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    Retirado de:http://obeco.planetaclix.pt/cpo_pt.htm

    Claus Peter Ortlieb

    Objetividade inconsciente Aspectos de uma crtica das cincias matemticas da natureza

    Dificilmente se encontrar outro subsistema da sociedade moderna que, tanto noconceito que tem de si mesmo quanto na percepo pblica, se mostre to resistente crtica quanto as "hard sciences", a "cincia autntica", no sentido daquela frase de

    Kant, segundo a qual "em cada teoria particular da natureza h tanta cincia autnticaquanto nela se encontre matemtica"(1). No que faltem crticas s cincias naturais,como as que vm propondo, sobretudo, desde os anos setenta, o feminismo e osmovimentos alternativos. Que a utilizao social das descobertas cientficas seja assuntomais que delicado, para muitos cientistas pouco menos que um lugar-comum; e deseus quadros provm as crticas mais rigorosas e mais competentes de taisdesenvolvimentos. Mas o que pode haver de criticvel no conhecimento cientfico emsi, no descobrimento de leis naturais e fatos irrefutveis? Assim, a reivindicao por uma cincia distinta, que prope a crtica feminista, de antemo nem sequer levada asrio, nem percebida como problema: melhor rebat-la replicando debochadamente se por acaso a partir de agora a lei da gravidade no seria mais vlida, ou se dois mais doisdeixaria de ser quatro; com o que toda discusso posterior se torna suprflua.

    A imagem empirista da cincia no-valorativa

    Tal atitude defensiva, imunizadora a toda crtica, se alimenta da idia das cinciasnaturais como uma ferramenta neutra, a "cincia no-valorativa". Deve-se observar, primeiramente, que esse ideal constitui, de uma perspectiva histrica, um recuo. Oscontemporneos de Galileu, como Francis Bacon, Thomas Hobbes ou Ren Descartes,

    tinham um conceito muito mais ambicioso do pensamento cientfico, entendido comocaminho boa vida, paz perptua e, em suma, soluo de todos os problemasacessveis ao conhecimento humano. No vou me ocupar aqui dessas concepes, jque, de qualquer maneira, na era da tecnologia nuclear e dos riscos ecolgicos globais provocados pela aplicao de descobertas cientficas, no resta mais ningum que asdefenda.

    A concepo moderna da cincia no-valorativa , diferentemente, mais difcil de ser atacada. Em sua variante mais ingnua, que podemos supor predominante entre o pblico no-especializado, o conhecimento cientfico se apresenta simplesmente comoum conjunto de proposies verdadeiras sobre a natureza, obtidas mediante observaes

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    exatas, e a descrio matemtica precisa destas. Esta imagem foi fomentada sobretudo pelo positivismo.

    Tendo-se em vista as inegveis rupturas que balizam a histria das cincias naturais, eque seriam claramente impossveis se se tratasse de um mtodo que se limitasse aconstatar fatos, os prprios cientistas, enquanto refletem sobre isto, vem a questo deforma mais diferenciada, supondo que o pensamento humano, em sua imperfeio,talvez nunca chegue a descobrir a verdade plena. O que a maioria deles compartilha,entretanto, com o pblico informado, a idia de que h uma viso da natureza que vlida universalmente, para todos os seres humanos da mesma forma, eindependentemente das formas de sociedade, e que o progresso cientfico consiste emaproximar o estado do conhecimento cada vez mais de tal viso. Essa concepo indissocivel da idia de um desenvolvimento linear, o progresso cientfico, cujasorigens se projetam na pr-histria humana, ou ainda mais longe, como faz, por

    exemplo, Popper(2).

    Um dos aspectos caractersticos das cincias da natureza que, historicamente, elassurgiram em uma nica cultura, a sociedade burguesa. Mesmo assim, a Ilustraoconseguiu proclamar a universalidade dessa forma de conhecimento que lhe prpria,como corresponde concepo que ela tem de si mesma como estgio ltimo e maiselevado da histria humana. Essa concepo objetivista do conhecimento cientfico no pode ser refutada de fora, com a mera indicao de seu contexto cultural e social.Consequentemente, analisarei a atividade cientfico-matemtica, em primeiro lugar, demodo imanente, partindo de Immanuel Kant. Seguindo neste ponto com Sohn-Rethel(3), Greiff (4)e Mller(5), creio que o grande filsofo da Ilustrao jdesenvolveu os instrumentos que permitem dissolver o pensamento ilustrado desdedentro, ainda que ele mesmo no tenha dado este segundo passo.

    O empirista David Hume (a quem Kant atribua o fato de o haver despertado do "sonodogmtico") j havia demonstrado que uma fundamentao empirista do conhecimentoobjetivo impossvel, pois nenhuma lei da natureza pode ser conclusivamente deduzidada experincia: "Pois toda interferncia a partir da experincia pressupe que o futuro se parecer com o passado e que foras iguais se associaro a propriedades sensveisiguais. Se se concebesse a suspeita de que o curso da natureza pudesse mudar e que aregra para o futuro no estivesse contida no passado, ento toda experincia seria intile no poderia embasar nenhuma inferncia ou concluso. Consequentemente,fundamento algum da experincia pode garantir tal semelhana entre o passado e ofuturo, j que essas fundamentaes se apoiam no pressuposto dessa semelhana"(6). Oempirista honrado deve ser ctico se no quer enganar-se: "Me parece que os nicosobjetos das cincias abstratas ou demonstrativas so a magnitude e o nmero, e que todatentativa de alargar essas formas de conhecimento perfeitas para alm desses limitesconduzem somente a iluso e engano"(7). O que no impede, entretanto, que o

    empirismo moderno faa algumas tentativas espordicas, insistindo em umafundamentao empirista de todo conhecimento cientfico da natureza. Contudo, a

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    forma de conhecimento historicamente mais recente, que se referia exclusivamente experincia imediata (se que alguma vez houve tal coisa), parece ter sido a teoriaaristotlica da natureza, com suas adaptaes medievais. Frente a estas, a cinciamoderna da natureza se constitui precisamente mediante a dissociao do conhecimentoemprico imediato, e nesta "revoluo do modo de pensar" (Kant) est o seu xito peculiar(8). Tratarei a seguir de ilustrar ou relembrar este fato atravs de algunsexemplos do incio da cincia moderna.

