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COSMOPOLITISMO E DIREITOS HUMANOS Eduardo C. B. Bittar 1 RESUMO Discute a relevância do discurso dos direitos humanos na consti- tuição de uma globalização em que esteja assegurado um encontro multicultural entre os povos, para além dos estreitos limites da mera globalização econômica, e reflete a respeito das questões que gravitam na órbita de uma cultura cosmopolita de direitos. Palavras-chave: Direitos humanos. Globalização. Cosmopolitismo. ABSTRACT This paper treats about the relevance of the Human Rights speech in the constitution of a globalization where a multicultural meeting between the peoples is assured, for beyond the narrow limits of the mere eco- nomic globalization, and the reflection of the respect of the questions that gravitate in the orbit of a culture of cosmopolite and of rights. Keywords: Human Rights. Globalization. “Cosmopoltism” A transição do Estado nacional (Estado de Direito Europeu Moderno Ocidental) em direção a um Estado pós-nacional, num mundo de francas transformações pós-modernas, importa na análise dos próprios 1 Livre-docente e doutor; professor associado do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); professor titular de Filosofia do Direito da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP); professor e pesqui- sador do programa de mestrado em Direitos Humanos do UniFIEO; secretário-executivo da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP).

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COSMOPOLITISMO E DIREITOS HUMANOS

Eduardo C. B. Bittar1

RESUMODiscute a relevância do discurso dos direitos humanos na consti-tuição de uma globalização em que esteja assegurado um encontro multicultural entre os povos, para além dos estreitos limites da mera globalização econômica, e reflete a respeito das questões que gravitam na órbita de uma cultura cosmopolita de direitos.

Palavras-chave: Direitos humanos. Globalização. Cosmopolitismo.

ABSTRACTThis paper treats about the relevance of the Human Rights speech in the constitution of a globalization where a multicultural meeting between the peoples is assured, for beyond the narrow limits of the mere eco-nomic globalization, and the reflection of the respect of the questions that gravitate in the orbit of a culture of cosmopolite and of rights.

Keywords: Human Rights. Globalization. “Cosmopoltism”

A transição do Estado nacional (Estado de Direito Europeu Moderno Ocidental) em direção a um Estado pós-nacional, num mundo de

francas transformações pós-modernas, importa na análise dos próprios

1 Livre-docente e doutor; professor associado do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); professor titular de Filosofia do Direito da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP); professor e pesqui-sador do programa de mestrado em Direitos Humanos do UniFIEO; secretário-executivo da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP).

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elementos formadores do Estado, quais sejam, território (1), povo (2), so-berania (3) e governo autônomo (4). Assim, podem-se indicar sensíveis mudanças, no mínimo, nos seguintes aspectos abaixo examinados:

[...] (1) a fragmentação das fronteiras territorias, e da existência de barreiras territorias limitativas do espaço de circulação de populações nacionais, através de mecanismos de integração, de blocos econômicos, da eliminação de barreiras financeiras, tributárias e alfandegárias para a circulação de bens e produtos, preparando-se caminho para uma troca intensa (econômica, em primeiro plano, mas lingüística, cultural, política e social, num segundo plano) desintegradora dos critérios ge-opolíticos que definiam o afastamento das nações por limites fictícios e traçados jurídico-territorias;(2) a compreensão de uma nova concepção de povo-cidadão, com a própria necessidade de criação de novos nichos de regulamentação do estatuto do cidadão do mundo (weltbürger, do pensamento habermasiano), permitindo a transformração da compreensão de atrelamento de acesso a direitos enquanto acesso a direitos pela fixação territorial ou pela nacio-nalidade ou como decorre de um us sanguinis, em direção a concepções transnacionais de cidadania e base humanitária de fixação de direitos;(3) desaparecimento de uma concepção estanque de soberania, como modelo de atuação com absolutidade da capacidade de auto-deter-minação do Estado (de criar regras, executar regras e julgar conforme regras, independentemente da intervenção de forças externas), seja pela incapacidade dos Estados se isolarem das políticas econômicas interna-cionais (FMI, BIRD...), seja pela profunda e permanente interferência da globalização no cenário político interno dos Estados, seja pela quebra da concepção de soberania-isolamento-competição-proteção-nacionalismo em direção a uma concepção integração-cooperação-intecâmbio, seja pela existência de um número suficiente de mecanismos internacionais, inclusive e sobretudo de direitos humanos, que instrumentalizam a atuação de forças internacionais para debelar atentados contra direitos humanos ainda que ocorram dentro de um Estado nacional (Huanda, Kosovo, Afeganistão, Iraque [...]);(4) decadência da capacidade de gerir o Estado com plena autonomia das políticas internacionais, especialmente no campo econômico, que definem a atuação de um governo autônomo, comprometendo os tradicionais mecanismos de gestão pública e de metas políticas governamentais, uma vez que os Estados nacionais se vêem vitimizados por políticas externas-estrangeiras definidoras de metas, investimentos, indicadores, finalidades, quantificadores, resultados, que cerceiam a livre constituição das políticas públicas por regras vindas desde fora, e não desde dentro.

