Cp062243 a Religação Dos Saberes e a Teologia- o Sistema Das Ciências de Paul Tillich No...

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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA ROBERT WALTER BEIMS A RELIGAÇÃO DOS SABERES E A TEOLOGIA: O SISTEMA DAS CIÊNCIAS DE PAUL TILLICH NO HORIZONTE DO PENSAMENTO COMPLEXO DE EDGAR MORIN São Leopoldo 2008

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  • ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

    INSTITUTO ECUMNICO DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA

    ROBERT WALTER BEIMS

    A RELIGAO DOS SABERES E A TEOLOGIA:

    O SISTEMA DAS CINCIAS DE PAUL TILLICH NO HORIZONTE

    DO PENSAMENTO COMPLEXO DE EDGAR MORIN

    So Leopoldo

    2008

  • ROBERT WALTER BEIMS

    A RELIGAO DOS SABERES E A TEOLOGIA:

    O SISTEMA DAS CINCIAS DE PAUL TILLICH NO HORIZONTE

    DO PENSAMENTO COMPLEXO DE EDGAR MORIN

    Tese de DoutoradoPara a obteno do grau de Doutor em TeologiaEscola Superior de TeologiaInstituto Ecumnico de Ps-Graduaorea: Teologia e Histria

    Orientador: Enio Ronald Mueller

    So Leopoldo

    2008

  • BEIMS, Robert Walter. A religao dos saberes e a teologia: o Sistema das Cincias de Paul Tillich no horizonte do Pensamento Complexo de Edgar Morin. So Leopoldo : Escola Superior de Teologia, 2008.

    RESUMO

    O tema principal deste trabalho o estatuto terico da teologia. A cientificidade de qualquer disciplina do conhecimento dependente principalmente da conceituao de cincia e este conceito dependente do processo histrico real. Os diversos conceitos de cincia ao longo da histria ocidental criaram classificaes de cincias que concederam cientificidade para algumas disciplinas enquanto negaram este estatuto a outras. Atualmente, por conta do reconhecimento da falta de um fundamento slido para o conhecimento, reconhece-se tambm a impossibilidade de uma definio ltima do conceito de cincia, de verdade, etc. Reconhece-se cada vez mais que ao lado dos grandes resultados positivos, conseqncia do conceito e mtodo cientfico moderno, que ainda est em vigor, existem tambm conseqncias negativas como o distanciamento entre as diferentes cincias e saberes. Para diminuir esta distncia, busca-se a religao dos saberes para a qual este trabalho pretende contribuir, especialmente na questo de re-incluso da teologia entre os saberes vlidos. Para isto, no primeiro captulo, busca-se conhecer a situao atual da fragmentao dos saberes e a tentativa de reverter este quadro por meio do Pensamento Complexo de Edgar Morin. No segundo e terceiro captulos apresentado o Sistema das Cincias de Paul Tillich. Em 1923 Tillich escreveu o texto Das System der Wissenschaften nach Gegenstnden und Methoden (O Sistema das Cincias segundo objetos e mtodos) com o objetivo de encontrar um lugar entre as cincias para a teologia. No Sistema de Tillich, a soluo para o problema da unidade e diversidade dos saberes est na caracterstica fundamental do ser humano enquanto esprito, a criatividade. Por fim, no quarto captulo, so apresentados alguns aspectos relevantes para a religao dos saberes a partir do presente trabalho, como, por exemplo, uma possvel conceituao de cincia.

  • BEIMS, Robert Walter. A religao dos saberes e a teologia: o Sistema das Cincias de Paul Tillich no horizonte do Pensamento Complexo de Edgar Morin. So Leopoldo : Escola Superior de Teologia, 2008.

    ABSTRACT

    The main theme of this dissertation is the theoretical status of theology. The scientific status of any area of knowledge depends heavily on the respective concept of science. And this concept is, in turn, dependent of the real historical process. The various concepts of science through Western history created science classifications which conceded the status of science to some disciplines and refused it to others. Today, because of the recognition that we lack a solid foundation for knowledge, there is also recognition of the impossibility of an ultimate definition of concepts like science, truth, etc. There has been a growing recognition that, besides great positive results which are consequences of the still dominant modern scientific concept and method, there are also negative consequences, like the distance between different sciences and forms of knowledge. In order to reduce this distance, there has been search for a reunion of forms of knowledge. This dissertation aims to contribute to this process, especially in regard to the re-inclusion of theology among the valid forms of knowledge. In the first chapter the focus is on recognizing the present situation of knowledge fragmentation and the attempt of Edgar Morin to revert it through Complex Thought. The second and third chapters are dedicated to a revisiting of the System of Sciences of Paul Tillich. In 1923, Tillich published his book Das System der Wissenschaften nach Gegenstnden und Methoden (The System of Sciences according to Objects and Methods), with the ultimate goal of finding a place for theology among the sciences. In Tillichs System, the solution for the problem of unity and diversity in knowledge lies in the fundamental characteristic of human being as spirit, creativity. Finally, in the fourth chapter some relevant aspects for the reunion of different forms of knowledge are presented, as for example a possible concept of science.

  • DEDICATRIA

    Dedico este trabalho a trs pessoas muito queridas que j no esto conosco e que, no

    mbito deste trabalho, so smbolos:

    Rosemari Beims, me de Susan e Rafael, nossos filhos. Smbolo da capacidade cria-

    dora humana, que na direo do universal capaz de criar o novo nico, um particular, o que

    se torna visvel e incontestvel nos filhos.

    Irmgard Maria Beims, minha me. Nela, com um primeiro e descuidado olhar predo-

    minava a forma. Mas sob um olhar mais cuidadoso a forma se retrai para revelar o seu con-

    tedo, uma (quase) inabalvel tranqilidade e o seu estar a para os outros.

    Harry Beims, meu pai. Nele predominava a alegria e o entusiasmo escancarado pela

    vida e seu ministrio. Mas no assim como se todo este contedo estivesse sem forma, que es-

    tivesse a apenas para fruio egosta. Ele viveu com o seu contedo para os outros.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Instituto Ecumnico de Ps-Graduao em Teologia IEPG.

    Ao professor Dr. Enio R. Mueller, por sua orientao e apoio.

    Associao dos Amigos do Ceteol, por seu apoio financeiro durante boa parte do perodo de

    pesquisa.

    Ao ex-diretor da Faculdade Luterana de Teologia, Dr. Euler R. Westphal e sua esposa Si-

    mony, pelo apoio e incentivo.

    Rosane e ao Enio, pela amizade e pelas incontveis vezes que me hospedaram em sua casa

    durante o perodo.

    Rosel e ao Pedro, pela amizade e pelas cobranas carinhosas.

    minha esposa Liliane, pela cumplicidade, amor e compreenso.

  • SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 11

    1 A RELIGAO DOS SABERES NO PENSAMENTO DE EDGAR MORIN ........... 18

    1.1 Do mito razo autnoma em poucas palavras............................................................ 18

    1.2 Surge uma nova realidade............................................................................................. 22

    1.3 O pensamento complexo de Edgar Morin..................................................................... 27

    1.3.1 O encontro com o universo complexo................................................................... 28

    1.3.2 O pensamento complexo....................................................................................... 31

    1.3.2.1 Os paradigmas................................................................................................33

    1.3.2.2 O grande paradigma do Ocidente...................................................................34

    1.3.2.3 O paradigma da complexidade.......................................................................38

    1.3.3 O conhecimento complexo e a religao dos saberes............................................39

    1.3.3.1 A physis e suas emergncias.......................................................................... 41

    1.3.3.2 Os dois pensamentos Mito e Razo............................................................ 45

    1.3.3.3 A religio........................................................................................................49

    1.3.4 O pensamento complexo e a teologia.................................................................... 51

    1.3.5 O pensamento complexo e a superao da religio.............................................. 53

    1.3.6 A complexidade do paradigma da complexidade.................................................. 57

    1.3.6.1 O sujeito que pensa complexamente..............................................................58

    1.3.6.2 Complexidade e metafsica............................................................................ 62

    1.4 O sujeito para alm da razo e do mito...................................................................... 65

    1.5 Como continuar?........................................................................................................... 70

    2 O AGENTE DA RELIGAO DOS SABERES: O SER HUMANO CRIATIVO..... 72

    2.1 Paul Tillich pensador a partir de fronteiras................................................................ 74

    2.2 O ser humano que conhece............................................................................................76

  • 82.2.1 O princpio fundamental do conhecimento........................................................... 78

    2.2.1.1 O esprito e seu mtodo..................................................................................83

    2.2.1.1.1 O mtodo metalgico............................................................................. 84

    2.2.1.1.2 O esprito................................................................................................ 86

    2.2.2 A Gestalt portadora de esprito e criatividade....................................................... 87

    2.2.2.1 Os limites da criatividade...............................................................................91

    2.2.3 A Gestalt portadora de esprito e sentido...............................................................93

    2.2.3.1 A configurao das reas de sentido.............................................................. 95

    2.2.3.2 A atitude do esprito autonomia e teonomia............................................... 96

    2.2.3.2.1 Religio e cultura................................................................................... 98

    2.3 O ser humano que conhece o conhecimento................................................................. 99

    2.3.1 O carter produtivo da cincia do esprito............................................................. 99

    2.3.2 O carter normativo da cincia do esprito.......................................................... 101

    3 O SISTEMA DAS CINCIAS DE PAUL TILLICH.................................................... 105

    3.1 A cincia do esprito....................................................................................................107

    3.1.1 Objeto e mtodo da cincia do esprito................................................................107

    3.1.2 Os elementos da cincia do esprito.....................................................................109

    3.1.2.1 A filosofia.................................................................................................... 110

    3.1.2.1.1 Os objetos da filosofia..........................................................................110

    3.1.2.1.2 O mtodo da filosofia...........................................................................113

    3.1.2.2 A histria do esprito....................................................................................115

    3.1.2.3 A sistemtica................................................................................................117

    3.1.2.3.1 O sistema.............................................................................................. 119

    3.1.3 Os objetos da cincia do esprito......................................................................... 121

    3.1.3.1 Os objetos da rea terica............................................................................ 121

    3.1.3.1.1 A cincia (cognio).............................................................................122

    3.1.3.1.2 A arte.................................................................................................... 123

    3.1.3.1.3 A metafsica..........................................................................................125

    3.1.3.2 Os objetos da rea prtica............................................................................ 128

    3.1.3.2.1 O direito................................................................................................129

    3.1.3.2.2 A comunidade...................................................................................... 132

    3.1.3.2.3 O etos....................................................................................................134

    3.2 As cincias...................................................................................................................136

