração! Agora pra escrever, pramontar não! Já A vis Rara ... Sabe como é quefoi escrita Avis Rara? Eu tava fazendo dou-torado, quando eu digitava o trabalho, tavalendo, me vinha uma idéia, eu me virava eescrevia a mão, atrás do trabalho, tanto queme deu trabalho encontrar (os escritos) prapoder depois digitar. Vinha aquela idéia, euescrevia uma estorinha. A Canção da Meninasão poemas escritos ao longo do tempo, eeu juntei numa coletânea. Eu não sentei sópra escrever este livro.

Agora o livro que eu escrevi realmentecomo escritora foi Luzes de Paris e o Fogode Canudos. Primeiro, porque eu li muito so-bre toda essa época, tudo o que aconteciano final do século, no começo, eu li muito -porque eu já tinha essa leitura como pesqui-sadora de Canudos, mais relacionada comCanudos e tal. Gosto da figura de D. Pedro11e sempre li muito sobre ele. Já tinha leitu-ra, complementei. Coisas que iam aparecer,(como) a Confederação do Equador (movi-mento revolucionário ocorrido em algunsestados do Nordeste, entre 1817 e 1824. Pre-gava a independência em relação ao poderimperial) ... Eu li todos os livros que eu pudeencontrar sobre a Confederação do Equador.De certa forma, eu me preparei para escreveresse livro. Escrevi numas férias, num janeiro.Quem sabe se esse janeiro (referindo-se a ja-neiro de 2009) vai me reservar a escrita dealgum livro? Mas eu estou com tanta vonta-de de arrumar a minha vida, de ler esse livro(refere-se a Luzes de Paris e o Fogo de Canu-dos) pra minha mãe, de visitar minhas netas,de fazer coisas que eu não estou fazendo porcausa do trabalho. Você vê como é a litera-

"Ouern sabe se. . .esse Janeiro vai me

reservar a escritade algum livro?(. ..}Nesse tempo atual,

muitas vezes, euespante) idéias de

escrita. E um crimese fazer isso!"

tura na minha vida? Nesse tempo atual, mui-tas vezes, eu espantei idéias de escrita. Vocêacredita nisso? É um crime se fazer isso!

Henrique - Parece que houve, desde OMundo de Flora, uma espécie de tomadade consciência da condição de escritora. Foiisso mesmo que aconteceu?

Angela - Ah, é. Aconteceu. Alguns poe-mas são bem anteriores a O Mundo de Flo-ra. Eu publiquei. Ia se chamar até Boneca deLouça quando Moreira Campos fez as orelhasdesse livro. Eu dei pra ele ler e ele gostoumuito. Eu comecei a ver e publicar não sóficção e poemas, essa parte literária mesmo,mas publicar artigos em revistas, a organizarlivros. Realmente parece que eu tava come-çando a ser escritora.

Emanuele - Como é que você avalia essaquestão da denominação de uma literaturada mulher para falar sobre obras de escrito-ras como Adélia Prado, Rachei de Queiroz?

Angela - Olha (pausa) ... Eu tenho um sen-timento não muito bem firmado sobre isso.Tem horas que acho que é igual ao Dia daMulher. Por que um dia pra mulher, não é? Etodos os outros dias são dos homens ... Mas,ao mesmo tempo, eu não sou completamen-te contra os estudos de literatura femininaporque, como a dominação é da literaturafeita por homens, é bom que algumas pes-soas se dediquem a ler o que é escrito pelasmulheres. Então, eu tenho um sentimentomeio dúbio com relação a isso. Eu gostariaque não precisasse, mas eu sinto que aindaprecisa. Como, por exemplo, ainda precisater estudos críticos sobre a presença do ne-gro, porque o negro ainda é marginalizado.As pessoas que não são dominantes aindaprecisam disso. Eu também tenho lido mui-tos textos interessantes sobre a literatura fe-minina. Eu estou igual a Raul Seixas (cantore compositor brasileiro que fez sucesso nasdécadas de 1970 e 1980): "Não tenho opi-nião formada sobre tudo". É um tema que devez em quando me vem à cabeça e me deixameio ... Será que nós escrevemos mesmo deuma forma tão diferente do homem, a pontode existir uma literatura da mulher? Ou seráque nós precisamos ter um foco maior sobrenós, porque já sofremos outras restrições?Eu não lhe ajudei nada (risos da turma). Éporque eu não firmei bem. Eu tenho dúvi-das.