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Assim, o que se pode perceber é a transformação dos modos de troca contemporâneos, com efeitos diretos no modelo institucional que orienta a formatação da idéia de Estado nacional.2 O processo claramente delineado hodiernamente é o de um adiantado estágio de transição entre a dimensão do estado nacional em direção ao estado pós-nacional, estágio de passagem da idéia de soberania para a idéia de blocos de interesse, estágio de germinação da cultura cosmopolita em direção ao ecumenismo (idealizado pelos estóicos, disseminados pelos cristãos-católicos, praticado pelos adeptos da maçonaria oitocentista) (MALTEZ, 2002) mais completo e ao respeito a todas as identidades, estágio médio entre o direito internacional e o direito cosmopolita, na concepção de Habermas.3 Trata-se de um momento peculiar para os Estados, momento de transição paradigmática, num contexto pós-wes-tfaliano, em que se começa a pensar com mais abrangência e seriedade o projeto da cidadania comopolita, como afirma Boaventura:

Haverá uma alternativa contra-hegemônica a esta leitura da ordem pós-westfaliana? Em meu entender, essa alternativa existe e parte de uma nova combinação estratégica entre uma ruptura radical com o estatocentrismo e uma reconstrução do papel dos Estados-nação. A reivindicação do internacionalismo solidário tem de ser guiada pelo ethos de uma democracia cosmopolita. A metáfora do cidadão-peregrino, empregada por Richard Falk (1995:95; 1999:153), talvez a melhor an-tecipação dessa reivindicação. Ela reforça a necessidade de redefinir a nossa noção de cidadania, dando primazia ao alcance indiscriminado

2 “Eurocentrismo, universalidade, pretensão de superioridade, racismo antropológico em direção às culturas primitivas, etc.: Nossa outra preocupação política, ao optarmos por chamarmos de pós-modernos, é o processo pelo qual a Europa vai aos poucos se tornando um museu. O projeto chamado ‘Europa’ sempre foi a cultura hermenêutica par excellence. Esse caráter hermenêutico inerente criou uma tensão interna peculiar no projeto desde tempos imemoriais. Por outro lado, a ‘Europa’ sempre foi mais expansiva e expressamente univer-salista que outros projetos culturais. Os europeus não apenas entendiam sua cultura como superior às outras, e essas outras, estranhas, como inferiores a eles. Também achavam que a ‘verdade’ da cultura européia é na mesma medida a verdade (e o telos) ainda oculta de outras culturas, mas que ainda não chegara a hora de as últimas compreenderem isso. Por outro lado, os europeus vinham sujeitando regularmente sua própria cultura a indagações sobre suas proposições universais, para denunciá-las como outras tantas proposições particulares com falsa pretensão a universalidade” (HELLER; FEHÉR, 1998, p. 12-13).

3 Falta ao direito internacional um órgão executivo que dê sustentação à Declaração Universal. Essa preocupação aparece em Habermas, A inclusão do outro: estudos de teoria política, 2002, p. 205. Quanto à transição das formas de direito: “A situação mundial da atualidade pode ser entendida, na melhor das hipóteses, como transição do direito internacional ao direito cosmopolita” (HABERMAS, 2002, p. 206).

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da responsabilidade partilhada sobre a autonomia individual e a uma contextualizada ética de cuidado (stewardship ethics) sobre uma ética de princípios abstratos (SANTOS, 2003, p. 518).

Ainda mais, isso pode se traduzir numa outra dimensão: num processo de crescente globalização, como pensar os desafios dela decorrentes, na medida em que a intersecção de culturas, na pós-mo-dernidade, torna-se um processo inevitável? Agora, que o século XX terminou, vale pensar:

Agora que o século terminou, podemos arriscar-nos a uma avaliação. Foi um século que se caracterizou, como previra ou preconizara Niet-zsche, pelo fim de todos os valores, ou pela ́ transmutação dos valores’. Num processo que, naturalmente, já se iniciara muito antes, o século XX viu prevalecer a Realpolitik, a razão pragmática, a adoção da máxima o fim justifica os meios, e quaisquer meios – genocídios, câmaras de gás, bombardeio de civis, bombas atômicas, tortura, etc. -, e uma subjugação quase completa das populações à vontade dos governantes. Mesmo nas chamadas democracias ocidentais, os mecanismos de tomada de decisão são viciados pelo mecanismo de escolha, pelo poder do dinheiro nas eleições, pelas estruturas burocráticas e hierárquicas permanentes, pela mídia e assim por diante e, desse modo, os governantes, na prática, e as elites que os suportam, são quem realmente tomam as decisões im-portantes (ROUANET, 2002, p. 11).

O que pensar após o final do século XX? No albor dos processos pós-modernos de relativização de paradigmas anteriores, o que pensar como paradigma para o futuro? Quais as possibilidades no campo dos direitos humanos no século XXI, questão esta que já se formulou anteriormente aqui e que deve ganhar maior tônus quando se trata de discutir como direitos humanos poderão adentrar à esfera cosmopolita e se transformar em parâmetros universais?4

Num momento de transição do Estado nacional ao Estado pós-nacional, na linguagem habermasiana, quais os rumos a serem tomados nas relações internacionais? Em que condição os Estados nacionais, como o Brasil, adentrarão ao âmbito das discussões de caráter inter-

4 Esse mesmo tom lânguido aparace na Conclusão do livro A afirmação histórica dos direitos humanos (1999, p. 403-414), de Fábio Konder Comparato.