    3.2.1 As cincias do pensamento..................................................................................137

  • 93.2.1.1 A lgica........................................................................................................ 138

    3.2.1.2 A matemtica............................................................................................... 140

    3.2.1.3 Cincias do pensamento e fenomenologia................................................... 141

    3.2.2 As cincias do ser................................................................................................ 143

    3.2.2.1 A meta do conhecimento das cincias do ser...............................................143

    3.2.2.2 A atitude do conhecimento nas cincias do ser............................................149

    3.2.2.3 A via do conhecimento nas cincias do ser..................................................150

    3.2.2.4 O grau do conhecimento nas cincias do ser............................................... 151

    3.2.2.5 As categorias das cincias do ser................................................................. 152

    3.3 O sistema das cincias e a teonomia............................................................................154

    3.3.1 Os elementos da cincia do esprito tenoma......................................................156

    3.3.1.1 A filosofia e a histria do esprito tenomas................................................156

    3.3.1.2 A sistemtica tenoma a teologia..............................................................157

    3.3.1.2.1 As tarefas da teologia........................................................................... 159

    3.3.2 Os objetos da cincia do esprito tenoma.......................................................... 160

    3.3.2.1 Metafsica tenoma...................................................................................... 161

    3.3.2.2 Cincia e arte na teonomia........................................................................... 162

    3.3.2.2.1 Implicaes para a teologia.................................................................. 162

    3.3.2.3 A tica tenoma........................................................................................... 163

    3.3.2.4 Direito e comunidade na teonomia.............................................................. 164

    3.3.2.4.1 Implicaes para a teologia.................................................................. 165

    3.3.3 A teologia sistemtica..........................................................................................166

    3.3.4 Sistema das cincias e verdade............................................................................ 168

    3.3.4.1 A unidade do sistema em torno do criatividade...........................................169

    3.3.4.2 A cincia criativa e verdade......................................................................... 173

    3.3.4.3 A cincia criativa e a vida............................................................................ 175

    3.3.5 A cincia entre metafsica e amor........................................................................178

    4 A UNIDADE ENTRE SER HUMANO E CONHECIMENTO.................................... 184

    4.1 A religao dos saberes............................................................................................... 184

    4.1.1 A totalidade do saber........................................................................................... 186

    4.1.2 Sentido, verdade e princpio unificador...............................................................188

    4.2 O que conhecimento e cincia para Tillich? Um resumo......................................... 189

    4.3 Conhecimento, revelao e amor................................................................................ 191

  • 10

    CONCLUSO....................................................................................................................... 197

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................ 200

    NDICE DE FIGURAS.........................................................................................................203

  • INTRODUO

    Este trabalho centra-se na anlise do pensamento de Paul Tillich, especificamente so-

    bre a organizao das diferentes cincias e suas relaes e de suas relaes com a teologia. O

    objetivo principal a pergunta em torno do estatuto terico da teologia. Entretanto esta pergunta so-

    mente poder ser respondida satisfatoriamente se for equacionada a questo da unidade das cinci-

    as. Por isto a presente pesquisa tem tambm como alvo contribuir com subsdios para o atual dilo-

    go inter/transdisciplinar e para a discusso sobre a organizao e a religao dos saberes em nossos

    dias.

    Para tanto, ser revisitado um texto importante, mas no muito conhecido, do telogo

    e filsofo Paul Tillich, Das System der Wissenschaften nach Gegenstnden und Methoden (O Sis-

    tema das Cincias segundo objetos e mtodos), texto que ele escreveu com a inteno de encontrar

    um lugar legtimo para a teologia no conjunto das diversas cincias.1 Tillich escreveu este texto em

    1923 em meio a uma grande efervescncia em muitas reas. Quatro anos antes fora promulgada a

    Constituio de Repblica de Weimar, preocupada com reformas na educao e que mantm a Fa-

    culdade de Teologia nas universidades. No mesmo ano a Teoria Geral da Relatividade de Einstein

    foi confirmada experimentalmente. Em 1922 o Crculo de Viena comea a se reunir, o que marca o

    incio do Positivismo Lgico. Na contramo do Positivismo Lgico, a Mecnica Quntica insiste em

    nascer e em 1927 Heisenberg formula o Princpio da Incerteza e Bohr o Princpio da Complementa-

    ridade.

    A incerteza do conhecimento algo presente atualmente em todas as cincias. Incer-

    teza no sentido de que impossvel alcanar um conhecimento verdadeiro de maneira absolu-

    ta e universal. Em outras pocas, com base no fundamento que o mtodo cientfico conferia,

    esta incerteza era percebida de maneira transparente apenas nas cincias humanas e na teolo-

    gia. Atualmente, por conta do reconhecimento da falta de um fundamento ltimo para o co-1 TILLICH, Paul. Auf der Grenze. Mnchen/Hamburg: Siebenstern-Taschenbuch Verlag, 1964. p. 33.

  • 12

    nhecimento, esta incerteza tambm assalta as cincias fsico-matemticas.

    Aceita-se hoje cada vez mais que em todas as suas dimenses a realidade comple-

    xa. Esta realidade no pode ser conhecida usando-se apenas o mtodo que a separa em partes

    simples e que a contempla de maneira disjunta, como diz Edgar Morin. Este mtodo, que

    trouxe muitos conhecimentos e grandes avanos tecnolgicos, apontado por muitos como

    uma das principais razes da fragmentao do ser humano e dos saberes. Os prejuzos para a

    humanidade resultantes da distncia entre a cultura humanista e tecnolgica so cada vez me-

    nos contestados.

    Busca-se, portanto, a religao dos saberes que torne o conhecimento mais humano e

    menos excludente. Uma reaproximao das culturas humanista e cientfica, em tese, no tem

    mais o impedimento epistemolgico fundamental resultante da maior ou menor verdade do

    conhecimento alcanado em cada uma delas. Com base nesta nova realidade possvel reto-

    mar a questo do estatuto terico das cincias humanas e tambm o da teologia, pois no

    possvel descart-las legitimamente a partir de um fundamento ltimo para o conhecimento.

    O religioso e a teologia, mesmo tendo perdido a sua cientificidade, estiveram sempre

    presentes na histria da humanidade e ressurgem com maior vigor nos dias atuais, talvez por

    causa da incapacidade do mtodo cientfico de alcanar a verdade. O reconhecimento do curso

    de graduao de teologia pelo Ministrio da Educao (MEC) um indcio desta situao. Po-

    rm, o reconhecimento do curso de teologia pelo MEC no confere, por si, cientificidade te-

    ologia, esta deve ser procurada em outro lugar.

    O momento atual, no qual vivemos a incerteza generalizada e presenciamos a busca

    por uma reaproximao dos saberes e, no por ltimo, o reconhecimento pelo MEC dos cur-

    sos de teologia no Brasil, oferece-nos de um lado a oportunidade e, de outro lado, a necessida-

    de de buscar a re-legitimao da teologia como cincia. Esta situao justifica retomar a ques-

    to da religao da teologia procurando pelo seu lugar no conjunto de todos os saberes.

    Na busca pela religao dos saberes e na procura por seu fundamento comum, esto

    surgindo vrias propostas que assumem diferentes faces, desde racionais a msticas. No pre-

    sente trabalho, por conta do momento atual onde ainda predomina o racional, ser analisado o

    pensamento de Edgar Morin. Ele sugere que a religao dos saberes passa necessariamente

    por aquilo que ele denomina de Pensamento Complexo. Este pensamento racional, porm,

  • 13

    com o mrito de no excluir de todo o pensamento irracional, nem permitir que este seja ex-

    cludo por aquele. Os dois so faces da mesma razo e esto numa constante dialgica procu-

    rando conhecer a realidade. Por este motivo, dentre as diversas tendncias atuais, o pensamen-

    to de Morin foi escolhido como horizonte para o pensamento de Tillich. Em sua base, o pen-

    samento de Tillich tambm racional e pode, desta maneira, ser colocado ao lado do de Mo-

    rin de forma mais coerente.

    Tillich foi provavelmente o ltimo entre os telogos protestantes que se ocupou de

    forma abrangente com a questo de um Sistema das Cincias. Procurou mostrar a unidade que

    subjaz a todas as cincias, incluindo a filosofia e a teologia, apesar da diferena entre os seus

    objetos e mtodos, enfatizando a necessidade de adquirir conhecimento a partir de todas as

    formas de cognio. Isto assim pois, segundo Tillich, o ser humano real busca pelo sentido

    das coisas e pelo sentido de conjunto das coisas. O conhecimento uma forma de conferir

    sentido.

    O conhecimento adquirido a partir de um tal Sistema, de fundamental importncia

    no apenas para o dilogo interdisciplinar com vistas religao dos saberes, mas, tambm,

    para o ser humano que carece e anseia por um sistema explicativo coerente no todo da realida-

    de em que vive. O ser humano que no consegue viver a sua vida em compartimentos estan-

    ques, seja ele religioso ou cientfico, anseia por livrar-se do viver esquizofrnico resultante da

    fragmentao dos saberes. O Sistema de Tillich, alm de possibilitar e fomentar o dilogo in-

    terdisciplinar capaz de gerar uma viso de mundo que propicia uma vida mais coerente e,

    portanto, mais saudvel em todas as dimenses da existncia humana.

    Se o momento atual confere a possibilidade de retomar de forma legtima a religao

    dos saberes, levanta-se a questo: como religar saberes que ainda so rotulados e classificados

    como no-cientficos (menos verdadeiros)? Para responder a esta questo faz-se necessrio

    uma reviso dos conceitos e valores que determinam as relaes e o dilogo interdisciplinar.

    A (des)unio das cincias e qualquer classificao das cincias acontece com base numa idia

    de (des)unio das cincias, num conceito de cincia/cientificidade e ainda por conta da inten-

    o com que se procura uma religao ou a manuteno da fragmentao dos saberes. Neste

    sentido, necessrio encontrar uma base comum, uma idia de unidade que desestimule a

    fragmentao e auxilie no dilogo interdisciplinar. Da mesma maneira deve ser encontrado

    um conceito de cincia/cientificidade que reconhea todas as cincias. Mas, o que significa to-

    das as cincias? Na verdade, todos estes conceitos determinam-se mutuamente e no poss-

  • 14

    vel sair satisfatoriamente deste crculo a no ser, assim me parece, pela mtua articulao com

    sentido do conjunto. o sentido do conjunto que confere cientificidade ou no s cincias hu-

    manas e teologia.

    Atualmente os conceitos de cincia, de unio das cincias, etc., que procuram religar

    os saberes tm dificuldades de alcan-la. Neste trabalho ser analisada a proposta de Edgar

    Morin, que com o seu Pensamento Complexo defende esta religao sem, contudo, alcanar

    um conceito de cincia que permita a re-incluso da teologia no universo do saber cientfico.