Luar - Mas você consegue perceber essadiferença entre um texto que uma mulherescreveu e a literatura que um homem es-creveu?

Angela - De algumas mulheres, sim. Vocêimaginaria um homem escrevendo o que aClarice Lispector escreveu? Acho que não,né? Já outras pessoas, eu não sei. Outras

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pessoas, nem tanto. Cecília Meireles é com-pletamente feminina. Clarice Lispector tam-bém.

Emanuele - E a sua literatura? É uma lite-ratura essencialmente feminina, como a daClarice?

Angela - Acho que os leitores é que têmde dizer mais do que eu. Não sei se dá praperceber, não (longa pausa). Eu tenho im-pressão de que se colocasse aqui um livrodesses nas mãos (pega um livro dela queestá sobre a mesa) de uma pessoa e dis-sesse: "Diga quem foi que escreveu, se foium homem ou uma mulher?", sem a pessoasaber quem é, acho que a pessoa percebe-ria. Sobretudo por causa do narrador em 1ªpessoa do feminino, não é? Eu tenho impres-são ... Bom, pra mim é tão difícil porque fui eumesma que escrevi.

Henrique - No seu processo de escrita,esse elemento ...

Angela - ...Não. Eu não sou muito preocu-pada com isso, não.

Débora - A gente percebe que você serefere muito à vida acadêmica e à vida lite-rária ...

Angela - ...É, eu misturei isso.Débora - Mas é interessante. Você era

uma menina quando entrou na universidade.Eu queria saber como é que foi a sua entradano curso de Letras (da UFC).

Angela - Foi tranqüilo pra mim. Como eujá tinha um cabedal - vamos usar essa pala-

• vra - literário muito grande, eu me distinguilogo. Os professores ficaram logo me conhe-cendo. Era um pouco angustiante porque elessempre esperavam muito de mim. A minhamonografia tinha de ser a melhor. Mas eraaté bom porque eu exigia de mim mesma.Sabe uma coisa engraçada que eu descobri?Eu encontrei um texto de uma prova da fa-culdade. Ele me foi dado por uma secretáriaque guardou, a Marlene. Que guardou anose anos e anos e me deu depois de eu ter pu-blicado O Mundo de Flora. Era um texto emque a pessoa tinha de fazer uma memória. Ecomeça desse jeito: "Naquele casarão som-brio em que passei os primeiros anos da mi-nha vida ..." Eu tomei um susto horrível! Querdizer, eu repeti algo que eu já tinha na cabe-ça, já tinha escrito. E eu nem lembrava dessaprova. Eu tenho ele aí, eu vi ontem.

Então, eu relacionei muito uma coisa coma outra. Primeiro, o fato de ser professora meprejudicou muito como escritora em um as-pecto: eu me dediquei integralmente, apai-xonadamente à missão de ensinar! Semprequis que os alunos gostassem da disciplinaque estavam estudando. Não me bastavaque eles aprendessem. Era preciso tambémali. .. Olha, me chamam muito de Dom Ouixo-

te de Ia Mancha (personagem de Miguel deCervantes no livro Dom Quixote) (risos de to-dos). Era preciso também que eles se trans-formassem em cidadãos, que quisessem vero Brasil crescer. Tudo isso cansa muito, vocênão fazer apenas o seu dever, chegar lá e daruma aula. Você fazer pensando em conquis-tar os alunos para a Literatura, conquistar osalunos pra Ética, pra Cidadania. Isso exigemuita dedicação. Depois eu também entreina administração acadêmica. O Mestrado emLetras (da UFC, criado em 1989) foi fundadopor mim. Fundei o ICA (Instituto de Culturae Arte da UFC, criado em 2003). A Casa deJosé de Alencar (instituição cultural menti-da pela UFC que abriga a casa onde José deAlencar viveu sua infância na então cidadede Messejana, hoje bairro de Fortaleza) nun-ca tinha tido um diretor que realmente pen-sasse a Casa como uma casa de cultura, deacervos. Ela estava apenas ali guardada poradministradores. E eu me dediquei com mui-to amor a isso.