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nacional, valorizados como atores em igualdade, ou de acordo com a condição econômica, ou seja, como desenvolvidos e subdesenvolvidos (ou com o eufemismo, “países em vias de desenvolvimento” – pays em voies du développement)?5 É possível universalizar paradigmas por vezes ocidentais e regionais de direitos humanos?6 Como não adentrar ao universo interno das culturas sem romper com seus paradigmas e dogmas tradicionais?7 Como respeitar culturas e implantar desenvol-vimento, democracia e liberdades fundamentais? Para o que é que têm servido os direitos humanos, no processo de expansão do contato entre as nações e os povos?8 Qual tem sido o direcionamento das políticas internacionais nos últimos anos? Em suma, seria o projeto cosmopolita pós-nacional, apesar de inevitável, possível?

5 Com outras palavras, essa mesma pergunta é feita por Habermas (2001, p. 162-163), identi-ficável neste trecho: “Independentemente do pano de fundo cultural, todos os participantes justamente sabem intuitivamente muito bem que um consenso baseado na convicção não pode se concretizar enquanto não existirem relações simétricas entre os participantes da comunicação – relações de reconhecimento mútuo, de transposição recíproca das atividades, de disposição esperada de ambos para observar a própria tradição também com o olhar de um estrangeiro, de aprender um com outro etc. partindo desse princípio, pode-se criticar não apenas leituras parciais, interpretações tendenciosas e aplicações estreitas dos direitos humanos, mas também aquelas instrumentalizações inescrupulosas dos direitos humanos voltadas para um encobrimento universalizante de interesses particulares que induzem à falsa suposição de que o sentido dos direitos humanos se esgota no seu abuso”.

6 Encontra-se no texto de Habermas (2001, p. 150) a mesma perplexidade aqui textualizada: “Portanto, existe uma tensão peculiar entre o sentido universal dos direitos humanos e as condições locais da sua efetivação: eles devem valer de modo ilimitado para todas as pessoas – mas como pode-se atingir isso”.

7 “De resto, o pluralismo cosmopolita desabrocha mesmo no interior daquelas sociedades determinadas ainda por tradições fortes” (HABERMAS, 2001, p. 161).

8 A resposta é clara, e quem nos dá é Boaventura de Souza Santos (2003, p. 565-566): “Os direitos humanos são o desafio mais coerente e poderoso à ideologia da globalização. A globalização é orientada para o indivíduo, glorifica a cobiça e os incentivos aos indivíduos, ao mesmo tempo que trata as pessoas como mercadorias (trabalho) ou como consumidores, que é guiada pelo lucro, fragmenta e destrói comunidades, apropria-se de bens comuns, produz vulnerabilidade e insegurança sem valores comuns. A globalização baseia-se em monopólios e hierarquias. Por outro lado, o regime de direitos humanos enfatiza a democracia e a participação, a soli-dariedade, a ação coletiva e a responsabilidade, e procura assegurar as necessidades básicas, a dignidade, o reconhecimento social e a segurança. Oferece uma visão alternativa da glo-balização, em que a justiça social e solidariedade são enfatizadas. Na realidade, os direitos humanos são por vezes as únicas armas à disposição dos fracos e das vítimas de diferentes tipos de opressão e violência. Porém, na sua versão hegemônica, o regime de direitos humanos é um instrumento de homogeneização e, por isso, tende a suprimir culturas que não sejam dominantes na emergência da teoria moderna de direitos; existe, no entanto, a possibilidade de ser estendido a outros valores e a outras culturas. O quadro dos direitos humanos tam-bém oferece opções ao individualismo que é contrário aos valores comunitários, um tipo de cosmopolitismo, de liberdade de associação para comunidades que permite a estas escolher, dentro de certos limites, ‘retirar-se’ parcialmente da cultura dominante e desenvolver a sua própria cultura, procurar, o reconhecimento da sua identidade e objetivos coletivos.”

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Essa aproximação de culturas far-se-á na medida das abruptas diferenças e intolerâncias, marcadamente fruto de uma política de interesses econômicos na disputa globalizada por espaços geomercan-tis, ou mesmo far-se-á na medida da compreensão e da aproximação tolerante, cumprindo-se uma expectativa de federalização cosmopo-lita dos interesses globais comuns?9 Neste momento, a pergunta de Habermas (2001, p. 61) é:

Para as nações que levaram em 1914 o mundo a uma guerra tecnologi-camente sem limites e para os povos que foram confrontados depois de 1939 com o crime em massa [Massenverbrechen] de uma luta de extermínio ideologicamente para além dos limites, o ano de 1945 marca um ponto de virada – uma virada para o melhor, para a domesticação daquelas forças bárbaras que irromperam na Alemanha do solo da civilização mesma. Será que de fato aprendemos algo a partir das catástrofes da primeira metade do século?