    O desenvolvimento deste trabalho procurar mostrar que o princpio sobre o qual o Siste-

    ma das Cincias de Tillich foi construdo, torna-o suficientemente abrangente e aberto de maneira a

    integrar todas as dimenses da vida. Desta forma o Sistema poderia possibilitar o dilogo

    inter/transdisciplinar inclusive com a teologia como uma importante dimenso da vida humana. Po-

    deria ainda deixar transparecer a unidade que subjaz a todas as cincias. Poderia, portanto, contribuir

    para que o ser humano alcance uma viso de mundo mais coerente que inclua todas as suas dimen-

    ses existenciais.

    Para alcanar este objetivo procuro no primeiro captulo introduzir muito brevemente a tra-

    jetria do conhecimento humano desde o mito razo autnoma, a questo da fragmentao dos sa-

    beres, suas origens e conseqncias e, ao mesmo tempo, fazer lembrar que ao logo da histria sem-

    pre estiveram presentes com os mais diversos acentos os dois grandes rivais: razo e mito, cincia e

    religio, etc. Pressuponho um empate na disputa entre cincia e religio pela primazia de acesso ao

    conhecimento verdadeiro, principalmente por no ser possvel declarar um vencedor. A razo para

    esta impossibilidade est na impossibilidade atual de encontrar um fundamento seguro para o co-

    nhecimento humano. Grande parte das disputas tm como fundamento a (hoje sabemos) auto-decre-

    tao de acesso privilegiado ao conhecimento.

    Ainda no primeiro captulo apresento o Pensamento Complexo de Edgar Morin sob o vis

    da religao de todos os saberes, inclusive da teologia, e sero exploradas as possibilidades de al-

    canar este objetivo por seu intermdio.

    No segundo captulo ser revisitado o j citado texto de Tillich, Das System der Wissens-

    chaften (O Sistema das Cincias), sobre a organizao das diferentes cincias dentro de uma pers-

    pectiva do saber que est alm da meramente classificatria, holstica ou sistemtica. Neste cap-

    tulo, o olhar se volta sobre as categorias com que Tillich constri o Sistema das Cincias e a religa-

  • 15

    o de todos os saberes. No terceiro captulo apresentarei o Sistema das Cincias propriamente dito,

    mesmo que, como ficar claro, no possvel uma distino clara entre as categorias do captulo

    dois e o Sistema mesmo, objeto do terceiro captulo. Nisto transparece interdependncia do conjunto

    de seus elementos, fato que o sistema de Tillich antes de querer esconder procura evidenciar como

    caracterstica fundante.

    Em todo o trabalho evitei analisar e definir conceitos como, por exemplo, cincia, sistema,

    etc. A razo para isto que estes conceitos, como j coloquei, determinam-se mutuamente e assu-

    mem significados distintos dependendo do ambiente e da poca. Optei em deixar surgir de dentro

    do conjunto o seu significado sem compar-los diretamente com as diversas possibilidades. Porque,

    na verdade, o objetivo deste trabalho apresentar o conjunto das categorias que define os conceitos

    a partir do pensamento de Tillich e tambm de Morin como representante de uma dentre as vrias

    perspectivas atuais. Assim, no quarto captulo procuro fazer um apanhado dos conceitos e seus sig-

    nificados que determinam o estatuto terico dos saberes e da relao de uns com os outros. Portanto,

    no a inteno deste trabalho comparar com outras tentativas o rearranjo disciplinar e interdiscipli-

    nar que uma conseqncia inevitvel de qualquer empreendimento desta natureza. Certamente um

    estudo comparativo entre, por exemplo, o significado da teologia no sistema de Tillich e outras clas-

    sificaes muito importante e necessrio, mas isto est fora do escopo deste trabalho.

    A razo da nfase em buscar um lugar legtimo no todo do saber para a teologia, no

    est apenas no reconhecimento da teologia pelo MEC e a impossibilidade de decretar a partir

    desta resoluo a sua cientificidade. Tambm porque, na vida real, encontramos tanto a cultu-

    ra profana com suas cincias, estabelecida nas universidades, nas indstrias, comunidades e

    indivduos, bem como, a cultura religiosa com as suas cincias, estabelecida nas universida-

    des, nas igrejas, nas comunidades e indivduos. Em todo indivduo humano certamente convi-

    vem elementos de ambas as culturas e nem sempre de maneira saudvel, por conta da dicoto-

    mia imposta pelo arranjo disciplinar vigente. Ambas as culturas se fazem presentes no dia-a-

    dia do indivduo e das comunidades, de maneira que impossvel decretar a morte de uma de-

    las sem lesar profundamente a cultura como um todo. Ambas as culturas com suas muitas rea-

    lizaes positivas e negativas para o ser humano ao longo de toda a histria ocidental, perma-

    necem resistindo a toda sorte de ataques de uma contra a outra. Quem se atreve a declarar um

    vencedor a partir de um ponto de vista vlido para ambas?

    O presente trabalho procurar mostrar que possvel, obviamente com rearranjos

    conceituais, a convivncia fecunda entre cincia e religio tanto na Universidade como na co-

  • 16

    munidade e no indivduo. Estes rearranjos podem implicar mudanas na conceituao e rea

    de atuao vigentes das diferentes disciplinas. Isto se faz necessrio porque fora de um con-

    junto das disciplinas cientficas que faa sentido impossvel estabelecer um dilogo frutfero.

    Este espao legtimo para todas as disciplinas deve ser encontrado tambm para que sejam ga-

    rantidas as suas autonomias. Isto porque, o impasse atual entre religio e cincia se d em

    grande medida por conta do receio de uma interferncia heternoma de uma pela outra, receio

    que, certamente, possui respaldo na histria das suas relaes.

    Para finalizar esta introduo, seguem algumas observaes importantes para a leitu-

    ra do texto.

    A bibliografia consultada sobre o pensamento de Morin restringiu-se s obras tradu-

    zidas para o portugus, principalmente os seis volumes de O Mtodo. Existe uma grande vari-

    edade de literatura disponvel, pois, no Brasil, a obra de Morin tem chamado a ateno princi-

    palmente na rea da educao. Aparentemente ele no tem a mesma presena em outras reas,

    o que pode levantar a pergunta: por que Morin? No existe uma razo ou um motivo especial,

    a no ser que a apresentao do seu pensamento pode nos dar uma idia da situao atual da

    cincia e da filosofia da cincia, obviamente sob a sua tica. Alm desta confrontao com o

    hoje, Morin arrisca dar um passo em direo religao dos saberes incluindo as humanida-

    des, assunto que nos interessa no contexto deste trabalho. Mas, certamente, teria sido da mes-

    ma forma frutfero se em lugar de Morin, o escolhido fosse, por exemplo, Humberto Matura-

    na, que insiste na base biolgica do conhecimento.

    A bibliografia primria utilizada da obra de Tillich est praticamente toda em alemo

    e ingls. A traduo dos textos do alemo e do ingls minha, salvo quando indicado na nota

    de rodap. Existe uma traduo para o ingls do System der Wissenschaften que, no entanto,

    no me foi possvel consultar. Isto certamente teria facilitado a compreenso deste denso tex-

    to. A dificuldade de compreend-lo no est apenas na distncia histrica que me separa de

    1923 com suas nuances e da vida real de Tillich, mas, tambm, porque a sua leitura pressupe

    um profundo conhecimento histrico-filosfico. Alm de eu no ter cursado um Gymnasium

    alemo daquela poca, a minha graduao em engenharia me manteve longe desta realidade e

    no me foi possvel recuperar o terreno durante o tempo de pesquisa. Mesmo assim, apesar

    destas dificuldades, creio que o que segue pode contribuir para uma aproximao ao texto de

    Tillich.

  • 17

    No encontrei bibliografia secundria para O Sistema das Cincias. Consegui ver os

    ttulos de alguns poucos trabalhos que tratam do Sistema das Cincias na internet. E interes-

    sante observar a no referncia ao Sistema das Cincias em outras publicaes que tratam des-

    te assunto. Ser isto conseqncia do desconhecimento do texto, ou, por ser considerado irre-

    levante? Como exceo, encontrei uma referncia ao Sistema na tese de doutorado de Andreas

    Rtzer com o ttulo:Die Einteilung der Wissenschaften: Analyse und Typologisierung von

    Wissenschaften (A classificao das cincias: anlise e tipologizao de cincias). Mas esta

    referncia acontece apenas como exemplo de uma classificao do tipo filosfica sem maiores

    comentrios. Portanto, restaram-me as poucas referncias que Tillich mesmo fez ao Sistema.

  • 1 A RELIGAO DOS SABERES NO PENSAMENTO DE EDGAR MORIN

    O ser humano tem necessidade de adquirir conhecimento. Esta parece ser uma carac-

    terstica do Homo Sapiens. Mas ele no se satisfaz apenas em saber, ele procura o conheci-

    mento que confere sentido. Ou, em outras palavras, o ser humano procura por um conheci-

    mento verdadeiro que explique o todo. Isto transparece na histria da filosofia e da cincia na

    busca pelo princpio fundamental, pela matria fundamental, pela lei ou teoria que rege o todo

    e ainda nas snteses filosficas e teolgicas.

    A longa jornada do pensamento ocidental na busca por um mtodo que permitisse al-

    canar esse conhecimento verdadeiro, parece ter chegado a um final frustrante. O ser humano

    at o presente momento, apesar do seu esforo homrico que resultou em enormes benefcios

    e malefcios ao seu mundo, no pode afirmar verdades universais. Entre as conseqncias ne-

    gativas desta busca tm sido apontadas a desumanizao do mundo e a fragmentao dos sa-

    beres.

    1.1 Do mito razo autnoma em poucas palavras

    Na antigidade, a explicao mitolgica era a forma de conhecimento predominante.

    Ela proporcionava conhecimento e sentido para a maioria das pessoas da poca. As circuns-

    tncias especiais da Grcia antiga, permitiram e fomentaram o surgimento da razo humana

    ocidental. Esta, por assim dizer, comeou a questionar o fundamento mitolgico do conheci-

    mento e, em conseqncia, iniciou o processo de sua autonomia. A razo parecia mais promis-

    sora como fonte de conhecimento seguro. No entanto, assim como a explicao mtica, tam-

    bm a realidade se apresentava como um fundamento na questo do conhecimento e oferecia

    resistncia autoridade da razo. J nos primrdios da histria da filosofia pode-se encontrar

  • 19

    sistemas filosficos onde, grosso modo, o fundamento na questo do conhecimento recai ora

    sobre a razo e ora sobre a realidade ou, obviamente, sobre alguma de suas infinitas combina-

    es. A novidade da filosofia grega em relao ao pensamento mitolgico foi a de utilizar so-

    mente a razo como a tentativa de aproximao explicao do sentido todo das coisas.2 A ra-

    zo se lana sobre o ser na busca pelo sentido todo, ou seja, procura na realidade pela ordem e

    coerncia que ela acredita existir.