E o meu lado de escritora foi sempre fi-cando abafado pela minha dedicação à Uni-versidade. Por outro lado, muita coisa eudevo porque ... Eu gosto muito de uma frasede Guimarães Rosa: "Mestre é quem de re-pente aprende". Eu usei essa frase até comoa epígrafe da minha dissertação de mestra-do, que foi em Educação, sobre o estudo deLiteratura Brasileira - "O caráter reprodutordo ensino de Literatura Brasileira nos cursosde Letras". Eu fiz uma pesquisa e também le-vantei toda a história da literatura desde queos jesuítas chegaram aqui. Eu achava que eraum ensino de reprodução de opiniões, de fa-tos. Quando o que eu queria era um estudocriativo e crítico. Eu acreditava, e acredito,

/lEu acreditava,e acredito, numa

universidade crítica.Uma universidade

que permita odiálogo crítico, queo aluno opine, que

os professorespossam dissentir,

que possamdivergir."

ANGELA GUTIÉRREZ I 113

Como estudante, foramquatro anos no Curso deLetras. Quando acabou afaculdade, Angela ficou aomesmo tempo ensinandoe estudando.

Os laços com a uni-versidade prolongam-seaté hoje, apesar de terempassado por um momentoconturbado. Em outubrode 2008, Angela pediuexoneração da diretoria daCasa de José de Alencar,equipamento vinculado àUFC.

O motivo da saída, deacordo com a carta de soli-citação de exoneração, foinão concordar com projetode construção do Institutode Cultura e Arte (lCA),destinado a funcionamen-to de unidade acadêmica,em área do ComplexoCasa de José de Alencar/Parque Alagadiço Novo.

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No dia da entrevista, ogrupo marcou um encon-tro na faculdade às 17h.Após alguns minutos deconversa, tudo combina-do: dois carros levariamos onze entrevistadores,o orientador da disciplina,professor Ronaldo Salga-do, e o fotógrafo, Diogo.

A entrevista aconteceriana casa de Angela às 18h.O trânsito lento na avenidaAntônio Sales ajudou a au-mentar o "calor humano"e o nervosismo dentro doautomóvel.

Os sete ilustres passa-geiros prometeram ao Alan- que guiava pacientementeum dos carros - que, se elefosse multado, a quantiaseria paga por todos.

numa universidade crítica. Uma universida-de que permita o diálogo crítico, que o alunoopine, que os professores possam dissentir,que possam divergir. Toda a minha disserta-ção de mestrado é pautada nisso.

Bruno - E como é que você vê hoje o en-sino de Letras especificamente na UFC, ondea senhora ensina?

Angela - Eu estive afastada do ensino poralguns anos, porque, em 2003, eu entrei paracriar o ICA e o René (René Barreira, ex-reitorda UFC) me pediu para que ficasse exclusi-va. Eu trabalhava de manhã, de tarde e denoite naquela reitoria. Eu não tinha tempo.Ele me falou: "Angela, se você for ficar dan-do aula ...tr Eu com muita coisa. Porque eugosto de ensinar. Não ensinei em 2003, em2004. Em 2005 eu dei uma turma na pós-gra-duação. Em 2006 eu dei outra turma na pós-graduação. Fiquei afastada uns quatro anos.Em 2007 ensinei no mestrado. E agora em2008.1 é que eu voltei a ensinar. Que maravi-lha! Como eu adorei!

Eu dei uma disciplina ... Eu pensei que iater três ou quatro pessoas porque era umadisciplina optativa. Mas como fazia tempoque eu não ensinava, choveu gente, muitodeles professores trabalhando com O Mun-do de Flora. Acho que eles misturaram aprofessora e a escritora. Tinha 40 pessoas.Eu fiz uma experiência de ensino, eu mesmadigo, maravilhosa! Trabalhei com os alunosdo ponto de vista de leituras críticas. Alugueium ônibus e fomos visitar todas as estátuasde Iracema, discutindo o que aquelas está-tuas representavam culturalmente. A ligaçãodelas com o romance Iracema (escrito porJosé de Alencar). Eu levei ao teatro, dei umaaula dentro do Theatro José de Alencar. Le-vei à Casa de José de Alencar e demos auladiante dos quadros do Floriano Teixeira (pin-tor, desenhista e escultor brasileiro falecidoem 2000). Levei ao MAUC (Museu de ArteContemporânea da UFC). Enfim, nós fizemosvisitas, nós discutimos questões. Foi algoque os alunos, ao terminarem, pelo menos ademonstração deles ... Eu tive um sentimentoassim: "Combati o bom combate". Ou seja,consegui apaixonar essas pessoas. Não sópor Alencar.