    Geocentrismo e heliocentrismo

    A ascenso da era burguesa comea com um modelo matemtico. Nicolau Coprnico(1473-1543), no livro De revolutionibus orbium coelestium, impresso pouco antes desua morte, rompe com a concepo ptolomaica ou geocntrica do mundo, que dominavadurante a Idade Mdia. Com algumas mudanas, a concepo copernicana do mundo

    pertence ao acervo seguro de nosso saber. Nenhuma pessoa ilustrada a rechaaria emfavor do sistema ptolomaico. Mas como podemos ter certeza? Os homens da IdadeMdia, afinal de contas, sabiam outra coisa, e pelo que se pode observar, a simplesviso fala seu favor. Uma resposta to banal quanto certa que tal saber nos foicomunicado na tenra idade pela escola e pelos livros.

    evidente que no pode haver nenhuma observao astronmica que coincida com umaou outra das concepes de mundo, j que, no que se refere observao, as duas sosimplesmente idnticas. Do ponto de vista da fsica moderna, trata-se simplesmente deuma mudana do sistema de referncia.

    Tampouco o telescpio, que Galileu empregou pela primeira vez na observao dosmovimentos celestes, pode trazer deciso alguma neste ponto. O que Galileu observoufoi o movimento das luas de Jpiter ao redor do planeta, mas isso no demonstra averacidade do sistema copernicano, ou pelo menos no a demonstra atravs daobservao, mas, em todo caso, sobre a base de um princpio universal segundo o qualos corpos celestes menores giram em torno dos maiores.

    Esse conceito de princpio universal, das "leis da natureza", e o conceito concomitante

    de simplicidade, se impuseram durante o sculo e meio que separam Galileu de Newton.De forma que o prprio Coprnico, no prlogo de sua obra de 1543, redigida como cartaao papa Paulo III, no insiste tanto no melhor ajuste aos dados da observao, mas, pelocontrrio, nas categorias de ordem e uniformidade.

    O ajuste aos dados da observao no podia ser relevante na deciso entre o sistemacopernicano e o ptolomaico, entre outras coisas porque tal ajuste, como sabido, eraimpossvel de ser conseguido sobre a base de movimentos circulares postulados por ambos os sistemas. Somente com Johan Kepler (1571-1630) as rbitas circulares sosubstitudas por elipses, e pela primeira vez um princpio unitrio consegue explicar uma grande variedade de observaes astronmicas. Kepler leva muito a srio o ajuste

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    entre a predio e a observao: segundo seu prprio testemunho, uma discrepncia desomente oito minutos o motivou a desprezar uma hiptese anterior e a reformar toda aastronomia.

    Ainda assim, o conceito central do sistema cientfico de Kepler o da harmonia, nosentido de uma "viso de mundo como cosmos ordenado e estruturado conforme leisgeomtricas"(9). Esse modo de pensar pode ser ilustrado com o seguinte trecho do Mysterium cosmographicum(1596), no qual se relacionam as rbitas planetrias com oscinco corpos platnicos: "A Terra a medida de todas as demais rbitas. Circunscreve aTerra um dodecaedro; a esfera que o contm Marte. Circunscreve a rbita de Marteum tetraedro; a esfera que o contm Jpiter. Circunscreve a rbita de Jpiter um cubo;a esfera que o contm Saturno. Agora, inserido na bita da Terra, h um icosaedro; aesfera inscrita neste Vnus. A rbita de Vnus encerra um octaedro; a esfera neleinscrita Mercrio. Aqui est a causa do nmero de planetas". Do ponto de vista atual,

    tendo em vista os planetas que foram descobertos desde ento, o argumento erra; masevidencia o peso que tinha, no sistema de Kepler, a especulao autnoma, orientada por idias puramente matemticas, em comparao com os dados empricos.

    A fundamentao do mtodo experimental

    Galileu Galilei (1564-1642), contemporneo de Kepler, passa por mais sbrio do queeste, de mtodos menos especulativos, ainda que os seus tampouco partissem de modoalgum da experincia imediata. Mulser ironiza a concepo empirista, para a qual aobservao deve ser o ponto de partida de toda cincia natural, parodiando como seguea conhecida lenda sobre Galileu e a torre inclinada: "Um dia o jovem Galileu subiu natorre inclinada de sua cidade natal, Pisa, levando consigo diversos objetos, que comvisvel prazer deixou cair l de cima, um aps o outro: uma bola de chumbo, um velhotelescpio, seus culos, uma colher, um balo de papel, algumas plumas, um pouco de plen e um pssaro. Em seguida desceu correndo, e constatou que a bola, a colher, osculos e o telescpio jaziam no cho, enquanto o balo estava caindo diante de seusolhos; algumas plumas seguiam danando no ar, o plen havia sido levado pelo vento e j no se avistava, e o pssaro, desejoso de altura e distncia, desapareceu pelos ares.Galileu resumiu os resultados do experimento proclamando: Todos os corpos caem mesma velocidade"(10).

    H tambm, diga-se de passagem, uma verso herica desta lenda, uma espcie de mitodo empirismo, segundo a qual Galileu desafiou a cincia aristotlica demonstrando asua falsidade, ante os professores e estudantes reunidos na universidade de Pisa, fazendouso de experimentos levados a cabo do alto do campanrio da cidade. Esta histria,escrita pela primeira vez cerca de sessenta anos aps o suposto acontecimento e logoretomada esporadicamente pelos historiadores da cincia, adornando-a com ulterioresdetalhes, contradiz todos os costumes universitrios daquele tempo; o prprio Galileu,

    que dominava to bem a arte de exibir os prprios mritos, jamais a mencionou; almdisso, os experimentos, tal como so descritos, teriam fracassado(11).

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    Ora, o prprio Galileu descreveu em sua volumosa obra, com muita exatido, osmtodos que empregava e que ele mesmo havia desenvolvido; e no surpreende quesejam muito diferentes do que afirma a lenda. O procedimento tpico ilustrado, naterceira jornada dos Discorsi de 1683, mediante o exemplo da queda livre. No comeacom uma observao, mas com uma definio matemtica: "Chamamos movimentoigualmente, ou seja, uniformemente acelerado, aquele que, partindo do repouso,adquire, em tempos iguais, iguais incrementos de velocidade"(12). Segue uma proposio matemtica: "Se um objeto cai, partindo do repouso, com um movimentouniformemente acelerado, as distncias por ele percorridas, em qualquer tempo que seja,esto entre si... como os quadrados dos tempos"(13); proposio que primeiro sedemonstra matematicamente. Somente aps comea a demonstrao emprica, mas noem forma de observaes que possam realizar-se a olho nu, mas em forma de instrues para criar certas condies experimentais que se aproximem o mximo possvel do idealdo movimento uniformemente acelerado(14).