    A aposta por trs desse empreendimento foi a de que seria possvel encontrar um fun-

    damento slido que possibilitasse o conhecimento verdadeiro. Nessa busca, os filsofos gre-

    gos trocaram a autoridade dos instveis deuses mitolgicos pelo fundamento com acento na

    razo (Plato) e pelo fundamento com acento na realidade (Aristteles). Mais tarde entra em

    cena outra autoridade, o Deus cristo. A teologia e a tradio passam a ser o critrio do conhe-

    cimento verdadeiro e a filosofia se torna instrumento da teologia, esta era considerada a rainha

    das cincias. Mesmo assim, neste retorno de um fundamento do tipo mitolgico, no foi mais

    possvel ignorar o caminho percorrido pelos gregos e a teologia tem, por isso, ora um tom

    platnico (Agostinho) ora um acento aristotlico (Aquino) ou, ainda, uma das infinitas combi-

    naes possveis. Na Era Moderna a razo e, conseqentemente, a realidade, paulatinamente

    declararam sua autonomia em relao ao Deus cristo.3

    O ser humano, alm do seu aspecto racional, apresenta faces irracionais como as

    emoes e os sentimentos. Desde cedo a razo identificou as emoes e at mesmo os senti-

    dos, que so imprescindveis para ao conhecimento, como possveis causadores de distrbios

    que impedem o conhecimento isento. Ele procurou ento por maneiras de anular estes causa-

    dores de rudos, o que foi uma das causas da quebra da unidade do ser humano.

    Com o Racionalismo e o Empirismo ou alguma combinao entre os dois, o pensa-

    mento cientfico no final do sculo XIX acreditava ter encontrado o fundamento slido para o

    conhecimento, qual seja, o mtodo cientfico. Com ele a razo seria tambm autnoma em re-

    lao ao ser humano que a hospeda. A razo autnoma considera-se isenta da subjetividade

    humana, constitui-se no sujeito que transforma a realidade em objeto do seu conhecimento.

    Tanto o sujeito como o objeto j no mais integram o todo da realidade, mas so elementos

    dela retirados pela razo e pelo mtodo cientfico. Neste caso, o sujeito que conhece j no

    mais o ser humano que faz parte da realidade como um todo. O objeto que ele procura conhe-

    2 REALI, Geovanni, ANTISERI, Dario. Histria da filosofia: Antigidade e Idade Mdia. So Paulo: Paulus, 1990. p. 23.3 Para uma breve histria da cincia que revela o seu incio mitolgico/religioso, ver: CHASSOT, Attico. A cincia atravs dos tempos.

    So Paulo: Moderna, 2004.

  • 20

    cer tambm no faz mais parte da realidade como um todo. Mesmo assim, esse tipo de conhe-

    cimento mostrou-se muito profcuo.

    O efeito colateral dessa jornada em busca do conhecimento do todo mostrou-se para-

    doxalmente disjuntivo, no dizer de Edgar Morin4. E isto no poderia ser diferente. Para eli-

    minar ao mximo as interferncias e obter o conhecimento seguro foi necessrio repartir a rea-

    lidade em pores cada vez menores. O resultado foi a especializao que garantiu o sucesso

    do empreendimento cientfico moderno. Ao mesmo tempo, o sujeito ao olhar para a realidade

    como composta por diversos objetos separados uns dos outros, criou as diferentes cincias es-

    pecializadas que foram se afastando cada vez mais umas das outras.

    No final do sculo XIX a razo com seu mtodo cientfico, no s acreditava ter o

    acesso realidade como tal, como tambm se considerava a detentora exclusiva deste acesso.

    O pensamento cientfico rotulava todos os outros tipos de conhecimento como no verdadei-

    ros, no confiveis, etc. A verdade cientfica era sustentada principalmente pelos grandes su-

    cessos alcanados por meio do mtodo cientfico nas cincias fsico-matemticas e na tecnolo-

    gia, por conta dos seus grandes e inegveis benefcios humanidade. Impulsionadas por esse

    sucesso e apoiando-se consciente ou inconscientemente na crena da ordem universal, as dife-

    rentes cincias procuraram aplicar o mtodo cientfico em sua rea, para no serem excludas

    da verdade. Assim, a tentativa de mecanizao a exemplo da fsica, se imps tambm nas ou-

    tras cincias sem, no entanto, alcanar o mesmo sucesso. Procurou-se explicar at mesmo o

    ser humano como sendo uma mquina que funcionaria segundo as leis fsicas, qumicas, bio-

    lgicas psicolgicas e sociais. Estas leis de fato existem e por isto que o ser humano e a na-

    tureza continuam sendo estudados desta maneira, porm, ao lado dos significativos resultados

    desse empreendimento, a especializao fragmentou tanto o ser humano quanto a natureza.

    A teologia tambm foi afetada. A razo autnoma que conhece pelo mtodo cientfi-

    co, no deve estar sujeita a qualquer outra autoridade a no ser sua prpria lei e, s assim, li-

    vre de qualquer interferncia estaria apta para o conhecimento verdadeiro. Desta forma as ex-

    plicaes mitolgicas, o Deus cristo e o conhecimento religioso passaram a ser questes im-

    possveis de conciliar com o conhecimento cientfico pois, alm de no serem passveis de ve-

    rificao segundo o seu mtodo, pressupunham outro fundamento. Para a razo autnoma, os

    deuses e a religio no eram mais necessrios e, mais ainda, no eram realidade. A sujeio

    nova autoridade e a adoo do novo fundamento para o conhecimento verdadeiro, o mtodo

    4 MORIN, Edgar. Introduo ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. p.11.

  • 21

    do conhecimento cientfico, libertaria o ser humano desta iluso.

    A trajetria da emancipao da razo e do sujeito esteve sempre emoldurada por sis-

    temas filosficos que se opunham primazia da razo diante da realidade. Alguns pensadores

    questionaram a capacidade da razo de chegar ao conhecimento do objeto, o que no abalou a

    crena nas capacidades da razo. O Romantismo foi uma destas vertentes no pensamento mo-

    derno, na medida em que incorporava e valorizava outras formas de cognio como a fantasia,

    os sentimentos, a vontade, etc. Com estas faculdades aliadas aos sentidos e razo, o romnti-

    co tambm buscava a ordem e o sentido. A teologia crist tambm procurou resistir ou ade-

    quar-se nova realidade. O resultado da sua resistncia normalmente foi o afastamento cada

    vez maior das outras cincias ou a sua adequao ao esprito cientfico que resultou na perda

    de sua substncia religiosa.5

    Mesmo existindo dvidas quanto a sua aplicao universal, a razo autnoma e o m-

    todo cientfico reinavam no final do sculo XIX. O conhecimento mitolgico primitivo que

    integrava toda a realidade e o ser humano em suas explicaes, evoluiu para um conhecimento

    no qual o sujeito que conhece deve estar necessariamente distanciado do objeto que quer co-

    nhecer. Assim, no final do sculo XIX, a razo cientfica se elevou sobre a realidade. A con-

    seqncia natural desse processo foi a fragmentao da realidade e dos saberes, a hierarquiza-

    o das cincias segundo a sua capacidade de alcanar o conhecimento verdadeiro (objetivo) e

    a excluso dos saberes nos quais no era possvel usar o mtodo consagrado. Pode-se at dizer

    que a razo autnoma e o mtodo cientfico foram consagrados no sentido religioso da pala-

    vra. Mesmo assim, e, justamente porque aconteceu assim, foram possveis as grandes conquis-

    tas da cincia. O problema a pretenso da cincia/mtodo cientfico de possuir o acesso ex-

    clusivo ao conhecimento, o que resultou na depreciao, quando no a anulao, de outras di-

    menses fundamentais da vida.

    Porm, a auto-decretao de exclusividade no acesso ao conhecimento verdadeiro

    pela razo autnoma, sustentada pelo mtodo cientfico, foi profundamente abalada a partir do

    final do sculo XIX, o que se consolidou durante o sculo XX. Esse abalo atingiu a cincia

    que parecia inabalvel, a fsica.

    5 Para uma histria do pensamento cristo veja: TILLICH, Paul. Histria do pensamento cristo. So Paulo: Aste, 2000. e TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos sculos XIX e XX. So Paulo: Aste, 1999.

  • 22

    1.2 Surge uma nova realidade

    Em aproximadamente trs dcadas as grandes certezas da fsica foram minadas. Os

    tomos no eram mais os menores e indestrutveis componentes da matria e a matria pode

    se tornar em energia e vice-versa. Com a Teoria da Relatividade, o espao e o tempo deixaram

    de ser absolutos. Depois da Mecnica Quntica no mais possvel falar em observao obje-

    tiva e nem verificar uma causalidade estritamente mecanicista em todos os fenmenos fsicos.

    Assim, caram os ltimos absolutos e com eles a ltima base slida, instalando-se, em seu lu-

    gar, a incerteza.

    Paralelamente tornou-se evidente que alguns dos produtos da cincia no so apenas

    positivos, mas so tambm potencialmente negativos, a ponto de colocarem em risco a sobre-

    vivncia de toda a humanidade. Exemplos disto so a questo ambiental e a inquietante cons-

    tatao de que o ser humano capaz de no apenas construir mas, tambm, detonar uma bom-

    ba atmica. Transparece aqui a frustrao da expectativa do pensamento cientfico de promo-

    ver um comportamento mais tico.

    Por outro lado, tambm pela filosofia, histria e sociologia da cincia ela mostrou-se

    incapaz de sustentar a sua crena de possuir um mtodo isento de interferncias. Karl Popper6

    mostrou que a cincia somente consegue apresentar teorias falsificveis, ou seja, uma teoria

    nunca pode ser declarada verdadeira. Thomas Kuhn7 mostrou que a cincia precisa de ambien-

    tes conceituais, os paradigmas, que ensinam ao cientista qual o dado a escolher, como cons-

    truir uma teoria e como interpretar os resultados.