A partir desse questionamento, pode-se começar a ensaiar uma linha de respostas aos desafios trazidos neste tópico. Uma linha de saída para a humanidade, truncada, de um lado, pela inevitabilidade da intersecção de mercados e culturas e, de outro lado, pelo impera-tivo hobbesiano da beligerância que assalta a realidade internacional contemporânea, repousaria na idéia habermasiana, também discutida por Rawls (Law of peoples), da intensificação do diálogo internacional, veio este que se tornaria possível a partir do momento em que a so-fisticação do aparelhamento das relações internacionais se desse por organismos comuns e coletivos conferissem representatividade globais e praticassem justiça cosmopolita.10 Somando-se a esta idéia haberme-

9 Essa é a mesma preocupação externada também por Habermas, que vê, na ascensão do mercado pós-nacional, o único interesse de articulação real dos Estados entre si, pouco movidos pela idéia de solidariedade, quando afirma: “E quão mais difícil que a unificação dos Estados europeus em uma união política é a concordância quanto ao projeto de uma ordem econômica mundial que não se esgote na criação e institucionalização jurídica de mercados, mas sim que introduza elementos de uma vontade política mundial e que irá garantir uma domesticação das conseqüências sociais secundária do trânsito comercial globalizado” (HABERMAS, 2001, p. 71).

10 O que, sem dúvida, esbarra em certos problemas de legitimação, fundamentação e prática da universalização dos direitos humanos, pois os extremos continuam a brigar por valores radi-calmente opostos: “Essas reservas com relação ao individualismo europeu são freqüentemente manifestadas não como intenção normativa, mas antes estratégica. A intenção estratégica pode ser reconhecida desde que os argumentos encontrem-se ligados à legitimação política do autoritarismo mais ou menos ‘brando’ das ditaduras que promovem o desenvolvimento.

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asiana, de intensificação dos modos de interação dialogais no plano mundial, vem aquela outra de Boaventura de Souza Santos, de que o cosmopolitismo se fará com a agregação de um modus de respeito multicultural,11 habilidade esta a ser desenvolvida para que o processo de globalização realmente represente um passo substancial em direção à libertação e ao cosmopolistismo. Diálogo e multiculturalismo são, portanto, dois ingredientes necessários para que a globalização ganhe um sentido valorativo aceitável no século XXI.

Para isso, certamente, a via dos dualismos, das dicotomias tra-dicionais, as concepções opostas e marginalizantes não asseguram resultados. Essas diferenças tradicionais, e modernas, se expressam, sobretudo, pelos seguintes aspectos: ocidentais versus orientais; de-senvolvidos versus subdesenvolvidos; norte versus sul; individualismo versus coletivismo; capitalismo versus socialismo; liberalismo versus estatismo; agroeconomia versus tecnoeconomia, etc. Enquanto o afluxo dos valores que medram no cenário das relações internacionais conti-nuar situado no âmbito das diferenças, certamente, as oposições serão maiores que os motivos de integração, o que trará a desagregação, a discriminação, a exploração, entre outros fatores de exclusão.

Por isso, deve-se livrar-se a compreensão dos direitos humanos do fardo metafísico da suposição de um indivíduo existente antes de qualquer socialização e que como que vem ao mundo com direitos naturais. Jun-tamente com essa tese ‘ocidental’ é descartada também a necessidade de

Isso vale particularmente para a polêmica em torno da precedência dos direitos humanos. Os governos de Cingapura, Malásia, Taiwan e China costumam justificar as suas violações dos direitos fundamentais e direitos civis políticos – denunciadas pelos países ocidentais – com uma ‘precedência’ de direitos fundamentais sociais e culturais. Eles vêem-se autorizados com base no ‘direito ao desenvolvimento econômico’ – compreendido evidentemente em termos coletivo – a ‘suspender’ a concretização do direito liberal à liberdade e do direito político à participação até o país alcançar um patamar de desenvolvimento econômico que permita saciar de modo igualitário as necessidades materiais básicas da população. Para a população carente, a igualdade de direitos e a liberdade de opinião justamente não seriam tão relevantes quanto a perspectiva de um padrão de vida melhor” (HABERMAS, 2001, p. 156-157).

11 Sobre a expressão multiculturalismo: “A expressão multiculturalismo designa, originalmente, a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio da sociedade ‘moderna’. Rapidamente, contudo, o termo se tornou um modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. Existem diferentes noções de multiculturalismo, nem todas de sentido emancipatório. O termo apresenta as mesmas dificuldades e os mesmos potenciais do conceito de ‘cultura’, um conceito central das hu-manidades e das ciências sociais e que, nas últimas décadas, se tornou um terreno explícito de lutas políticas” (SANTOS, 2003, p. 26).

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uma antítese ‘oriental’ segundo a qual as reivindicações da comunidade merecem precedência diante das reivindicações de direito individuais. A alternativa ‘individualista’ versus ‘coletivista’ torna-se vazia quando se incorpora aos conceitos fundamentais do direito a unidade dos processos opostos de individuação e de socialização. Porque também as pessoas jurídicas individuais só são individuadas no caminho da socialização, a integridade da pessoa particular só pode ser protegida juntamente com acesso livre àquelas relações interpessoais e às tradições culturais nas quais ela pode manter sua identidade. O individualismo compreendido de modo correto permanece incompleto sem essa dose de ‘comunitaris-mo’ (HABERMAS, 2001, p. 158-159).

