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1 CPV fgv081dnovdir 50% das vagas da GV Direito ficaram para os alunos do CPV FGV DIR – 2/novembro/2009 CPV O cursinho que mais aprova na GV ARTES VISUAIS E LITERATURA A seguir, estão dispostos excertos literários extraídos de duas obras determinantes da Literatura Brasileira; leia-os, detidamente, e responda aos dois subitens da Questão A: Texto 1 “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: ─ Ai que preguiça!... e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus.” Mário de Andrade Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Livraria Martins Fontes Texto 2 “Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonso Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto ― o homem ― nessa noitinha de novena, num leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici. Procissão entrou, reza acabou. E o leilão andou depressa e se extinguiu, sem graça, porque a gente direita foi saindo embora, quase toda de uma vez. Mas o leiloeiro ficara na barraca, comendo amêndoas de cartucho e pigarreando de rouco, bloqueado por uma multidão encachaçada de fim de festa. E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-o-mundo com elas querendo ficar.[...] ― Quem vai arrematar a Sariema? Anda Tião! Bota a Sariema no leilão!... ― Bota no leilão! Bota no leilão... A das duas raparigas que era branca ― e que tinha pescoço fino e pernas finas, e passou a chamar-se, imediatamente, Sariema ― pareceu se assustar. O capiau apaixonado deixou fuchicar, de cansaço, o meio-riso que trazia pendurado. E o leiloeiro pedia que houvesse juízo, mas ninguém queria atender. ― Dou cinco mil réis!... ― Sariema! Sariema! E aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião: ― Cinqüenta mil-réis!...” João Guimarães Rosa. A Hora e Vez de Augusto Matraga, Sagarana. Livraria José Olympio Editora.

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50% das vagas da GV Direito ficaram para os alunos do CPV

FGV – DIR – 2/novembro/2009

CPV O cursinho que mais aprova na GV

artes visuais e literatura

A seguir, estão dispostos excertos literários extraídos de duas obras determinantes da Literatura Brasileira; leia-os, detidamente, e responda aos dois subitens da Questão A: Texto 1

“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:─ Ai que preguiça!... e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus.”

Mário de Andrade Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Livraria Martins Fontes

Texto 2

“Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonso Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto ― o homem ― nessa noitinha de novena, num leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici. Procissão entrou, reza acabou. E o leilão andou depressa e se extinguiu, sem graça, porque a gente direita foi saindo embora, quase toda de uma vez. Mas o leiloeiro ficara na barraca, comendo amêndoas de cartucho e pigarreando de rouco, bloqueado por uma multidão encachaçada de fim de festa.E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-o-mundo com elas querendo ficar.[...]― Quem vai arrematar a Sariema? Anda Tião! Bota a Sariema no leilão!... ― Bota no leilão! Bota no leilão...A das duas raparigas que era branca ― e que tinha pescoço fino e pernas finas, e passou a chamar-se, imediatamente, Sariema ― pareceu se assustar. O capiau apaixonado deixou fuchicar, de cansaço, o meio-riso que trazia pendurado. E o leiloeiro pedia que houvesse juízo, mas ninguém queria atender.― Dou cinco mil réis!... ― Sariema! Sariema!E aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião: ― Cinqüenta mil-réis!...”

João Guimarães Rosa. A Hora e Vez de Augusto Matraga, Sagarana. Livraria José Olympio Editora.

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Questão A

A.a) Identifique um aspecto formal ou temático, comum aos dois textos, que revele o ideário modernista. Em seguida, comente comparativamente esse ideário, respeitando o contexto geral de cada uma das obras.

resolução do CPv:

Um aspecto formal comum aos dois textos que revele o ideário modernista é a marca da oralidade.

Em Macunaíma, isso pode ser evidenciado por meio de expressões como “pariu”, “sarapantar”, “trepado”, “si” (que deveria ser “se”), “dandava”.

Em A Hora e Vez de Augusto Matraga, tem-se “Nhô”, “noitinha”, “pigarreando”, “mulheres-à-toa”, “capiau”.

Além disso, as falas dos personagens evidenciam o compromisso modernista de criar discursos diretos marcados pela coloquialidade dos personagens.

Do ponto de vista temático, tanto o texto de Mário de Andrade quanto o de João Guimarães Rosa podem ser referidos como retratos

de aspectos da realidade do Brasil, assim como interessava ao Modernismo Brasileiro.