    Trata-se, em suma, de criar deliberadamente uma situao que se aproxime o mximo possvel das condies ideais que supe a construo matemtica. O experimento,obviamente, no pode nunca estar na origem de semelhante investigao; s pode ser oseu final, j que as condies experimentais ho de criar-se em funo de umafinalidade, e isso s pode ser feito conhecendo-se o fim, e, portanto, sob a direo dateoria.

    Nunca demais insistir na diferena entre observao e experimento. Ignorar estadiferena induziu muitos a cometer erros, como, por exemplo, Emil Strauss, que, naintroduo sua traduo alem do Dilogo de Galileu, de 1890, apresenta como provada superioridade da cincia moderna sobre outras maneiras de pensar, como a medieval,"a falsa, e inclusive nscia, afirmao aristotlica... de que a velocidade de queda de umcorpo proporcional ao seu peso e inversamente proporcional densidade do meio". Afrase oferece um belo exemplo do tpico pensamento ilustrado, que cr que sua prpriaforma de conhecimento a nica possvel, e que os membros de outras culturas, quechegam a resultados distintos, devem ser simplesmente gente estpida ou obcecada. Ocaso que Aristteles no estava to equivocado, enquanto se tratar de observaescotidianas. Dito de outra maneira: Galileu, ao proceder tal como refere a lenda da torreinclinada, haveria chegado a um resultado parecido. O resultado inteiramente distinto deGalileu, formulado como lei da queda dos corpos, deve-se a um mtodo muito distinto,que consiste precisamente, entre outras coisas, em fazer abstrao da "densidade domeio". Sua comprovao experimental pressupe que se possa criar condiesexperimentais que permitam tratar a densidade como fator negligencivel.

    Como se sabe, os experimentos podem fracassar. Em uma carta a Carcaville de 1637,Galileu sublinha que isso no tira o valor das reflexes tericas: "Se a experinciademonstra que as propriedades que deduzimos se confirmam na queda livre dos corpos

    naturais, poderemos afirmar, sem risco de nos equivocarmos, que o movimento dequeda concreto idntico quele que definimos e pressupomos; caso contrrio, nossas

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    demonstraes no perdem, entretanto, nada de sua fora e consistncia, dado quedeveriam ser vlidas unicamente sob o pressuposto que estabelecemos"(15). Naterminologia moderna do sculo vinte, tendo a matemtica se convertido em disciplinaautnoma, isso significa que a correo das demonstraes matemticas no depende denenhuma comprovao emprica: princpio que hoje em dia se considera evidente;entretanto, no ocorria a ningum aproximar-se do conhecimento da natureza destaforma.

    De fato, podem ter sentido algumas representaes abstratas, inclusive de movimentosinteiramente irreais, que no se observam em parte alguma; justamente disso que vivea fsica (e com ela, todas as cincias matemticas da natureza), pelo menos desde Isaac Newton (1642-1727).

    Em seus Principia de 1687, Newton conseguiu uma fundamentao matemtico-

    dedutiva e unificadora dos movimentos celestes e da fsica terrestre. Para isto, teve queextrair do conceito galileano de movimento (que no conceito emprico, masmatemtico) a conseqncia extrema, a de "explicar o real pelo impossvel"(16).Ilustraremos isto examinando alguns de seus axiomas: "Todos os corpos permanecemem seu estado de repouso ou de movimento uniforme retilneo, a menos que se vejamforados a sair deste estado por foras nele aplicadas"(17). Trata-se, por assim dizer, deuma lei natural no subjuntivo: jamais se observou semelhante movimento uniforme emlinha reta, e Newton sabe que tal movimento no pode existir, j que conforme a sua prpria lei da gravitao, no h espao em que no atue nenhuma fora. O que no oimpede, entretanto, de colocar no princpio de seus Principia uma lei que no suscetvel a nenhuma comprovao emprica imediata: "A mudana no movimento proporcional fora motriz aplicada, e se d na direo da linha reta na qual se aplicaesta fora"(18). Mais uma vez, toda experincia emprica imediata milita contra Newtone, mais uma vez, a favor de Aristteles, que afirmava que uma fora necessria paramanter um movimento, enquanto a mudana (diminuio de velocidade) se produz por si s.

    Tambm o conceito de fora, central para a teoria de Newton, de ndole no emprica:as foras no se deixam observar nem medir diretamente; o que se pode medir sosomente os efeitos que lhes atribui a teoria.

    Como gente moderna que somos, estamos habituados a ver o mundo luz dasconcepes e princpios fundamentais da cincia moderna, a tal ponto que cremos t-losextrado da experincia e da observao. "No nos damos conta da audcia da asserode Galileu de que o livro da natureza est escrito em caracteres geomtricos, comotampouco somos conscientes do carter paradoxal de sua deciso de tratar a mecnicacomo um ramo da matemtica, ou seja, de substituir o mundo real da experinciacotidiana por um mundo geomtrico hipostasiado"(19); da audcia de deduzir

    proposies sobre a natureza contra toda plausibilidade emprica, de conceitosmatemticos tais como tempo, espao e movimento. A concepo de natureza que disto

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    deriva, e que nos parece to evidente, na Antigidade grega ou na Idade Mdia teriasido julgada como errnea e mesmo absurda(20).

    A revoluo do modo de pensar

    Sobretudo a descrio precisa de seu procedimento que Galileu nos oferece torna possvel determinar sistematicamente o mtodo que se formou, durante o perodo detempo que separa Coprnico de Newton, e que segue sendo fundamental para ascincias matemticas da natureza. Um exame crtico revela que tal mtodo se fundasobre uma srie de pressuposies fundamentais que se apoiam mutuamente, mas que por sua vez no so suscetveis de nenhuma fundamentao emprica, mas, ao contrrio, precedem a todo conhecimento cientfico.

    As cincias matemticas da natureza se fundam sobre a suposio de que existem leis da

    natureza universalmente vlidas, ou seja, independentes de lugar e de tempo. Estasuposio no pode ser demonstrada por simples observao; a realidade mais parecedesordenada e irregular. A cincia aristotlica sustentava que as esferas celestesobedeciam a leis inteiramente distintas das do mundo terrestre. Logo, falava de "leis"em nosso sentido, pois a idia de leis universais da natureza pressupe um conceitoobjetivo de um tempo linear e divisvel infinitamente, assim como um conceito deespao homogneo (e no, por exemplo, dividido em esferas).