    Assim o ocidente perdia mais uma aposta de conhecer verdadeiramente o mundo, as

    cincias. Elas, nas palavras de Grard Fourez,

    no descrevem de modo algum o mundo tal como , mas apenas um mundo tal como pode ser relatado, narrado e controlado de um lugar a outro. E obnubilam-se dessa forma todos os desvios dos raciocnios cientficos, todas as negociaes da ob-servao, todos os componentes afetivos, religiosos, econmicos, polticos da prtica cientfica, a fim de reter somente uma imagem relativamente abstrata.8

    O ser humano, quando no consegue libertar-se do olhar unilateral da realidade, im-

    posto pela cincia, obrigado a viver como que em compartimentos distintos. Ele vive as

    suas diferentes realidades (cientfica/tcnica, artstica, afetiva, religiosa) nestes compartimen-6 POPPER, Karl. A lgica da pesquisa cientfica. So Paulo: Cultrix, 1974.7 KUHN, Thomas S. A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 1990.8 FOUREZ, Grard. A construo das cincias: introduo filosofia e tica das cincias. So Paulo: Editora UNESP, 1995. p. 166.

  • 23

    tos por serem, segundo a atual conjuntura, irreconciliveis entre si. E, quanto mais os desvios

    dos raciocnios cientficos forem significativos para a pessoa, tanto mais instalam-se nela re-

    alidades diferentes que precisam ser integradas para que a unidade psicolgica da pessoa no

    seja quebrada. Por outro lado, a pessoa que fez da prtica cientfica vigente o seu fundamento

    e sobre ela construiu a sua viso de mundo, tem a sua unidade quebrada porque precisa igno-

    rar ou sufocar os desvios. Nesses casos a soluo para a pessoa pode ser: no fazer determi-

    nadas perguntas por saber de antemo que elas no tm resposta sem lanar mo de outros sa-

    beres (no-cientficos). Essa atitude, que contradiz o prprio esprito cientfico, aponta para a

    fragmentao da pessoa. Uma questo crucial : ser possvel ao ser humano viver significati-

    vamente e em harmonia consigo e com o seu mundo, ignorando ou sufocando o seu lado arts-

    tico, afetivo, comunitrio e religioso?

    A preocupao em torno da unidade do ser humano, da unidade da natureza, das con-

    seqncias negativas dos pressupostos das cincias, tm levantado a questo da religao dos

    saberes. Esta unidade, vale lembrar, tem forte conotao de sade em todos os sentidos. Para

    tentar diminuir estes efeitos negativos so apontados como possveis solues a reaproxima-

    o entre a cultura humanista e cultura cientfica, a revalorizao das qualidades e realidades

    do ser humano e da natureza. A reflexo em torno deste assunto tem cunhado termos como in-

    ter/transdisciplinaridade, holismo, reencantamento do mundo, sistema, pensamento sistmico,

    complexidade e pensamento complexo, entre outros. Todos expressam a partir do estado atual

    das coisas, cada qual a seu modo, o anseio pelo todo perdido.

    Uma das conseqncias positivas que possvel perceber a partir das reflexes sobre

    os limites da cincia e do conhecimento, a abertura, ou a possibilidade de buscar uma re-

    unio, mesmo ainda no sabendo exatamente como. Esta possibilidade e tambm a sua difi-

    culdade possvel perceber em muitos livros de metodologia cientfica. Eles nomeiam os ti-

    pos de conhecimento com termos semelhantes aos usados por Marconi e Lakatos9: Conheci-

    mento Popular, Conhecimento Cientfico, Conhecimento Filosfico e Conhecimento Religio-

    so (Teolgico). Isto significa que os conhecimentos Popular, Filosfico e Religioso tm reco-

    nhecida a sua existncia. Porm, na classificao das cincias adotada pelas autoras no livro

    citado, no h espao para a filosofia nem para a teologia. Chama a ateno que nesta classifi-

    cao no consta sequer a histria.10

    9 LAKATOS, Eva M., MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Cientfica. So Paulo: Atlas, 2000. p. 18.10 LAKATOS, Eva M., MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Cientfica. p. 28.

  • 24

    Nesta ausncia transparece a dificuldade do momento atual. Ainda que no seja

    (mais) possvel excluir os desvios dos raciocnios cientficos da realidade, o conceito de ci-

    ncia vigente no permite a sua incluso na realidade cientfica, mesmo sabendo que um des-

    vio como a filosofia, por exemplo, de fundamental importncia para o conjunto do saber.

    Pela histria da filosofia sabemos que ela, assim como o mito (ou o religioso), estiveram pre-

    sentes na gnese das atuais cincias e, pela histria das cincias sabemos que sem a filosofia e

    sem a teologia, a cincia no seria hoje o que . Essa excluso dos desvios poderia ser justi-

    ficada apenas se ela se configurasse como sendo mais abrangente e integradora em termos de

    saber e sentido, o que no parece ser o caso. A configurao atual das coisas mantida por

    conta das grandes conquistas alcanadas por meio da cultura da especializao.

    Resumindo, podemos dizer com Urbano Zilles que,

    as cincias modernas, com seus mtodos analticos, proporcionam ao homem um co-nhecimento fragmentado. Com isso o homem ocidental que, na modernidade, apos-tou na cincia como caminho para a soluo de seus problemas, hoje desconfia no s das cincias mas da prpria razo cientfica. Toma conscincia no s de que o conhecimento cientfico no o nico vlido mas tambm de que a razo humana no se reduz apenas razo cientfica ou instrumental. Alm disso o homem no apenas razo. Por isso busca o sentido para a sua existncia em vises de sntese da filosofia ou da religio.11

    Estas concluses, incertezas e suspeitas apontam para a necessidade de rever os con-

    ceitos que promovem a excluso e fragmentao: cincia, conhecimento, mtodo cientfico,

    etc. Porm, s possvel question-los e julg-los, da forma como est sendo feito, porque

    surgiram questionamentos internos. Paul Tillich coloca esta questo da seguinte maneira:

    Mas para poder construir uma classificao abrangendo toda a diversidade das cin-cias, necessrio que a prpria natureza da cincia fique clara. Somente muito tarde o esprito cientfico fez esta pergunta. Isto aconteceu apenas quando o mundo dos objetos, sobre o qual ele se lanara com ilimitada confiana (Kraftbewusstsein) e ili-mitada ingenuidade, lanou-o de volta sobre si mesmo. Apenas quando a dvida des-truiu a imediata autoconfiana, somente ento ele refletiu e perguntou: enfim, o que conhecimento e o que cincia? Assim ele criou a mais peculiar e profunda de suas criaturas, a cincia da cincia, a Teoria do Conhecimento.12

    A partir desta observao pode-se dizer que a conscincia da necessidade de criar no-

    11 ZILLES, Urbano. Teoria do Conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 165.12 TILLICH, Paul. Das System der Wissenchaften nach Gegenstnden und Methoden. In: WENTZ, Gunther. Paul Tillich: Main Works /

    Hauptwerke. Philosophical Writtings. Berlin/New York: De Gruyter Evangelisches Verlagswerk GmbH, 1989. Vol. 1. pp. 115-116. Um aber die Mannigfaltigkeit der Wissenschaften gliedern und aufbauen zu knnen, mu das Wesen der Wissenschaft selbst klar ge-worden sein. Erst spt hat der wissenschaftliche Geist diese Fragen gestellt. Erst nachdem ihn die Welt der Gegenstnde, auf die er sich mit unbegrenztem Kraftbewutsein und unbegrenzter Naivitt strzte, zurckgeworfen hatte auf sich selbst, erst nachdem der Zweifel die unmittelbare Selbstsicherheit zerstrt hatte, erst da besann er sich und fragte: Was ist denn eigentlich Erkennen und was ist Wissen-schaft? Und so schuf er die merkwrdigste und tiefsinnigste seiner Schpfungen, die Wissenschaft von der Wissenschaft, die Wissen-schaftslehre.

  • 25

    vos conceitos que permitam a religao dos saberes, s possvel graas dinmica da hist-

    ria do pensamento ocidental. E, como tal, os seus erros e acertos so necessrios na constru-

    o do novo. Este novo, portanto, precisa reorganizar as conquistas alcanadas at aqui e deve

    permitir a incluso daqueles desvios que hoje so julgados como necessrios ao conjunto do

    saber. O saber cientfico com o seu mtodo, alcana um conhecimento eficiente sobre os obje-

    tos que coloca. No pode, portanto, ser excludo do conjunto do saber apenas por ter a preten-

    so de ser o nico acesso realidade. Nesse contexto se levanta a pergunta, qual o critrio

    pelo qual se pode definir o conjunto das cincias e, principalmente, o que permite e promove a

    unidade do conjunto das cincias, ou ainda, qual o fator de unidade no conjunto do saber?

    Fica evidente que esse fator no pode ser encontrado no interior do pensamento cientfico atu-

    al, j que ele fecha o conjunto do saber nele mesmo. Por outro lado, tambm parece evidente

    que, na atual conjuntura impossvel alcanar o conjunto das cincias no qual se encerre a to-

    talidade do saber. Para Tillich impossvel alcan-lo, porm, possvel e necessrio que

    cada gerao procure ter clareza sobre o que conhece, sobre os objetos e mtodos de conheci-

    mento13.

    Vrios pensadores contemporneos tm apresentado propostas para sair do conjunto

    fechado e limitado do saber. Entre eles, Edgar Morin, pensador francs, entende que a sada se

    encontra no Pensamento Complexo que , para ele, o estado supremo do marranismo (a preo-

    cupao em integrar pontos de vista diferentes e s vezes antagnicos, inclusive o ponto de

    vista da racionalidade, do misticismo e da f)14. Outro pensador o chileno Humberto Matu-

    rana. A sua anlise do conhecimento e cincia se d a partir da sua base biolgica. Escreve

    que no final das contas, (...) a referncia unificadora da relatividade de todos os domnios de

    realidade est na referncia em relao qual so relativos - e esta referncia a biologia15.

    A brasileira Maria J. E. de Vasconcellos sugere o Pensamento Sistmico como o novo para-

    digma da cincia. Ela diz que quando falo de pensamento sistmico, estou me referindo a

    uma viso de mundo que contempla as trs dimenses que distingo na cincia

    contempornea16. As dimenses que ela distingue so a complexidade, a instabilidade e a in-

    tersubjetividade. J Fritjof Capra encontra o novo paradigma na ecologia profunda. Enquanto

    que a ecologia rasa antropocntrica (...) e v os seres humanos como situados acima ou fora

    da natureza (...) a ecologia profunda no separa seres humanos ou qualquer outra coisa do

    13 TILLICH, Paul. Das System der Wissenschaften. p. 116.14 MORIN, Edgar. Meus demnios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 145.15 MATURANA, Humberto. Cognio, cincia e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. p. 116.16 VASCONCELLOS, Maria J. E. de. Pensamento sistmico: o novo paradigma da cincia. Campinas: Papirus, 2002. p. 148.