Ora, não haverá de ser a via da guerra, da dominação, da exclusão, da beligerância, da dominação, da exploração ainda uma vez a vingar como modelo de “integração” entre os povos a partir da globalização. Se assim for, trata-se de um processo sem legitimidade internacional, sem identidade cultural, bem como sem respeito a culturas locais. A glo-balização, para ser aceitável, deverá tornar-se um conceito poroso para valores de inclusão social, o que somente permitirá conferir legitimidade aos direitos humanos se, sob suas investidas, não estiverem mascarados interesses escusos de nações desenvolvidas. Com Boaventura, pode-se traçar a preocupação central da formação dos direitos humanos num movimento aceitável e tolerável do ponto de vista cosmopolita:

Nesta ordem de idéias, o meu objetivo é desenvolver um quadro analítico capaz de reforçar o potencial da política dos direitos humanos no duplo contexto da globalização, por um lado, da fragmentação cultural e da polí-tica de identidade, por outro. Pretendo apontar as condições que permitem conferir aos direitos humanos tanto o caráter global quanto a legitimidade local, para fundar uma política progressiva de direitos humanos – direitos humanos concebidos como a energia e a linguagem de esferas públicas locais, nacionais e transnacionais atuando em rede para garantir novas e mais intensas formas de inclusão social (SANTOS, 2003, p. 432).

Nem tanto aos ocidentais, nem tanto aos orientais. Não se trata de uma terceira via em políticas internacionais, mas de se perceber que nenhum dos extremos na concepção da política permitirá a agregação dos valores da comunidade internacional e muito menos a integração das concepções de direitos humanos. Trata-se também de se perceber que a questão dos direitos humanos não é um legado ocidental a

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ser imposto a povos orientais12 e muito menos um legado do Norte a ser imposto ao Sul.13 Com clareza é que se pode dizer que nem o extremismo individualista europeu e americano, nem o extremismo fundamentalista muçulmano e asiático colaboram com uma visão de mundo que não dê origem a maiores desentendimentos étnicos, reli-giosos, políticos, sociais e econômicos:14

Não apenas com o aspecto da autonomia – o atalho individualista de direitos subjetivos – a concepção européia dos direitos humanos oferece uma superfície vulnerável aos porta-vozes de outras culturas, mas, do mesmo modo, com o outro aspecto – a secularização de um domínio político desconectado de imagens de mundo religiosas e cosmológicas. Do ponto de vista de um Islã, do cristianismo ou do judaísmo, com-preendidos de modo fundamentalista, a própria aspiração à verdade é absoluta também no sentido de que, em caso de necessidade, ela deve poder ser imposta por meio da força e violência políticas. Essa concep-ção possui conseqüências para o caráter exclusivista da comunidade; legitimações religiosas ou segundo determinadas visões de mundo desse gênero são incompatíveis com a inclusão igualitária de adeptos de outros credos (HABERMAS, 2001, p. 160).

12 Na leitura habermasiana: “No que se segue, assumirei o papel apologético de um participante ocidental na discussão [Diskurs] intercultural sobre os direitos humanos e, nesse contexto, tratarei da hipótese segundo a qual aquele modelo deve menos ao fundo cultural específico da civilização ocidental do que à tentativa de se responder aos desafios específicos de uma modernidade social entrementes globalmente propagada. Essas condições dadas da moderni-dade, sejam avaliadas de modo que forem, constituem hoje um fato [Faktum] para nós que não nos deixa nenhuma escolha e, por isso, não necessita (ou não somos capaz) de uma justificação retrospectiva. Na disputa quanto à interpretação adequada dos direitos humanos, não se trata de se desejar a modern condition, mas sim de uma interpretação dos direitos humanos que seja justa com o mundo moderno também do ponto de vista de outras culturas. A controvérsia gira sobretudo em torno do individualismo e do caráter secular dos direitos humanos que se encontraram centrados no conceito de autonomia” (HABERMAS, 2001, p. 153).

13 “Imperialismo cultural e epistemicídio são parte da trajetória histórica da modernidade ocidental. Após séculos de trocas culturais desiguais, será justo tratar todas as culturas de forma igual? Será necessário tornar impronunciável algumas aspirações da cultura ocidental para dar espaço à pronunciabilidade de outras aspirações de outras culturas? Paradoxalmente – e contrariando o discurso hegemônico – é precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tem de aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribuída aos direitos humanos no contexto imperial seja convertida em uma nova universalidade, construída a partir de baixo, o cosmopolitismo” (SANTOS, 2003, p. 452).

14 Com fartos exemplos (curdos, chechenos, minorias africanas...), poder-se-ia ilustrar o quanto isso tem-se transformado em rotina na cultura contemporânea: “Nas nossas sociedades de bem-estar social intensificam-se reações etnocêntricas da população local contra tudo o que é estrangeiro – ódio e violência contra estrangeiros, contra adeptos de outros credos ou pes-soas de cor, mas também contra grupos marginais e contra os portadores de deficiências” (HABERMAS, 2001, p. 92).