No entanto, há que se dizer que Macunaíma trabalha tais aspectos de um ponto de vista nacionalista, em um retrato do Brasil e do Brasileiro para os brasileiros, enquanto A Hora e Vez de Augusto Matraga trabalha tais aspectos de um ponto de vista universalista, tomando o Brasil e o Brasileiro como pontos de partida para uma discussão humana.

A.b) Compare a simbologia que envolve o final das duas obras, Macunaíma e A Hora e Vez de Augusto Matraga, no que diz respeito ao destino conferido a seus “heróis”.

resolução do CPv:

Na obra de Mário de Andrade, o personagem Macunaíma morre e transforma-se em estrela – a Ursa Maior. Levando em consideração que ele é um “herói sem nenhum caráter”, que representa a multiplicidade das características do povo brasileiro, pode-se afirmar que a estrela é a síntese dessas marcas que fica a guiar os brasileiros lá do céu, um símbolo da pluralidade das características brasileiras.

No conto de Guimarães Rosa, Augusto Matraga, após todo o seu percurso de vida, marcado pela transformação de seu caráter – do

maligno para o benigno –, duela com Joãozinho Bem-Bem e o vence, o que cria a simbologia da vitória do Bem sobre o Mal.

Deve-se notar que a simbologia de Macunaíma refere-se a um tema nacional brasileiro, enquanto que a de A Hora e Vez de Augusto Matraga refere-se a um tema universal.

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Questão B

O Ano em que os meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, e Persépolis, de Marjane Satrapi, são filmes de gêneros distintos, do ponto de vista técnico, que abordam um tema comum: a grande mudança na vida de duas crianças provocada por eventos políticos e sociais em seus respectivos países. Em um texto dissertativo de, no máximo, 15 linhas, aborde os seguintes tópicos: · Qual a grande diferença técnica entre ambos os filmes?· Em que contexto histórico e político se passam os filmes?· Quais os pontos em comum, decorrentes desses eventos, nas mudanças sofridas pelos personagens principais dos filmes?

Cite pelo menos dois pontos.

resolução do CPv:

Comparando o filme brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, ao filme franco-iraniano Persépolis, de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, encontramos diferentes escolhas técnicas para a sua realização, apesar de ambos os filmes representarem uma percepção de memória afetiva de crianças em relação a realidades de opressão por que passaram em um período de suas vidas.

O filme brasileiro buscou sua realização nos recursos do filme habitual (imagens reais), fazendo tomadas realistas da realidade brasileira; o filme franco-iraniano buscou sua realização nos recursos da animação (o desenho), em seu caráter subjetivo, simbólico e universalizante.

Em O ano em que meus pais saíram de férias, a partir da ótica afetiva do menino Mauro, os planos do filme representam um momento específico da realidade brasileira e de sua memória, o ano de 1970, quando o Brasil vivia sob o Regime Militar construído pelo Golpe de 1964 (Ditadura), que impôs ao país um Estado de Exceção entre 1964-1984. No Brasil daquele ano de 1970, de um lado experimentava-se toda uma euforia sugerida pela ideologia do Estado militarizado desenvolvimentista, muito bem figurada, aos olhares populares, pelo futebol brasileiro campeão do mundo; por outro lado, experimentava-se, para longe dos olhares populares, muitas vezes sob os “porões da Ditadura”, a castração e a violação dos direitos individuais, as duras perseguições políticas e ideológicas e a repressão violenta, tudo justificado pelos Atos Institucionais e pela própria natureza do Estado autoritário. Em Persépolis, o recurso da animação substituindo o filme habitual possibilitou a suavização da representação étnica, abrindo novas possibilidades para a discussão da Revolução Islâmica no Irã, a partir de um ponto de vista memorialista e afetivo de Marjane Satrapi. Representa a Revolução ocorrida em 1979, que transformou o Irã, até então uma monarquia autocrática pró-Ocidente, sob o governo do Xá Mohammad Reza Pahlevi, em uma teocracia populista, sob o comando do Aiatolá Ruhollah Khomeini. O recrudescimento da ditadura de caráter religioso baniu costumes ocidentais do Irã, perseguiu discordantes políticos, marxistas, homossexuais, prostitutas, instituiu e aplicou a pena de morte, constituindo um clima cinza de depressão individual e repressão social. Todavia, apesar da opção técnica diferente adotada pelos diretores, nos dois filmes o destino dos protagonistas apresenta ao menos dois pontos em comum: ambos se submetem a um exílio espontâneo no final de suas histórias; ambos buscam, em discursos paralelos à realidade, uma representação do drama que viveram: Mauro encontra essa representação nas imagens do futebol; Marjane, na História em Quadrinhos. Em ambos os casos, tais imagens promovem a intersecção entre a memória afetiva e a memória histórica das personagens.