  • 26

    meio ambiente natural. Nela os fenmenos esto fundamentalmente interconectados e so

    interdependentes. E acrescenta que a percepo da ecologia profunda percepo espiritual

    e religiosa.17 Ervin Laszlo, por sua vez, aposta numa revoluo da cincia. Acredita que ela

    est acontecendo nos trabalhos recentes nas cincias fsicas e biolgicas e nas teorias de van-

    guarda que buscam uma compreenso da evoluo da vida e da mente a partir do universo f-

    sico desde suas origens no big-bang, se no antes18. O resultado desta revoluo aponta, se-

    gundo ele, para uma fonte csmica que basicamente energia, portanto um princpio fsico,

    que ele descreve assim:

    O espao e o tempo se unem como a dinmica de fundo do universo observvel. A matria est desaparecendo como a caracterstica fundamental da realidade, sendo substituda pela energia. Campos contnuos substituem as partculas elementares como os elementos bsicos de um cosmos banhado de energia.19

    Esta energia ou fonte csmica renovadora e revitalizadora do processo csmico ,

    na verdade, segundo ele, uma intuio recorrente na histria da humanidade expressa por sm-

    bolos como: a Grande Me, a rvore Csmica, a rvore da Vida, o um, etc.20

    A busca pela religao dos saberes est sendo efetuada a partir das mais diversas ten-

    dncias, seja ela racional, racional/mstica ou declaradamente mstica.21

    Neste item procurei lembrar que as categorias filosofia, cincia e religio, razo

    (pensamento) e realidade (ser) estiveram sempre presentes na histria do pensamento

    ocidental. A sua mtua desconfiana quanto possibilidade de alcanar a certeza da verdade

    no conhecimento das coisas certamente fizeram de cincia, filosofia, religio e teologia o que

    elas so hoje. Com esta lembrana no quis apenas apontar para a sua, por assim dizer, mtua

    pertena mas tambm para o fato de que pensamento e ser esto presentes em todas as

    manifestaes do conhecimento e condicionaram-se mutuamente ao logo da histria do seu

    confronto. Pensamento e ser so as categorias fundamentais na concepo do Sistema das

    Cincias de Tillich.

    No prximo item procuro conhecer a anlise da situao atual, na questo da frag-

    mentao dos saberes e a proposta de sua religao, no pensamento de Edgar Morin. Alm

    17 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreenso cientfica dos sistemas vivos. So Paulo: Cultrix, 1996 (?). pp. 25-26.18 LASZLO, Ervin. Conexo csmica: guia pessoal para a emergente viso da cincia. Petrpolis: Vozes, 1999 p. 13.19 LASZLO, Ervin. Conexo csmica. pp. 205-206.20 LASZLO, Ervin. Conexo csmica. p. 206.21 Neste sentido, vale a pena ler as entrevistas realizadas por Rene Weber com, entre outros, David Bohm, Krishnamurti, Ilya Prigogine e

    Stephen Hawking. WEBER, Rene. Dilogos com cientistas e sbios: a busca da unidade. So Paulo: Crculo do Livro, 1986.

  • 27

    disso, procuro ainda encontrar nesta proposta o lugar da teologia ou do religioso. Esta anlise

    que no ser exaustiva, servir como um horizonte a partir do qual poder ser avaliada a atua-

    lidade do Sistema das Cincias de Paul Tillich.

    1.3 O pensamento complexo de Edgar Morin

    Edgar Morin, filho de judeus espanhis que emigraram para a Frana, nasceu em Pa-

    ris no dia 8 de julho de 1921. Desde cedo sua vida foi marcada por contradies: vida e morte,

    amor e abandono, esperana e desesperana, ceticismo irremedivel e esperana sempre reno-

    vada, inocncia e culpa, f e dvida, contradies polticas, entre outras. Escreveu que

    nunca deixei de estar submetido presso simultnea de duas idias contrrias e que me parecem ambas verdadeiras, que me leva ora a ir de uma a outra, segundo as con-dies que acentuam ou diminuem a fora de atrao de cada uma, ora a aceitar como complementares essas duas verdades que, no entanto, deveriam logicamente se excluir uma outra. Tenho, ao mesmo tempo, o sentimento da irredutibilidade da contradio e o sentimento da complementaridade dos contrrios. uma singularida-de que vivi, primeiramente admitida, depois assumida, enfim integrada.22

    Por dez anos foi membro do Partido Comunista da Frana. Morin escreve que o Mar-

    xismo representou para ele a abertura e no uma teoria reducionista, impelindo-o ao sa-

    ber total, isto , ao conhecimento do todo enquanto tal, permitindo integrar o conhecimento

    das diversas partes constituintes desse todo. Esta viso satisfazia, naturalmente, meu desejo de

    abraar tudo23. Em 1962, quando convalescia de um distrbio cardaco num hospital de Nova

    Iorque, decidiu procurar por um mtodo para coligar as cincias humanas, a fsica e a biolo-

    gia. Ele prprio via a sua enfermidade como um sinal de que o seu modo de vida anterior ti-

    nha chegado a um beco sem sada24.

    A sua vida impulsionou-o a buscar, como no poderia deixar de ser, com muito entu-

    siasmo a realizao desse projeto. Nas palavras de Myron Kofman, Morin se via como um

    orquestrador ou organizador de uma cruzada25. Este projeto a religao dos saberes pelo

    pensamento complexo, cujo significado Morin explica usando uma metfora: como o Vale

    recebe riachos que vm das encostas opostas, pude elaborar o pensamento complexo reunin-

    do o separado e acrescenta:

    Religar, religar. Tornou-se, no a palavra-chave, mas a Idia-me. O conhecimento 22 MORIN, Edgar. Meus demnios. p. 47.23 MORIN, Edgar. Meus demnios. p. 28.24 KOFMAN, Myron. Edgar Morin: do Big Brother fraternidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 27.25 KOFMAN, Myron. Edgar Morin. p. 35.

  • 28

    que religa o conhecimento complexo. A tica que religa a tica fraternal, a polti-ca que religa a poltica que sabe que a solidariedade vital para o desenvolvimento da complexidade social.26

    1.3.1 O encontro com o universo complexo

    Morin faz uma anlise bastante extensa da situao em que se encontra o pensamento

    cientfico atual. A sua anlise racional-emprica mesmo que comporte, como veremos, a dia-

    lgica com o irracional. Esta j est na base do conhecimento cientfico, ou seja, no poss-

    vel de todo excluir a dialgica existente entre os quatro fundamentos da cincia atual: empiris-

    mo e racionalismo, imaginao e verificao.27

    Escreveu O Mtodo, sua obra maior de seis volumes ao longo de trinta anos que, se-

    gundo ele,constitui um esforo polivalente contra as armadilhas da falsa racionalidade. Esse

    esforo, que vale para as concepes filosficas e cientficas, de importncia vital para o

    pensamento e ao polticos.28

    A falsa racionalidade a racionalidade imposta pelo paradigma cientfico da moder-

    nidade que ainda est vigente. Ela est fundamentada na lgica clssica: deduo, induo e

    na absolutizao pela razo e cincia clssicas, dos trs princpios bsicos e inseparveis da

    lgica identitria: o princpio da identidade, o princpio de no-contradio e o princpio do

    terceiro excludo. Os trs axiomas [absolutizados] estruturaram a viso de mundo coerente,

    inteiramente acessvel ao pensamento, tornando ao mesmo tempo fora da lgica, fora do mun-

    do e fora da realidade tudo o que excedia a essa coerncia.29 As contradies, entre outras,

    que surgem a partir do exerccio do pensamento emprico-racional (onda/corpsculo30), e ou-

    tras inerentes prpria racionalidade (as antinomias kantianas)31, no podem ser toleradas.

    Para a cincia clssica, a contradio s podia ser o indcio de um erro de raciocnio e, por

    isso mesmo, devia no apenas ser eliminada, mas determinar a eliminao do raciocnio que a

    ela conduzia32. a partir do encontro dessa lgica com o real que a racionalidade se apresen-

    ta como simplificadora, pois o real no se submete inteiramente ao pensamento racionalista,

    26 MORIN, Edgar. Meus demnios. p. 260.27 MORIN, Edgar. Cincia com conscincia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 190.28 MORIN, Edgar. Meus demnios. p. 237.29 MORIN, Edgar. O Mtodo 4: as idias, habitat, vida, costumes, organizao. Porto Alegre: Sulina, 2002. p. 213.30 No mbito da fsica clssica, impossvel que algo tenha propriedade de partcula (matria) e simultaneamente de onda (energia), ou seja,

    ficou caracterizada uma contradio quando por experimentos constatou-se essa simultaneidade nas partculas subatmicas. Esse experi-mento cientfico foi um dos primeiros a desembocar em contradio no mago da cincia racional por excelncia, a fsica.

    31 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 226.32 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 220.

  • 29

    ou seja, a realidade complexa. Aqui se encontra o problema fundamental do pensamento ci-

    entfico: A racionalidade pervertida e a racionalidade simplificadora so as doenas degene-

    radoras que ameaam a todo o instante o exerccio de nosso pensamento33, pois resultam na

    simplificao e conseqentemente na fragmentao da realidade.

    Grande parte do trabalho de Morin tem sido o de levantar, em todas as reas do saber,

    as contradies em que caiu a racionalidade moderna e apresentar as caractersticas da racio-

    nalidade no pervertida.

    Para Morin a verdadeira racionalidade

    comporta, (...) no a recusa da contradio, mas o enfrentamento das contradies que surgem a partir do exame emprico-lgico dos problemas. No nego a lgica clssica, coloco-a em dialgica com a transgresso lgica. No digo que contradio est no centro mesmo da realidade, digo que nosso esprito, logo que se aproxima do cerne da realidade, desemboca em contradies.34

    Morin adverte que no se trata de qualquer contradio. Interessa neste caso somente

    aquela que surge ao final de uma deduo correta a partir de premissas consistentes(Watz-

    lawick)35. Caso contrrio,

    qualquer incoerncia teria o estatuto de verdade superior. O que nos interessa a inadequao entre a coerncia interna de um sistema de idias aparentemente raci-onal e a realidade qual ele se aplica: a coerncia lgica impede a adequao e esta impede a coerncia lgica.36

    Ele exemplifica esse tipo de inadequao com a contradio onda/corpsculo. E ar-

    gumenta que ela no se originou da falta de raciocnio lgico e sim do experimento, o que le-

    vou necessidade lgica de consider-los, onda e corpsculo, como sendo complementares.