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As imposições unilaterais de certos Estados, com interesses bélicos, territoriais ou econômicos, seriam bloqueadas por forças comuns dos Estados pertencentes à comunidade internacional organizada, deten-do-se o processo de constituição da diferença econômico-tecnológica como único mecanismo de imposição internacional. Em mais de uma oportunidade, Habermas já afirmou que a experiência da ONU tem-se demonstrado incapaz de reproduzir as reais necessidades da comuni-dade internacional,15 servindo como “[...] escudo para o protecionismo e o arbítrio de certas potências” 16 ou, ainda, para a proteção de certas práticas ilícitas de Estados que se apresentam diplomática ou econo-micamente superiores à própria ordem normativa internacional. Ainda assim não custa renovar a expressão habermasiana a respeito:

Isso não é o suficiente para a institucionalização de procedimentos, práticas e regulamentações relevantes em termos da economia mundial que iriam permitir a solução de problemas globais. Uma regulação da sociedade mundial desencadeada exige políticas que distribuam os prejuízos. Isso só será possível com base em uma solidariedade cosmo-polita até o momento inexistente que, sem dúvida, terá uma qualidade de ligação mais fraca que a solidariedade civil surgida no interior dos Estados nacionais. Objetivamente, a população mundial uniu-se já há algum tempo de modo involuntário em uma comunidade de risco. Daí não parecer tão implausível a expectativa de que sob essa pressão ocorra a continuação daquela grande virada abstrata, historicamente cheia de

15 As diferenças de legitimidade, poder de voto, critérios de participação, não extensividade a todos os países, etc. criam impasses insuperáveis no que tange à representatividade da ONU: “Hoje a ONU reúne Estados-membros que apresentam diferenças extremas no que toca a número e à densidade populacional, bem como ao status de legitimação e ao nível de desenvolvimento. Na Assembléia Geral, cada Estado dispõe de um voto, enquanto a com-posição do Conselho de Segurança e o direito ao voto dos seus membros levam em conta as relações de poder efetivas. O regulamento obriga os governos nacionais a respeitar os direitos humanos, a soberania recíproca de cada um, bem como a abdicar ao uso da violência militar. Com a criminalização das guerras ofensivas e dos crimes contra a humanidade, os sujeitos do direito internacional perderam a suposição geral da inocência. È verdade que as Nações Unidas não dispõem nem de uma Corte de justiça internacional (que, de resto, acabou de ser encaminhada em Roma) nem de tropas próprias. Mas podem impor sanções e conferir mandatos para a execução de intervenções humanitárias” (HABERMAS, 2001, p. 134).

16 A expressão é de inspiração habermasiana: “Pois a cada vez, a reivindicação igualitária à validade e conclusão universal também serviu para encobrir o tratamento desigual fático dos tacitamente excluídos. Essa observação despertou a suspeita de que os direitos humanos poderiam ser absorvidos por essa função ideológica. Eles não teriam servido sempre como o escudo de uma falsa universalidade – de uma humanidade imaginária, por detrás da qual um Ocidente imperialista podia esconder a sua particularidade e o seu interesse próprio?” (HABERMAS, 2001, p. 151).

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conseqüências, que fez a consciência local e dinástica fosse sucedida por uma nacional e democrática (HABERMAS, 2001, p. 73-74).

Estaria a política internacional preparada para adotar formas de justiça de igualização dos Estados, em termos de direitos e em termos de concessão de benefícios materiais, que é o que efetivamente inte-ressa a todos os povos? Estariam os órgãos de cúpula das políticas internacionais preparados para os desafios daí gerados? Estariam as culturas preparadas para um convívio, ainda considerado estranho, decorrente da circulação por todas as partes de cidadãos do mundo (Welbürger)?17 Seria justo que os direitos humanos se transformassem em recurso ocidental de uniformização da mundialidade, a partir de seus critérios e formas culturais?18 Estariam as organizações interna-cionais aparelhadas e dispostas a uma reengenharia completa de suas formas de distribuição de poder?19 Estariam os Estados soberanos dispostos a abdicar de exclusividades e benefícios de que desfrutam em sua condição de clausura internacional?

Necessariamente, as soluções demandam mais que esforços de integração econômica, como vem ocorrendo com os blocos geoeco-

17 Para Habermas (2001, p. 156-157), não se trata mais de pensar se estas culturas, ocidental e oriental, conseguem conviver, mas de se saber se a política internacional está preparada para enfrentar esses desafios: “Do ponto de vista dos países asiáticos, a questão não é se os direitos humanos como parte de uma ordem jurídica individualista são conciliáveis com tradições culturais próprias, mas sim se as formas tradicionais de integração política e social podem ser adaptadas aos imperativos dificilmente recusáveis de uma modernização aceita por inteira. Ou podem ser afirmadas contra ela”.

18 Essa questão é aqui tematizada em Boaventura: “A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topai de uma dada cultura, por mais forte que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura que a pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte a todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua por intermédio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé em uma cultura e outro em outra. Nisto reside o seu caráter diatópico” (SANTOS, 2003, p. 444).