    A suposio seguinte afirma que as leis da natureza podem ser descritas em termosmatemticos, suposio subjacente ao conceito de medio, central para as cincias danatureza; pois do contrrio a idia de buscar as leis da natureza atravs da mediocareceria de sentido.

    A realidade, desordenada e multiforme, no pode ser medida; portanto, procede-se deoutro modo, como evidenciam, por exemplo, todos os escritos de Galileu e Newton. No princpio est um experimento mental, ou seja, a formulao de condies ideais (o queaconteceria se...), das quais se pode deduzir certas concluses, mediante procedimentosmatemticos. Tanto as condies ideais quanto as concluses matemticas entram logona comprovao experimental, aquelas como condies-marco que devem ser

    observadas com exatido, estas como indicao do que se deve medir.Somente sobre a base de tais consideraes o experimento pode ter lugar. Um bomexperimentador deve ser capaz de inventar dispositivos experimentais que seaproximem o mais que possam das condies ideais postuladas, e ao mesmo tempo possibilitem as medies desejadas, sem que o processo de medio (a intervenofsica do experimentador) atrapalhe o desenrolar ideal; o que constitui, como se sabe,toda uma cincia parte, que, sobretudo na fsica do sculo vinte, requer um imensoaparato tcnico. Considera-se como critrio de xito de um experimento arepetibilidade: cada vez que se criem iguais condies, deve produzir-se o mesmoefeito, e as medies devem mostrar resultados idnticos.

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    No se considera um contra-argumento o fato de que os experimentos reais, ao seremrepetidos, nunca conduzam a resultados exatamente idnticos, nem mesmo dentro dolimite de preciso que se atribui s medies; pois o mtodo experimental se funda nasuposio de que os fenmenos a observar se compe, por um lado, de leis da natureza,formulveis em termos matemticos, e, por outro, das chamadas interferncias, que so, por assim dizer, as leis da natureza que ainda no controlamos. Um experimento umaao, uma interveno ativa na natureza, que visa criar artificialmente situaes nasquais as interferncias sejam eliminadas(21).

    Os acontecimentos naturais mais parecem desordenados; vistos atravs da tica domtodo cientfico-matemtico, se apresentam como efeito de um conjunto de leis danatureza. Para conhecer uma nica destas leis, preciso eliminar as outras, ou seja,assegurar que seus efeitos se mantenham constantes. Neste procedimento analtico, nadecomposio dos acontecimentos em fatores isolados, reside o vnculo entre as

    cincias da natureza e a tcnica: medida que se consiga isolar os fatores individuais,resulta possvel recomp-los infinitamente e sintetiz-los em sistemas tcnicos.

    Immanuel Kant, que dedicou dez anos de sua vida atividade cientfica, resume omtodo cientfico-matemtico no prlogo segunda edio deCrtica da razo pura (1787) como segue: "A razo deve abordar a natureza levando em uma mo os princpios segundo os quais s podem ser considerados como leis os fenmenosconcordantes, e na outra, o experimento que ela tenha projetado, luz de tais princpios.Ainda que deva faz-lo para ser instruda pela natureza, no o far na qualidade dediscpulo que escuta tudo o que o mestre quer, mas como juiz designado que obriga astestemunhas a responder as perguntas que ele lhes formula. De modo que mesmo afsica deve to proveitosa revoluo de seu modo de pensar a uma idia, a de buscar (no fingir) na natureza o que a mesma razo pe nela, o que deve aprender dela, sobreo que no saberia nada por si s. Unicamente desta forma a cincia natural alcanou ocaminho seguro da cincia, depois de tantos sculos no sendo mais do que um andar scegas"(22).

    A passagem evidencia, por um lado, o papel importante que Kant atribui aos "princpiosda razo" que no podem ser deduzidos do conhecimento emprico (oa priori kantiano). Assim se resolve o problema pelo qual Hume se fez ctico e que ainda preocupa os empiristas modernos: o problema de saber como possvel umconhecimento objetivo.

    Por outro lado, na linguagem de Kant transparece o pensamento da Ilustrao, queconsidera a "razo" uma propriedade ou capacidade universal do gnero humano e,entretanto, a reclama exclusivamente para si mesma, negando-a s culturas alheias ouanteriores. Prescindindo deste preconceito, cabe constatar que o mtodo cientfico-matemtico teve que impor-se, efetivamente, frente ao pensamento medieval, de modo

    que a frmula da "revoluo do modo de pensar" se mostra acertada; s que essarevoluo abriu caminho a uma razo que especfica da poca burguesa, frente razo

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    da Idade Mdia, que era muito distinta: mas no por isso foi absolutamente semrazo(23).

    O conceito de "conhecimento objetivo" adquire assim um significado distinto dohabitual em nosso uso lingstico, que o de um conhecimento ahistrico, independentedas formas de sociedade e vlido em igual medida para todos os seres humanos. Seriaimpossvel convencer um membro de uma cultura distinta ou anterior sobre a verdadedo conhecimento cientfico da natureza, se ele no reconhecesse as suposiesfundamentais do mtodo matemtico-cientfico, ou seja, os princpios da razo burguesa. A nica parte da cincia que se poderia demonstrar-lhe com plausibilidade oexperimento: quando realizo o ato A, definido at os mnimos detalhes (o que dever parecer-lhe entre ritualstico e grotesco), se produz regularmente o efeito B. Mas dissono resulta nada enquanto meu interlocutor no compartilhar minha suposiofundamental de que no experimento se expressam leis universais da natureza, crendo, ao

    contrrio, que os acontecimentos naturais so arbitrrios e sem regra.

    Os xitos palpveis do mtodo matemtico-cientfico so inegveis. So visveis, por exemplo, em forma de sistemas tcnicos, ou seja, de sistemas nos quais se criaartificialmente condies anlogas s que caracterizam os experimentos, eliminandodentro do possvel as interferncias. Mas do xito de certas aes no resultaforosamente a "verdade" das crenas subjacentes (e menos ainda uma verdade queesteja acima de qualquer forma de sociedade). xito tambm tem, por exemplo, a artechinesa da acupuntura, como comprovaram muitas pessoas a quem a medicina ocidentalno sabia ajudar. Mas inferir disso que devem ser verdadeiras as crenas em que tal artese apoia, entraria, ao menos, em contradio com os conhecimentos cientficos sobre ocorpo humano.