    Outro exemplo pode ser a constatao cientfica da convivncia paradoxal entre ordem e de-

    sordem no universo. Pelo segundo princpio da termodinmica sabe-se que o universo tende

    para a desordem mxima e, mesmo assim, nele as coisas se organizam, se complexificam e

    se desenvolvem37. Ou seja, a aceitao da contradio no significa a negao da racionalida-

    de nem a valorizao da irracionalidade e do pensamento incoerente. Trata-se antes, da aceita-

    o de que a realidade no se deixa submeter inteiramente sob a razo e seus instrumentos.

    Essas contradies ou brechas, no existem apenas no conhecimento cientfico (fsica contem-33 MORIN, Edgar. Meus demnios. p. 236.34 MORIN, Edgar. Meus demnios. p. 63.35 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 220.36 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 223. Grifo de Morin.37 MORIN, Edgar. Introduo ao pensamento complexo. p. 61.

  • 30

    pornea). Morin identifica ainda outras: na lgica (paradoxo do cretense38), na ontologia (filo-

    sofias dialticas) e no formalismo (teorema de Gdel39). Destas brechas lgicas retira duas li-

    es:

    a) Elas limitam o conhecimento, na medida em que: um sistema explicativo no

    [pode] explicar a si mesmo; um princpio de elucidao cego em relao a si mesmo; e o que

    define no pode ser definido por si mesmo.40

    b) Elas apontam uma nova via para o conhecimento. Pois, Toda descoberta de uma

    limitao abre paradoxalmente uma nova via para o conhecimento, a qual muito claramente

    indicada por Gdel e Tarski. O teorema de Gdel, ao mesmo tempo em que evidencia o limi-

    te de uma teoria/sistema, abre a possibilidade de recorrer a uma teoria/sistema mais geral, que

    Morin denomina metassistema ou metaponto de vista. Este metassistema, por sua vez, tam-

    bm limitado, mas pode tambm fazer uso de um metametassistema e assim por diante. De

    maneira anloga, Tarski demonstrou que o mesmo acontece com as linguagens formalizadas.

    O conceito de verdade relativo a uma linguagem no representvel nessa linguagem po-

    dendo, porm, recorrer para este fim a uma linguagem mais rica (metalinguagem). Portanto,

    existe a limitao do conhecimento mas, nela mesma, est a possibilidade de avanar no co-

    nhecimento recorrendo infinitamente a uma instncia mais complexa.41

    Como h a possibilidade de ultrapassar a incerteza ou a contradio recorrendo a

    um metassistema, Morin pode dizer que as contradies ou as brechas que resultam desse pro-

    cesso no so mais, como na lgica clssica, indicao de erro. Elas passam a ser o indcio e

    o anncio do verdadeiro.42 Ou, em outras palavras, elas so o atingir de uma camada mais

    profunda da realidade que, justamente por ser profunda, no encontra traduo em nossa lgi-

    ca43. Mas, ao mesmo tempo e por isto mesmo, a verdadeira racionalidade nunca est comple-

    ta, ou seja, a complexidade no deve ser confundida com completude nem com certeza.

    Portanto, tanto a capacidade de descobrir como o enfrentamento dessas

    contradies/brechas apontam para uma outra racionalidade, a racionalidade complexa. Por

    38 Um cretense afirma: todos os cretenses so mentirosos.39 Expressa que todo sistema formal sofre de incompletude e de incapacidade para demonstrar a sua no-contradio (consistncia) apoia-

    do apenas nos seus recursos. Cf. MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 88.40 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 229.41 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 229-230.42 MORIN, Edgar. O mtodo 4. pp. 222.43 MORIN, Edgar. Introduo ao pensamento complexo. p. 68.

  • 31

    sua vez, a racionalidade e o pensamento complexos pressupe uma lgica diferente da lgica

    clssica.

    1.3.2 O pensamento complexo

    Como vimos, a racionalidade complexa e o pensamento complexo no podem surgir

    no contexto da lgica clssica. Na verdade, o que deve acontecer a abertura ou o enfraque-

    cimento da lgica, para que a constatao de uma contradio no exclua sumariamente esta

    poro da realidade da realidade toda. Neste sentido, se o conhecimento pretende alcanar o

    todo, a sua lgica deve ser fraca o suficiente para poder ser transgredida. Se no h como evi-

    tar a necessidade lgica da separao dos objetos, deve-se, simultaneamente, aceitar a exign-

    cia da complexidade. Por isto a complexidade metalgica (engloba a lgica, embora trans-

    gredindo-a)44. Para Morin, a complexidade salva a lgica como higiene do pensamento e

    transgride-a como mutilao do pensamento45. importante notar que a complexidade no

    surge de alguma sntese mas vive na e a partir da dialgica46 entre opostos:

    O pensamento complexo tem como tarefa no substituir o certo pelo incerto, o sepa-rvel pelo inseparvel, a lgica dedutiva-indentitria pela transgresso de seus prin-cpios, mas efetuar uma dialgica cognitiva entre o certo e o incerto, o separvel e o inseparvel, o lgico e o metalgico. O pensamento complexo no a substituio da simplicidade pela complexidade, ele o exerccio de uma dialgica entre o sim-ples e o complexo.47

    Se a complexidade salva e transgride a lgica, ela passa a ser o novo referencial para

    o pensamento, como ser possvel alcan-lo? Abaixo esto relacionados os sete principais

    princpios que, segundo Morin, so os guias para o pensamento complexo:

    1. Princpio sistmico ou organizacional: liga o conhecimento das partes ao conheci-mento do todo, conforme a ponte indicada por Pascal (...): Tenho por impossvel conhecer o todo sem conhecer as partes, e conhecer as partes sem conhecer o todo. A idia sistmica, oposta reducionista, entende que o todo mais do que a soma das partes.(...) A organizao do ser vivo gera qualidades desconhecidas [emergn-cias] de seus componentes fsico-qumicos. Acrescentemos que o todo menos do que a soma das partes, cujas qualidades so inibidas pela organizao de conjunto.

    2. Princpio hologramtico (inspirado no holograma, no qual cada ponto contm a quase totalidade da informao do objeto representado): coloca em evidncia o apa-rente paradoxo dos Sistemas complexos, onde no somente a parte est no todo, mas o todo se inscreve na parte. Cada clula parte do todo - organismo global - mas o prprio todo est na parte: a totalidade do patrimnio gentico est presente em cada

    44 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 253.45 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 248.46 O termo dialgico quer dizer que duas lgicas, dois princpios, esto unidos sem que a dualidade se perca nessa unidade. MORIN, Ed-

    gar. Cincia com conscincia. p. 189.47 MORIN, Edgar. Meus demnios. p. 199.

  • 32

    clula individual; a sociedade como todo, aparece em cada indivduo, atravs da lin-guagem, da cultura, das normas.

    3. Princpio do anel retroativo: introduzido por Norbert Wiener, (...). Rompe com o princpio de causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e este sobre a causa, (...). O anel de retroao (ou feedback) possibilita, na sua forma negativa, reduzir o des-vio e, assim, estabilizar um sistema. Na sua forma mais positiva, o feedback um mecanismo amplificador; (...). Inflacionistas ou estabilizadoras, as retroaes so nu-merosas nos fenmenos econmicos, sociais, polticos ou psicolgicos.

    4. Princpio do anel recursivo: supera a noo de regulao com a de autoproduo e auto-organizao. um anel gerador, no qual os produtos e os efeitos so produtores e causadores do que os produz. (...)

    5. Princpio de auto-eco-organizao (autonomia/dependncia): os seres vivos so auto-organizadores que se autoproduzem incessantemente, e atravs disso despen-dem energia para salvaguardar a prpria autonomia. Como tm necessidade de ex-trair energia, informao e organizao no prprio meio ambiente, a autonomia deles inseparvel dessa dependncia, e torna-se imperativo conceb-los como auto-eco-organizadores. O princpio de auto-eco-organizao vale evidentemente de maneira especfica para os humanos, que desenvolvem a sua autonomia na dependncia da cultura, e para as sociedades que dependem do meio geoecolgico. (...)

    6. Princpio dialgico (...). Une dois princpios ou noes devendo excluir um ao ou-tro, mas que so indissociveis numa mesma realidade. (...).A dialgica permite assumir racionalmente a associao de noes contraditrias para conceber um mesmo fenmeno complexo. (...), por exemplo, a necessidade de ver as partculas fsicas ao mesmo tempo como corpsculos e como ondas. Ns mes-mos somos seres separados e autnomos, fazendo parte de duas continuidades inse-parveis, a espcie e a sociedade. Quando se considera a espcie ou a sociedade, o indivduo desaparece; quando se considera o indivduo, a espcie e a sociedade desa-parecem. O pensamento complexo assume dialogicamente os dois termos que ten-dem a se excluir.

    7. Princpio da reintroduo daquele que conhece em todo conhecimento: esse prin-cpio opera a restaurao do sujeito e ilumina a problemtica cognitiva central: da percepo teoria cientfica, todo conhecimento uma reconstruo/traduo por um esprito/crebro numa certa cultura e num determinado tempo.48

    O pensamento complexo antes de tudo um guia para a constatao das limitaes

    da lgica e do pensamento disjuntivo dominado pelo paradigma cientfico. Ele pode, segundo

    Morin, dar a cada um de ns um lembrete, avisando: No esquea que a realidade mutante,

    no esquea que o novo pode surgir e, de todo modo, vai surgir49. E a esperana de Morin

    que o pensamento complexo trar consigo uma mudana paradigmtica. Essa se faz necessria

    porque, no seu entender, os indivduos conhecem, pensam e agem conforme os paradigmas

    neles inscritos culturalmente. Os sistemas de idias so radicalmente organizados em virtude

    dos paradigmas.50 Portanto, aps o despertar da complexidade por meio de pensamento com-

    plexo ele deve ser consolidado com o advento do paradigma da complexidade. Este, nas pala-

    vras de Kofman no uma formalizao da realidade, mas um caminho atravs de uma reali-

    48 MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. Disponvel em:http://sevicisc.incubadora.fapesp.br/portal/Members/pelegrini/ntc/pensamentocomplexo.pdf. Acesso em 22/04/2006. pp. 15-18.

    49 MORIN, Edgar. Introduo ao pensamento complexo. p. 83.50 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 261.

  • 33

    dade impenetrvel.51

    1.3.2.1 Os paradigmas

    Morin alerta que ele utiliza o termo paradigma no s para o saber cientfico, mas

    para todo conhecimento, todo pensamento, todo sistema noolgico52. O paradigma, que cul-

    turalmente inscrito no indivduo, determina tanto o seu conhecimento como o seu pensamento

    e a sua ao. O paradigma organiza o sistema de idias do indivduo. Alm disso, ele produz

    a verdade do sistema legitimando as regras de inferncia que garantem a demonstrao ou a

    verdade de uma proposio53. Morin destaca trs caractersticas da sua definio de paradig-

    ma: Semanticamente, o paradigma determina a inteligibilidade e d sentido. Logicamente,

    determina as operaes lgicas centrais. Ideo-logicamente, o princpio primeiro de associa-

    o, eliminao, seleo, que determina as condies de organizao das idias54.