19 “É preciso ao menos mencionar quatro variáveis importantes para esse contexto: a composição do Conselho de Segurança que precisa se unir em torno de um objetivo único; a cultura política dos Estados, cujos governos só se deixam mobilizar em prol de políticas ‘abnegadas’ a curto prazo, quando têm de reagir à pressão normativa da opinião pública; a formação de regimes regionais que propiciem só então alicerces efetivos à Organização Mundial; e por fim, a incitação branda a um comércio coordenado em nível global, cujo ponto de partida é a per-cepção dos perigos globais. São evidentes os perigos resultantes de desequilíbrios ecológicos, de assimetrias do bem-estar e do poder econômico, das tecnologias pesadas, do comércio de armas, do terrorismo, da criminalidade ligada às drogas, etc.” (HABERMAS, 2002, p. 209).

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nômicos, tratando-se da necessidade de implementação de políticas de integração que favoreçam a inclusão (HABERMAS, 2001, p. 104). Trata-se da criação de uma concepção de democracia cosmopolita,20 a projetar-se como aliança forte em temas da agenda mundial, por mecanismos de sentido pacífico a implementar políticas favoráveis à coexistência e ao desenvolvimento global harmônico.

De qualquer forma, o que se deve procurar evitar, por meio de pro-cedimentos teóricos obtusos, é a extensão da idéia de direitos humanos como simples baluarte de sustentação de um ocidentalismo neocolonia-lista, patrocinado por ONGs, setores organizados, empresários, agentes humanitários, organizações internacionais, a ser subrepticiamente im-plantado aos poucos sobre os orientais, a pretexto de praticar-se liberda-de e democracia. Aqui não haveria globalização e nem cosmopolitismo, muito menos defesa de direitos humanos, mas sim exploração, impe-rialismo e dominação. O real sentido do cosmopolitismo se dá a partir da ruptura da condição de subalternidade por aquele que é feito refém dela, ou seja, por quem é feito subalterno em políticas internacionais.21 Desse fascismo mascarado, ao menos os intelectuais deste movimento cosmopolita devem estar isentos, apesar de se saber que as demais ins-tâncias não estão necessariamente isentas (HABERMAS, 2001).

Estar isento pode ser mesmo ter o discernimento de distinguir entre as diversas formas de globalização e delas saber escolher a única legítima e verdadeira. Isso pode significar repudiar seja o localismo globalizado, seja também o globalismo localizado, nas definições de

20 “Os defensores de uma ‘democracia cosmopolita’ buscam três objetivos: primeiro, a criação dos status político dos cosmopolitas [Weltbürger, cidadãos do mundo] que pertencem às Nações Unidas não apenas por intermédio dos seus Estados, mas que também são representados por eles eleitos; em segundo lugar, a construção de uma Corte de justiça internacional com as suas competências usuais cujos seriam juízos seriam válidos também para os governos nacionais; e, finalmente, a ampliação do Conselho de Segurança nos termos de um Execu-tivo capaz de ação. Mesmo uma ONU operando fortalecida desse modo e ampliada nos seus fundamentos de legitimação poderia tornar-se efetivamente ativa, no entanto, apenas nos âmbitos de competência limitados de uma política reativa de segurança ou de direitos humanos bem como de uma política ecológica preventiva” (HABERMAS, 2001, p. 135).

21 Essa é a lição de cosmopolitismo que assume Boaventura de Souza Santos (2003, p. 437): “Para mim, cosmopolitismo é a solidariedade transnacional entre grupos explorados, oprimidos ou excluídos pela globalização hegemônica. Quer ser trate de população hiperlocalizadas (eg, população deslocada pela guerra ou por grandes projetos hidrelétricos, imigrantes ilegais na Europa ou na América do Norte), estes grupos vivem a compreensão do espaço-tempo sem terem sobre ela qualquer controle. O cosmopolitismo que defendo é o cosmopolitismo do subalterno em luta contra a sua subalternização”.

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Boaventura de Souza Santos, ambas formas fascistas de se realizar a aproximação integrativa dos povos, e que, certamente, seguem o mode-lo de imposição e desprezo cultural, dominação e opressão populares e econômicas.22 A forma de globalização aceitável e legítima passa pela concepção já delineada e denominada como cosmopolitismo, que recebe em Boaventura um tom claramente emancipatório:

Todavia, a intensificação de interações globais pressupõe outros dois processos, os quais não podem ser corretamente caracterizados nem como localismo globalizado nem como globalismo localizado. Chamo o primeiro de cosmopolitismo. Trata-se de um conjunto muito vasto e heterogêneo de iniciativas, movimentos e organizações que partilham a luta contra a exclusão e a discriminação sociais e a destruição ambiental produzidas pelos localismo globalizado e pelos globalismo, recorrendo a articulações transnacionais tornadas possíveis pelo revolução das tec-nologias de informação e de comunicação. As atividades cosmopolitas incluem, entre outras, diálogos e articulações Sul-Sul; novas formas de intercâmbio operário; redes transnacionais de lutas ecológicas, pelos direitos da mulher, pelos direitos dos povos indígenas pelos direitos humanos em geral; serviços jurídicos alternativos de caráter transnacio-nal; solidariedade anticapitalista entre o Norte e o Sul; organizações de desenvolvimento alternativo e em luta contra o regime hegemônico de propriedade intelectual que desqualifica os saberes tradicionais e destrói a biodiversidade. O Fórum Social mundial que se reuniu em Porto Alegre

22 “A primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenômeno local é a globalização com sucesso, seja a atividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adoção mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA.