    Menos ainda pode servir de argumento a favor da superioridade desta forma de pensar frente a outras, como s vezes se pretende, o fato de que o pensamento cientfico hajaconseguido impor-se em escala mundial, junto sociedade da mercadoria. Bem seconhecem, afinal de contas, os mtodos aos quais se devia a ascenso do sistemamercantil originrio da Europa: o extermnio e a colonizao de outros povos(24), assimcomo o aproveitamento imposto pela prpria lgica da mercadoria e, portanto,impiedoso de vantagens comerciais e adiantamentos relativos da modernizao.Diante destes fatos, resulta pouco convincente o argumento de que o modo de pensar europeu conseguiu "converter" os membros de outras culturas porque lhes ofereciaconhecimentos mais profundos. Assim como o pensamento cientfico foi reprimido, noincio, pelo poder da Igreja, que forou a retratao de Galileu, acabou por impor-segraas ao poder da sociedade da mercadoria.

    O conhecimento objetivo e o sujeito burgus

    Sendo to bvio o vnculo externo entre a sociedade burguesa e a cincia matemtica danatureza(25), cabe perguntar qual o vnculo interno, ou causal. Um enfoque puramente

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    "materialista", que pretende reduzir todos os fenmenos sociais evoluo econmica(com o que se pressupe desde sempre a economia como esfera separada) fracassanecessariamente ante esta pergunta, ainda que seja somente porque as cincias naturaisno comeam a desempenhar um papel como foras produtivas at a poca docapitalismo industrial, trs sculos depois de sua apario. E ainda que tenham existido j no incio da modernidade problemas economicamente relevantes, a cuja soluo acincia pudera aportar algo, isto no explicaria a mudana radical de mtodo natransio da cincia medieval para a moderna.

    Alfred Sohn-Rethel desenvolveu, com sua tese de uma "identidade secreta da forma-mercadoria e forma de pensamento"(26), um ambicioso programa que relaciona osurgimento do pensamento abstrato ocidental com a apario das primeiras moedas ecom o intercmbio mercantil. A isto se deve objetar, primeiro, que a sociedadecapitalista desenvolvida, jamais existiu como formao social historicamente

    independente (como parece supor Sohn-Rethel), e, segundo, que os antecedentes docapital industrial, at o capital mercantil e usurrio, aconteceram tambm em outrassociedades (na China ou na ndia), sem que por isso o pensamento tomasse o mesmorumo que no Ocidente e, ademais, sem que surgisse uma dinmica capitalistaindependente(27).

    No quero continuar aqui esta discusso, pois o que me interessa no o pensamentoabstrato ocidental em geral, mas unicamente a forma particular que assume noconhecimento objetivo das cincias matemticas da natureza. Alm disso, no aspiro auma explicao causal da evoluo histrica, para a qual me faltam os meios; melimitarei s relaes estruturais entre o mtodo cientfico-matemtico, descrito modade "tipo ideal", e a lgica da sociedade da mercadoria, em sua forma desenvolvida eatual. Simplificado deste modo, o programa de Sohn-Rethel me parece vivel, ainda queno que se segue s possa oferecer algumas observaes.

    O elo que une a sociedade da mercadoria com a forma objetiva de conhecimento osujeito burgus, isto , a constituio especfica da conscincia que, por um lado, serequer para subsistir na sociedade da mercadoria e do dinheiro, e que, por outro, osujeito deve ter para ser capaz de um conhecimento objetivo.

    A forma-mercadoria, ou seja, a determinao social das coisas como mercadorias(28),na moderna sociedade burguesa, se converteu em forma universal devido ao fato de queo capitalismo fez da fora de trabalho uma mercadoria da qual seus portadores dispelivremente: isto , livres de dependncias pessoais, livres de toda coao, menos da queos obriga a ganhar dinheiro. Mas esta coao impessoal universal, de modo que odinheiro se converteu na nica finalidade de todo trabalho, e a venda da prpria fora detrabalho na forma predominante de reproduo. Na sociedade mercantil, a satisfao dequalquer necessidade concreta depende do dinheiro. A necessidade de dispor do

    mximo possvel de dinheiro se converte assim no primeiro "interesse prprio", igual para todos os membros da sociedade, ainda que o tenham que perseguir competindo uns

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    contra os outros, como mnadas econmicas. Os sujeitos do intercmbio mercantil,livres e iguais em tal sentido abstrato, imaginam a si mesmos como indivduosautnomos, que ganham o sustento honradamente com seu trabalho.

    A aparente autonomia do indivduo corresponde aparente neutralidade do processoeconmico, que se apresenta s mnadas econmicas como um processo regido por leis,descritvel unicamente com os conceitos da teoria dos sistemas, que se tomouemprestada das cincias da natureza. Nos dois sentidos, o sujeito burgus inconscientede sua prpria condio social: sem mais obrigaes do que a de assegurar-se asubsistncia (com a qual, entretanto, no pode cumprir enquanto indivduo), alimentacom seu trabalho abstrato a megamquina da valorizao do capital, de cujofuncionamento, por outra parte, no assume nenhuma responsabilidade, j que oexperimenta como regido por leis naturais inacessveis ao seu prprio atuar(29).

    O nexo entre a possibilidade de um conhecimento objetivo e a conscincia da prpriaidentidade foi destacado por Hume e Kant, com as diferenas que lhe so peculiares.Para o empirista e ctico Hume, iluso metafsica no s a representao de um objetoidntico, mas tambm a conscincia da identidade pessoal, visto que no pode ser derivada da experincia. A argumentao de Kant complementar: j que oconhecimento objetivo um fato e, portanto, possvel, enquanto suas condies de possibilidade no podem ser deduzidas da experincia, como demonstrou Hume, estascondies devem estar dadasa priori, previamente a toda experincia. O conhecimentoobjetivo pressupe um sujeito que seja capaz de constituir os objetos da experinciacomo objetos idnticos, o que pressupe por sua vez a conscincia de um Eu idntico asi mesmo(30).