    O paradigma apresenta-se assim, como a autoridade final sobre o conhecimento e

    comportamento a ponto de Morin afirmar que, em nvel paradigmtico, o esprito do sujeito

    no tem qualquer soberania, assim como a teoria no tem qualquer autonomia.55

    Segundo Morin, ao paradigma podem associar-se caratersticas como sendo no fal-

    sificvel; como tendo autoridade axiomtica; como sendo o critrio de excluso; como

    aquele que cega (as partes excludas); invisvel (somente pode ser visto nas suas manifesta-

    es); cria evidncia (quem est submetido a ele, pensa estar obedecendo aos fatos, experi-

    ncia, lgica); invulnervel (mesmo que sempre haja indivduos desviantes em relao ao

    paradigma vigente); entre paradigmas divergentes existe incompreenso e antinomia; ele

    est recursivamente ligado aos discursos e sistemas que gera (o determinismo precisa sem-

    pre de novo confirmar-se como determinismo); ele determina uma viso de mundo (pelas

    teorias e ideologias) e comanda a viso da cincia; da filosofia, da razo, da poltica, da deci-

    so, da moral...; por fim, por todas essas caratersticas, no h como enfrent-lo diretamente.

    Um paradigma s pode ruir se no seu interior surgirem contradies ou brechas que, apesar de

    todos os esforos em super-las (exigncia do prprio paradigma), se mostram resistentes.

    preciso, em suma, um vaivm corrosivo/crtico entre dados, observaes, experincias nos n-

    51 KOFMAN, Myron. Edgar Morin. p. 147.52 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 261.53 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 264.54 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 261.55 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 263.

  • 34

    cleos tericos, para que, ento, possa acontecer o desabamento do edifcio minado, arrastando,

    na sua queda, o paradigma cuja morte poder, como a sua vida, manter-se invisvel....56

    Existem muitos paradigmas que podem ser diferenciados pelos campos onde atuam,

    porm, o grande paradigma do Ocidente que engloba todos os outros, que determina se estes

    diversos paradigmas podem coexistir pacificamente ou no. Assim, por exemplo, o materialis-

    mo e o espiritualismo obedecem a dois paradigmas diferentes que so inimigos entre si, mas,

    segundo Morin, ambos so ramos do mesmo grande paradigma. Por isso, necessrio consi-

    derar as grandes matrizes paradigmticas as quais no se limitam a dominar a noosfera e a cul-

    tura de uma poca, mas dizem tambm respeito infratextura social57. Dentro da concepo

    complexa essa relao no pode ser entendida estaticamente onde, por um lado, o paradigma

    apenas impe e dispe (como um demiurgo oculto) ou, pelo outro lado, o paradigma apenas

    o produto da organizao social. Preferencialmente deve ser concebido um crculo ativo

    em que a organizao sociocultural alimente o paradigma que a alimenta.58

    Na tentativa de encontrar o n grdio, a caracterstica fundamental que domina todos

    os paradigmas, cabe agora acompanhar Morin na sua caracterizao do grande paradigma do

    Ocidente.

    1.3.2.2 O grande paradigma do Ocidente

    O grande paradigma do Ocidente o resultado do desenvolvimento da histria euro-

    pia desde o sculo XVII, a partir da separao entre sujeito e objeto por Descartes. Essa dis-

    sociao vai se prolongando: alma/corpo, esprito/matria, qualidade/quantidade,

    finalidade/causalidade, liberdade/determinismo, etc. Nos sculos XVIII e XIX consolida-se a

    distino entre a cultura cientfica e a cultura humanstica, aps a disjuno entre cincia e fi-

    losofia. O desenvolvimento de ambas as culturas dependente do mesmo paradigma, atuam

    no mesmo terreno, mas excluem-se mutuamente.59 No interior da cultura humanstica baseada

    na reflexo, proibido fazer uso do saber objetivo, enquanto que a cultura cientfica, baseada

    na especializao, no pode refletir sobre si mesma.60 Os resultados (positivos e negativos)

    dessa disjuno podem ser vistos em todas as dimenses da atuao do ser humano, inclusive

    56 MORIN, Edgar. O mtodo 4. pp. 265-268.57 MORIN, Edgar. O mtodo 4. pp. 269.58 MORIN, Edgar. O mtodo 4. pp. 269.59 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 270.60 MORIN, Edgar. Introduo ao pensamento complexo. p. 76.

  • 35

    na sua vida como indivduo. Morin o descreve assim:

    ... a esquizofrenia particular nossa cultura d a cada um ao menos uma dupla vida. Por um lado, uma vida existencial e moral, com a presena e a interveno da expe-rincia interior, uma viso das coisas e dos acontecimentos segundo a subjetividade (qualidades, virtudes, vcios, responsabilidade), a adeso aos valores, as impregna-es e contaminaes entre juzos de fato e juzos de valor, os juzos globais; por ou-tro lado, uma vida de explicaes deterministas e mecanicistas, de vises fragmenta-das e disciplinares, de disjuno entre juzos de fato e juzos de valor.

    Assim, a prpria vida cotidiana de cada um determinada e afetada pelo grande pa-radigma...61

    Atualmente, segundo a avaliao de Morin, o trao comum presente em todas as di-

    menses da atuao do ser humano (princpios de organizao da cincia, da sociedade, da

    economia e do Estado-nao) o paradigma da cincia clssica que, desta forma, articula-se

    profundamente no grande paradigma do Ocidente62.

    Esse trao comum aparece no prprio tratamento do real (reduo/disjuno), a mes-ma ocultao mtua do sujeito pelo objeto e do objeto pelo sujeito, a mesma reduo ordem, medida, ao clculo, em detrimento das qualidades, das totalidades, das unidades complexas, a mesma especializao e hierarquizao, o mesmo pragmatis-mo, o mesmo empirismo, o mesmo manipulacionismo, a mesma tecnologizao e tecnoburocratizao, a mesma racionalizao sob a gide da razo, a mesma dissoci-ao entre o humano e o natural, a mesma transformao em objeto fechado de tudo o que apreendido pelo conceito, pelo instrumento, pela mquina, pelo programa...63

    No interior do paradigma da cincia clssica, ao lado da reduo/disjuno, surge

    ainda a excluso que elimina pura e simplesmente da cientificidade e, por isso mesmo, da

    verdadeira realidade, todos os ingredientes da complexidade do real64. O resultado da apli-

    cao dos princpios do paradigma da cincia clssica a viso de mundo onde reina a ordem,

    a unidade e a simplicidade. Ao mesmo tempo em que exclui do (mesmo) mundo tudo o que

    no se conforma com os seus princpios. A necessidade de encontrar a ordem e a unidade sa-

    tisfaz, segundo Morin, a aspiraes religiosas: a necessidade de certeza, a vontade de inscre-

    ver no prprio mundo a perfeio e a harmonia perdidas com a expulso de Deus...65.

    Com efeito, os resultados da aplicao do grande paradigma do Ocidente se mostram

    geralmente mutilantes. At porque, o paradigma da cincia clssica nunca conseguiu ficar to-

    talmente livre de dialgicas como, por exemplo, a do empirismo/racionalismo. Porm, esta si-

    tuao ao mesmo tempo em que divide, oportuniza a dialgica entre os opostos que se mos-61 MORIN, Edgar. O mtodo 4. pp. 272-273.62 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 27363 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 273.64 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 276.65 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 277.

  • 36

    trou produtiva para ambos os lados, mesmo que na maioria das vezes de forma inconsciente.66

    Morin identifica a presena do grande paradigma

    no apenas na sociedade (disjuno entre a organizao tecno-buroeconocrata e a vida cotidiana), na cultura (disjuno entre cultura das humanidades e cultura cient-fica), mas tambm nos psiquismos e nas vidas, suscitando as passagens por saltos quase qunticos do mundo dos sentimentos, das paixes, da poesia, da literatura, da msica, para o mundo da razo, do clculo, da tcnica...67

    O grande paradigma determina a organizao de uma sociedade ao mesmo tempo em

    que esta o determina, porque

    toda sociedade o produto das intercomputaes e intercogitaes68 entre indivduos que a constituem, sociedade que retroage de maneira megacomputante sobre os indi-vduos fornecendo-lhes normas, padres, esquemas, que se inscrevem no imprinting cultural69 desses indivduos e guiam as suas computaes/cogitaes.70

    A instncia paradigmtica situa-se assim no nucleus comum e obscuro onde normas,

    padres e esquemas guiam as computaes e as cogitaes que as atualizam71. Tornando-a o

    n grdio onde esto unidos a organizao primordial do cognitivo e a organizao primordi-

    al do social. Ou, em outras palavras, o grande paradigma o n arqueolgico72 da organiza-

    o do cognitivo, do noolgico, do cultural, do social.73

    Tambm a organizao do conhecimento na cultura atual est sob a influncia do

    grande paradigma Ocidental e as conseqncias so igualmente fragmentadoras. Morin afirma

    que a separao entre filosofia e cincia resultou na ciso entre o esprito [metafsica] e o c-

    rebro [cincias naturais]74. A esta ciso se seguem naturalmente outras, cada qual com seus

    problemas. Ele identifica ainda trs dificuldades impostas pelo paradigma fragmentador:66 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 274.67 MORIN, Edgar. O mtodo 4. p. 280.68 A computao o tratamento de estmulos, de dados, de signos, de smbolos, de mensagens, que nos permite agir dentro do universo

    exterior, assim como de nosso universo interior, e conhec-los. MORIN, Edgar. A cabea bem feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 120. No animal verificam-se computaes intercelulares. Na atividade cognitiva do crebro animal, Morin reconhece haver uma megacomputao (ela envolve, analisa, sintetiza computaes de computaes). Por sua vez, a complexidade organizacional do aparelho neurocerebral do ser humano permite-lhe desenvolver e transformar as computaes em cogitaes ou pensamento, atravs da linguagem, do conceito e da lgica, o que exige um campo sociocultural. Cf. MORIN, Edgar. O Mtodo 3: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2002. p. 88.

    69 O imprinting cultural [familiar e social] inscreve-se cerebralmente desde a mais tenra infncia pela estabilizao seletiva das sinapses, inscries iniciais que marcaro irreversivelmente o esprito individual no seu modo de