Roberta - Entre grandes escritores, vocêconviveu com alguns deles, como MoreiraCampos e Sânzio de Azevedo. E você falamuito dessa relação entre escritora e profes-sora. O que foi que eles lhe ensinaram e vocêtem até agora dessa convivência?

Angela - Alguns de meus colegas, eusinto que optaram por privilegiar os seus es-critos. Cumprem o seu dever perfeitamente,dão suas aulas e se dedicam mais ao seu tra-balho literário. Eu não acho errado de jeitonenhum. Acho que é uma opção e, eu nãoqueria dizer isso, mas talvez eles estejam cer-tos. Talvez o escritor tenha de pensar maisem si mesmo. Vou dizer por quê. Eu sempreachei que não. Nunca privilegiei a minha ...Tanto que quantos livros eu tenho escritos?Poucos livros, né? Tenho muito de ensaios,artigos em revistas, mas ficção, eu tenhopouco.

Eu achava o seguinte: meio como umaconversa entre Sartre (Jean-Paul Sartre, fi-lósofo francês) e Camus (Albert Camus, fi-lósofo argeliano). Eles tiveram uma grandepolêmica, e Sartre disse: "Enquanto houveruma criança passando fome na África, eunão posso continuar a escrever". E aí paroudurante alguns anos. Ele dizia que todas aspessoas que têm algum conhecimento emdeterminados países da África não deve-riam ser escritoras. Elas deveriam ser pro-fessoras. O Camus disse algo que tambémdá muito que pensar. Ele disse que se essaspessoas de tal parte pobre da África forem "-só ensinar e não escreverem, que literaturaas crianças terão no futuro? Que história elasterão? Quem não tem história não pode seconhecer, não pode dar valor a si mesmo.Eu estou pesando essas duas coisas. Hoje,diante de vocês, estou analisando isso, estoupensando, e estou achando que não coloqueibem os pratos na balança. Fiz que ele pen-desse muito mais pra um lado. Talvez agoraeu deva fazer um equilíbrio melhor entre asminhas duas vocações.

Talvez a minha missão agora seja mais ade chegar ao coração dos leitores. Não sei.Isto eu estou pensando agora. O Vargas Llo-sa diz: "O ofício de escritor é um ofício exclu-dente". Você tem de ser unicamente escritor.Eu não acredito no escritor de fim de sema-na. Por isso que às vezes eu tenho medo dedizer que sou escritora. No meu passaportenão tem escritora, tem professora universitá-ria. Será que um dia vou ter coragem de co-locar no meu ... E mesmo porque eu não vivodo que eu escrevo. Não é a minha profissão.Eu digo isso com dor, digo isso doendo nomeu coração.

Henrique - Como foi a transposição doentusiasmo com a Literatura para o âmbito

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da gestão?Angela - Eu levei o mesmo entusiasmo.

Eu ia mudar o mundo! Eu ia fazer com quetodas as pessoas fizessem tudo com amor,todo mundo na paz. Todo mundo trabalhan-do. Todo mundo iria entender que eu estavafazendo aquilo com amor.

Todo mundo iria querer colaborar porqueiria ver que era um projeto que não visavaa prejudicar ninguém. Ao contrário, visavaa integrar todas as pessoas. No mestrado,eu acho que consegui muita coisa. No ICA,nas circunstâncias do que havia ... O início dagestão do René foi muito sofrido porque vi-nha, não por culpa dos outros reitores, masda política educacional brasileira, sobretudodo governo FHC (Fernando Henrique Cardo-so, presidente do Brasil de 1995 a 2002), aUniversidade estava na miséria, num buracofundíssimo. Tanto que o governo Lula (LuizInácio Lula da Silva, presidente do Brasil re-eleito para o mandato de 2007 a 2010) vemtrazendo muito financiamento e ainda não foio suficiente.