    A conscincia da identidade no pode ser deduzida da experincia; prvia a todoconhecimento emprico. Mas tampouco algo inato ao ser humano enquanto tal, masque se constituiu socialmente. Para precisar o que a constituio de um sujeito capazde conhecimento objetivo, convm examinar as exigncias que impe a aplicao domtodo cientfico-matemtico. Analisando os preceitos correntes, formulados no modoimperativo, que os manuais de fsica experimental oferecem para a realizao deexperimentos (eliminao do "fator subjetivo", conservando ao mesmo tempo acondio de observador), Greiff mostrou que eles se referem a um sujeito cujainteligncia no depende de seus sentimentos: somente eles devem ser eliminados. Ainterveno na natureza que supe o experimento , antes de tudo, uma interveno doexperimentador sobre si mesmo: a eliminao de sua corporeidade e de seussentimentos. Assim se produz a iluso de que o sujeito no tivesse nada a ver com o processo do conhecimento: "Pois aparentemente o sujeito, uma vez eliminado, no voltaa intervir no ato cognitivo; parece ser algo desagradvel, ou pelo menos suprfluo, paraa objetividade do conhecimento. O fato de que o observador, no ato cognitivo, tenha deconceber a si mesmo como um fator de interferncia e distoro que deve ser eliminado,

    produz a convico de que a verdade reside na natureza e no no conhecimento danatureza; a convico de que a regularidade obedece a causas naturais, e o que no a

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    segue, a causas humanas. Produz a iluso de leis que so propriedade da prprianatureza e que se manifestariam em todo o seu esplendor se no houvesse sujeito algum.Mas trata-se de uma mera iluso; pois tambm a eliminao do sujeito constitui um atosubjetivo, uma operao que o prprio sujeito deve realizar... (A conformidade a leis) algo que o prprio cientista produz ao obedecer regras determinadas e explcitas. Se seomitissem os atos prescritos, no se chegaria a conhecer a natureza como submetida aleis; ou seja, em lugar de conhecimentos objetivos e conformes a leis s haveria percepes que variam de um observador a outro"(31).

    Toda medio uma relao recproca, mediada pelo mtodo matemtico-cientfico,entre o sujeito que conhece e a natureza da qual faz seu objeto; portanto, no podereferir-se nunca "natureza em si", mas unicamente a este forma especfica deinterao(32). A relao sujeito-objeto produzida pelo experimento e expressa em formade lei no pode reduzir-se simplesmente a um de seus dois plos: tampouco ao sujeito,

    como acaso possa sugerir um culturalismo estrito. As leis da natureza no so nem produtos do discurso que se possam fabricar infinitamente, prescindindo do ladoobjetivo, nem tampouco meras propriedades da natureza, que nada tivessem a ver comos sujeitos cognoscentes.

    A iluso que faz aparecer a regularidade produzida pelo experimento como se fosse uma propriedade da natureza a mesma iluso pela qual o cego processo social da sociedademercantil se apresenta aos homens como um processo regido por leis, exterior a eles prprios, quando de fato so eles que o constituem atravs de sua ao como sujeitos burgueses.

    O sujeito enquanto "ator consciente que no consciente de sua prpria forma"(33)concebe a si mesmo como separado da natureza e dos demais sujeitos, aos quaisexperimenta como mero "mundo externo"; com o que se pressupe inconscientemente omarco social total, especfico da sociedade burguesa, o nico que produz semelhanteforma de conscincia(34). O nexo sistmico da forma-mercadoria, objetivado dessemodo, constitui tambm a igualdade dos sujeitos que a forma objetiva de conhecimento pressupe: a igualdade enquanto mnadas mercantis e monetrias, cidados adultos eresponsveis, dotados de direitos iguais e submetidos a regras e leis idnticas.

    Mas essa igualdade deve ser produzida previamente, mediante uma ao do sujeitosobre si mesmo: ao que adestra o corpo e o esprito, objetiviza as prpriascapacidades e estados anmicos, separa as peculiaridades individuais. Tal , ademais, o plano de estudos, no de todo secreto, do conceito humboldtiano da "formao pelacincia", adotado pelas universidade alems, com aproveitamento prtico da "identidadesecreta de forma-mercadoria e forma de pensamento", muito antes que Sohn-Rethel adesse formulao terica. Inclusive Schopenhauer, que odiava a matemtica, teve quereconhecer-lhe um saudvel efeito de autodisciplinamento.

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    Ora, pouco h a objetar autodisciplina e ao pensamento ordenado em si mesmos. Adissoluo de todo pensamento no "sentir" no rompe a forma-mercadoria (pois elaque produz a separao entre "corpo" e "esprito", entre "sentir" e "pensar"); nem sequer revolta contra o processo objetivizado, mas sim entrega a ele, mera compensaocarnavalesca do tdio cotidiano. O que deve ser criticado a inconscincia com que seinculca a disciplina do pensamento objetivo, observvel em qualquer aula dematemtica na qual se serve aos estudantes iniciantes a matemtica em sua forma atual,sem dizer uma palavra sobre sua gnese histrica ou sobre sua vinculao social. A esto adestramento, a produo da conscincia inconsciente de sua forma: em aprender regras formais e clculos sem o menor contexto de sentido, at que desenvolvam namente sua prpria lgica e no se coloque mais a pergunta pelo sentido.

    A ciso das peculiaridades individuais a que deve submeter-se o sujeito cognoscente afim de no malograr o experimento a mesma ciso a que se submete, na abstrao

    matemtica do experimento mental, os objetos de sua contemplao: fazendo abstraode suas qualidades, e mesmo de toda coisa concreta. Lembre-se a definio galileana domovimento uniformemente acelerado ou o clebre "ponto de massa" da mecnicanewtoniana.

    Critrio essencial da deduo matemtica que a realidade concreta se mantenha alheiaa ela. A histria da matemtica, desde Galileu, se caracteriza por um isolamentocrescente frente a essa parte cindida do pensamento humano, que uma vez ou outraressurge furtivamente, ameaando "anuviar" o pensamento matemtico. Se at o sculoXIX o conceito que a matemtica tinha de si mesma permanecia marcado pelo seu papelde linguagem com a qual est escrito o livro da natureza, nas palavras de Galileu,mantendo assim certo vnculo com o concreto, em 1900 a matemtica se constituiu, como programa formalista de David Hilbert, em uma cincia de direito prprio, que consistena aplicao de algumas regras fixas para a transformao de cadeias de signos, s quais j no se atribua nenhuma significao de contedo. No ser casual que tal evoluose produza ao mesmo tempo em que a forma-mercadoria acaba por impor-seuniversalmente como princpio de socializao, e as relaes de dominao edependncia pessoais, herdadas do feudalismo, so suplantadas em grande parte pelasregras formais que regem a todos por igual, e j no servem a nenhuma finalidadeindividual.