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Questão C

Observe, com atenção, a reprodução das obras da página seguinte. Apesar de terem sido produzidas na mesma época, com apenas dois anos de diferença entre si, Canoa sobre o Epte (1890), de Claude Monet, e O Grito do Ipiranga – Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo, são obras que pertencem a diferentes movimentos artísticos e que apresentam aspectos estéticos e ideológicos muito distintos. Considerando os elementos presentes nas obras e as informações ora trazidas, redija um texto dissertativo de, no máximo, 15 linhas apontando:

· Os movimentos artísticos aos quais pertencem essas obras.· As características estéticas e ideológicas desses movimentos, a partir de exemplos observados nas obras ora apreciadas.

Cite ao menos dois exemplos. (4)

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A Canoa sobre o Epte (c. 1890) de Claude Monet - óleo sobre tela; 133 x 145 cm

O Grito do Ipiranga - Independência ou Morte (1888) de Pedro Américo - óleo sobre tela; 760 x 415 cm

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resolução do CPv:

Os movimentos artísticos a que pertencem as obras Canoa sobre o Epte (1890), de Claude Monet, e O Grito do Ipiranga – Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo, são, respectivamente, o Impressionismo e o Neoclassicismo.

Com relação a Canoa sobre o Epte:

— quanto às características estéticas, pode-se citar o jogo de luz e cores, que é fundamental para o Impressionismo; o jogo de luz e cores está relacionado às pesquisas de Óptica da Física da época, e a possibilidade da representação de tais cores e luzes deve-se ao desenvolvimento da Química; a ausência da perspectiva aponta para uma captação direta da realidade; a técnica das pinceladas rápidas e sinuosas visa captar o movimento e o instante de forma fiel à atmosfera momentânea; o enquadramento fotográfico do instante sugere fugacidade da imagem;

— quanto às características ideológicas, é possível identificar a captação do momento fugaz, no qual a realidade é retratada de maneira natural; pode-se notar ainda o fato de a pintura impressionista ser in loco, ou seja, de o pintor abandonar o ateliê e passar a pintar no local da paisagem, o que se identifica com o método científico da época; essa visão da realidade por meio da “impressão” é cunhada, portanto, numa ideologia cientificista.

Sobre O Grito do Ipiranga – Independência ou Morte:

— quanto às características estéticas, pode-se notar a utilização de cores que caracterizam a nação brasileira (o tom amarelado da terra, o verde da vegetação, o azul do céu e do riacho e o branco das nuvens); a composição do quadro, que tem D. Pedro centralizado e ao alto, conferindo-lhe destaque, os dragões da independência abaixo e à direita tirando os brasões da Casa de Portugal de seus uniformes e a presença do carroceiro ao lado esquerdo, insinuando a participação popular na cena da independência; e o uso da perspectiva, conferindo o efeito de realidade, as quais, juntas, constituem uma visão idealizada da história da independência do Brasil;

— quanto às caraterísticas ideológicas, o quadro compõe uma visão nacionalista, em que a imagem comparece como ícone formador do império e como possibilidade de idealização da história e do heroísmo nacionais.

Comentário da Prova de artes visuais e literatura

A prova de Artes Visuais e Literatura da FGV Direito 2010 não apresentou surpresas.

A primeira questão, a respeito de Literatura, solicitou uma comparação das obras Macunaíma, de Mário de Andrade, e "A Hora e Vez de Augusto Matraga", conto do livro Sagarana, de João Guimarães Rosa. Nessa questão, abordou-se a linguagem modernista e a aproximação temática entre as personagens da narrativa.

A segunda questão, a respeito de Cinema, pediu uma comparação entre o filme Persépolis, de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, e o filme O Ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, quanto aos recursos fotográficos e ao contexto histórico por eles representados.

A terceira questão, a respeito de Artes Plásticas, solicitou uma comparação entre os quadros Canoa sobre O Epte, de Monet, e O grito do Ipiranga - Independência ou Morte, de Pedro Américo, considerando as escolas artísticas e as visões ideológicas que expressam.

Foi uma prova tranquila, bem equilibrada, com análises cuja abordagem ficou em torno das intertextualidades esperadas.