Então, no começo da gestão do René, nãotinha verba pra nada. Ele tava negociandocom CoeIce, Cagece (companhias de energiae água e esgoto do Ceará, respectivamente),com tudo, porque senão iam era apagar to-das as luzes, cortar água e tudo da Universi-dade. Foi um começo difícil. Eu lutei muito,tentei sensibilizar muitas pessoas. Acho quetive muito sucesso na minha parceria com oMAUC. Porque o Eymar (Pedra Eymar, ar-quiteto diretor do MAUC) aderiu fortementeao projeto e nós mantivemos durante quatroanos aquele MAU C do coração, que eu amo.Nós não tínhamos mais agenda. Os artistaspediam e nós não tínhamos agenda mais.Acho que foram quatro anos de muito traba-lho, de muita revitalização do MAUC.

Eu acho que na Casa de José de Alencar,nós também tivemos muito êxito. Porquedesde que eu era diretora do ICA, eu come-cei a trabalhar também pela Casa. Primeiravez que eu fui à Casa, eu disse: "Quarentaanos não vão dar pra recuperar esta casa".Porque, além de tudo, as telhas todas fura-das, quebradas, a água caindo nos acervos.Uma sujeira! Eu olhava: "Meu Deus". Vocêssabem que antes de reformar, o René arran-jou quinze pessoas para dar uma limpeza,mas antes de chegarem, eu falei pros fun-cionários: "Nós temos de respeitar a digni-dade de vocês. Vocês não podem trabalharno meio dessa confusão". Eu peguei e boteitênis, calça jeans, camiseta, chapeuzinho. Fuipra lá. Encostamos assim, todos na parede,aquele muro que dá pra Washington Soares,(avenida Washington Soares em Fortaleza).Saímos pegando e tirando pedaços de pau,

pedaços de cerâmica, telha. Saímos, chama-mos o pessoal da limpeza. Falei pro Renée ele mandou botar lá um daqueles contêi-neres. O pessoal foi levando. O René se en-tusiasmou, foi lá e viu. Daí a pouco o JoãoAlfredo (ex-deputado federal pelo pn conse-guiu uma emenda pra o ICA. Foi quase todaaplicada na Casa de José de Alencar. Man-damos limpar tudo, reinauguramos, fizemosuma festa.

Emanuele - Você parece dar valor a coi-sas que adquirem valor com o tempo. Euestava me recordando de uma coisa da pré-entrevista: você hesita em dizer a sua idade.E eu queria saber como é a sua relação como tempo.

Angela - Outro dia eu tive um insight. Eeutenho muitos. Aqui eu já tive não sei quantos(risos). Quando estou dando minhas confe-rências pros alunos, de repente me vem umaidéia. Os alunos revoltados, porque inclusivenem fica tão claro se a Flora morre no final,mas todos os indícios são de que ela tenta osuicídio. "Por que você fez isso com a Flora?A gente tava amando a Flora! Por que vocêmatou a Flora?" - os alunos reclamando. Euparei e de repente descobri. Eu disse a vocêshoje que gostaria de ter ficado com trinta epoucos anos. E a Flora morre com 33 anos.Eu acho que eu fiz o inverso de O retrato deDorian Gray (romance escrito por Oscar WiI-de). Dorian Gray não envelhecia, e o retratodele lá envelhecendo Acho que fiz o contrá-rio. Eu deixei a Flor Olha como é novinha,como é bonitinha (mostra o retrato de Florafeito por Estrigas e estampado na capa dolivro). Deixei a Flor assim. E eu, por força danatureza, não é que eu queira! Eu não quero,mas por força da natureza sou obrigada a en- ,velhecer também, já que não quero morrer,já que adoro a vida.

A minha mãe não lidava bem com isso.

"Eu disse a vocêshoje que gostaria deter ficado com trintae poucos anos. E aFlora morre com 33anos. Eu acho queeu fiz o inverso de

O retrato de DorianGray."

ANGELA GUTIÉRREZ I 115

Depois de passar emfrente a Autarquia Munici-pal de Trânsito, ServiçosUrbanos e Cidadania deFortaleza (AMC), miracu-losamente sem multas, ogrupo chegou à casa deAngela. A outra parte daequipe, que tinha seguidono carro do Ronaldo, o es-perava na calçada.

Todos ficaram encanta-dos com a decoração e be-leza da casa de Angela. Eraa primeira vez que o grupoia à casa do entrevistado.

No início alguns ficaramtímidos, mas no decor-rer da entrevista todos seenvolveram. Houve, emvários momentos, "confu-são de vozes" na hora deperguntar.