    No sculo vinte, a matemtica como ncleo abstrato das cincias (matemticas) danatureza se erige em "disciplina rgia" (Hilbert) da qual nenhuma outra cincia desejaria prescindir. Dessa evoluo faz parte tambm o fim dos modelos da fsica clssica,certamente abstratos, mas extrados da experincia, que na fsica de partculaselementares, por exemplo, so substitudos por modelos puramente matemticos,desvinculados de toda analogia mecnica; de modo que agora se pode ler nas revistas dedivulgao que o espao "na verdade" curvo e tem onze dimenses: o que, entretanto,

    constitui-se em uma vinculao que , a rigor, ilcita.

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    Questo mais profunda a do papel e forma que as cincias naturais, como atividade ouinstituio, devem e podem ter em uma sociedade ps-capitalista. medida que ascincias naturais ampliam as possibilidades de ao humanas, constituem umaferramenta til, qual no se deveria renunciar. Mas a "cincia natural como religio denosso tempo" (Pietschmann), que eleva a propriedade da prpria natureza a regularidade produzida pela forma de conhecimento objetiva e erige em cosmoviso a naturezaregida por leis, determinando o que vemos e o que deixamos de ver, esta cincia nosobreviver a nossa poca moderna. A imagem da "natureza" sempre foi uma imagemsocialmente constituda; e no se v por qu uma sociedade liberada de toda formauniversal-abstrata e inconsciente necessitaria ainda de uma imagem unitria da natureza,obrigatria para todos por igual e em todo momento(35).

    Uma determinao positiva de um modo de viver, pensar e conhecer para alm daforma-mercadoria no coisa que se possa pedir a um cientista e sujeito burgus como o autor deste texto. Se se abrisse pelo menos um debate sobre isto, j seria muito. Pois,afinal, por que a "revoluo do modo de pensar" constatada por Kant, que fundou acincia moderna, haveria de ser a ltima revoluo desta ndole?

    Notas:

    (1) Kant, Fundamentos metafsicos de la ciencia de la naturaleza(1786), Prlogo.

    (2) Karl R. Popper,Conocimiento objetivo. Un enfoque evolucionista, Tecnos, Madrid,1988, pp. 73s. [ Edio em portugus:Conhecimento objetivo, trad. de Milton Amado,Belo Horizonte, Itatiaia, 1975 (N. do T.) ]

    (3) Alfred Sohn-Rethel,Geistige und krperliche Arbeit , Frankfurt, 1970 (trad. cast.:Trabajo manual y trabajo intelectual , Andes, Bogot, 1980); [ Disponvel em portugusna internet: Trabalho espiritual e corporal , trad. de Cesare Giuseppe Galvan,http://planeta.clix.pt/adorno/sohn-rethel.htm(acessado em 27/10/2003) (N. do T.) ]) Das Geld, die bare Mnze des Apriori, Berln, 1990.

    (4) Bodo von Greiff,Gesellschaftsform und Erkenntnisform. Zum Zusammenhang vonwissenschaftlicher Erfahrung und gesellschaftlicher Entwicklung , Frankfurt, 1976.

    (5) Rudolf-Wolfgang Mller,Geld und Geist. Zur Entstehungsgeschichte von Identittsbewusstsein und Rationalitt seit der Antike, Frankfurt, 1977.

    (6) David Hume, An Enquiry Concerning Human Understanding , 1748. [ Edio em portugus: in David Hume (Coleo Os pensadores), trad. de Anoar Aiex, NovaCultural, So Paulo, 2000 (N. do T.) ]

    (7) Hume, ibid.

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    (8) Consequentemente, no se advoga aqui o "anarquismo gnoseolgico" do "anythinggoes" de Feyrabend (veja-se Paul K. Feyerabend,Tratado contra el mtodo. Esquemade una teora anarquista del conocimiento, Tecnos, Barcelona, 1986 [ Edio em portugus:Contra o mtodo, trad. de Octanny S. da Mota e Leonidas Hegenberg,Fransico Alves, Rio de Janeiro, 1977 (N. do T.)] ). Feyrabend, ele prprio pertencendo tradio empirista, demonstra que a cincia moderna no se ajusta aos critrios doempirismo; mas disso no segue que os mtodos devam ser escolhidos arbitrariamente,mas que os critrios em questo so errneos.

    (9) Ernst Cassirer, Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit , vol. 1, 1910, p. 330. (H traduo em espanhol: El problema del conocimiento en la filosofa y en la ciencia modernas, Fondo de Cultura Econmica,Mxico, 1957 e numerosas reimpresses).

    (10) Peter Mulser,"ber Voraussetzungen einer quantitativen Naturbeschreibung", enValentin Braitenberg/Inga Hosp (eds.), Die atur ist unser Modell von ihr , Reinbek,1996, p. 157.

    (11) Ver Alexandre Koyr, Estudios de historia del pensamiento cientfico, Siglo XXI,Madrid, 1990, pp. 196-205. [ Edio em portugus: Estudos de histria do pensamentocientfico, trad. e rev. de Mrcio Ramalho, Forense Universitria, Rio de Janeiro, 1991(N. do T.) ]

    (12) Galileo Galilei, Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze...(1638), traduo espanhola: Consideraciones y demostraciones matemticassobre dos nuevas ciencias, trad. de J. Sdaba Garay, Editora Nacional, Madrid, 1981, p.288.

    (13) Galilei, op. cit., Jornada tercera, Teorema II, Proposicin II; trad. cit., p. 294.

    (14) A realizao efetiva de experimentos tropeava nos tempos de Galileu em enormesdificuldades, j que as condies tcnicas eram miserveis, em comparao, por exemplo, com as que hoje em dia oferece uma aula de fsica de qualquer escola de

    segundo grau. Os experimentos levados a cabo por Galileu para determinar a aceleraoconstante da queda livre carecem de todo valor; o prprio Galileu evita, portanto, atonde pode, indicar valores numricos concretos, e quando o faz erra de cabo a rabo:seus valores equivalem mais ou menos metade dos hoje reconhecidos. Este fatodemonstra mais uma vez que a substituio da fsica qualitativa de Aristteles pelafsica quantitativa de Galileu, que trabalha com preciso e rigor matemticos, no foidevida experinica (ver Koyr, op. Cit., pp. 274-305). Assim, se entende por quGalileu se servia s vezes do truque de apresentar experimentos meramente imaginrioscomo se os houvesse realizado efetivamente (Koyr, ib., p. 202).

    (15) Cit. seg. Cassirer, op. cit., p. 386.