À segunda forma de globalização chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de modo a responder e esses imperativos transnacionais. Tais globalismos localizados incluem: enclaves de comércio livre ou zonas francas; des-matamento e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; tesouros históricos, lugares ou cerimônias religiosos, artesanato e vida selvagem postos à disposição da indústria global do turismo; dumping ecológico (‘compra’ pelos países do Terceiro Mundo de lixo tóxico produzido nos países capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversão da agricultura de subsistência em agricultura para exportação como parte do ‘ajuste estrutural’; alterações legislativas e políticas impostas pelos países centrais ou pelas agências multilaterais que elas controlam; uso de mão-de-obra local por parte de empresas multinacionais sem qualquer respeito parâmetro mínimos de trabalho (labor stan-dards). A divisão internacional da produção da globalização assume o seguinte padrão: os países centrais especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países periféricos cabe tão-só a escolha entre várias alternativas de globalismo localizados. O sistema-mundo é uma trama de globalismo localizado e localismo globalizados” (SANTOS, 2003, p. 435- 436).

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em 2001 e 2002 é hoje a mais pujante afirmação de cosmopolitismo no sentido aqui adotado (SANTOS, 2003, p. 436).

Os direitos humanos, em verdade, na luta pela afirmação de rela-ções internacionais realmente pautadas pela afirmação dessa categoria de direitos, devem ser a expressão do front de reação ao localismo glo-balizado. Trata-se de pensar que, se tomados não no sentido universa-lista a eles atribuído pelo Ocidente, mas em seu sentido multicultural, podem servir de cultura contra-hegemônica em face dos desvarios dominadores dos ocidentais expansionistas de suas ideologias, de seus mercados, de seus imperialismos.

Os direitos humanos não podem provocar o choque de civiliza-ções, caso contrário estarão servindo para a opresão cultural. No en-tanto, as concepções tradicionais de direitos humanos em si albergam concepções caracteristicamente liberais, quais sejam: universalidade do indivíduo, certa forma de organização do Estado, dignidade absoluta, superioridade da natureza humana.23 Com esse sentido, os direitos humanos serão somente a bandeira de conquista do Oriente pelo Ocidente, do Sul pelo Norte. Assim, para que a afirmação dos direitos humanos no plano internacional realmente corresponda a um projeto cosmopolita, é necessário o respeito a certas premissas:24

a) a necessidade de superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural e, no lugar dessas tradicionais concepções, a propositura de diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas, ou seja, sobre preocupações que podem possuir nomes diversos em culturas diversas, mas que traduzem o mesmo tipo de questão de fundo;

23 “O conceito de direitos é baseado em um bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres (Panikkar, 1984:30). Uma vez que todos estes pressupostos soam claramente ocidentais e facilmente distinguíveis de outras concepções de dignidade humana em outras culturas, há que averiguar as razões pelas quais universalidade se transformou em uma das características marcantes dos direitos humanos. Tudo leva a crer que a universalidade sociológica da questão da universalidade dos direitos humanos se tenha sobreposto à sua universalidade filosófica” (SANTOS, 2003, p. 439).

24 Cf. longo trecho de reflexões em Santos, Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolit-ismo multicultural, 2003, p. 438- 443.

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b) a necessidade de identificação da diversidade de concepções de dignidade humana, não traduzidas sob o clichê de direitos humanos, para a verificação das identidades possíveis nos valores a serem protegidos;

c) a necessidade de compreensão de que existem diversas concepções de dignidade humana e de que todas as concepções são, ao mesmo tempo, relativas e incompletas, a partir da admissão de que não há um absoluto no que tange à dignidade da pessoa humana;

d) a necessidade de afirmação da diversidade cultural da expressão dignidade da pessoa humana, daí decorrendo a necessidade de opção por aquela que traduz com maior intensidade benefícios maiores e mais largos;

e) a necessidade de fazer da política emancipatória de direitos humanos uma política a serviço de duas trincheiras de batalha, a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças, para que ambas sejam realizadas com resultados.25

REFERÊNCIAS

COMPARATO, Fábio Konder. A construção histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999.

HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação do capitalismo tardio. 3. ed. Tradução de Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

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__________. Écrits politiques. Tradução de Christian Bouchindhomme e Rainer Rochlitz. Paris: CERF, 1990.

__________. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Tradução de Márcio Seligman-Silva. São Paulo: Littera-Mundi, 2001.

25 Volta-se a insistir que a inspiração dessas reflexões, seguindo longo trecho de propostas, é retirada de Santos, Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural, 2003, p. 438-443.

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HELLER, Agnes; HÉHER, Ferenc. A condição política pós-moderna. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. 2. ed. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

__________. O novo século. Tradução de Allan Cameron e Claudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

MALTEZ, José Adelino. Curso de relações internacionais. Lisboa: Principia, 2002.

SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. São Paulo: Difel, 2003.

__________. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2001.

__________. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.