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Sempre que a rnemonafalhava, Angela olhava paraRonaldo na tentativa que elea ajudasse a lembrar nomese sítuações.Iao que ele cor-respondia discretamentequando as idéias lhe chega-vam.

Ronaldo trocou a fita trêsvezes, foi a entrevista maislonga do semestre: duashoras e trinta minutos. Aofinal da conversa, Angelagentilmente nos ofertou al-guns livros. Uma noite deautógrafos exclusiva!

Os momentos finais da vi-sita foram de grande euforiapelo trabalho realizado. Eraa última entrevista do gru-po. Angela convidou todospara fazer um lanche e empoucos minutos a comida jáhavia sido saboreada.

E acho que eu também fui absorvendo mui-to isso. A mamãe nunca dizia a idade dela.E passou a dizer no dia em que completou80 anos. Todo aniversário dela, eu preparofesta, missa. Então, eu acho que ficou muitoisso. Depois eu li uma frase da MademoiselleChannel (Coco Channel) que veio a calhar. Afrase é a seguinte: "Não se pode confiar emmulher que conta até a própria idade". Ago-ra eu vou falar claramente pra vocês, pareceque eu não quero envelhecer. Todo dia eufalo olhando pra mim: "Angela, você está en-velhecendo, você está envelhecendo". Umdia eu me acostumo e faço como a minhamãe.

Edgel - Você demonstra ter muito apegoa objetos simbólicos. Tem algum aqui na suacasa que você tem como amuleto, um bem-querer muito grande?

Angela - (Suspira) É assim: eu tenho vá-rios objetos aqui em casa aos quais tenhogrande amor. Tanto que uma vez tinha umamoça que trabalhava aqui e eu dizia: "Oh,por favor, isso aqui não precisa limpar. Deixaque eu limpo porque tem 100 anos. Oh, porfavor, isso já tem 150 anos". Ela dizia: "Masnessa casa só tem coisa velha!" (risos de to-dos). Então tem uma porção de objetos aquiem casa que só quem limpa sou eu justa-mente porque tenho muito apego. Tem umacoisa que não é um objeto. Tem uma coisaque ilumina essa casa todinha: é o retrato domeu pai (feito por Descartes Gadelha, artistaplástico cearense).

O Descartes sempre disse que a cabeçado meu pai era a cabeça mais bonita quehavia aqui. Não tinha uma cabeça mais no-bre, mais bonita que a do meu pai. E no dia4 de maio (de 2004), teve uma exposiçãodo Descartes. E ele disse "Por que seu painão veio?" Papai tava um pouco adoentado.Eu telefonei pra ele, coloquei ele no celulare ele falou com meu pai. Ele disse: "DoutorLuciano, eu quero fazer o seu retrato. Podeser essa semana?" O papai disse: "Eu tê umpouquinho adoentado, mas na semana quevem, venha". A semana seguinte foi a sema-na que meu pai adoeceu na segunda e fale-ceu na sexta. Estava marcado na quarta proDescartes pintar. Então, o Descartes pintouesse retrato e me deu com alguns dias, aindacom a tinta fresca. Alguns dias depois de opapai falecido, encantado. Ele ali, com aque-la luz... Papai é Luciano: "Iux" é luz, né?

Mas tem outras coisas que eu quero mui-to bem dentro desta casa. Eu gosto de an-tiguidades, mas principalmente se a antigüi-dade for da família. Por exemplo, um dia, oOswaldo Neto, meu bebezinho que agora tácom 10 anos, ele andando por aqui recolheuquatro pedrinhas e me deu. E eu guardo es-

sas pedrinhas com tanto carinho. "É pa vo-chê, mamãe". Eu guardo essas pedrinhas. Etem outro objeto, tem muitos.

Tem uma que eu achei muito engraçada:eu nunca vou andar na praia, na Beira Mar,feito turista. Mas um dia, enquanto fui pas-sando, vi como que um cristalzinho todofacetado, de vidro. Acho que não era cristalporque era uma coisa barata. Uma bolinhatoda facetada. Eu me aproximei e disse: "Praque serve isso?" O homem olhou, olhou edisse: "Isso não serve pra nada". Eu acheitão interessante que comprei porque nãoservia pra nada. É como a Literatura, que, decerta forma ... As artes, se a gente for pensarbem, elas não servem, de modo prático, pranada. Como um símbolo, eu tenho aquelabolinha ali bem no meu estúdio, onde tra-balho, aquela bolinha toda recortadinha quenão serve pra nada, mas é tão bonitinha! Euolho pra ela e ela me faz... Sei lá, vai ver queé até uma bola de cristal. Dali vai sair tantacoisa, né?