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    (16) Koyr, op. cit., p. 183.

    (17) Isaac Newton, Principios matemticos de la filosofa natural , trad. cast. de A.Escohotado, Altaya, Barcelona, 1997, p. 41 [ Edio em portugus: Principia, trad. deT. Ricci, L. G. Brunet, S. T. Gehring e M. H. C. Clia, Nova Estella/EDUSP, So Paulo,1990 (N. do T.) ].

    (18) Newton, ib.

    (19) Koyr, op. cit., p. 183.

    (20) Ver Koyr, ib., pp. 180-195.

    (21) A onipresena das interferncias, afirmada pelas prprias cincias da natureza,torna mais do que questionvel a teoria do empirismo moderno segundo a qual setrataria do "falseamento das hipteses cientficas mediante experimentos" (Popper). Alei da gravidade, por exemplo, no pode ser falseada. Um experimento cujas mediesentrassem em contradio com tal lei ou no seria levado a srio, ou incitaria a busca deinterferncias desconhecidas.

    (22) Kant,Crtica de la razn pura, Prlogo a la segunda edicin (1787), B XIIIs., trad.cast. (ligeramente modificada) de P. Ribas, Alfaguara, Madrid, 1997, p. 18. [ Edio em portugus: in Kant (ColeoOs pensadores), trad. de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger, Nova Cultural, So Paulo, 2000 (N. do T.) ]

    (23) Tudo depende dos critrios que se empregue: assim, por exemplo, a "tenebrosa"Idade Mdia no conhecia excessos de violncia como os da poca burguesa; os quecostumam ser atribudos a ela (pogroms, perseguio de bruxas) tiveram lugar no incioda Idade Moderna. Karl-Georg Zinn, Kanonen und Pest. ber die Ursprnge der euzeit im 14. und 15. Jahrhundert , Opladen, 1989, demonstra que a alimentao dagrande maioria da populao foi piorando constantemente entre 1450 e 1850, e quesomente desde ento comeou a melhorar novamente, ainda que somente nos pasesindustrializados, graas produo industrial de alimentos, e com as conhecidas

    deficincias que implica. Se adota-se como critrio a distncia entre a realidade social eas possibilidades que abre o estado correspondente das foras produtivas, a sociedademoderna resulta ser a mais irracional de todas que j existiram.

    (24) Inclusive a superioridade da tcnica armamentista europia do incio da IdadeModerna no se devia ao desenvolvimento tcnico, mas ao impulso, que vinhaimpondo-se sociedade inteira, de empregar os conhecimentos tcnicos existentes,assim como volumosos recursos econmicos, preferentemente no desenvolvimento e na produo de armas de fogo. O "complexo industrial-militar", pelo visto caracterstico dasociedade burguesa, remonta queles tempos (ver Zinn, op. cit.).

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    (25) A cincia moderna surgiu nos centros da burguesia urbana, cujo traslado desde onorte da Itlia e da Alemanha para a Inglaterra e os Pases Baixos provocou um trasladoligeiramente posterior dos centros de investigao cientfica. Wolfgang Lefevre, aturtheorie und Produktionsweise, Darmstadt, 1978, sustenta que as cincias naturaisforam inicialmente, acima de tudo, um instrumento ideolgico da burguesia em lutacontra os privilgios da nobreza: se a natureza obedece a leis universais, ento a ordem"natural" da sociedade aquela na qual seus membros fazem o mesmo.

    (26) Sohn-Rethel, op. cit.

    (27) Zinn, op. cit., sustenta que a sociedade burguesa surgiu por uma espcie de"acidente histrico", devido peste do sculo XIV e destruio das estruturas feudaisque trouxe consigo, juntamente com a introduo contempornea das armas de fogo,cuja produo em massa reforava a formao dos poderes centrais do Estado e a

    economia monetria (substituio do tributo em espcie por impostos): o que explicaria pelo menos por que somente na Europa as formas embrionrias da sociedade mercantilconseguiram quebrar as estruturas feudais. [ver Robert Kurz,O estouro damodernidade: com tostes e canhes, 2002, disponvel emhttp://obeco.planetaclix.pt/rkurz94.htm(acessado em 27/10/2003) (N. do T.) ]

    (28) Conforme exposto por Karl Marx no primeiro captulo deO capital , A mercadoria;disponvel emhttp://www.geocities.com/Paris/Rue/5214/ocapitallivro1.htm(acessadoem 27/10/2003) (N. do T.)

    (29) Para uma apresentao mais detalhada da viso do Grupo Krisis sobre esta questo,ver Grupo Krisis, Manifesto contra o trabalho, trad. de Heinz Dieter Heide Mann eCludio Roberto Duarte, Conrad Livros, So Paulo, 2003, ou emhttp://planeta.clix.pt/obeco/mct.htm(acessado em 27/10/2003) (N. do T.)

    (30) Kant,Crtica de la razn pura, B 132/134.

    (31) Greiff, op. cit., p. 93.

    (32) O fato familiar fsica quntica, cujas observaes no podem levar-se a cabosem influir gravemente no curso "natural" das coisas; ainda que em geral se costumeencobri-lo mediante a suposio inteiramente infundada de que por detrs daregularidade produzida pela interao de sujeito e microestrutura se escondem as leis"verdadeiras" da natureza, independentes do sujeito.

    (33) Robert Kurz,Subjektlose Herrschaft , Krisis n. 13 (1993), p. 68 [ Em portugus: Dominao sem sujeito, http://obeco.planetaclix.pt/rkurz86.htm(acessado em27/10/2003). Difundido no Seminrio Internacional "A Teoria Crtica Radical,Superao do Capitalismo e a Emancipao Humana", Fortaleza, Cear, 29.10.2000 (N.do T.) ].

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    (34)Ver Kurz, ib., p. 69.

    (35) Repito, porque tropecei com semelhante mal-entendido, que no se trata aqui do"anything goes", no sentido de Feyerabend, mas de atribuir a um mtodo a significaoque lhe corresponde; o que obviamente no equivale a coloc-lo no mesmo nvel de umfeitio de vudu.

    Original Bewusstlose Objektivitt em www.exit-online.org. Publicado na revista Krisis,n. 21-22, Nuremberg, 1998.

    Verso espanhola abreviada na Revista Mania, n. 7, p. 39 53, Barcelona, julio 2000.Traduzido para portugus por Daniel Cunha a partir da verso espanhola

    http://www.exit-online.org/

    http://obeco.planetaclix.pt/