Emanuele - Sua mãe e seu pai são pes-soas muito presentes na sua formação. Queheranças dessa formação você carrega paraa criação dos seus filhos e agora dos seusnetos?

Angela - Simplesmente muitas. Meu pai,nos seus 90 anos, fez um texto que ele leuna missa. E no texto ele dizia: "Eu queroser lembrado pelos pequeninos gestos deamor". O papai lia Santa Terezinha de Jesus L

e gostava. Hoje em dia, ela é uma doutora daIgreja, assim como a Santa Tereza D'Ávila.E a idéia dela era que a santidade, o amora Deus está nos pequeninos gestos. Vocêlendo, você percebe que se ela, por exem-plo, tivesse a obrigação de limpar os livrosda biblioteca e limpasse bem os livros, tavafazendo um gesto de amor. Eu tento, assimcomo o Oswaldo, passar muito para os nos-sos filhos, para os nossos netos, a idéia deamor e que o amor não é só aquela grandeexplosão de amor quando você dá um gran-de abraço, quando você dá um beijo, quandoas pessoas se amam. Não. O amor está emtodos os gestos. Então, havia uma expressãona minha casa que eu acho que está desapa-recendo do dicionário da vida, que era: deli-cadeza de sentimentos.

A pessoa que tem delicadeza de senti-mentos nunca vai ser grosseira com a outra.Pode até dizer uma verdade àquela pessoa,mas dirá com delicadeza. Bom, eu passeimuito, como o meu marido (passou), essalição de amor. Sempre fomos muito bemtratados pelos meus pais. Nós todos recebe-mos muito amor e muita justiça. Eu nuncavi o meu pai cometer uma injustiça. Se doisestivessem brigando, ele escutava paciente-

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mente o que um tinha a dizer, o que o ou-tro tinha a dizer e depois, salomonicamente,dava uma lição. Isso que a gente faz na vida,o amor pelos outros, a justiça social. Tantoque em. toda missa, todo mês a gente rezapro papai no dia 14, que foi o dia de nasci-mento e de falecimento. Em todas elas eupeço isso. Eu peço justiça social. Papai eramuito preocupado com isso. E com a espe-rança. Esperança como uma virtude teologal.Por exemplo, eu passei um mau momentoagora. Os meus valores foram postos emquestão, o meu amor pela Universidade foiposto em questão. Em determinado momen-to, eu chorei. Não me envergonho de dizer,não. Mas depois eu disse: "O que é isso? Ea esperança de que as coisas melhorem?"Que meu pai sempre me ensinou, a herançamaior que meu pai me deixou. E o trabalhotodo que eu fiz não serviu pra outras pesso-as? Quantas pessoas, alunos meus de 10, 15,20 anos, vêm me dizer: "Olha, aquilo que euaprendi com você ..." Tanto que numa aulaem que fui escolhida ... Como é que eles cha-mam? Magistral ... Aula final do curso. Eu fuiparaninfo de uma turma e eu disse pra eles:"Se um dia vocês lembrarem disso e daquiloe daquilo", várias coisas que eu digo a elesna aula. "E não se lembrarem da professo-ra que trouxe isso pra vocês, não tem pro-blema. Se vocês aprenderam, conservaramessas lições de vida, trouxeram pra vida devocês isso que ela ensinou, não precisa lem-brar o nome dela, não".

ANGELA GUTIÉRREZ I 117

Diogo fez fotos mui obonitas durante a entre-vista. Bruno desvendouo segredo: o fotógrafo segarantiu, mas a entrevis-tada é linda. Realmente, osorriso de Angela ajudoubastante o nosso jovemretratista!

Antes de irmos embo-ra, Angela nos mostrou oretrato do pai, pintado porDescartes Gadelha, feitopouco antes de senhor Lu-ciano falecer. Outros qua-dros de Gadelha, Estrigase Aldemir Martins embe-lezam a sala, mas o retratoé o mais imponente e pa-recia mesmo iluminar todaa casa.